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Revista Psicologia Política
versão On-line ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.12 no.24 São Paulo ago. 2012
RESENHA
A liderança carismática, segundo Alexandre Dorna
Charismatic leadership, according to Alexandre Dorna
Liderazgo carismático, segundo Alexandre Dorna
Lisete Barlach*
Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia Política, Políticas Públicas e Multiculturalismo
Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
Obra: A Psicologia Política, o Líder Carismático e a Personalidade Democrática
Autor: Alexandre Dorna
Lisboa: Livros Horizonte, 2007.
184 páginas.
ISBN: 9789722414746
A democracia está em seu período de menopausa
Baudrillard (1987 citado por Dorna, 2007:58).
Que tipo de líder é mais apropriado a um projeto de democracia? O mundo contemporâneo carece de lideranças legítimas e representativas? Reabilitar o carisma seria uma forma de apoiar a construção da democracia moderna?
O livro de Alexandre Dorna – Psicologia Política, o líder carismático e a personalidade democrática – propicia a reflexão sobre essas e outras perguntas, apresentando um quadro teórico e crítico bastante abrangente para aqueles que se propõem a navegar neste campo de conhecimentos.
Nascido no Chile, Alexandre Dorna construiu sua carreira, a partir do exílio na França, em universidades europeias. Fundador e presidente da Associação Francesa de Psicologia Politica, é atualmente docente da Université de Caen. Diretor da Revista Cadernos de Psicologia Política e da Revista Internacional de Psicologia Política, é pioneiro nos estudos sobre Psicologia Política. O tema liderança política é o assunto desta obra que aqui é resenhada a partir da tradução portuguesa de 2007.
A tese básica defendida por Dorna diz respeito à necessidade de lideranças carismáticas para a construção – ou reconstrução – da democracia moderna, abalada pelos movimentos totalitários da primeira metade do século XX e pelo chamado laissez-faire que passou a imperar do final do milênio.
Ao associar a democracia à necessidade de lideranças carismáticas, Dorna coloca os(as) leitores(as) diante de uma questão desafiadora, uma vez que as definições convencionais de carisma referem-se a características que, muitas vezes, transcendem a simples humanidade. Tomem-se como exemplo dois resultados do verbete em dicionários populares da língua portuguesa:
a) "dons e graças concedidas pelo Espírito Santo; conjunto de qualidades excepcionais de certas pessoas" (Micaelis, 2000);
b) "força ou dom concedido por graça divina; qualidades especiais de liderança (política, etc.) derivadas de individualidade excepcional" (Ferreira, 2000).
Carisma, poder e vocação são categorias weberianas e, como tais, aludem a tipos ideais, raras vezes realizados integralmente por seres humanos comuns. Weber (1991:159, citado por Almeida, 2004) associa o carisma a uma qualidade pessoal considerada extra-cotidiana [...] em virtude da qual se atribui a alguém poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanas ou exemplares.
Dependerá, então, a democracia, do advento de um salvador que, com poderes e graças concedidos pela graça divina ou pelo Espírito Santo, promova a verdadeira democracia?
Ao resenhar o livro de Alexandre Dorna, pretende-se contribuir para a caracterização das lideranças carismáticas e sua potencial relação com os projetos democráticos.
A Necessidade de Lideranças Carismáticas em Dorna
Para Dorna (2007), a sociedade contemporânea assenta em dois pilares contraditórios, a saber, a expansão da democracia e a personalização do poder. Tal contradição aponta para um cérebro dissociado do coração e uma afetividade carregada de raciocínio. Dado que a liderança carismática é capaz conciliar razão e emoção, ela seria, então, a resposta para as atuais demandas sociais.
Ao propor a reabilitação do carisma, Dorna alerta para a tentação populista e para o perigo representado pela demanda das populações por um "chefe forte", possível base do totalitarismo ou dos regimes autoritários em geral. Este tipo de tentação, presente em muitos países latino-americanos, não está distante da imagem de um "pai punitivo", autoritário, que impõe ordem e, assim, disciplina as relações humanas, seja entre os indivíduos, seja destes para com o poder.
O autor discute os excessos e os déficits de autoridade, num percurso histórico do tribalismo ao individualismo, buscando os fatores cognitivo-comportamentais que podem conduzir à prática democrática.
As Faces Típicas do Carisma
Para além do apanhado histórico, a maior contribuição de Dorna se refere à identificação, descrição e análise de cinco grandes categorias de carisma, a saber, messiânico, cesarista, totalitário, populista e republicano.
Messias, sob a ótica psicossocial, é entendido como uma figura ideal, um enviado de Deus para libertar os humanos do sofrimento e estabelecer o reino divino sobre a terra. O caráter messiânico é definido a partir da tensão entre o mundo real vivido pelos seres terrenos e a visão religiosa transcendente de salvação. O autor menciona Moisés e Jesus como exemplos paradigmáticos da liderança messiânico – carismática, pela relação direta com a divindade e pela tentativa de instaurar uma sociedade humana mais justa a partir de novos parâmetros éticos. Para ele, os profetas, como intérpretes de Deus e reveladores do futuro, seriam ainda mais representativos deste tipo de liderança que Moisés ou Jesus, pois estes atacam a ordem estabelecida por aqueles que detêm o poder religioso ou econômico. O messianismo apresenta-se como tentativa de assegurar a salvação, seja ela terrena ou no além. A compreensão desse tipo de liderança é, portanto, um imperativo diante dos perigos do fanatismo religioso, que ressurgem com a proliferação das seitas messiânicas no início do século XXI.
Por sua vez, o cesarismo carismático designa, ainda que de forma confusa, um sistema político e um poder pessoal apoiado no povo e no exército e, em função da história de Júlio Cesar, assemelha-se a um tipo de absolutismo com conotação popular. Mistura de soldado e líder político, ele é considerado o precursor do carisma de Estado, que se contrapõe ao tipo anterior, cujo poder emanava da relação com o mundo divino. O bonapartismo é englobado na categoria do carisma cesarista, uma vez que ambos – Cesar e Bonaparte – são conservadores, procuram estabelecer ordem na continuidade, são mestres no uso da propaganda e na manipulação da própria imagem, embora caiba a Cesar a autoria da célebre fórmula do pão e circo.
Os dois tipos de carisma anteriormente comentados não se confundem com o carisma totalitário. Conotado igualmente como um carisma de Estado, supera o anterior pela ênfase em assimilar os semelhantes, excluir os diferentes e perseguir os insubmissos – reais ou potenciais – fazendo deles bodes expiatórios (p. 139). A violência, também presente na instauração da nova ordem profética e na amoralidade cesariana, ganha contornos exacerbados e requintes de crueldade a partir da idolatria do chefe, do culto à personalidade e da fascinação absoluta por parte das massas. O totalitarismo apoia-se na tentação do controle e planificação e representa o "sonho místico de recriar uma sociedade clânica, vertical e única" (Dorna, 2007:138). No Estado totalitário, todas as instituições se estatizam, inexistem instâncias de mediação direta entre os indivíduos e a autoridade suprema e os contrapoderes são abolidos. Na versão moderna, o totalitarismo representa a ruptura com o humanismo; sua força repousa na vitória do forte contra o fraco. Em um discurso de 1928, Hitler resume bem esta ideia quando afirma que "os mais fortes e os mais hábeis levam a dianteira sobre os mais fracos e os menos hábeis" (citado por Dorna, 2007:141). A personalização do líder é absoluta e patológica. Da mesma forma que no cesarismo, também a propaganda é pilar central para consolidar a liderança, mas esta propaganda se distingue das demais pelo apelo a símbolos emocionais para "impressionar as massas, aterrorizar os inimigos e aumentar a agressividade dos adeptos" (Dorna, 2007:142).
Uma das maiores contribuições da análise efetuada pelo autor diz respeito aos esclarecedores comentários a respeito da sempre complicada e controversa questão da liderança populista. Como ele mesmo diz, aludindo a um movimento de massas vago e impreciso, o termo populista "presta grandes serviços à retórica política, uma vez que ninguém sabe verdadeiramente aquilo que ele representa nem que significação lhe atribuir" (p. 142).
De fato, para muitos, o carisma se confunde com a liderança populista. Emergindo, aparentemente, de lugar nenhum, sem aparelho estruturado ou doutrina elaborada, o líder populista é um self made man que se atribui a missão de conseguir a integração nacional, colocando-se contra as elites no poder em nome do sofrimento popular, disposto a mudar o regime político sem um plano estratégico ou ideologia estruturada, colocando-se nem à direita, nem à esquerda, a partir de uma retórica com impulsos de modernização e enraizamento tradicionalista e nacionalista. Para Dorna, o líder populista "se distingue de outros tipos carismáticos pela plasticidade pragmática e pela habilidade exuberante com a qual fecunda o período de crise" (p. 146). Sua atitude é a de "um irmão mais velho próximo que procura o contato direto e o diálogo com toda a gente". É a imagem do homem disponível, simples, que surge sem afetação e sem calculismo. Diferentemente dos tecnocratas, seu discurso se assemelha a uma conversa familiar ou a uma reunião num café. Pela ambiguidade de seus propósitos, este tipo de liderança reivindica um espaço político próprio (como dito, nem de direita, nem de esquerda) a igual distância de uns e de outros. O carisma populista é o dom de revelar as razões pessoais que movimentam uma ação e de se colocar em cena para que o outro possa acreditar nele. Não se baseia na mentira ou truculência do demagogo, mas sobre a magia persuasiva e o charme sedutor que faz dele o eleito do coração das massas.
O quinto tipo apresentado pelo autor é denominado carisma republicano. Estranha mistura de lucidez e energia, este líder é constituído dos "raros homens que, num momento de crise, sabem enfrentar, com altos e baixos, a adversidade, e procuram os meios de devolver confiança às massas e de despertar a imaginação do povo" (p. 150). O líder popular republicano, exemplificado por De Gaulle, Mandela e Garibaldi, emerge quando há graves ameaças ao equilíbrio e à justiça social em sociedades que perderam suas referências fundamentais e a crise daí advinda apela a uma refundação do regime.
O Carisma: o mal ou o mal menor?
"O carisma é um antidepressivo
cujo modo de usar é necessário conhecer".
Segundo o autor, o carisma não é dotado perenemente de uma conotação negativa. No entanto, a única experiência bem-sucedida relatada nesse livro diz respeito ao rei Juan Carlos, da Espanha, que ganhou aura de salvador da democracia quando do insucesso do golpe de Estado em fevereiro de 1981. Na ocasião, a frase proferida por ele – "Nenhum golpe de Estado poderá estar protegido pelo rei: ele é dirigido contra o rei" – permitiu-lhe afirmar o seu poder pessoal e reforçar o prestígio e o estatuto da monarquia num quadro pluralista.
A reflexão proposta pelo livro busca também respostas para o que o autor denomina "o déficit de carisma" atual que explicaria, para além da crise, o sentimento de estagnação. Uma vez que a pior disfunção democrática é o conformismo, alguns antídotos se fazem necessários para evitá-lo: a descentralização do poder, o desenvolvimento de uma comunicação horizontal e a diminuição das formas arbitrárias de autoritarismo (Dorna, 2007:169).
Embora aponte para os antídotos, a conclusão do autor é de que a presença do carisma é uma saída possível quando tudo está bloqueado, mesmo considerando o perigo potencial da tentação despótica, que é muito forte e subjaz a todos os tipos de carisma analisados nessa obra.
Carisma implica escuta e sintonia emocional com as massas, "um esforço de reequilíbrio perante uma realidade alterada e deformada pelas barreiras dos interesses econômicos e das lógicas tecnocráticas que se interpõem entre os representantes do povo e o próprio povo" (p. 171) e, nesse sentido, o livro efetivamente contribui para a construção de um projeto de democracia, ao apontar que este depende de uma reconfiguração na relação entre o cidadão e o Estado, tão maltratada ao longo das experiências totalitárias do século XX.
Cabe alertar, como o faz o próprio autor em outra obra (Dorna, 2008) que o carisma pode ser fabricado e usado como estratégia de sedução eleitoral, como no caso do ex-presidente francês, Nicolás Sarkosy. Ou seja, em última instância, o marketing político pode produzir, artificialmente, líderes carismáticos e estes podem não colaborar para a redução da distância entre Estado e cidadão.
Referências
Almeida, Adroaldo J. (2004) Carisma, vocação e poder em Miguel Vieira Ferreira: proposta de interpretação do sujeito a partir de categorias weberianas. Caderno Pós Ciências Sociais, 1(1), 7-21, São Luís. [ Links ]
Dorna, Alexandre. (2007). A psicologia política o líder carismático e personalidade democrática. Lisboa: Livros Horizonte. [ Links ]
Dorna, Alexandre. (2008) Nicolás Sarkozy. La psicología política de un discurso fuerte. Revista Psicología Política, 37, 85-100. [ Links ]
Ferreira, Aurélio B. H. (2000) Minidicionário séc. XXI: o minidicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. [ Links ]
Michaelis. (2000). Minidicionário escolar da língua portuguesa. São Paulo: Companhia Melhoramentos. [ Links ]
Endereço para correspondência
Lisete Barlach
E-mail: lisbar@usp.br
Recebido em: 15/02/2012
Aceito em: 09/04/2012
Aceito em: 30/04/2012
* Doutora em Psicologia Social, pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia Política, Políticas Públicas e Multiculturalismo e docente da Graduação em Marketing da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.