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Revista Psicologia Política
versão impressa ISSN 1519-549Xversão On-line ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.17 no.40 São Paulo set./dez. 2017
ARTIGOS
Conflitos geracionais na escola: a produção das diferenças etárias em contextos hierarquizados
Generational conflicts at school: the production of age differences in hierarchical contexts
Conflictos generacionales en la escuela: la producción de las diferencias de edad en contextos jerárquicos
Conflits de générations à l'école: la production des différences d'âge dans des contextes hiérarchiques
Amana Rocha Mattos
Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação de Psicologia Social/UERJ, coordenadora do DEGENERA - Núcleo de Pesquisa e Desconstrução de Gêneros. amanamattos@gmail.com
RESUMO
Neste trabalho, discuto o conceito de geração numa perspectiva não-essencialista, a partir de Pierre Bourdieu e Jacques Rancière. Os conflitos geracionais permitem-nos pensar a política e a liberdade, ao colocarem em relação os diferentes valores e expectativas de adultos e jovens. No espaço da escola, as relações hierárquicas entre professores, professoras e estudantes trazem para a cena educacional esses embates, que se constituem nas relações de poder que se observam nesse contexto. Proponho uma reflexão sobre as diferenças geracionais na escola a partir dos resultados de uma pesquisa de campo realizada em três escolas públicas do Rio de Janeiro, tendo como pano de fundo os protestos juvenis que mobilizaram o Brasil em 2013.
Palavras-chave: Jovens; Liberdade; Escolas; Poder; Construcionismo Social
ABSTRACT
In this paper, I discuss the concept of generation in a non-essentialist perspective, from Pierre Bourdieu and Jacques Rancière. Generational conflicts allow us to think politics and freedom, since they put in relation different values and expectations of adults and young people. At schools, the hierarchical relationships between teachers and students bring these conflicts to the educational scene, conflicts that are produced in power relations that are observed in this context. I discuss the generational differences at school from the results of a field work conducted in three public schools in Rio de Janeiro, with the backdrop of the youth protests that mobilized Brazil in 2013.
Key Words: Young Adults; Schools; Power; Social Constructionism; Freedom
RESUMEN
En este artículo, discuto el concepto de generación en una perspectiva no esencialista, desde Pierre Bourdieu y Jacques Rancière. Conflictos generacionales nos permiten pensar la política y la libertad, ya que ponen en relación los diferentes valores y expectativas de los adultos y los jóvenes. En las escuelas, las relaciones jerárquicas entre los profesores y los estudiantes traen estos conflictos a la escena educativa, conflictos estes que se producen en las relaciones de poder que se observan en este contexto. Analizo las diferencias generacionales en la escuela desde los resultados de un trabajo de campo llevado a cabo en tres escuelas públicas de Rio de Janeiro, con el telón de fondo de las protestas juveniles que movilizaron a Brasil en 2013.
Palabras clave: Jovenes; Escuelas; Poder; Construcion Social; Libertad.
RÉSUMÉ
Dans cet article, je discute le concept de génération dans une perspective non essentialiste, à partir de Pierre Bourdieu et Jacques Rancière. Conflits générationnels permettent de penser la politique et de la liberté, car ils mettent en relation des valeurs et des attentes des adultes et des jeunes. Dans les écoles, les relations hiérarchiques entre les enseignants et les élèves apportent ces conflits sur la scène de l'éducation, les conflits qui se produisent dans les relations de pouvoir que l'on observe dans ce contexte. Je discute les différences entre les générations à l'école à partir des résultats d'un travail de terrain mené dans trois écoles publiques de Rio de Janeiro, avec en toile de fond les manifestations de jeunes qui se sont mobilisés Brésil en 2013.
Mots-clés: Jeunes: Écoles; Pouvoir; Constructivisme Social; Liberté
As relações entre os adultos e as gerações mais novas são, historicamente, marcadas por conflitos, seja nos âmbitos familiares, educacionais ou na ocupação do espaço público. Se considerarmos que a modernidade consolidou o espaço da escola como local de formação de crianças e jovens pelos adultos, esse tem se configurado como uma arena de muitas disputas geracionais a respeito dos saberes, das práticas corporais, das linguagens e aprendizagens que ali se dão. Neste trabalho, discuto o conceito de geração em uma perspectiva não-essencialista, a partir das contribuições de Pierre Bourdieu (1983) e Jacques Rancière (2009, 2007, 1996). Quando discutidos de maneira a problematizar as fronteiras entre idade adulta e juventude, tomando-as como produtos sócio-históricos do tempo em que se delineiam, os conflitos geracionais permitem-nos pensar a política e a liberdade, tensionando os diferentes valores e expectativas de adultos e jovens. No espaço da escola, as relações hierárquicas entre docentes e estudantes trazem para a cena educacional esses embates, que se constituem nas relações de poder observadas nesse contexto.
Para fazer este debate, trago algumas reflexões sobre as questões intergeracionais que surgiram em pesquisa realizada com minha equipe de estagiárias em psicologia1. Nesta pesquisa, buscamos entender de que forma jovens estudantes do Rio de Janeiro pensam e significam a experiência de liberdade em suas vidas. Para isso, realizamos oficinas sobre o tema com estudantes de três escolas públicas de contextos distintos, mas todas marcadas - como as escolas contemporâneas o são - pela hierarquia institucional. Muitas questões vêm se colocando nesse trabalho de intervenção junto aos e às jovens, mas é surpreendente como as questões geracionais têm se destacado, fazendo-nos refletir sobre a condição de jovens dos participantes; sobre o lugar que a escola (e, com isso, os adultos) demarcam para esses sujeitos; sobre os conflitos que surgem nas relações com os adultos no cotidiano, além de questões mais específicas de cada escola. Tais reflexões fazem-se oportunas uma vez que, em 2013, diversas cidades no país foram palco de protestos e manifestações de jovens, que questionam o governo, a sociedade e os "mais velhos" a respeito dos rumos da política.2
A produção das hierarquias geracionais
O tema das gerações é caro aos estudos da infância e da juventude, especialmente por colocar em foco a dimensão relacional dos papéis de adultos e jovens. Essa perspectiva é fundamental para pensarmos a juventude, pois nos permite desnaturalizar e desessencializar as diferentes faixas etárias, ressaltando o processo de produção das diferenças implicado em suas definições. Se, para a sociologia, essa discussão já se delineia desde os estudos de Karl Mannheim (1982) no início do século XX sobre gerações e juventude, para a psicologia - especialmente a psicologia do desenvolvimento - a concepção histórica e social da questão nem sempre foi privilegiada. Pelo contrário, a psicologia insistiu por muito tempo em um entendimento biologizante e individualizante da noção de adolescência e de infância, muitas vezes patologizando ou normatizando e naturalizando questões dessas etapas devida (Burman, 2016; Mattos, 2012). Essas características, entretanto, ganham dimensões sociais e políticas quando pensadas a partir do tempo e da sociedade em que ocorrem (Feixa, Leccardi, 2010). Assim, minhas pesquisas vêm se desenvolvendo no sentido de pensar como esse sujeito tão genérico, "o jovem", se produz no cenário contemporâneo, dando especial atenção ao espaço das escolas.
Enquanto preparava a primeira versão deste texto, me vi arrebatada pelos acontecimentos políticos no país em 2013, protagonizados por jovens em várias cidades, nas chamadas "Jornadas de Junho". Digo arrebatada porque a sensação foi de completo envolvimento. Naquele momento foi difícil, senão impossível, pensar em qualquer coisa que não estivesse relacionada aos protestos, aos conflitos e às demandas de diferentes grupos que foram discutidos à exaustão na televisão, nos jornais e, principalmente, nas redes sociais. Algo que se colocou como um verdadeiro desafio às análises tentativas e parciais de todo esse movimento foi a negação, por parte das e dos manifestantes, de uma maneira de fazer política mais institucionalizada, partidária, própria das gerações anteriores. A negação (muitas vezes violenta) de bandeiras políticas, a preferência por palavras de ordem gerais e mesmo nacionalistas, e a mobilização por meio de redes sociais - horizontalizadas, ou com muitos centros - fez com que as teorias explicativas disponíveis sobre movimentos sociais e ação política parecessem ineficazes, insuficientes. Entretanto, enquanto pensava sobre e participava dessas manifestações, tendo que lidar constantemente com meu desconforto e estranhamento em relação à maneira como as mesmas estavam ocorrendo (o que me fez identificar um certo "distanciamento geracional" de minha parte em relação às e aos jovens manifestantes), percebi algumas relações intrigantes entre o que vimos nas ruas e o que tenho observado nas oficinas realizadas nas escolas. Trago essas reflexões ao final do texto, no sentido de contribuir para a discussão e reflexão sobre um momento tão imprevisível como era este.
Para pensar a ideia de geração, retomo a entrevista de Pierre Bourdieu (1983), "A 'juventude' é só uma palavra", publicada originalmente em 1978. Nesta entrevista, o sociólogo argumenta que as divisões que reconhecemos entre as idades são arbitrárias, socialmente construídas. Não apenas isso, mas Bourdieu afirma também que a manutenção da distinção entre "jovens" e "velhos" é conflituosa. Em suas palavras, um "jogo de luta". Ao afirmar isso, o autor sinaliza que o que está em questão nos conflitos geracionais é a divisão, a partilha dos poderes e, com isso, a produção de uma ordem. Ao se estabelecer o lugar de cada um na sociedade, estabelece-se e, temporariamente, estabiliza-se quem manda, quem decide, quem arbitra. E quem deve obedecer.
No caso das sociedades modernas, é preciso lembrar que a juventude é constantemente produzida como um período de preparação para a ocupação desse lugar futuro de adulto, e que "ser jovem", nessas sociedades, significa não estar inserido imediatamente no mundo dos adultos: estudar, não trabalhar, viver escolhas experimentalmente, etc. Isso não quer dizer que não haja jovens que de fato trabalhem, que tenham deixado os estudos, ou que se deparem com decisões definitivas para suas vidas. Entretanto, pensada a partir desse referencial, é como se algo da experiência da juventude tivesse se perdido para esses sujeitos, ao assumirem responsabilidades "de adultos". Essa concepção essencializante a respeito do que é ser jovem (ou adolescente) tem norteado certas abordagens sociológicas e boa parte das teorias psicológicas sobre essa faixa etária, que a tomam como um etapa específica e universal no processo do desenvolvimento humano, apagando, como argumenta Burman (2008), especificidades e desigualdades relacionadas aos marcadores sociais de raça e etnia, classe, regionalidade, escolaridade, dentre outros.
Como aponta Bourdieu (1983), numa perspectiva crítica a essa naturalização da juventude, as distinções entre jovens e velhos são continuamente litigiosas, e indicam uma luta por quem gozará dos privilégios (econômicos, sociais) em dada sociedade. Para o autor, os conflitos entre gerações põem em jogo a transmissão do poder e dos privilégios, que é arbitrária.
Assim, proponho que a divisão dos poderes mencionada por Bourdieu seja pensada a partir do que Jacques Rancière (2009) denominou de partilha do sensível. Esta partilha fixa aquilo que é comum numa sociedade e, por isso mesmo, compartilhado, estabelecendo quais são as partes exclusivas, definindo quem (ou o quê) é e quem (ou o quê) não é visível em um espaço comum. Nessa discussão, Rancière destaca que o que está em disputa é, permanentemente, essa partilha. Ela é feita de maneira tal que invisibiliza determinados lugares, tornando seus ocupantes incapazes de participar das decisões coletivas sobre o que é contado, partilhado. Por outro lado, o filósofo ressalta que esse processo é arbitrário, isto é, não há nenhuma razão essencial para que as partes e os poderes sejam divididos de determinada maneira. Por essa razão, aqueles que não são contados podem perturbar a estabilidade da partilha comum. Isso só é possível porque, para Rancière, o que subjaz à experiência humana é a igualdade - não como algo realizado, mas como uma possibilidade sempre presente, que ao ser verificada, pode subverter a ordem social estabelecida.
Ao pensarmos as gerações e suas relações hierarquizadas, sugiro que devemos partir do pressuposto de que a ordem social que vivemos é uma ficção (Rancière, 2009, 2007). Como escreve o autor, "É precisamente porque não há qualquer razão natural para a dominação que a convenção comanda, e comanda absolutamente" (Rancière, 2007, p. 126). Entretanto, seria ingenuidade supormos que, porque as divisões sociais e de poder são ficções, elas não produzam efeitos reais, situações de profunda desigualdade e de injustiça no mundo. Pelo contrário, a possibilidade de que a injustiça e a opressão operem nas relações intergeracionais (assim como nas relações de gênero, raça, classe, sexualidade, regionalidade) reside justamente no fato de que se trata de divisões de poder, de uma partilha do mundo comum, que estão sendo continuamente produzidas e reproduzidas pelas pessoas, no seu fazer cotidiano, em suas práticas institucionais.
Essa produção é poderosa, gerando efeitos sensíveis na vida de todas as pessoas em uma dada sociedade - demarcando quem fala e quem não pode falar, quem tem acesso aos direitos "universais" e quem não tem (Rancière, 2009). Exercitando essa perspectiva na análise do contexto em que vivemos, vale refletirmos sobre os constantes discursos e práticas que criminalizam ou patologizam grupos que têm sido marginalizados (como de mulheres brancas, pessoas negras, indígenas, LGBTs, dentre outros), fazendo com que sejam vistos como sujeitos "aquém" dos direitos sociais e políticos. As percepções cotidianas sobre quem tem o direito a gozar de seus direitos são produzidas nessa partilha, que sempre envolve conflitos.
Partiremos dessas reflexões para, a seguir, analisar os conflitos geracionais que se colocaram em nosso trabalho de campo, pensando-os a partir das falas das e dos jovens participantes da pesquisa.
Hierarquias em xeque: os encontros com jovens nas escolas
Durante dois anos (de 2011 a 2013) nossa equipe desenvolveu, como parte de projeto de pesquisa, oficinas em três escolas públicas na cidade do Rio de Janeiro, em que nos reunimos com estudantes para discutir questões relacionadas às suas vivências escolares. Estivemos especialmente interessadas em discutir as experiências e os sentidos de liberdade para as e os participantes. As oficinas consistiam em encontros semanais com grupos de 8 a 12 participantes, durante cinco semanas com cada grupo. As idades das e dos estudantes variavam, indo de 13 a 18 anos (os grupos eram, entretanto, compostos por jovens de mesma faixa etária). Os encontros tinham duração de uma hora e meia, e eram realizados fora dos horários de aula. A participação nos grupos era voluntária. Foram realizadas oficinas com 14 grupos ao todo, com aproximadamente 140 estudantes.
A proposta das oficinas foi debater a temática da liberdade a partir de um roteiro de encontros pensado previamente, em que eram utilizadas dinâmicas de grupo, atividades de desenho e escrita, e principalmente discussão dos assuntos que eram trazidos pelas e pelos participantes. Os encontros eram conduzidos por duplas de estagiárias a partir do referencial da pesquisa-intervenção (Castro, Besset, 2008) e registrados posteriormente em relatórios descritivos e analíticos.
Convidando as e os estudantes a falarem sobre seu cotidiano e suas questões fora de formatos mais tradicionais (isto é, de aula expositiva ou palestra, de atividades que recompensam com "pontos na média", ou de participação obrigatória). Nesse processo, foi justamente a questão da hierarquia escolar que mobilizou as e os jovens, que evidenciavam seu caráter não natural. Como sugere Bourdieu (1983, p. 153), cada campo delimita quem são os jovens e os velhos a partir de suas "regras específicas de envelhecimento". Como afirma o autor, "para sabermos como se recortam aí as gerações, precisamos conhecer as leis específicas do campo, as paradas em jogo de luta e as divisões que esta luta opera" (Bourdieu, 1983, p. 153).
Nas escolas pesquisadas, a problematização e o tensionamento da divisão das gerações, e a relação das e dos jovens com as regras impostas pelos adultos se fez visível por dois vieses, aparentemente antagônicos. De um lado, a denúncia indignada e perplexa por parte das e dos estudantes daquilo que categorizamos como arbitrariedade das regras e normas escolares. De outro, a heteronomia presente em suas falas quando eram convidadas(os) a pensar situações ambivalentes e/ou conflituosas. Em outras palavras, uma postura autoritária e impositiva, muitas vezes até extremista, era adotada pelos e pelas participantes nas discussões, ainda que se mostrassem indignadas(os) com a atuação autoritária de adultos e professores para com eles.
Especificamente em relação à arbitrariedade das regras, destaco as oficinas que realizamos em um colégio estadual de formação de professores. Ali, as alunas (havia também rapazes, mas em pequeno número) estavam em uma condição bastante peculiar: elas tinham aulas com professoras e professores que as estavam formando para ingressarem no magistério em poucos anos. Assim, havia uma hierarquia a ser transposta em curto prazo, pois aquelas que estavam aprendendo em breve seriam colegas de profissão de seus mestres. Entretanto, as estudantes marcaram a separação abissal que as afasta das e dos docentes, que se colocavam sempre, segundo as jovens, como sendo quem decidia no final das contas, não aceitando ser questionadas(os). Uma jovem comenta, a esse respeito: "O pior de tudo é que se você criticar o professor ele fala assim: - Não quero discutir o meu método de aula com você." Um jovem complementa: "E o pior é que esse mesmo professor diz na aula que tem que ter integração aluno-professor!".
Sendo um curso de formação de professores, as jovens usavam uniformes de normalista3, e às quartas-feiras deviam usar o traje de gala, uniforme mais completo e com mais acessórios (como por exemplo uma gravata borboleta "muito incômoda", segundo as alunas). Nenhuma delas conseguia dar um sentido lógico a essa obrigatoriedade: "Tá frio e a gente tem que vir de saia. Isso é horrível, é a gente que sofre, eles [professores, funcionários, direção] não sabem o que a gente passa!","tinha que mandar os professores virem de saia também!", "eles não ligam porque não passam frio...". Essas experiências vividas como injustas, mas também como inevitáveis, acabavam surtindo efeitos no modo como as estudantes se pensam na escola e planejam o seu futuro profissional. É o que podemos depreender de falas como esta, de uma participante: "Como eu vou ser professora se não nos tratam como se a gente fosse futuras professoras? Nos tratam como crianças de zero a seis anos!".
As imposições de regras apontadas pelas alunas desconsideram a participação de estudantes nos processos envolvidos em sua formação. Mas elas e eles não estão indiferentes à contingência presente no funcionamento da escola. O problema é que, justamente por essa experiência ser cotidiana, o que vai sendo ensinado na escola - até de maneira mais indelével do que os conteúdos que são tantas vezes decorados e esquecidos logo depois - é a lógica da natural dominação de uns (adultos, docentes) sobre outros (jovens, estudantes).
Rancière (1996, 2007) discute a importância da verificação da igualdade entre os que detêm o poder e os que estão a eles subordinados para a existência da política. Essa verificação, que se dá em situações que subvertem a ordem dada, aponta para uma igualdade de base necessária entre dominantes e dominados. Segundo o autor, do entendimento (por parte dos subordinados) de uma ordem dada por alguém hierarquicamente superior poderiam ser concluídas duas coisas distintas: uma, que ela foi bem dada, de maneira que aquele que deveria simplesmente cumpri-la (por sua condição inferior) o fez da melhor maneira possível porque entendeu seu conteúdo. Mas também se pode deduzir uma segunda consequência totalmente desconcertante: se o inferior compreendeu a ordem do superior, é porque ele participa da mesma comunidade dos seres falantes e é, nisto, seu igual. Deduz-se daí, em suma, que a desigualdade dos níveis sociais só funciona por causa da própria igualdade dos seres falantes, uma igualdade de pensamento, pressuposta pelo ato mesmo de falar ao outro e fazer-se entender (Rancière, 1996).
As alunas apontaram as incongruências das regras a elas impostas, levantando questionamentos muito perspicazes em relação às obrigações que tinham que cumprir na escola, falando com muita clareza sobre essa luta geracional - e sobre como percebem as bases dessa disputa como arbitrárias. Essa crítica à arbitrariedade e às imposições, entretanto, não necessariamente esteve presente quando as e os jovens eram convidadas(os) a opinar sobre situações fictícias, propostas por nós aos grupos, que traziam como personagens estudantes, docentes e direção em conflitos escolares. A mobilização diante das cenas variou bastante de grupo para grupo nas escolas. Entretanto, foi recorrente a adoção de respostas bem conservadoras - se entendermos conservadora aqui como uma posição que mantém as relações hierárquicas já conhecidas pelos e pelas estudantes. O que fazer quando dois grupos de estudantes têm propostas diferentes para a festa junina do colégio, por exemplo? Uma certa impaciência com a indefinição apareceu, fazendo com que muitos grupos se vissem mobilizados a encontrar uma resposta unificada e "inquestionável" para as situações propostas: "sorteio!", "a direção decide!", "faz duas festas!"... Essas respostas, muitas vezes apressadas e com pouco interesse no debate sobre o impasse, apontam para a dificuldade de se lidar coletivamente com divergências e indecisões.
Em relação a esse tipo de respostas mais conservadoras, ou que se impõem sem que outras vozes sejam ouvidas, chamam a atenção as discussões que ocorreram em alguns grupos em um colégio estadual que fica numa favela da Zona Oeste da cidade. No primeiro encontro de um deles, as e os jovens adotaram uma postura participativa, a favor da conversa e do debate, valorizando o espaço oferecido pela escola para discussões como aquela. No segundo encontro, essa vontade de falar e se fazer escutado/a rendeu um envolvimento animado com o debate, por vezes até apaixonado.
Partindo de discussões sobre o exercício da sexualidade, opinavam e mostravam-se desejosas(os) de falar sobre diferentes assuntos. O tom das falas, entretanto, foi notavelmente sexista, conservador e homofóbico. Multiplicaram-se falas que defendiam a redução da maioridade penal e a pena de morte, entremeadas pela expressão do desejo de que a ditadura militar voltasse no país, seguidas pela proposta de que houvesse "toque de recolher" nas ruas para garantir a segurança, assim como leis mais rígidas para garantir a ordem. Falas sobre sexualidade e estereótipos de gênero também surgiram, identificando garotas e mulheres como objeto de desejo masculino, e os rapazes e homens como únicos sujeitos desejantes.
A dupla de estagiários que conduziu a oficina tentou levantar problemas para o grupo a partir das falas, mas as respostas que começavam com uma afirmação genérica e politicamente correta logo reiteravam preconceitos e estereótipos diversos ("sim, todos têm o direito de dar sua opinião / de errar / de fazer suas escolhas, mas..."). Em nossas supervisões, percebemo-nos diante de uma séria questão metodológica: o que fazer quando, ao propormos um espaço de fala, o que comparece são expressões cristalizadas que não levam ao diálogo, à ressignificação, ao exercício político?
Esse questionamento nos deu a real dimensão do quanto as escolas não abrem esse tipo de espaço para o diálogo, para a troca entre estudantes. Além disso, a presença de estudantes de psicologia nesses espaços pareceu ser entendida pelo enquadre da normatização e do diagnóstico. Por diversas vezes nossa equipe foi solicitada - por estudantes e docentes - a oferecer laudos, "perfis psicológicos" e opiniões "embasadas" sobre as turmas e sobre os estudantes.
Por outro lado, e esta tem sido uma dimensão importante de intervenção de nosso trabalho, justamente porque as escolas são tão pouco abertas às falas de estudantes é que escutá-las se faz necessário. Porque a escuta coletiva não se produz imediatamente, é preciso arriscar a falar e se permitir ouvir, para que deslocamentos subjetivos possam se produzir. Muito do que é trazido nos primeiros encontros é a repetição de falas resultantes de longos processos de subjetivação em que, como discutimos, diversas relações de poder são naturalizadas. O que temos percebido é que o exercício da fala e do diálogo precisa ser continuado.
Nos encontros finais das oficinas, no momento de avaliação do trabalho, as estagiárias devolviam para os grupos nossas impressões e perspectivas pensadas a partir da supervisão. Esses momentos permitiam que as e os jovens pudessem se ouvir a partir de colocações "estrangeiras", estranhando-se também. Além disso, vários grupos afirmaram que o melhor das oficinas foi justamente a abertura do espaço de debate, em comentários como "a gente se encontra todo dia mas não sabe o que o outro pensa sobre tal assunto" ou "foi legal ver os colegas, que estão sempre zoando, dar a opinião deles a sério sobre tal coisa". Num espaço tão hierarquizado como a escola, ações mais dialógicas, que apostem na escuta do outro, não são realizadas sem grande investimento por parte das pessoas envolvidas. As dificuldades encontradas por elas também se colocaram para nós, pesquisadoras. Como ouvir? Como estranhar nossa posição naquele espaço? Estas questões têm mobilizado nossa prática e nossa pesquisa permanentemente.
Algumas considerações e um pós-escrito
A produção e reprodução cotidiana das diferenças hierárquicas nas escolas está intimamente relacionada com a construção das diferenças geracionais (Castro, 2012). A manutenção dos lugares de saber e de não saber nesses contextos está atravessada pelas assimetrias etárias, e é sustentada por uma série de práticas arbitrárias. Tal arbitrariedade é percebida e criticada pelas e pelos estudantes, que encontraram espaço para elaborar seus incômodos nas oficinas propostas por nossa equipe. Entretanto, percebemos como a reflexão crítica sobre as relações de poder não é facilmente alcançada quando outros temas são debatidos, e reproduzem-se falas de intolerância e preconceito, reiterando assimetrias em relação a grupos e sujeitos subordinados socialmente. Além disso, neste processo de pesquisa pudemos perceber como as dinâmicas escolares, por serem marcadas pela imposição de regras - regras que não devem ser problematizadas, segundo a lógica escolar - dificultam a reflexão e o debate.
Quando convidadas(os) a discutir determinados impasses ou situações que colocavam em cena divergências entre sujeitos, as e os participantes sentiam-se profundamente incomodadas(os) com esse lugar. Na análise dos resultados dessas mesmas oficinas em outros trabalhos (Mattos, 2014; Mattos e cols. 2015), fica evidente que es escolas são instituições cuja força normativa e socializante empurra estudantes e profissionais para lugares estritamente demarcados de fala e participação. Sair desses lugares, ainda que brevemente, é um exercício difícil, que demanda investimento e práticas a longo prazo.
Por fim, gostaria de retomar brevemente a questão das manifestações nas ruas em 2013, e dos desdobramentos políticos que temos acompanhado desde então em nosso país, traçando algumas pontes com as observações a respeito da produção dos lugares geracionais nos contextos pesquisados. Em relação às manifestações de junho de 2013, protagonizadas por jovens, muito foi discutido e analisado, por diferentes perspectivas. Não compartilho de leituras totalizantes sobre essas mobilizações coletivas, que precisam ser pensadas no cenário político mais amplo, tanto nacional quanto mundial. Nesse processo coletivo, a experimentação e o aprendizado do fazer político ganharam seu lugar devido - as ruas. Nos movimentos de 2013 observou-se que jovens que nunca tinham estado em passeatas saíram às ruas, pautaram palavras de ordem, expressaram insatisfação em relação ao sistema político dominado pelas gerações anteriores. Neste contexto, equívocos também foram cometidos por parte das e dos manifestantes, onde havia uma pluralidade de demandas e tipos de participações que podem levar a expressões duvidosas, ou de fato conservadoras, nesse movimento coletivo tão plural. Entretanto, não podemos ignorar que diversas questões políticas têm sido desde então debatidas à exaustão - via redes sociais, nas escolas, nos bares, nas rodas de amigos - fato que, por si só, é significativo. Guardando-se as devidas proporções, como percebemos também nos grupos das oficinas nas escolas, poder falar coletivamente sobre o que se quer ou sobre o que não se quer é, certamente, o primeiro passo para a construção de processos coletivos. É nesse exercício árduo, de exposição, escuta, desestabilização de posições cristalizadas, que reside a possibilidade de repensarmos as práticas, as posições ocupadas, a verticalização naturalizada das regras existentes.
Entretanto, de 2013 até o momento atual, vimos também a ascensão de pautas e movimentos ultraconservadores nos cenários nacional e mundial, que têm contado, inclusive, com o apoio e a adesão de muitos jovens. Retrocessos relacionados aos direitos trabalhistas, de mulheres, pessoas negras, indígenas, LGBTs, assim como nos campos da educação e da saúde públicas, têm produzido um cenário alarmante para o processo democrático que vinha se consolidando com dificuldades em nosso país. Longe de propor leituras que responsabilizam exclusivamente as e os manifestantes de 2013 por criarem um terreno propício à instabilidade política, por meio de protestos apartidários e desvinculados de movimentos políticos mais tradicionais, considero fundamental discutirmos as condições e os efeitos desses retrocessos democráticos em perspectivas mais articuladas e interdisciplinares, o que certamente extrapola os objetivos deste trabalho. No entanto, creio que as análises trazidas aqui a partir das oficinas possam nos fazer pensar a importância do fomento de espaços de diálogo, escuta e troca nas escolas. Os processos de subjetivação política, e as práticas de liberdade, precisam se dar em espaços em que os conflitos e os dissensos possam ser explicitados, compartilhados, debatidos. A imposição hierárquica e autoritária que produz limites e silenciamentos não estimula o exercício político da democracia - que, no momento atual, parece cada vez mais ameaçado. Assim, mais do que nunca, o exercício do diálogo e da troca precisa ser estimulado e garantido nos espaços intergeracionais, como as escolas. Lutar por esse direito é uma tarefa que cabe às diferentes gerações nos conturbados tempos em que vivemos.
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Submetido em: 30/11/2015
Aceito em: 18/09/2017
1 O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Agradeço à equipe do Subprojeto de Psicologia do Programa de Iniciação à Docência (PIBID/CAPES) pelo engajamento e comprometimento com a pesquisa de campo, e pela elaboração dos relatórios cuidadosos, que subsidiaram este trabalho.
2 Este trabalho foi apresentado no I Simpósio em Psicologia Crítica USP - Estabelecendo Diálogos: Teorias Críticas, Psicanálise, Análise de Discurso, Feminismo, Pós-Colonialismo, Epistemologia, Metodologia, em junho de 2013, no auge das manifestações em todo o país, que logo ficaram conhecidas como as "Jornadas de Junho". Para um panorama das questões que mobilizaram os jovens a irem para as ruas, ver Maricato e cols. (2013). Para uma contextualização do momento político em que eclodiram as manifestações no Brasil, ver Mische (2013).
3 Normalistas são as e os estudantes de cursos de formação de professores no nível do Ensino Médio.