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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.13 no.26 São Paulo abr. 2013

 

RESENHA

 

Eduardo Leite Bacuri: biografia de um guerrilheiro

 

Eduardo Leite Bacuri: a "guerrillero"s" biography

 

Eduardo Leite Bacuri: biografía de un guerrillero

 

Eduardo Leite Bacuri: biographie d'un Guérrillero

 

 

Domenico Ung Hur

Psicólogo Mestre e Doutor em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo, SP, Brasil. Atualmente é professor do departamento de Psicologia da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO, Brasil. dutchwild@yahoo.com.br

 

 

Obra: Eduardo Leite Bacuri: biografia de um guerrilheiro
Autora: Vanessa Gonçalves
São Paulo: Plena Editorial, 2011.
212 páginas.
ISBN: 978-85-63367-068

Em meio às discussões acerca da criação da Comissão Nacional da Verdade no Brasil, que irá apurar e esclarecer os casos de violência de Estado e violação dos direitos humanos entre 1946 e 1988, foi lançado em 2011 o livro biográfico sobre importante militante brasileiro que lutou contra a ditadura militar: Eduardo Collen Leite, ou Bacuri, ou Basílio, como eram seus codinomes mais conhecidos na luta armada.

Escrito pela jovem jornalista Vanessa Gonçalves, este livro compõe coleção da Plena Editorial, que visa recuperar e registrar a história de personagens e acontecimentos relacionados à luta contra a ditadura militar, instaurada no Brasil entre os anos de 1964 e 1985. Dessa coleção, podemos citar as biografias realizadas sobre as histórias do guerrilheiro da Ação Libertadora Nacional - ALN - Virgílio Gomes da Silva (Pimenta e Teixeira, 2009) e do ex-guerrilheiro da Vanguarda Popular Revolucionária - VPR, Pedro Lobo de Oliveira (Laque, 2010). Também é válido citar que os editores da coleção são ex-militantes de organizações armadas contra a ditadura, como o Movimento Revolucionário Tiradentes - MRT - e a ALN.

Prefaciado pelo ex-ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, e também exmilitante da ALN, Paulo Vannuchi, este livro cumpre com riqueza seu objetivo de resgatar acontecimentos políticos da trajetória de Eduardo Leite em organizações políticas que aderiram à luta armada no combate contra a ditadura instaurada pelos militares que tomaram o poder do Estado. A autora realiza entrevistas com trinta e duas pessoas que tiveram contato com Bacuri, sendo: vinte e oito ex-guerrilheiros de diversas organizações, três familiares de Eduardo Leite e a filha de um casal de ex-guerrilheiros, o qual Bacuri em determinado momento foi bastante próximo.

Eduardo Leite é um personagem bastante citado nos diversos livros que retratam o período da ditadura militar, no entanto esse é a primeira obra, e até então a única, que narra exclusivamente sua história. Nela, é apreendido como um militante sensível, carismático, solidário e meigo, que nos momentos das ações armadas, demonstrava firmeza e perseverança, encarnando os dizeres do Comandante guerrilheiro Che Guevara, de que na luta armada: há que se endurecer, mas sem perder a ternura. Notamos o esforço da autora em trazer o lado mais "humano" de Eduardo Leite, provavelmente com o intuito de contrapor as críticas das publicações de ex-militares e ex-torturadores, como os textos do Coronel reformado Carlos Alberto Ustra, ex-comandante do DOI-CODI - Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna, reconhecido centro de tortura de militantes políticos, que atribuem a Bacuri a faceta de guerrilheiro cruel e violento (Ustra, 2003). Portanto, compreendemos que o livro de Gonçalves entra no campo da guerra das memórias (Dobles, 2009), em que por um lado a História Oficial, via militares, compreendia os guerrilheiros como terroristas, criminosos, marginais, e os livros das minorias que militaram na luta contra a ditadura militar e de acadêmicos apreendem os guerrilheiros como aqueles que lutaram em prol do resgate da democracia e para um novo projeto de sociedade. Ou seja, o registro da memória ainda é um terreno em disputa, não delimitado, que deve ser escrito (Vázquez, 2001) e não é à toa que ainda há segmentos do Estado que se opõem à abertura dos documentos da ditadura militar brasileira.

Gonçalves (2011) em seus quarenta e um capítulos busca narrar uma história linear, exceto pelo seu início, uma "Crônica do fim", romanceando os pensamentos e afetos de Eduardo Leite antes de ser executado, artifício que é utilizado praticamente na totalidade do livro "Iara" (Patarra, 1993), sobre a psicóloga Iara Iavelberg, militante da VPR e companheira do Capitão Carlos Lamarca. Podemos dividir o livro em seis partes; a primeira, capítulos um e dois, que aborda a adolescência de Eduardo Leite em Minas Gerais e seu período no Exército quando conhece Wilson Egídio Fava e entra na Organização Revolucionária Marxista - Política Operária - ORM-POLOP; a segunda, do capítulo três ao quatorze, referente à militância de Bacuri na VPR, desde sua fundação até seu afastamento; a terceira, capítulos quinze a vinte, quando Eduardo Leite funda uma nova Organização de guerrilha urbana, a Rede Democrática; a quarta, do capítulo vinte e um ao vinte e sete, quando Bacuri passa a integrar os quadros da ALN; a quinta, capítulos vinte e oito a trinte e sete, que relata o "calvário" de Eduardo, quando é preso e severamente torturado e, a sexta, do capítulo trinta e oito ao quarenta e um, que discute questões de sua história na atualidade.

Na primeira parte a autora relata a dificuldade da coleta de informações sobre sua vida na infância e que alguns familiares ainda encaram Eduardo como "bandido". Interpretamos tal fato pela adesão da sociedade ao discurso propagado pela mídia e pelo governo militar, pelos aparelhos ideológicos de Estado (Althusser, 1985), de que os guerrilheiros eram terroristas.

Na sua adolescência Eduardo é visto pela sua irmã como uma espécie de Robin Hood, visto que perdoava as dívidas dos clientes que não poderiam pagar pelos produtos do armazém do pai, apresentando assim traços solidários de nosso protagonista. No período do Exército é que através de sua convivência com Wilson Fava é que Eduardo se politiza e resolve ingressar na POLOP em 1965. No entanto não fica muito claro como se deu essa politização, essa conscientização acerca das contradições sociais, que fomentou sua entrada numa organização revolucionária, em grande parte formada por estudantes universitários e intelectuais, perfil bastante distinto do seu.

Na segunda parte, da militância na VPR, Gonçalves (2011) narra como se deu a fusão de parte da POLOP com o MNR - Movimento Nacionalista Revolucionário, para a criação da VPR, no momento denominado apenas como "Organização". O grupo de Eduardo estava cansado de muita discussão de cunho teórico-ideológico e quis partir para a ação direta, por isso que se juntou aos militantes do MNR, que em grande parte era formado por ex-militares cassados pelo golpe militar de 1964 e no seu início teve uma ligação direta com o político Leonel Brizola. O MNR era uma organização com um caráter mais nacionalista e não era em si comunista. Nessa parte são descritas inúmeras ações armadas da VPR, como roubos a bancos e de armamentos, denominadas pelos guerrilheiros como "expropriações", e atentados, como o envio de uma Kombi cheia de explosivos ao Quartel General do II Exército e a execução, "justiçamento", do Capitão norte-americano Charles Chandler. Bacuri participou de grande parte destas ações. Ao final desse bloco, a autora relata o desligamento voluntário de Eduardo da VPR, que se deu por motivos de discordância em relação aos encaminhamentos políticos da organização, pois, com o a fusão da VPR com o COLINA - Comando de Libertação Nacional - que deu origem em 1969 à VAR-Palmares - Vanguarda Armada Revolucionária - Palmares1, Bacuri entendeu que houve o fortalecimento de uma linha mais "massista", de trabalho político com as massas populares, ao invés da linha "militarista", que privilegia as ações armadas, que fomentariam a constituição dos focos guerrilheiros, seja na área rural, ou urbana.

Dessa forma, chegamos na terceira parte, da criação da REDE. Esta Organização singularizava-se pelo montante de ações armadas realizadas, podendo ser caracterizada como uma organização militarista com ênfase na guerrilha urbana. Atuou em uma série de ações conjuntamente com a ALN, a VPR e o MRT, como o sequestro do cônsul japonês Nobuo Okuchi, com o fim de libertar presos políticos que estavam sendo severamente torturados. É nesse período que Eduardo conhece sua companheira, e mãe de sua filha, Denise Peres Crispim.

A quarta parte é marcada pela entrada de Bacuri à ALN. O guerrilheiro já realizava ações armadas em conjunto à ALN, mas com a prisão de muitos militantes da REDE, decidiu entrar nessa organização. Tal como na parte anterior, relata-se uma série de ações armadas, como as expropriações e o sequestro do embaixador alemão E. Von Holleben, que teve o intuito de libertar quarenta presos políticos. Entretanto com o aumento da violência de Estado, as organizações guerrilheiras passam a ser desmanteladas, ocorrendo a prisão, tortura e assassinatos de muitos guerrilheiros, como do líder da ALN Joaquim Câmara Ferreira, a prisão da companheira de Bacuri, que estava grávida dele, e a infiltração de traidores dentro das organizações.

A quinta parte traz o calvário de Bacuri, quando é preso e passa cento e nove dias sendo violentamente torturado nos aparelhos de repressão do Estado. Os relatos do sofrimento passado é contado por outros presos políticos que viram Bacuri sendo torturado e agonizando nos distintos aparelhos da repressão. O guerrilheiro teve sua morte anunciada quando os órgãos da repressão publicaram uma informação falsa nos jornais de que havia fugido. Dias depois ele é executado no Forte dos Andradas, em Guarujá/SP, sendo publicada outra informação falsa nos jornais; de que morreu resistindo à prisão em tiroteio com a polícia em São Sebastião/SP.

A última parte traz informações atuais, como o ato de homenagem recebido por Eduardo Leite pelo Núcleo Memória e o Fórum dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos em 2009, como ele é lembrado pelos antigos companheiros e dos traidores que passaram pela sua vida. O capítulo sobre as traições é bastante elucidativo, não apenas para explicar a queda de Bacuri, como também de outra questão enevoada; a queda do campo de treinamento da VPR no Vale do Ribeira/SP. O ex-militante da VPR Alfredo Sirkis atribui a queda do campo à suposta delação de outro ex-militante da mesma organização, Celso Lungaretti (Sirkis, 1980/2008:267). Lungaretti em seu livro de memórias (2004) e em relato (Hur, 2009) defende-se de tal acusação, no entanto é Vanessa Gonçalves (2011) que através de suas entrevistas identifica o provável delator da área e de outras quedas de militantes; Gilberto Faria Lima, o Zorro.

Consideramos que este livro contribui em muito em registrar e propagar a história de importante militante que deu sua vida para a luta contra a ditadura militar, sendo um importante material para compreender melhor as lutas políticas daquela época e manter em visibilidade memórias que ainda não são suficientemente recordadas no Brasil. No entanto, a ausência de informações em relação ao tratamento das entrevistas nos deixa duas questões. Todos os entrevistados apenas falaram aspectos positivos sobre Eduardo Leite, ou a autora somente selecionou o que lhe interessava? Será que não seria mais interessante reconstruir um personagem multifacetado e ambíguo, relativo ao complexo agenciamento entre ações armadas e lutas políticas libertárias, ao invés do herói unidimensional que é apresentado?

No campo da Psicologia Política, compreendemos que o livro presta importante contribuição para a constituição da memória política (Ansara, 2001; 2008ab) do coletivo de ex-guerrilheiros. A memória política é o conceito que não é apenas a memória coletiva de fenômenos políticos, mas sim a articulação de dimensões do modelo da consciência política de Sandoval (2001) com a constituição de uma memória coletiva (Halbwachs, 2004), que além de gerar memória para a coletividade é dispositivo produtor de conscientização política. Então, a obra, além de intensificar a versão dos ex-guerrilheiros, pode fortalecer sua identidade coletiva, sendo a construção de uma trama comum que possibilita um maior entendimento de sua história, uma maior politização e consequente potencialização de suas ações coletivas. Dessa forma, Ansara (2001) compreende a memória política como "estratégia de resistência e luta política" (p. 357) no sentido de constituir uma memória singular a determinado coletivo que se contrapõe à memória oficial fixa e instituída pelo Estado, "desmascarando o caráter ideológico e alienante" (p. 338) da memória registrada e transmitida pelas classes dominantes. Compreendemos que a constituição da memória política dos coletivos é importante arma de afirmação, de constituição de referências comuns, de resistência (re-existência) e de criação de novas condutas e ações frente às capturas do Estado, do status quo e do processo axiomatizador do Capitalismo (Deleuze & Guattari, 1976), servindo também como instrumento de luta contra os discursos que criminalizam os movimentos sociais.

Secundariamente, o livro também pode ser fonte de outros estudos para os pesquisadores da Psicologia Política, pois está repleto de relatos de ex-guerrilheiros. Pode-se pesquisar algumas características sobre o comportamento psicopolítico dos atores sociais, como por exemplo, as motivações que os levaram a participarem da guerrilha, deixando a luta política via institucional para aderir à luta armada contra a ditadura.

Uma questão que torna o livro bastante didático, é que no decorrer do texto há uma série de notas explicando a história de determinados personagens políticos e algumas organizações. No entanto não se cita qual é a referência dessas notas. Contudo, constatamos que são adaptações de informações contidas no livro Direito à verdade e à memória (Brasil - Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007).

Para finalizar, consideramos que o tipo de narrativa utilizada, mais focada na trajetória de Bacuri, contando as ações armadas que participou e histórias engraçadas e cinematográficas torna a leitura mais palatável ao público leigo. Entretanto pode trazer um pouco de desconforto ao público acadêmico que busque uma maior discussão política, crítica e histórica acerca dos acontecimentos em que esteve envolvido.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em 12/08/2012.
Aceito em 26/01/2013.

 

 

1 Organização que a presidenta Dilma Roussef fez parte.

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