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Revista Psicologia Política
versão impressa ISSN 1519-549Xversão On-line ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.17 no.40 São Paulo set./dez. 2017
ARTIGOS
Desconstruindo o discurso terapêutico: identidade e interioridade
Deconstruyendo el discurso terapéutico: identidad e interioridad
Déconstruire le discours thérapeutique: identité et intériorité
Ian Parker
Professor Emérito de Administração na School of Management da University of Leicester. Cofundador do Discourse Unit. discourseunit@gmail.com
RESUMO
Este artigo parte das abordagens "sócio-construcionistas" em psicologia e disciplinas correlatas, que questionam os preceitos sustentados por acadêmicos e profissionais acerca de como nossas mentes funcionam e a maneira como nos comportamos. Parte do projeto de pesquisa crítica em psicologia, que se ocupa da construção social de fenômenos da psicoterapia e psicologia, dedica-se a olhar para as condições culturais mais amplas a partir das quais tratamos desses temas. O discurso terapêutico, conforme essa perspectiva, deve ser analisado no contexto da "cultura psicológica". O artigo desenvolve uma análise do discurso terapêutico a fim de entender como a identidade de psicoterapeutas é atuada. A desconstrução da identidade em psicoterapia volta-se também, dessa forma, à tarefa de desconstrução das noções de interioridade que sustenta a psicoterapia na cultura psicológica contemporânea.
Palavras-chave: Terapia, discurso, desconstrução, identidade, interioridade
RESUMEN
El articulo parte de las perspectivas "socio-construccionistas" en psicología y disciplinas cercanas, que cuestionan los preceptos sustentados por académicos y profesionales sobre como nuestras mentes funcionan y la forma como comportamos. Parte del proyecto de investigación critica en psicología, que se ocupa de la construcción social de fenómenos de la psicoterapia y psicología, dedica-se a mirar para las condiciones culturales más amplias desde las que tratamos eses temas. El discurso terapéutico, para esa perspectiva, debe ser analizado en el contexto de la "cultura psicológica". El artículo desarrolla un análisis del discurso terapéutico para entender como la identidad de psicoterapeutas es actuada. La desconstrucción de la identidad en psicoterapia vuelve también, así, a la tarea de desconstrucción de las nociones de interioridad que sostiene la psicoterapia en la cultura psicológica contemporánea.
Palabras clave: Terapia, discurso, desconstrucción, identidad, interioridade.
RÉSUMÉ
Cet article s'inspire des approches «constructivistes sociales» de la psychologie et des disciplines connexes qui remettent en question les affirmations de vérité faites par des universitaires et des professionnels sur la façon dont notre esprit fonctionne et sur notre comportement. Cet article porte sur le sujet de la psychologie, et s'intéresse à la construction sociale des phénomènes psychologiques et psychothérapeutiques. Le discours thérapeutique, selon cette perspective, doit être analysé dans le contexte de la «culture psychologique». L'article développe une analyse du discours thérapeutique pour comprendre le spectacle de l'identité des psychothérapeutes. La déconstruction de l'identité en psychothérapie est également en train de déconstruire les concepts de maintien de la psychothérapie dans la culture psychologique contemporaine.
Mots-clés: Thérapie, discours, déconstruction, identité, intériorité
Desconstruindo o discurso terapêutico: identidade e interioridade
Os últimos anos presenciaram o surgimento das abordagens "sócio-construticionistas" em psicologia e disciplinas correlatas, tendo tais abordagens questionado os preceitos sustentados por acadêmicos e profissionais acerca de como nossas mentes funcionam e a maneira como nos comportamos (por exemplo, Burr, 1985; Gergen, 1999). Esses preceitos têm sido tratados como narrativas, histórias ou "discursos" sobre os processos psicológicos, e desta forma o construcionismo social tem sido atraente para aqueles que trabalham no novo campo da "psicologia crítica" (Parker, 1999). Uma parte do projeto de pesquisa crítica em psicologia, que se ocupa da construção social dos fenômenos da psicoterapia e psicologia, dedica-se a olhar para as condições culturais mais amplas a partir das quais tratamos desses temas. O discurso terapêutico, conforme essa perspectiva, deve ser analisado no contexto da "cultura psicológica" (Gordo e De Vos, 2010). Este artigo é parte desse projeto crítico mais abrangente (Parker, 2009).
Devemos tomar a sério a análise de discurso se quisermos compreender a identidade, neste caso a identidade profissional dos psicoterapeutas. Discurso comporta padrões de fala e de escrita, e outros sistemas de significado que incluem propaganda, cinema e televisão, todos os lugares onde há mensagens sobre como o mundo é (Parker, 2002). Discurso não apenas produz imagens do mundo e das coisas que estão nele, mas também prescreve a maneira como os sujeitos que o habitam são. O discurso terapêutico é um agrupamento de significados sobre como as pessoas devem sentir e o que devem dizer para serem vistas pelas outras como mentalmente saudáveis, ou pelo menos com o que se presume ser uma saudável consciência de sua doença mental (mental ill-health). É um discurso que está se tornando cada vez mais poderoso na cultura ocidental contemporânea (Parker, 2007).
Quando o discurso terapêutico define posições a serem adotadas por sujeitos para que possam falar e ser compreendidos, não faz isso simplesmente distribuindo espaços vazios na linguagem que nos convidem a entrar. Quando assumimos uma posição de fala no discurso, não o fazemos da mesma forma como quem escolhe roupas num armário. Embora seja possível falar cinicamente, e entrar no que Goffman (1971) chamou de "distância do papel" em nossa atuação, ainda estamos, mesmo ali, assumindo uma posição. Entrar em um distanciamento de papéis ainda é comunicar a outros algo sobre nossa relação com o que fazemos, ou com o discurso que falamos. Esta análise deve muito ao estilo de descrição acurada da maneira com que representamos a nós mesmos aos outros, que Goffman exemplifica, mas é também definida pela análise histórica e institucional provida por Foucault (1979, 1981). A maior parte do tempo, precisamos falar em formas de linguagem, logo, no discurso não podemos controlar; o discurso que nos habita e nos move de maneira que opera para além da nossa consciência imediata. As contradições e funções desta linguagem são o que abordagens metodológicas tais como análise de discurso tornaram aparente (p. ex. Potter e Wetherell, 1987), e que abordagens foucaultianas da análise de discurso situaram em processos mais amplos de cultura e poder (Parker, 2002).
Há algo específico do discurso terapêutico que nos arrasta ainda mais firmemente para o alcance de seu código, para sua rede de pressupostos sobre o mundo, as pessoas e o interior de suas mentes. O discurso terapêutico inclui, por exemplo, uma atenção deliberada ao cinismo como um problema, e uma exigência de que deve haver um profundo compromisso com isso, quando o sujeito fala torna-se difícil voltar atrás quando terminou de falar. Retornarei com detalhe a estas características em breve. Falar de uma posição terapêutica, é atuar a subjetividade de tal maneira que jamais poderá ser atuada qualquer outra posição da mesma forma.
O discurso terapêutico também funciona dentro de certos aparatos de cuidado e responsabilidade que escondem no mesmo momento que reproduzem padrões de poder no domínio mais amplo do complexo psi. O complexo psi é uma rede de teorias e práticas relativas à "psicologia" em departamentos universitários, na clínica e na cultura popular que discutem e determinam como as pessoas devem se comportar e pensar (Ingleby, 1985; Rose, 1985). Por exemplo, "C&R", nos Hospitais Especiais Britânicos, significava, alguns anos atrás, "Controlar & Refrear", descrevia o procedimento de contenção ao solo e medicação de presos agitados. O procedimento ainda é chamado de "C&R", mas agora foi ressignificado em muitos lugares para "Cuidado & Responsabilidade".
Embora algumas formas de análise de discurso tenham sido úteis em traçar os contornos do discurso terapêutico em transcrições de sessões (p. ex. Siegfried, 1995), há uma relutância compreensível a que se especule o que as pessoas realmente pensam ou sentem quando falam ou escrevem no interior do discurso. Como poderemos explorar os tipos de subjetividade constituídos por um discurso e os efeitos relativamente duradouros sobre os sujeitos que entram num discurso sem psicologizar, sem reduzir nosso nível de explicação ao que ocorre dentro da cabeça de cada um? A redução psicológica é um convite tão poderoso na cultura contemporânea, na nossa cultura psicológica ocidental, que seria uma ironia de fato se nosso entendimento do discurso terapêutico, que extensamente individualiza os fenômenos sociais, caísse nesse tipo de armadilha (cf. Gordo-Lopez, 2000). Mas esta é a tarefa deste artigo, e persigo esta tarefa de tentar capturar formas de subjetividade constituídas pelo discurso terapêutico enquanto "identidades terapêuticas".
Através do tema das identidades terapêuticas, também lanço o olhar analítico sobre os profissionais que servem o complexo psi, aqueles que usualmente se beneficiam dele e estão aptos a determinar o que é saudável e o que não é, o que é normal e o que é anormal. É importante, porém, salientar que eles também sofrem. De fato, uma das características da identidade terapêutica é que é o terapeuta profissional quem sofre primeiro, antes que possa convidar a outros a vivenciar os efeitos do discurso terapêutico.
Não há nada acidental nisto, e não será nenhuma surpresa para os que leram Foucault (1979) em seu relato sobre o desenvolvimento das formas de confissão na cultura ocidental que acompanham a crescente observação e regulação das populações. A espiral da confissão, que tem suas raízes mais fundas no confessionário católico, e que se intensifica ao longo do século dezenove e princípio do vinte com a emergência da confissão psicanalítica no divã, se faz impregnar no seio da população a partir da burguesia e da pequena burguesia. A obsessão com segredos internos, com frequência segredos sexuais, é de início aristocrática, então da classe média e só depois passa a recrutar a classe operária. Conforme defende Foucault (1979, p. 120): "as mais rigorosas técnicas são formadas e, mais particularmente, aplicadas primeiramente, e com a maior intensidade, nas classes economicamente privilegiadas e politicamente dominantes".
Necessitamos apenas olhar para a composição de classes da comunidade psicanalítica britânica para enxergar as origens históricas burguesas, até mesmo aristocráticas, do discurso terapêutico mantidas, sedimentadas até os dias atuais (Young, 1999). As instituições de formação psicanalítica comumente, na maioria dos países, formam seus quadros das camadas sociais mais privilegiadas, e tanto mais assim nos grupos ligados à Associação Psicanalítica Internacional (IPA), que na Grã-Bretanha está sediada no Instituto de Psico-Análise (Institute of Psycho-Analysis). A formação, para a qual é quase impossível obter apoio financeiro, requer análise cinco vezes por semana e que deve ser paga em acréscimo às taxas de formação. Também encontra-se na comunidade terapêutica e psicanalítica uma hierarquia de classes que frequentemente se sobrepõe às hierarquias de opressão de gênero, assim tolerando mulheres com os antecedentes corretos (mesmo aquelas que não sejam tão alta classe quanto a Princesa Marie Bonaparte). Ou seja, a classe e a inclusão de mulheres com antecedentes da classe média, é em geral mais importante que o gênero. Isto não significa que o gênero não seja importante. Que muitas mulheres participem nas instituições terapêuticas e analíticas confere ao discurso terapêutico algumas características particulares e consequências à sua análise.
A hierarquia de classe em psicanálise se entrelaça mais intimamente com padrões de opressão racial, mesmo que haja exceções e uma relutante aceitação de membros da classe alta como o Príncipe Masud Khan (Hopkins, 2006). Essa hierarquia de classe também corresponde e reproduz a hierarquia entre psicanalistas, psicoterapeutas e counsellors1. Uma das coisas em jogo na maneira como falamos terapeuticamente como profissionais em diferentes níveis nesta estrutura piramidal, portanto, é o quanto somos levados a sério pelos que nos cercam. Uma das características peculiares e encantadoras no discurso terapêutico é que atingimos nossa posição não só, ou até nem mesmo, mostrando nosso conhecimento, mas mostrando nossa interioridade. Mas como esse discurso permite e nos encoraja a fazer isso? A parte principal deste artigo descreve suas principais características.
Identidade terapêutica
Descreverei três componentes da identidade terapêutica, o "eu" (self), as "emoções" e os "relacionamentos", porém o sentido distintivo de cada um desses componentes esteja não tanto no que cada um deles supostamente é, e como são referidos no discurso terapêutico, mas em como se inter-relacionam. Este inter-relacionamento é crucial, e defendo que o eu terapêutico apenas funciona porque existem certas suposições acerca da natureza das emoções e dos relacionamentos; que as emoções para sujeitos terapêuticos têm um papel crucial na definição do eu e dos relacionamentos, e que os relacionamentos são o meio necessário para elaborar um sentido terapêutico do eu e das emoções. Estudos sobre a construção social das emoções mostraram que os sentimentos que damos como garantidos, como os alicerces de nossos seres são construídos bem diferentemente em diferentes culturas (p. ex., Harré, 1986).
Esta é uma questão especialmente importante de se ter em mente quando estudamos a cultura terapêutica, uma vez que as emoções são frequentemente tratadas como tribunais superiores no tocante ao que julgamos ser verdadeiro. Uma segunda característica, que esta "psicologia originária" tem em comum com muitas outras, é que ela opera por uma série de oposições binárias (cf. Heelas e Lock, 1982). No caso da identidade terapêutica, esse caráter de oposição binária é dado, ao menos em parte, pelo modo como cada um dos três componentes convoca os outros, embora haja outros aspectos dessa organização bipolar do eu, emoções e relacionamentos que também são importantes. No mínimo, oposições binárias facilitam realmente a apresentação de uma análise.
Podemos encontrar modos do discurso terapêutico em arenas clínicas que requerem que adotemos uma certa noção de indivíduo para funcionarem, em popularizações de terapia em diferentes meios que ativamente encorajam as pessoas a adotarem tal noção de indivíduo, e em reflexões teóricas sobre terapia em textos acadêmicos e profissionais que assumem ou defendem a identidade terapêutica como a norma. Vale a pena notar que os textos teóricos que eu enfoco neste artigo não se acham "fora" do fenômeno, mas são feitos pensando em convidar o leitor a se engajar no discurso de forma a usar os textos como ensaio e elaborar o que a individualidade terapêutica deva ser. Aqui se acham certos tipos de textos teóricos que operam didaticamente, não tanto pela aplicação direta de categorias terapêuticas, mas pela definição e reelaboração de fenômenos empíricos (p. ex. Phillips, 1994). Vejamos primeiramente o eu.
Eu
Meu interesse aqui é em como o "eu" (self) funciona em relação às emoções e aos relacionamentos. Refiro-me a esses "eus" estruturados por identidade terapêutica como "sujeitos terapêuticos". Sujeitos terapêuticos são aqueles que atuam como psicoterapeutas e aqueles que se tornaram praticantes habilitados do discurso terapêutico seja por serem clientes em counselling, terapia ou análise, ou por serem atentos leitores de textos terapêuticos. Há três registros, os de profundidade, fragilidade e moralidade.
Profundidade. Um registro terapêutico chave é que o eu seja tratado como algo bem abaixo da superfície. Tomemos, por exemplo, o modo como sujeitos terapêuticos falam sobre "ouvir" e "ser ouvido". Na conversa terapêutica, "ouvir" e "ser ouvido" têm um significado ligeiramente diferente da fala normal. Quando dizemos "não sei se você de fato me ouviu", parece haver a imagem de algo interno, de maneira que você possa fisicamente ouvir algo. Entretanto, o discurso terapêutico define essa situação de forma a assumir que há um eu mais profundo que pudesse realmente "ouvir" ou "não ouvir" o que está sendo dito. As noções de "ouvir" e "ser ouvido" são referidas como requerendo uma percepção emotiva aprofundada ou abaixo da superfície, que é mais profunda que a simples recepção acústica.
Em relação à questão do eu e das emoções, há uma sugestão aqui de um homúnculo quasi-Catersiano sob a casca do corpo. Porém, isso não é propriamente cartesiano porque a mente é em certo sentido tratada como equivalente do eu, e o eu não é tratado como separado do corpo. A dor física, no discurso terapêutico, é necessariamente também dor mental, e é de certo modo uma amplificação dela, e ressoa com ela. Há um certo deslocamento entre o corpo e a mente das emoções chaves, como se passassem da rígida casca do indivíduo ao mais suave e maleável eu interno, fazendo com que, por exemplo, algo "doloroso" seja sentido no interior do eu em vez de nos limites físicos do corpo.
Em relação ao eu e aos relacionamentos, há um paradoxo aqui, que é o de que, quanto mais fundo formos, tanto mais se faz sentir a necessidade de conexão com os outros.
Fragilidade. Um segundo registro é que o eu é pensado como sendo frágil. É evidente que seres humanos são um tanto frágeis, mas essa fragilidade é muito mais intensa no discurso terapêutico. Assim, por exemplo, se alguém sofreu um acidente ou foi roubado, um sujeito terapêutico falará deles como tendo sido "violados". Novamente, há noções de profundidade aqui, um eu profundo que foi afetado pela dor física, mas há a ideia de que somos seres frágeis e sensíveis.
Quando nos pronunciamos bem do interior do discurso terapêutico, mostramos nossa sensibilidade e dor em relação às histórias dos outros e aparentaremos estar muito muito preocupados, como se nós também tivéssemos sido feridos profundamente em nossos eus em razão de fatos desagradáveis. Ora, devo esclarecer que não é que esteja dizendo que é uma coisa ruim preocupar-se com os outros. O que estou fazendo é chamar atenção à maneira como isso é representado num certo tipo de fala terapêutica.
A fragilidade é em si mesma um exemplo moral que indica sensibilidade, mas um certo tipo de sensibilidade que é a sensibilidade a outros. Há também uma noção de contaminação que circunscreve como os relacionamentos e outras exposições a imagens externas irão afetar o "eu".
Moralidade. O terceiro registro é de que o eu deve ser um exemplo moral para os outros.
Teremos notado, talvez, que terapeutas frequentemente dirigem suas vidas públicas como se fossem exemplos morais. Eles vivem num papel de embaixador. Este é o motivo pelo qual são às vezes beatíficos e sérios. Aqueles que são realmente atraídos por suas identidades terapêuticas aparentam ser bastante conscienciosos quanto a serem boas pessoas, a ser um exemplo moral para os outros.
O terapeuta necessitará com frequência modelar suas emoções, pois elas comunicam como uma situação deve ser entendida. Isto é teorizado na análise de grupo com o argumento de que o guia deve tornar-se "o representante da atitude analítica no grupo" (Foulkes e Anthony, 1957, p. 28). Isso é reforçado no uso da teoria psicanalítica para explicar como pessoas lidam com os relacionamentos cotidianos, e como devem fazê-lo. Quando esses autores mencionam a "fantasia no dia a dia", a mensagem nas entrelinhas é que você deve tomar isso seriamente e adotar certas estratégias retóricas a fim de negociar suas próprias fantasias e a fantasia dos outros (p. ex. Segal, 1991).
O eu é reflexivamente tratado como uma performance perante os outros nesse tipo de texto, ainda que os autores creiam simplesmente que o agente está aberto em relação aos seus próprios sentimentos. Essa performance requer um grau de habilidade. Mas essa habilidade não é meramente a habilidade individual de um terapeuta agindo em seu papel de exemplo moral. Ela requer o assentimento, e com frequência o apoio da audiência. Goffman o afirma assim, quando se refere a atuação em geral: "se uma atuação será efetiva é provável que a extensão e o caráter da cooperação que a tornem possível sejam ocultas e mantidas em segredo" (Goffman, 1971, p. 108).
Sigamos para as emoções no discurso terapêutico.
Emoções
O que é relevante aqui é a maneira como as emoções operam no eu e em função dele e por meio dos relacionamentos. No caso da fala sobre as emoções no discurso terapêutico, encontramos um paradoxo. Embora o eu seja profundo, as emoções estão em grande parte em relação aos outros. Muitos estudos têm sido feito sobre como as emoções são referidas de maneiras diferentes em diferentes culturas ao redor do mundo, e entre tipos terapêuticos encontramos premissas específicas sobre como as emoções operam.
Observabilidade. Primeiro, existe a premissa de que os sentimentos são diretamente observáveis, e de que eles podem ser diretamente observados nos outros, talvez mais facilmente do que o são em nós mesmos.
A elaboração teórica disso será encontrada na observação de crianças requerida nas formações em psicoterapia psicanalítica e psicanálise britânica. Quando perguntou-se a Melanie Klein, uma das fundadoras da análise neste país, se um analista estaria realmente capacitado a observar processos psíquicos e emoções, como a inveja, diretamente, ela apontou para a criança e demonstrou a precisão de uma tal observação e julgamento, dizendo: "agora está com inveja, agora não". Essa característica também é corroborada pela força peculiar que o discurso empiricista detém na Grã-Bretanha, um discurso que é então exportado para o resto do mundo (Easthope, 1999). (Na verdade, numa posterior reviravolta colonial a esta história, devemos notar que aquilo que por vezes chamamos de "empirismo inglês" foi elaborado por filósofos que faziam parte da tradição do Iluminismo escocês).
Existe frequentemente uma polaridade entre sensação em relação a outros e conhecimento, e um impulso para saber sobre os outros. A habilidade em fazer afirmações categóricas sobre a existência objetiva de emoções é às vezes conceitualizada não como se elas estivessem necessariamente localizadas dentro do eu, mas num espaço entre pessoas ou em grupos; por exemplo, na afirmação "é doloroso" ou a interpretação "o grupo está com raiva".
Intuição. Segundo, existe a noção de que as emoções podem ser intuitivamente capturadas, e que é algo que a formação terapêutica irá com frequência prometer acesso.
Existe em operação uma oposição entre pensamento e sentimento, e, portanto, um privilégio do acesso direto e intuitivo ao sentimento sobre a racionalização. Há, em certas arenas, como consequência, uma recusa da teoria como uma forma de defesa. Assim, tomar uma identidade terapêutica e apresentá-la aos outros é mostrar que nós sabemos o que as outras pessoas estão sentindo. Somos capazes de dizer coisas como "você está bravo comigo" ou até mesmo que um grupo de pessoas possa estar bravo, ou em algum outro estado emocional.
Essa importância dada às emoções como sendo passíveis de intuí-las é, penso eu, porque as emoções não sejam tratadas apenas como residindo no interior do eu, profundas, mas como estando "entre" as pessoas de alguma forma. Novamente, não estou apresentando isso porque seja necessariamente errado. Este não é o ponto deste tipo de análise, mas constatar que existe tal premissa na maneira como a fala terapêutica funciona. Nisto, dentro e fora são referidos a sentimento e expressão, mas emoção aqui não tem que ver simplesmente com acumulação e descarga. Ao invés, está na busca da fala e da expressão.
Moralização. Terceiro, parece haver uma forte noção de que as emoções estejam conectadas à moralidade. O que quero dizer com isso é que certas maneiras de sentir e mostrar os sentimentos são consideradas boas e saudáveis. Essa moralização das emoções é conduzida no discurso terapêutico através da ressignificação e investimento das palavras cotidianas com uma carga emocional, palavras como "especial", "importante", "doloroso", "difícil". Quando tais palavras são ditas num modo terapêutico elas têm muito maior importância, com um maior peso moral do que na fala cotidiana.
Outra expressão disso é que a frase "como você se sente" é dita como se carregasse uma qualidade necessariamente solícita, destinada a evocar e resgatar algo que é "sentido" sob o nível da linguagem. Isso também transmite, performa, a emoção de "preocupação" pelo que os outros possam estar sentindo. Ora, tendo dito algo sobre o eu e as emoções na identidade terapêutica, sigamos para os relacionamentos.
Relacionamentos
Aqui iremos focar a maneira pela qual os relacionamentos estruturam o eu e operam como um meio para as emoções.
Conexão. Existe um tema que percorre através da fala discurso terapêutico sobre conexão, que devermos nos conectar com outros, que as pessoas são no fundo "carentes" por conexão. Podemos visualizar isso em operação no modo como o discurso sobre o tocar opera. Dá-se uma grande importância sobre o que seja "tocado", e é claro que ser "tocado" por alguém não é unicamente físico; possui significados emocionalmente muito fortes relacionados com a conexão com o que alguém diz e o que se sente, e esses significados emocionais explodem no discurso sobre o tocar na educação, por exemplo (Piper e Stronach, 2008). Há uma série de discussões em círculos terapêuticos acerca de se terapeutas devem ou não tocar seus clientes. Ora, de novo, não estou dizendo que essas questões não sejam importantes. Elas são. Estou focando aqui na força que parecem ter na fala terapêutica. Quando falamos do tocar no discurso terapêutico há uma ênfase tanto na importância do tocar quanto na abstinência do tocar. Há uma polaridade pressuposta entre a necessidade e a restrição. É aqui que existe uma avaliação moral da conexão.
Exterioridade. Um segundo aspecto dos relacionamentos enquadrados terapeuticamente é a maneira pela qual o eu e as emoções são performados de tal forma que há uma sobreposição bastante forte entre círculos terapêuticos e círculos de teatro.
É notável a maneira como a fala terapêutica é frequentemente acompanhada por um tipo de atuação dramática do que as emoções sejam que se espera estarem na fala. Às vezes isso aparece em grandes movimentos de mãos e braços e inclinação do corpo, e às vezes em expressões exageradas da face. Também haverá com frequência um certo modo de falar para indicar sensibilidade às reações dos outros, como no upspeak2, por exemplo.
Vale notar que às vezes vemos o exato oposto, nos tipos terapêuticos fleumáticos, em certos psicanalistas linhadura, por exemplo, que darão o seu melhor para não atuar suas emoções enquanto falam. De todo modo podemos enxergar a importância ligada à exteriorização das emoções como parte da performance da identidade terapêutica.
Limites (boundaries). Um terceiro tema nos relacionamentos é a importância dada aos "limites". Nós encontramos com frequência na atuação da identidade terapêutica uma oscilação entre limitemania e limite-fobia. É aqui que encontraremos as falas sobre "contenção" de emoções e as falas sobre "lugares seguros". De novo, isto é importante. O que estou dizendo não significa que essas questões não sejam importantes, mas existem algumas consequências preocupantes. Pode-se chegar num ponto, por exemplo, em que terapeutas estão tão preocupados com o que chamam "limites" que não podem se envolver em atividades políticas públicas porque seus clientes poderão vê-los ou interagir com eles fora do espaço terapêutico.
É aqui que vemos a modelagem de limites, e uma injunção para que os clientes respeitem os limites. Essas injunções podem ser explicitamente formuladas ou implícitas, indicadas. Elas também marcam uma divisão entre a vida pública e privada, que no espaço terapêutico são, na realidade, necessariamente ofuscadas.
Um exemplo está na importância dada aos limites como formas de proteção.
A análise da identidade terapêutica em contexto
Existem dificuldades em capturar uma nova psicologia originária deste tipo porque ela opera como uma subcultura, ainda que uma subcultura cada vez mais poderosa na cultura Ocidental, sobrepondo-se a outras subculturas similares. Identidades terapêuticas compartilham certos modos de expressão, por exemplo, com a profissão de ator (e um modo de se refletir no trabalho dramático que é impiedosamente escarnecido nas citações de "celebridades" na Private Eye3, por exemplo).
É importante não abstrair este tipo de análise de seu contexto, como se o discurso terapêutico tivesse qualidades formais independente de suas "condições de possibilidade" mais amplas. Devemos embutir essa análise numa análise mais abrangente das condições discursivas em que a terapia funciona na cultura Ocidental. Essas condições são tanto culturais quanto institucionais. A questão da "cultura" ora impacta a análise não apenas em que a psicoterapia existe numa certa "subcultura", mas também em que ela existe em relação a outras culturas e subculturas. Tanto as condições culturais como institucionais são entrelaçadas com questões de gênero.
Uma característica notável da prática terapêutica tem sido de fato a presença de muitas mulheres nas suas instituições, e um crescente número nos últimos vinte anos ou tanto como militantes feministas (ao lado de um número significativo, embora menor de homens da esquerda) voltadas para a terapia e treinadas como analistas, terapeutas ou counsellors. Em anos recentes isto também significou que a terapia tem sido o meio escolhido para atividade radical de lésbicas feministas (e numa menor medida para homens gays). E uma consequência do que poderíamos denominar a "feminização" do discurso terapêutico é que a resistência reacionária à terapia evidente nas atividades dos vários grupos sobre "falsa memória" nos Estados Unidos e Grã-Bretanha também foram uma resistência reacionária contra o feminismo, talvez em alguns casos como uma primária força motivadora.
A composição de gênero na terapia tem consequências não apenas na maneira como o discurso terapêutico e a identidade terapêutica devem ser entendidos, mas também nas consequências de se desenvolver uma análise, e por implicação, uma crítica em primeiro lugar. A ascensão da terapia é concomitante com o aumento da importância do setor de serviços no capitalismo tardio, e este setor de serviços convoca as mulheres a se engajarem no que foi denominado "trabalho emocional", que requer uma "atuação profunda", a performance de um "relacionamento" ostensivamente genuíno com o consumidor (Hochschild, 1983).
Há assim também um aspecto político neste tipo de análise, e as funções da análise no domínio público são tão importantes quanto o material de que a análise se ocupa. Há uma oposição entre a análise de discurso, que ironiza os preceitos sobre o eu, as emoções e os relacionamentos, e o discurso terapêutico os aceita como verdade. A análise de discurso corre assim o risco de ser escutada como se desrespeitasse a experiência e fracassasse em honrar a experiência da maneira como os sujeitos terapêuticos aprenderam a fazer.
A análise levanta também questões mais gerais acerca da maneira como deveríamos entender o eu, não como a fonte, mas sim como um efeito do discurso, e também isso será inquietante para sujeitos terapêuticos.
Teremos notado como o discurso terapêutico se organiza em torno de oposições binárias - entre dentro e fora, entre o eu e os outros, entre profundidade e superfície, e assim por diante - e isso o torna pronto para desconstrução. Desconstrução pode ser usada como um procedimento no contexto da terapia para permitir ao cliente "externalizar" o problema e explorar a construção de uma identidade problemática nos discursos que lhe circunda (Parker, 1999). Esta análise toma esse tipo de trabalho de volta para um enquadre terapêutico que pode ele mesmo servir para repatologizar aqueles que estavam, talvez, se desvinculando das tradicionais abordagens terapêuticas individualizantes - cognitiva comportamental, humanista e psicanalítica -porque elas não aderem "respeitosamente" aos modos de discurso que antes lhes auxiliavam.
Esta "desconstrução" do discurso terapêutico tem implicações sobre a própria noção do eu que é presumida em muita psicoterapia, incluindo a psicoterapia que emprega "desconstrução". Goffman aponta que: "este mesmo 'eu' não deriva de seu possuidor, mas da cena inteira de sua ação, sendo gerado pelo caráter dos acontecimentos locais que os torna interpretáveis pelas testemunhas" (Goffman, 1971, p. 244). Assim, se o tomarmos seriamente, e acho que devemos fazê-lo, então devemos nos perguntar como o encontro terapêutico ele mesmo opera como uma "cena" em que existe uma normalização de um certo modo de falar e assim de um certo modo de se comportar.
Portanto, nosso trabalho inclui desconstruir o jogo fácil demais de rebater os terapeutas enquanto retóricos manipuladores que tentam nos persuadir a falar como eles. A desconstrução atenta para os padrões textuais e discursivos que privilegiam o "autor" como fonte da linguagem, e, portanto, nossa desconstrução deve mirar o modo como aqueles que se colocam como uma audiência disponível para os terapeutas, assim como os falantes desse discurso em sua própria terapia, são cúmplices. A insistência de que estratégias linguísticas usadas pelas pessoas para falar sobre suas emoções, de que elas deveriam se "alfabetizar emocionalmente", são de acordo com o que se denominou "higiene verbal" na cultura contemporânea (Cameron, 1995).
Conclusões
Um foco na identidade terapêutica não é a mera patologização tática de profissionais, uma repetição de argumento, por exemplo, de que são os psiquiatras e não os pacientes que são loucos, insistir que os praticantes ativos do discurso terapêutico o sofrem antes. Não obstante, este passo é necessário se formos nos ater a uma compreensão do modo como formas de subjetividade e interioridade são produzidas no discurso. A identidade terapêutica é um modo particular de entendimento e autocompreensão que se enlaçam através de certas práticas de fala, escrita e atuação.
O que eu chamo de "identidade terapêutica" neste artigo, ou uma forma terapêutica de falar, não é algo que apenas terapeutas fazem. Clientes que aprenderam a falar num modo terapêutico são frequentemente hábeis em persuadir outros a falarem dessa maneira também. E mais e mais pessoas falam atualmente numa forma terapêutica, e também eles produzem para si uma identidade terapêutica. E a chamo "identidade terapêutica" para fazê-la parecer um pouco estranha, para chamar atenção para ela, para diagnosticá-la como parte do discurso dos profissionais do complexo psi. Então poderemos pensar melhor sobre os efeitos que possui e se queremos evitá-los ou fazer uso deles.
Referências Bibliográficas
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Cameron, D. (1995). Verbal Hygiene. London: Routledge. [ Links ]
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Submetido em: 25/10/2015
Aceito em: 30/03/2016
Tradução: Rafael Rocha Daud
Revisão: Paula Thaís Antunes Pereira
Revisão da Tradução: Ilana Mountian
1 Counselling se refere à uma atuação específica do campo da psicoterapia
2 Fenômeno recente específico da língua inglesa, o upspeak ou uptalk, de origem incerta, é um tipo de entonação dada ao discurso fazendo com que orações afirmativas, ou declarativas, soem como perguntas de sim ou não. Está inicialmente relacionado em maior proporção a falantes jovens e mulheres, embora gradativamente ganhe adesão de grupos de falantes mais variados.
3 Revista satírica de atualidades britânica.