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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549Xversão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.16 no.37 São Paulo set./dez. 2016

 

EDITORIAL-CONVIDADOS

 

Psicologia Política e Ruralidades

 

Political Psychology and Ruralities

 

Psicología Política y Ruralidades

 

Psychologie Politique et Ruralités

 

 

Domenico Uhng HurI; Marcelo Gustavo Aguilar CalegareII

IUFG - Brasil
IIUFAM - Brasil Editores Convidados

 

 

A REVISTA PSICOLOGIA POLÍTICA tem a satisfação de apresentar o número temático "Psicologia Política e Ruralidades", organizado em parceria com a Associação Ibero-Latinoamericana de Psicologia Política (AILPP). A temática das ruralidades sempre foi uma problemática que margeou os estudos da Psicologia Política na América Latina1, mas que não teve seu destaque merecido. Citamos como exemplo o projeto original do livro, referência de nossa área no continente, Psicologia Política Latinoamericana (Montero, 1987). Esta obra coletiva almejava ter, como um de seus capítulos, a discussão sobre o comportamento político do campesinato. Infelizmente tal capítulo não foi inserido, provavelmente pela prevalência dos estudos psicopolíticos na esfera urbana e não na rural. Consideramos assim que este número temático tenha como uma de suas funções suprir essa lacuna histórica, mesmo que tardiamente.

Mesmo relegado à margem, os estudos psicológicos sobre as ruralidades não são novos. Landini (2015b) cita obras clássicas que são pilares do campo, como as de James (1925) e de Fromm e Maccoby (1973). Também menciona trabalhos bastante recentes, de 2009 para cá, reivindicando a constituição de um campo de estudos interdisciplinares, intitulado de "Psicologia Rural", que inclusive já teve a realização de dois congressos latino-americanos. Assim, a Psicologia Rural não é uma subdisciplina da Psicologia, Psicologia Social, Psicologia Política ou qualquer outra ciência psi. Trata-se de um campo de convergência e de interesse que articula temáticas rurais e psicossociais. Em suma e como definição, a Psicologia Rural tem sido o rótulo para designar um campo de problemas que articula as ciências psicológicas e ruralidades. Seguindo um desenvolvimento diferente dos países anglo-saxões, na América Latina a característica desse campo interdisciplinar tem sido sua perspectiva social com enfoque comunitário, com preocupações voltadas às populações mais desfavorecidas e oriundas de contextos rurais deste continente (Gonçalves, Landini, Leite, Calegare & Monteiro, 2016).

Na Psicologia Política brasileira e latino-americana também há um amplo leque de investigações que trabalham com a temática das ruralidades. Como exemplo, realizamos um pequeno recorte e citamos algumas teses de doutorado e dissertações de mestrado orientadas por um dos principais protagonistas e difusores da Psicologia Política no Brasil, o Prof. Dr. Salvador Sandoval, coordenador e fundador do Núcleo de Psicologia Política e Movimentos Sociais da PUCSP. Grande parte desta produção que articula Psicologia Política e ruralidades refere-se a diferentes dimensões do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), um movimento social singular brasileiro que atua nas lutas pelo direito à terra e contra os latifúndios, enormes propriedades características da injustiça social que marca a realidade latino-americana. Andrade (1988), Tarelho (1998), Soares (2002) e Reck (2005) analisam a formação da consciência política em participantes do MST de assentamentos de diferentes regiões do país. Lara Jr. (2005) discute o fenômeno da mística, que articula religião e política, como produtor de um sentimento de coletividade no movimento social, enquanto Oliveira (2011) aborda a formação educacional de jovens no MST. Também relacionado ao MST, Gomes (2002) investiga a consciência política nos técnicos agrônomos do Instituto de Terras do Estado de São Paulo que atendem famílias acampadas e assentadas. No que se refere às questões gerais das ruralidades, citamos as pesquisas de Attab (1990) sobre representações da escola na zona rural, de Mortara (1989), que analisa a consciência social de moradores num bairro rural e de Costa (2011), que trabalha com jovens do movimento de pequenos agricultores. Sandoval também orientou estudo sobre comunidades ribeirinhas, tal como o de Spinola (1997), que versa sobre a organização de ribeirinhos no cuidado do seu ambiente e do peixe. Vale ressaltar também a pesquisa de Salotti (1982) que discute os efeitos do capitalismo na agricultura, antevendo o que veio a se tornar o agronegócio. Além dessa produção diretamente ligada às ruralidades, também há estudos relacionados à intervenção comunitária, meio ambiente e educação ambiental.

Na própria REVISTA PSICOLOGIA POLÍTICA também tivemos a publicação de alguns artigos sobre a temática das populações rurais. Grande parte desses estudos aborda diferentes dimensões do MST. Silva (2003) analisa estudos psicossociais realizados sobre o MST até a data em questão. Domingues (2004) investiga a luta pela terra pelo MST a partir do enfoque teórico psicanalítico. Lacerda Jr. e Guzzo (2006) estudam a consciência política de um militante do MST a partir de sua história de vida, Lara Jr. (2007) analisa a supracitada mística no MST e Groff, Maheirie & Prim (2009) discutem as experiências de coletivização num assentamento do MST. A luta pela terra não é apenas restrita ao MST, tal como Rosa, Garcia & Leal (2007) nos mostram ao debater a luta pela demarcação da terra por populações indígenas.

A questão das populações rurais da floresta amazônica também foi abordada, com Pessoa (2005) que analisa os efeitos do processo de invasão e colonização da Amazônia Sul-ocidental. E Calegare (2014), que discute as mudanças identitárias ocorridas no interior de uma comunidade ribeirinha, na qual sua população optou por tornar-se indígena, como estratégias para ter acesso a bens e serviços sociais. Outro estudo sobre comunidade ribeirinha também é realizado por Alves e Justo (2011), que discutem as narrativas de uma população ribeirinha que foi desalojada devido à construção de uma hidroelétrica no Mato Grosso do Sul.

Por esta recapitulação, podemos perceber que as temáticas relacionadas às ruralidades têm sido estudadas pela Psicologia Política brasileira há um tempo. Dessa feita, mesmo que se tenha nomeado um novo campo interdisciplinar chamado Psicologia Rural, está claro que o interesse pela articulação de problemas rurais pela ótica psicológica tem plena articulação com a Psicologia Política brasileira e latino-americana. Prova disso é que nestas décadas do novo milênio, temos muitas publicações relevantes no campo das ciências psi e ruralidades elaborados por distintos grupos de pesquisa. Na Argentina foi publicada a ótima coletânea Hacia uma Psicologia rural latinoamericana (Landini, 2015a) e no Brasil citamos os livros produzidos por professores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Psicologia e contextos rurais (Leite & Dimenstein, 2013), Condições de vida e saúde mental em contextos rurais (Dimenstein, Leite, Macedo & Dantas, 2016), e da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) Nos interiores da Amazônia: leituras psicossociais (Calegare & Higuchi, 2016).

Como expressão do crescimento da produção que articula 'Psicologia Política e Ruralidades', este número temático busca apresentar artigos de pesquisadores de diferentes países da América Latina que versam sobre o tema. Grande parte dos trabalhos aqui publicados foram originalmente apresentados no II Congresso Latinoamericano de Psicologia Rural, realizado em outubro de 2016 na cidade de Seropédica, Rio de Janeiro. Constata-se nesses trabalhos o caráter multidisciplinar da Psicologia Política latino-americana, um campo que se define mais pelo entrecruzamento de diferentes disciplinas de saber e referenciais teóricos (Silva & Corrêa, 2015), ao invés de ter uma totalidade e identidade única.

Participam oito artigos de pesquisadores de Psicologia e ruralidades de diferentes países da América Latina: Brasil, Colômbia, Cuba, Argentina, Chile e Uruguai. O artigo Humilhação social e contextos rurais: discussões a partir de pesquisas em três comunidades rurais de Saulo Luders Fernandes (Universidade Federal de Alagoas, UFAL), Denise Zakabi (Universidade de São Paulo, USP) e Marcelo Gustavo Aguilar Calegare (Universidade Federal do Amazonas, UFAM) aborda as distintas dimensões psicossociais da humilhação social em três coletividades rurais distintas: quilombolas de uma comunidade do agreste de Alagoas, jovens residentes num assentamento na costa litorânea do Ceará e uma comunidade ribeirinha do Amazonas, buscando similaridades e diferenças nessas experiências.

Ana Silvia Ariza de Souza e Bader Burihan Sawaia, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), em A saúde como Potência de Ação: uma análise do coletivo e de Comuna do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a partir de pesquisa-ação participante e realização de entrevistas com 49 militantes, discutem a saúde num assentamento do MST, articulando a participação política e coletiva como agenciamentos de potência que fomentam os próprios processos de saúde.

No artigo Disyuntivas Ambientales y Políticas de los Campesinos Paperos del Páramo De Cortadera en Boyacá-Colombia, José Roberto Álvarez Múnera e Juan Carlos Barreto Piña, da Universidad Pontificia Bolivariana (UPB - Medellín/Colômbia) investigam, a partir da metodologia etnográfica, as práticas e posicionamentos políticos de camponeses que se referem ao cultivo de batata e a sua relação com o ambiente na região de Cortadera na Colômbia.

Haydelín Rosa Rodríguez Chávez, do Instituto de Investigações Agropecuárias "Jorge Dimitrov" (Cuba) e da Universidade de Cuenca de Plata (UCP, Argentina), e Fernando Landini (UCP, Argentina), em Experiencias y Buenas Prácticas de Equidad de Género en el Programa de Innovación Agropecuaria Local en la Provincia de Granma, Cuba, discutem os efeitos de um programa de inovação rural que, a partir de oficinas de sensibilização, fomenta práticas de equidade de gênero em Cuba. Trazem assim uma importante reflexão sobre a mulher no campo rural.

O artigo Fortalecimiento Institucional de Procesos Asociativos Rurales en Uruguay. Modelos de Desarrollo, Grupalidad y Organizaciones del Trabajo, de Daniel González Fajardo, da Universidade da República (Uruguai), aborda os Projetos de Fortalecimento Institucional (PFI) no Uruguai, que são práticas que objetivam a intensificação dos processos associativos entre pequenos agricultores no país. Sua análise é realizada através dos conceitos de território, grupalidade e organizacional.

O ensaio Una aproximación al Concepto Comunidad Rural en Psicología Comunitaria de Cristian Zamora Astudillo & Álvaro Castillo Muñoz, da Universidade de Playa Ancha (Chile), busca discutir o conceito de comunidade rural na Psicologia Comunitária e nos estudos rurais, privilegiando as proposições de deslocamento, território e redes sociais.

Em Crianças do Campo: da invisibilidade ao reconhecimento como sujeito de direito, de Adelaide Alves Dias, Maria do Carmo de Moura Silva Soares e Maria Roberta de Alencar Oliveira, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), realiza-se uma reflexão teóricoconceitual sobre a infância (no campo) numa perspectiva interculturalista crítica. As autoras salientam o processo de dupla subalternização das crianças do campo à luz do multiculturalismo intercultural.

Para fechar o número temático o artigo A Dupla Consciência Latino-americana: Contribuições para uma Psicologia Descolonizada de Bruno Simões Gonçalves (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) discute as matrizes do pensamento do colonizado na América Latina que acomete as minorias sociais e as populações rurais. Apresenta a noção da dupla consciência latino-americana, resultado do entrelaçamento da colonialidade do poder com uma mestiçagem crítica. Consideramos que a reflexão que empreende influenciará na constituição de uma Psicologia descolonizada não apenas no campo rural, mas também nas diversas territorialidades.

Por fim, agradecemos não apenas aos autores, como também aos pareceristas ad hoc dos artigos, pesquisadores e professores de distintos países da América Latina que contribuíram na avaliação e aprimoramento dos artigos. Esperamos que este número temático seja um convite aos leitores da REVISTA PSICOLOGIA POLÍTICA para adentrarem nesse campo e futuramente contribuírem com novas pesquisas e elaborações.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1 Infelizmente a temática das ruralidades é praticamente ausente da Psicologia Política do hemisfério norte do planeta, principalmente pela norte-americana, tal como se constata sua ausência em livros recentes da área, como de Jost & Sidanius (2004), Monroe (2002), Houghton (2009) e Cottam e col. (2010).

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