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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.45 São Paulo maio/ago. 2019

 

ARTIGOS

 

Gaymada: uma viagem por corpos e espaços

 

Gaymada: a journey through bodies and spaces

 

Gaymada: una viaje por cuerpos y espacios

 

Gaymada: un voyage par corps et espaces

 

 

Igor Viana

Pesquisador da Linha História, Poder e Liberdade da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais em sede de Doutorado. Coordenador do Grupo Políticas da Performatividade - UFMG; icamposviana@gmail.com

 

 


RESUMO

O artigo propõe apresentar a intervenção cênica-poética-performática da gaymada idealizada pelo coletivo artístico Toda Deseo em Belo Horizonte. A trajetória dessa intervenção espacial, que se inicia em 2015, é recuperada através de uma entrevista com o próprio coletivo. Apresenta-se, como lente de leitura das experiências partilhadas pelo coletivo Toda Deseo, uma proposta de diálogo com a teoria política da filósofa Judith Butler, perpassando temas como a crítica, a performatividade, os corpos e a precariedade.

Palavras-chave: Gaymada, Crítica, Performatividade, Corpos, Precariedade.


ABSTRACT

The article proposes to present the gaymada's scenic-poetic-performance intervention, idealized by Toda Deseo 's artistic group in Belo Horizonte. The trajectory of this spatial intervention, which begins in 2015, is recovered through an interview with the collective itself A proposal for dialogue with the political theory of the philosopher Judith Butler is presented as a lens for reading the experiences shared by Toda Deseo, covering topics such as criticism, performativity, bodies andprecarity.

Keywords: Gaymada, Criticism, Performativity, Bodies, Precarity.


RESUMEN

El artículo propone presentar la intervención escénica-poética-performática de la gaymada ideada por el colectivo artístico Toda Deseo en Belo Horizonte. La trayectoria de esa intervención espacial, que se inicia en 2015, es recuperada a través de una entrevista con el propio colectivo. Se presenta, como lente de lectura de las experiencias compartidas por el colectivo Toda Deseo, una propuesta de diálogo con la teoría política de la filósofa Judith Butler, atravesando temas como la crítica, la performatividad, los cuerpos y la precariedad.

Palabras-clave: Gaymada, Crítica, Performatividad, Cuerpos, Precariedad.


RÉSUMÉ

L'article propose de présenter l'intervention scénique-poétique-performátique de la gaymada idéalisée par le collectif artistique Toda Deseo à Belo Horizonte. La trajectoire de cette intervention spatiale, qui débute en 2015, est récupérée à travers un entretien avec le collectif lui-même. Une proposition de dialogue avec la théorie politique de la philosophe Judith Butler est présentée comme une lentille de lecture des expériences partagées par le collectif Toda Deseo, couvrant des sujets tels que la critique, la performativité, les corps et la précarité.

Mots-clés: Gaymada, Critique, Performativité, Corps, Précarité.


 

 

Ela é desobediente porque não se encaixa numa única linguagem, não tem uma denominação única, ela escapa sempre, inclusive da nossa tentativa de caracterização.

(Coletivo Toda Deseo – Entrevista sobre a Gaymada)

 

Introdução

A gaymada é uma intervenção cênica-poética-performática, realizada pelo coletivo belohorizontino Toda Deseo1, que propõe o retorno ao jogo/brincadeira da queimada2 para rearticular práticas de gênero e sexualidade nas cidades. O coletivo Toda Deseo é composto por artistas mineiros que visam construir um espaço onde as vidas que desviem da heteronorma sejam possíveis. O primeiro evento foi realizado em 2015 na Praça Floriano Peixoto, região centro-sul de Belo Horizonte, durante o "Chá das Prima"3. Integrantes do coletivo Toda Deseo disseram, à época do evento, que a ideia era brincar com o imaginário comum de que a queimada seria um jogo de "criança viada"4. Assim, montadas, coloridas e alegres as "primas" convidavam as pessoas LGBTIQ's5 para se juntarem à grande festa que se torna essa performance, saírem da noite e de seus esconderijos para ocuparem a cidade em plena luz do dia e de uma forma divertida. Desde então a gaymada6 tornou-se um evento muito importante na cena artística da cidade, tendo realizado mais de vinte edições em Belo Horizonte e com realizações em Ouro Preto, Rio de Janeiro e Curitiba.

Visando recuperar essa trajetória, da qual fiz parte em algumas de suas edições7, convidei o coletivo Toda Deseo, através do Davidson Maurity, integrante do coletivo, a responderem minhas perguntas (Toda Deseo, 2017) e inquietações sobre as experiências que eles partilham através da gaymada. O convite foi aceito e as respostas partilhadas servem de base para este ensaio que se propõe a pensar a gaymada enquanto uma linguagem que escapa às suas tentativas de apreensão e que ao mesmo tempo rearticula a tecitura social e espacial em sua própria prática desobediente. O teatro, a poesia e a performance se entrecruzam em uma experiência sempre em aberto da gaymada. O que se pode esperar antes de cada edição? O risco de uma pedra arremessada8, de uma ofensa atravessada ou de um olhar de rejeição são iminentes. A este risco, o coletivo responde com muita cor, montagem, purpurina, música, alegria e amor. A gaymada é uma vivência no tempo de agora que expõe a força e, simultaneamente, a fragilidade das convenções sociais que naturalizam e reduzem as possibilidades de existência dos corpos.

Para a leitura dessas experiências partilhadas propomos um diálogo com a teoria política de Judith Butler. A autora reconstrói a ideia de crítica (Butler, 2002) através da análise dos processos de "criação do eu" enquanto processos - em certa medida - de resistência às normas assujeitadoras (Butler, 2017, p. 17-18). A prática de resistência à norma é complexa na medida em que a existência também se dá através da norma. Há um processo paradoxal de subjetivação no qual o sujeito ocupa um lugar de ambivalência em relação ao poder que o sujeita ao mesmo tempo que o constitui. Tratar de subjetivação é tratar de um retorno, uma volta sobre si mesmo como no sentido da figura grega do tropo, mas uma volta sempre em aberto e incompleta de um sujeito enquanto devir. Esse "devir" se realiza dentro de um conjunto de normas que são condições de existência ao mesmo tempo que restrições do campo da inteligibilidade. Normas não possuem um valor negativo per se. A norma é possibilidade e simultaneamente restrição. Os processos de subjetivação, nesse sentido, demandam uma negociação em termos de reconhecimento com o campo da normatividade.

Concordando com Adorno, Butler afirma que a fim de que a crítica possa operar como parte integrante de uma práxis seria preciso que ela apreendesse os modos pelos quais as categorias são instituídas, o modo como o campo do conhecimento é ordenado e modo como o que ele prescreve retorna como uma oclusão constitutiva. Assim, propomos pensar uma política do performativo nos termos da possibilidade de rearticulação do tecido social apresentada por Butler. Que é, de certa forma, realizada pela intervenção cênica-poética-performática da gaymada ao construir novos sentidos para práticas sociais marcadas pela força e pela precarização de vidas não passíveis de luto (Butler, 2004a).

 

O que é a crítica?

Proponho pensarmos a crítica social como uma práxis desobediente. Uma práxis que questiona o meramente visível. Uma práxis interpelatória que questiona sobre as condições de possibilidade das categorias que tornam o mundo apreensível. Assim, a crítica é práxis criadora de possibilidades. Ela revela o elemento forcluído da norma. Ela joga luzes sobre a força empregada para conservar determinadas relações de poder que implicam na redução das possibilidades de existência. Em certa medida, observo que a gaymada é uma práxis crítica ao "zombar" das faces da norma que são opressoras. A gaymada articula um espaço social onde outras possibilidades de existência tornam-se possíveis, como na fala "a ideia era organizar um encontro com a galera LGBT+ num local público com o intuito de trazer literalmente essa comunidade para o dia" (Toda Deseo, 2017). Trazer corpos, que não habitam determinados espaços à luz do dia, para ocupá-los, é rearticular as lógicas de poder desses próprios espaços. É transformar esses espaços e a estrutura normativa que o mantém, como na ideia de crítica para o pensamento butleriano.

Judith Butler proferiu a aula "Raymond Willians" da Universidade de Cambridge em maio do ano 2000, retomando a palestra Qu'est-ce que la critique? (Foucault, 1990) proferida em maio de 1978 por Michel Foucault na Sociedade Francesa de Filosofia. Butler discutiu a ideia de "crítica" a partir das compreensões foucaultianas de virtude, conhecimento e poder. Em 2002 essa palestra foi transformada em um texto publicado na revista The Political: Readings in Continental Philosophy sob o título: What is critique? An essay on Focault's virtue (Butler, 2002). Nesse artigo, Butler reconstrói a ideia de crítica através da análise dos processos de "criação do eu". Afirma que a fim de que a crítica possa operar como parte integrante de uma práxis "é preciso que ela apreenda os modos pelos quais as categorias são, elas próprias, instituídas, o modo como o campo do conhecimento é ordenado e como o que ele prescreve retorna como uma oclusão constitutiva" (Butler, 2013, p. 160). Ao contrário dos juízos que visariam subsumir um particular a uma categoria já constituída, a crítica visava desvendar a constituição oclusiva dos campos das próprias categorias, ou seja, a crítica coloca em questão as próprias categorias do juízo antes mesmo que ele seja realizado. Ao indagar sobre qu 'est-ce que la critique? Foucault já realizaria uma dimensão do empreendimento crítico em questão, posicionando o problema em toda sua radicalidade interpelatória:

a contribuição de Foucault para o que aparenta ser um impasse dentro da teoria crítica e pós-crítica de nosso tempo, é justamente nos pedir que repensemos a crítica como a prática na qual pomos em questão os limites dos nossos modos de conhecimento mais certos a que Williams se referia como os nossos "hábitos de espírito não críticos" e que Adorno classificava de ideologia - segundo ele, "o pensamento não ideológico é aquele que não se permite reduzir aos termos operacionais e que, ao invés, luta unicamente para que as coisas se articulem de modo a se descolar da linguagem dominante" (Butler, 2013, p.163)

A gaymada descola-se da linguagem dominante ao interpelá-la de forma lúdica, ao rearticular a própria linguagem e ao se manter indisponivelmente aberta a toda e qualquer tentativa de fechamento dos seus sentidos9. Esse deslocamento da linguagem pode ser compreendido como uma rearticulação do próprio campo normativo. Retomando as artes da existência trabalhadas por Foucault, ao afirmar a ideia do cuidado de si em contraposição à hegemonia da juridicização da lei, Butler desenvolve uma compreensão complexa da questão da normatividade. As práticas do cuidado de si mais do que estabelecer regras para si próprio, buscavam transformar o próprio sujeito da prática em seu ser singular, fazendo da sua vida uma obra de arte aberta às transformações e à agência (Butler, 2013, p. 165). Assim são os corpos que na gaymada fazem de suas vidas possibilidades outras que não as legitimadas pela linguagem hegemônica.

O "eu" na compreensão desenvolvida por Butler passa a habitar e a incorporar a própria norma. Nesse sentido, a norma não é exterior ao princípio pelo qual o "eu" se forma, ou seja, não existem espaços tão demarcados em relação à normatividade e nem expectativas tão estabilizadas quanto aos diferentes modos de interiorização. O que Foucault e Butler estão preocupados é com as práticas pelas quais as problematizações sobre o ser, enquanto ser, se deixa pensar, ou seja, o que leva um sujeito a interpelar sua norma constitutiva? Isso seria o sentido da virtude, o verdadeiro sentido da crítica para os dois. Não existe sujeito anterior à norma, cabe à crítica um distanciamento topológico da norma para possibilitar a observação dos elementos forcluídos e a denúncia de sua forclusão (rejeição/ obliteração de um significante fundamental para o universo simbólico do sujeito). O coletivo Toda Deseo denuncia a forclusão de existências diversas da heteronorma. A heteronormatividade naturaliza uma ideologia da complementariedade binária que oblitera outras existências possíveis, como observamos na seguinte fala:

na onda da ocupação muito presente na cidade, a gente trabalhou em cima da ideia de um jogo que pudesse desconstruir esse binarismo do "esporte pra homem e esporte pra mulher", além de poder se fazer presente junto com essas pessoas num espaço comum, público (...). A gaymada talvez traga para quem assiste - e pra gente também - uma dimensão do que é possível ser feito dentro dessa sociedade heteronormativa, misógina, LGBTfóbica. Que coletivamente podemos criar espaços dentro da própria cidade, que alterem esse estado de apatia vigente, onde os preconceitos são confrontados com diálogo, onde é possível viver e conviver sendo aquilo que se quer ser. Um universo penetrável por qualquer outra pessoa disposta a estar ali sem violência. É efêmero mas produz reverberações. A gaymada de alguma maneira cria possibilidades (Toda Deseo, 2017).

Se a govemamentalização, trabalhada na teoria foucaultiana, é a pratica de assujeitamento dos corpos a uma realidade social que se reclama enquanto verdadeira, a crítica seria justamente a interpelação da verdade e de suas estruturas de poder (Butler, 2013, p. 169-170). A crítica é para Foucault a arte da inservidão voluntária, uma indocilidade reflexiva. Assim, enquanto arte, a crítica guarda uma dimensão coletiva de atos estilizados que não são previamente determináveis, mas incorporam a contingência e o desassujeitamento dos corpos no jogo da política da verdade. A gaymada enquanto intervenção cênica-poética-performática também se apresenta como uma arte da desobediência, uma estilização de atos que questionam o que é dado como única realidade possível, ela apresenta a contradição do impossível que se torna presente: os corpos abjetos ali expostos na luz do dia dos centros urbanos.

 

Gênero, performatividade e paródia

A crítica assume nessa compreensão uma dimensão de rearticulação, o que nos leva a um segundo momento desta análise. Em seu texto Critically Queer (Butler, 1993/2011), a autora indaga sobre as razões para que uma palavra (queer) que antes indicava degradação tenha dado um giro tal que tenha se refundado no sentido da afirmação e da resistência (Butler, 1993/2011, p. 457). O termo queer, hoje mais difundido, era um significante utilizado especialmente nos Estados Unidos para humilhar os sujeitos que nomeava, constituindo os corpos que tivessem vergonha de serem o que são em termos de sexualidade e de gênero. Sujeitos estranhos à normatividade social. Entretanto, práticas discursivas outras conseguiram transformar a significação social do termo através de uma rearticulação de significados e práticas diversos. O que, em certa medida, também é a práxis da gaymada ao rearticular as relações de poder para exaltar a diversidade de existência dos corpos, mesmo aqueles considerados estranhos diante uma linguagem social hegemônica. Os elementos socialmente tomados como vexatórios, como a "feminilidade" presente no que normativamente se entende como o padrão "masculino" e a "masculinidade" presente no suposto padrão "feminino", são performados ao extremo, com muita diversão, purpurina e alegria, parodiando o vexatório e rearticulando sua própria ordem de sentidos.

Justamente em razão dos usos de um termo não se darem de antemão, ou seja: não são naturais, foi que se tornou possível afirmar e reelaborar a historicidade específica do termo queer. O sujeito se constrói no discurso que o precede e se transforma também no discurso que o constitui. Ocorre que esse discurso é repleto de idealidades que não correspondem com as realidades históricas, permitindo rearticulações semânticas capazes de transformar significantes degradantes em significantes de resistência, engendrando uma nova ordem de valores:

uma ocupação ou uma reterritorialização de um termo que tenha sido usado para "abjetar" uma população pode tornar-se o local da resistência, a possibilidade de uma ressignificação social e política habilitadora. E isso aconteceu até certo ponto com a noção de "queer". O uso contemporâneo do termoassume a proibição e a degradação contra si mesmo, gerando uma ordem de valores diferente, uma afirmação política através do próprio termo que, em uso anterior, teve como objetivo final, a erradicação de tal afirmação (Butler, 1993/2011, p. 473-474, tradução nossa)10.

Não há um sujeito anterior às normas de gênero, pois esse alguém-sujeito só se torna possível nas próprias normas de gênero que lhes dão sentido. Entretanto, como já destacado, essas normas são repletas de elementos de idealidade que permitem sua ressignificação. Dessa forma, podemos dizer que é a ineficácia da norma em cumprir seu ideal é que permite sua subversão, ou seja, as práticas rearticulatórias consistem, em certa medida, no aproveitamento da debilidade normativa (Butler, 1993/2011, p. 475). Para Butler, a maior promessa da travestilidade, por exemplo, não é a proliferação de identificações de gênero, mas a exposição da incapacidade dos regimes heteronormativos para legislar ou conter por completo seus próprios ideais. Haveria, portanto, um duplo constitutivo do discurso que é sua condição limitante de existência ao mesmo tempo que é sua possibilidade de transformação rearticulatória da tecitura social.

Essa rearticulação também não ocorre sem contradições ou por fora das estruturas normativas de poder. Na entrevista realizada com o coletivo Toda Deseo, eles chamam a atenção para os tensionamentos existentes no interior da própria gaymada. Ela não é um espaço imune às relações de poder sobre as quais se assenta. Em certo momento, eles dizem: "já ocorreu de mulheres reclamarem dos homens gays que participavam da gaymada e que tinham atitudes misóginas dizendo que a gaymada não era um evento para mulheres (sintomático!!!)" (Toda Deseo, 2017). Isso demonstra que há disputas de poder mesmo dentro das práticas que tentam rearticular essas estruturas para alargar as possibilidades de existência. Em certa medida, a gaymada, como um jogo, é também uma aposta, a sua abertura de sentidos permite justamente a disputa por esses sentidos e talvez esteja aí toda a sua potência de transformação. Essa disputa é também um convite a uma política de alianças que vá para além das lutas encerradas nas características identitárias e possamos pensar em corpos que se unam em razão de uma precariedade compartilhada.

Tanto a ressignificação do termo queer como nomeação de resistência quanto a rearticulação espacial da gaymada para possibilitar a existência de corpos abjetos, perpassam algo de teatral na medida em que imitam, e o faz de forma hiperbólica, a convenção discursiva que também inverte. Como destaca a própria autora, esse processo se realiza "paradoxalmente, mas também com grande promessa, o sujeito, que é "queered" no discurso público através de interpelações homofóbicas de vários tipos, aborda ou cita esse mesmo termo como base discursiva para uma oposição" (Butler, 1993/2011, p. 476, tradução livre)11. A imitação realizada de forma hiperbólica satiriza a própria realidade, utilizando da paródia como ato político que reconstrói essa mesma realidade, denunciando a historicidade dos padrões naturalizados de opressão social. A performatividade, portanto, guarda relação com esse conjunto de atos estilizados que reiterados de forma hiperbólica, deslocam, em certa medida, algum elemento de inteligibilidade, alterando a própria estrutura normativa que fornece significado ao mundo e cria os padrões de reconhecimento dos sujeitos.

 

Corpos, devir(es) e espacialidades

A travestilidade, no pensamento butleriano, seria uma alegoria da psique mundana que expõe as práticas performativas mediante as quais se formam os gêneros heterossexualidados ao renunciarem à possibilidade da homossexualidade. Uma forclusão da homossexualidade que produziria o âmbito dos objetos heterossexuais ao mesmo tempo que o âmbito daqueles a quem seria impossível amar (Butler, 1993/2011, p. 330). Já em The Question of Social Transformation (Butler, 2014a), publicado mais de dez anos depois de Critically Queer (Butler, 1993/2011), Judith Butler nos fala na transexualidade, mostrando-nos como as noções contemporâneas de realidade podem ser questionadas e como novos modos de realidade podem ser instituídos:

como consequência de estar se tornando, e sempre vivendo com a possibilidade constitutiva de se tornar de outra forma, o corpo é aquele que pode ocupar a norma de várias maneiras, exceder a norma, retrabalhar a norma e expor realidades às quais nós pensávamos estar confinados, mas que se mostram abertas à transformação. Essas realidades corpóreas são ativamente habitadas, e essa "atividade" não está totalmente limitada pela norma. Às vezes, as condições para se conformar com a norma são as mesmas que as condições para resistir (Butler, 2004b, p. 217).12

Transitar pelas normas de gênero é uma forma potente de rearticular essas próprias normas, no sentido de expor sua "não imobilidade", é justamente no trânsito e na possibilidade de transitar e transviar que conseguimos configurar novas formas de existência diversas. A transexualidade joga com essas possibilidades e expõe a violência do sistema normativo social, que na tentativa de impedir esse trânsito, acaba por gravar nos corpos e subjetividades desses sujeitos as marcas do ódio, do repúdio e do asco por assistirem elementos forcluídos ganharem a possibilidade de alguma visibilidade. Constitui-se uma forma complexa e paradoxal de lidar com a norma, geradora de sofrimento e lugar potencial para a politização transformadora (Butler, 2004b, p. 220). A gaymada é uma práxis que transvia as espacialidades conformadas, rearticula os espaços através de novos usos que permitem a existência de novos corpos. Ela colore os espaços por onde passa, convida os sujeitos para o jogo e desobedece às expectativas sociais dos espaços e de suas práticas, na fala do coletivo:

ela é [desobediente], na medida, em que os espaços públicos são conformados para determinados tipos de evento, para determinados tipos de pessoas, e a gente traz aqueles e aquelas que não poderiam frequentar esses espaços, tratando de temas que a grande parte da sociedade quer invisibilizar ou deixar pra 2°, 3° plano. Ela é desobediente porque ela abre uns buracos na dinâmica heteronormativa imposta, mostrando que é possível existir e que as possibilidades do corpo são infinitamente maiores do que essas que mostraram e mostram pra gente (Toda Deseo, 2017).

A relação da gaymada com os espaços também é uma questão tensional. Diferentes espacialidades configuram diferentes normatividades. É importante destacar que o coletivo recebeu, em 2017, financiamento público13 da Lei Municipal de Cultura de Belo Horizonte para a realização da gaymada em zonas periféricas da cidade. Essa ainda é uma experiência recente para o coletivo, mas eles afirmam que "em alguns lugares já se tem regras próprias, ou o modelo apresentado não vale para aquelas pessoas... foi preciso que a gente se adaptasse, criasse outras estratégias para que o jogo não desandasse" (Toda Deseo, 2017). Existem confluências de normatividades para além das questões de gênero e sexualidade, como a raça e a classe, que estruturam relações de poder de formas distintas em diferentes cartografias. Pensar o espaço também é uma questão central ao se pensar as dinâmicas do campo normativo e como elas se articulam no discurso hegemônico de uma localidade situada e não de uma abstração desterritorializada.

Chamar um corpo abjeto de não natural e restringir sua circulação no espaço urbano, mais do que uma forma de controle social, é uma forma de caracterizar o próprio humano em contraposição ao que não o é. Assim, alguns corpos são desumanizados para que os corpos "convencionais" possam continuar a se afirmarem. Isso não significa que os corpos desumanizados sejam irreais, eles fazem parte de uma inteligibilidade social que utiliza deles, justamente, porque reconhecem sua existência (Butler, 2004b, p. 226). Nas palavras de Judith Butler não se trataria, portanto, de produzir um novo futuro para gêneros que não existem, mas sim de desenvolver um novo léxico legitimador para a complexidade de gêneros que temos vivenciado desde muito tempo, um novo léxico dentro do direito, da psiquiatria, da teoria social e literária (Butler, 2004b, p. 217). Ou seja, trata-se de rearticular nossa tecitura gramático-lexical entendendo que pensar vidas possíveis é uma urgência para aqueles que estão tentando tornar-se possíveis. Por isso a gaymada se apresenta enquanto possibilidade de um espaço onde corpos distintos possam viver a potência de seus devires, afirmando sua incompletude em uma postura performativa para com suas identidades intermitentes, fugazes e escapáveis.

 

Uma política performativa do corpo

Para discutir a dimensão política do performativo, Judith Butler retoma a ideia de "povo" que foi fundamental na Revolução Norte-Americana para a afirmação de uma soberania que não mais pertencesse ao monarca inglês, mas que passasse a ser exercida pelos antigos súditos que se afirmavam enquanto sujeitos políticos constituidores de um povo. Entretanto, essa noção de origem revolucionária é uma meta-categoria sujeita as mais diversas apropriações. Sob a ideia do "we, the people" dos founding fathers, os governantes norte-americanos justificaram: o massacre indígena, a segregação da população negra, a apropriação de terras mexicanas, a deportação de imigrantes, a exclusão social da população LGBTIQ, etc. Diversas foram as tentativas de definição do que é o povo, sempre culminando na precarização de uma outra parcela que não se enquadrava na noção de povo proclamada. Nesse sentido, Butler propõe uma compreensão do conceito de "povo" através de uma abertura à performatividade dos corpos que se afirmam enquanto povo no espaço público: "o "nós" pronunciado já foi encenado pela assembleia de corpos, seus gestos e movimentos, suas vocalizações e suas formas de atuar em conjunto" (Butler, 2016a, p. 50, tradução livre)14. Assim, a gaymada presentifica essa política do performativo ao ser uma intervenção cênica-poética-performática que encena a própria existência de corpos que constituem um "nós" do povo que é sempre obliterado, um constitutivo rejeitado que é trazido à tona pela própria presença pública desses corpos.

A soberania popular é entendida por Butler enquanto um poder que excede o Parlamento e que pode, inclusive, depô-lo. As eleições seriam apenas sistemas parciais de tradução dessa soberania que ainda permaneceria de forma não completamente traduzível com o povo, não existindo, portanto, ordem democrática possível que contenha instucionalmente a soberania popular. A práxis da gaymada é, nesse sentido, também um exercício de soberania popular rearticulatório das relações de poder. Butler apresenta uma importante inovação à teoria política clássica da soberania popular, passando a compreendê-la enquanto um exercício performativo contínuo de corpos que ocupam o espaço público e se reivindicam enquanto povo. Essa é uma importante diferença em relação à interpretação estanque e metafísica da soberania popular enquanto de titularidade do povo que outorga seu exercício para o Parlamento.

É claro que todas pessoas passíveis de serem representadas pela noção de povo nunca aparecem juntas às manifestações para se reclamarem enquanto povo. É nesse sentido que a autora nos fala de um excedente constitutivo da noção de "we, the people" que nunca se identifica com a totalidade da população a que se refere. As pessoas que se reivindicam nos movimentos populares enquanto povo, mais do que se auto representarem, se auto constituem no ato performativo de serem povo, disputando politicamente esta noção. Dessa forma, a afirmação "we, the people" é antes de tudo um ato de fala que se auto designa e se auto constitui, produzindo, portanto, a própria pluralidade social que enuncia. Ou seja, a enunciação do povo é, em um só ato, sua própria constituição. Ou até mesmo a enunciação presentificada da gaymada é simultaneamente a rearticulação das espacialidades e a constituição de corpos enquanto devires.

Reunir-se em um espaço público passa a ser compreendido enquanto um ato político performativo, ainda que seja algo prévio e que se encontre separado de qualquer ato de fala específico, é um ato em si e, como dito, transborda significações. Com esse importante conceito de performatividade, Butler ressignifica a teoria política. Ela reconhece a importância das reuniões públicas em si mesmas e nos chama a atenção para a importância dos corpos e de sua maneira de se relacionarem em assembleia enquanto atos constitutivos do político:

em outras palavras, eles devem ser evidenciados, o que significa que eles não são evidentes. Essa circularidade parece arriscar em contradição ou tautologia, mas talvez as verdades só se tornem evidentes na maneira como elas são declaradas. Em outras palavras, a promulgação performativa da verdade é o modo de evidenciar essa verdade, uma vez que a verdade em questão não é dada a priori ou estática, mas é encenada ou exercida através de um determinado tipo de ação plural. Se é a própria capacidade de ação plural que está em jogo em reivindicar a soberania popular, então não há como "mostrar" essa verdade fora do plural e da, invariavelmente, normatividade conflitiva que chamamos de auto-constituição (Butler, 2016a, p. 55).15

Esse sujeito plural "povo" se constitui no curso da ação performativa da gaymada, por exemplo, e não é um dado estanque, mas se transforma a todo momento ao longo da ação. São os devires dos corpos e da política. Ou seja, o sujeito "povo" antes da ação performativa é diferente daquele que vem depois dela. Nesses termos, o corpo torna-se um elemento fundamental para a ação performativa -enunciativa, já que esta pressupõe uma sociabilidade política corporizada e plural. Até mesmo o ato de fala linguístico depende de um modelo de vocalização que requer boca, garganta, respiração, um organismo físico comportando de uma dada maneira, um campo auditivo circunscrito de modo que os agentes estejam suficientemente perto para se escutarem, se verem e se sentirem, de modo que possam tentar dizer e fazer algo juntos (Butler, 2016b: 56). Falar, portanto, é um movimento em si mesmo, congregando os sentidos básicos da mobilidade corporal e da organização política. Toda essa vivência da potência corporal é presentificada na gaymada que expressa nos corpos sua ação política, assumindo a dimensão corporal como a base do político:

a gaymada talvez traga para quem assiste - e pra gente também - uma dimensão do que é possível ser feito dentro dessa sociedade heteronormativa, misógina, LGBT-fóbica. Que coletivamente podemos criar espaços dentro da própria cidade, que alterem esse estado de apatia vigente, onde os preconceitos são confrontados com diálogo, onde é possível viver e conviver sendo aquilo que se quer ser. Um universo penetrável por qualquer outra pessoa disposta a estar ali sem violência. É efêmero mas produz reverberações. A gaymada de alguma maneira cria possibilidades (...)mostrando que é possível existir e que as possibilidades do corpo são infinitamente maiores do que essas que mostraram e mostram pra gente (Toda Deseo, 2017).

Também nesse sentido, Butler afirma que a realização performativa de "we, the people" se realiza antes de qualquer vocalização da frase, pois ela já está corporizada antes de ser enunciada (Butler, 2016a, p. 59). Quando pessoas, precarizadas em suas condições de vida, saem à rua para se afirmarem enquanto sujeitos políticos que se fazem existentes, anteriormente a qualquer formulação de demandas políticas, eles se reconhecem enquanto "precarizados", seus corpos já carregam uma história e um sentido antes de qualquer ato de fala linguístico. E isso, já é um ato político por excelência (Butler, 2016a, p. 59). Essas pessoas precarizadas, que também participam da gaymada, afirmam uma forma de igualdade frente a intensa desigualdade da realidade, não só por enunciarem frases de ordem nesse sentido, mas por corporificarem a igualdade de qualquer maneira possível ao se reunirem no espaço público sob a base dessa mesma igualdade. Corpos abjetos se fazem presentes e existentes nos espaços articulados pela gaymada. O corpo não mais pode ser entendido enquanto mero instrumento da ação política, mas como uma precondição de qualquer ato de protesto político, assumindo, portanto, um locus central na teoria política apresentada pela autora (Butler, 2016a, p. 61).

 

Precariedade e potência política

Ao longo de todo o livro Notes toward a Performative Theory of Assembly resta claro a preocupação de Judith Butler com o enfrentamento da crescente precariedade das condições de vida. Entretanto, o reconhecimento dessa precariedade não resulta em uma despotencialização da capacidade de agência do sujeito. Pelo contrário, a autora nos diz que ser despojado de proteção é uma forma de exposição política extremamente vulnerável, mas ao mesmo tempo potencial, desafiante e revolucionária. Nesse sentido, que as assembleias populares, e também a gaymada, se apresentam como importantes atos políticos de agregação de corpos precários e de exposição da sua própria precariedade para um mundo que tende a naturalizá-la (Butler, 2015, p. 67).

Analisando o importante elemento da corporificação dessas manifestações, a autora propõe uma reconstrução das dimensões tradicionais do político (Butler, 2015, p. 9). Essa corporificação dos atos políticos funcionaria em dois sentidos: a) contestando relações de poder e precarização da vida através de assembleias, greves, vigílias e ocupação do espaço público; b) expondo os corpos como realidades vivas de sua precarização, geralmente naturalizada e não refletida pela sociedade. Dessa forma, os corpos constituiriam performativamente atos políticos de enfretamento a sua própria precarização:

existe uma força do corpo que chega com outros corpos em uma zona visível à cobertura da mídia: é esse corpo, e esses órgãos, que requerem emprego, abrigo, cuidados de saúde e alimentos, bem como algum futuro que não é o futuro da dívida impagável, é esse corpo, ou esses corpos, ou o corpo como esses corpos, que vivem na condição de um meio de obrigatória subsistência, mínima infraestrutura e acelerada precarização (Butler, 2015, p. 9-10).16

Esses atos públicos se apresentam como uma importante forma de expressar e demonstrar a precariedade dos corpos, sua vulnerabilidade e sua sujeição aos enquadramentos sociais de vidas passíveis de luto. Obviamente, esses atos possuem suas próprias singularidades e alianças, mas isso não significa que não possuam nenhum laço de ligação. Butler aposta que esta ligação está no exercício plural e performativo do direito de aparecer, que insere esses corpos no meio do cenário político e encaminha uma demanda corporal por melhores condições econômicas, sociais e políticas, não mais afetadas pelas formas induzidas de precariedade da vida (Butler, 2015, p. 11). A gaymada também é um exercício do direito ao aparecimento, do direito à própria existência através de uma rearticulação das ruas e espacialidades.

A autora entende a precariedade em duas dimensões, a primeira enquanto uma ontologia social dos corpos vulneráveis e interdependentes, a segunda enquanto uma distribuição social desigual de aparatos que dão suporte à vida. Ela afirma que os enquadramentos que atuam para diferenciar as vidas que merecem serem vividas das que não detêm este merecimento, não só organizam a experiência visual como também geram ontologias específicas do sujeito. Normas repetidas produzem e deslocam os termos pelos quais os sujeitos são reconhecidos, ou seja, falamos de uma ontologia historicamente contingente e que interfere na nossa capacidade de nomear o "ser" do sujeito conforme sua possibilidade de reconhecimento (Butler, 2009/2016b, p. 17). A gaymada, nesse sentido, é uma práxis que negocia com o campo normativo do reconhecimento, tensionando a própria ideia de igualdade entre os corpos. Pensar a precariedade como ontologia social é, portanto, pensar relações de interdependência sociais indisponíveis.

Intrigada com as vidas perdidas na guerra, diariamente apresentadas enquanto números, Butler indaga sobre o que seria necessário para apreender o caráter precário das vidas perdidas, mas também que essa apreensão corresponda a uma postura ética e política contrária a essas perdas. A primeira condição avistada por Butler é que a vida precária seja considerada viva e que a precariedade seja um aspecto apreendido do que está vivo. A segunda condição é a compreensão da responsabilidade para com o outro, precariedade implica viver socialmente. A vida de alguém sempre estará nas mãos do outro, o que implica estarmos expostos não somente aos que conhecemos, mas também aqueles que não conhecemos. Reciprocamente, isso implica estarmos impingidos por relações de interpendência que podem ou não gerar uma relação de cuidado com a vida (Butler, 2009/2016b, p. 29-31).

Assim, caminhamos para uma outra função das assembleias e manifestações públicas que seria relativa a ideia de responsabilização. Essa reunião de corpos, em um espaço público, ativa uma forma provisória e plural de coexistência que constitui uma distinta compreensão ética da responsabilização, muito distante da alardeada interpretação liberal do conceito. Contra a tendência crescente de individualização e crescente senso de ansiedade e falência, as assembleias se apresentam como potências políticas que reúnem corpos que partilham de uma condição social injusta (Butler, 2015, p. 16). Assim, na partilha de suas precariedades ressignifica o sentido da responsabilização para a busca de uma existência coletiva digna.

Pensando o papel dos corpos na política, Butler afirma que eles sempre representam mais do que as demandas públicas vocalizadas. O caráter performativo é excedente à vocalização. A interação entre esses corpos, sua performatividade, sua potência, mesmo que parados, expressa e transborda de significações políticas. Nesse sentido, a autora também atesta que a forma com que determinados corpos aparecem publicamente, não é a mesma forma como outros têm o direito de aparecer, por isso a importância das assembleias e atos públicos enquanto "visibilizadores" de corpos precarizados. Em razão de toda normatividade social, alguns corpos estão muito mais sujeitados à violência do que outros, e, portanto, não possuem o mesmo direito de aparição social. Exatamente aí que reside a importância das assembleias populares e da própria gaymada. Quando corpos se juntam para protestarem ou resistirem à precariedade, eles estão criando um espaço político novo. Espaço que depende de ações plurais, não universais, nem unânimes, mas que podem instituir condições de vida melhores em um contexto específico. Ações que negam a política enquanto um dado predeterminado e afirmam a força da dimensão da aposta em devires de corpos que rearticulam a espacialidade da existência.

 

Conclusão

A gaymada se apresenta enquanto uma práxis crítica capaz de rearticular tecituras sociais através de atos performativos que deslocam parodisticamente o campo normativo do reconhecimento social, alargando suas fronteiras e revelando os corpos apagados de uma existência social possível. Ela é uma práxis indisponivelmente aberta às disputas de sentido pelo seu próprio significado. Uma práxis que se reinventa a cada experiência. Ela é desobediente no sentido foucaultiano da arte da inservidão voluntária. Ela desobedece à estrutura normativa social hegemônica de gênero e sexualidade que reduz a possibilidade de existência dos corpos. Compreendendo o caráter paradoxal da norma que é possibilidade de existência e simultaneamente restrição, a gaymada negocia com o campo normativo para possibilitar outros devires de corpos em sua potência ou possibilidade de vir-a-ser que nunca se completa.

Quando o coletivo Toda Deseo diz na entrevista que "a ideia era organizar um encontro com a galera LGBT+ num local público com o intuito de trazer literalmente essa comunidade para o dia" (Toda Deseo, 2017), eles expressam a própria rearticulação espacial que performam na gaymada. Trazer essa comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e demais corpos abjetos para a luz do dia das cidades é rearticular o espaço para que este se torne inteligível à presença e existência desses corpos. A gaymada transforma os espaços por onde passa. É claro que tudo isso ocorre de forma tensional e com contradições internas à própria prática, como no caso das mulheres que não eram acolhidas por alguns homens gays. O próprio espaço é uma tensão. Mas, a gaymada enquanto uma linguagem e uma práxis escapável a toda tentativa de apreensão, tem se mostrado uma intervenção cênica-poética-performática de potencial rearticulação das experiências cotidianas de violência de gênero e sexual. Ela é uma convocatória a uma responsabilização coletiva por vidas mais dignas de serem vividas e por mundos mais coabitáveis.

 

Referências

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Butler, J. (2016a) "We, the People" - Thoughts on Freedom of Assembly. In: Badiou, A., et al. What is a people? New York: Columbia University Press. https://doi.org/10.7312/badi16876-004        [ Links ]

Butler, J. (2016b) Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? 2a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, (Originalmente publicado em 2009).         [ Links ]

Butler, J. (2017) A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Trad.: Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora.         [ Links ]

Foucault, M. (1990) Qu'estce que la critique? Critique et Aufklarung. Bulletin de la Société Française de Philosophie, 84ème année, n°2, Avril-Juin.         [ Links ]

Rodrigues, A.; Zamboni, J.; Souza, L. L. de; Ferreira, M. S. & Salgado, R. G. (2018) Crianças desviadas, sexualidades monstruosas, educação pervertida: paisagens alteritárias das infâncias. Periódicus - Revista de Estudos Indisciplinares em Gêneros e Sexualidades, Salvador, 1(9). https://doi.org/10.9771/peri.v1i9.26783        [ Links ]

Toda Deseo. Entrevista para o ensaio Gaymada: uma linguagem que escapa e uma desobediência que rearticula a tecitura social. Entrevistador: Igor Campos Viana. Belo Horizonte, 2017.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 05/10/2018
Aprovado em: 20/11/2018

 

 

1 Conforme a descrição do próprio coletivo: "A Toda Deseo é um coletivo de artistas mineiros, envolvidos com questões relacionadas às identidades de gênero. Transgressoras e encorajadoras, as ações desse coletivo visam garantir a liberdade de expressão e da participação dos sujeitos "trans" na vida social e cultural da cidade de Belo Horizonte. São atos de resistência, inclusão e de luta contra o preconceito" (Toda Deseo, s/d).
2 A queimada também conhecida como jogo do mata ou prisonball é uma brincadeira na qual duas equipes são formadas e dividas por dois campos. Com uma bola, um time tenta acertar os integrantes do outro e fazê-los prisioneiros em seu próprio campo. A prisão costuma também ser chamada de cemitério no Brasil. Vence o time que fizer prisioneiro todos os integrantes do time adversário.
3 Evento que se propunha a reunir pessoas para "conversar, discutir, saborear, degustar, paia trocar dicas, beijos, abraços, palavras e olhares sinceros! Sair dos nossos banheiros, salas ou quartos e levar toda a maquilage pra praça! " (Toda Deseo, s/d).
4 Uma interessante análise sobre a ideia da "criança viada" pode ser encontrada no dossiê Crianças Desviadas do Periódicus. (Rodrigues, Zamboni, Souza, Ferreira & Salgado, 2018).
5 Sigla utilizada para se referir às pessoas lésbicas, gays, bissexuais, intersex, transgêneros e queers.
6 Vídeos sobre a gaymada podem ser encontrados nos seguintes links: https://goo.gl/hhvWtn; https://goo.gl/j53GT7; https://goo.gl/7zzL2K; https://goo.gl/Psjr34. Acesso em 15 de janeiro de 2018.
7 O meu primeiro contato presencial com a gaymada ocorreu em outubro de 2016 com a Edyção especial dia das crianças realizada no Zona Last, bar de convivência LGBTIQ, situado na divisa do bairro Santa Tereza com o Horto, em Belo Horizonte. A chamada para o evento dizia: "Campeonato Interdrag de GAYMADA para mim, para você, para todo mundo que já foi, mas ainda GUARDA SUA CRIANÇA VIADA INTERIOR! Dia 12 de outubro é pra se jogar, mas com muito amor! Em parceria com o bar mais baphônico dessa cidade, o Zona Last, a gente vai ocupar a rua Conselheiro Rocha, no Horto e se jogar na confusão! É pra se divertir, pra trocar uma ideia, pra fazer pegação, pra falar de política!" (fonte: https://goo.gl/ hFt9Rq). Acesso em 15 de janeiro de 2018 .
8 Referência à edição de Curitiba, na qual uma pedra foi arremessada por um dos espectadores em direção ao espaço de realização da gaymada. Ele fugiu logo após o arremesso. A pedra acabou acertando o ombro de outro espectador, que teve a assistência dos organizadores e não precisou ser hospitalizado. (fonte: https://goo.gl/661bxP). Acesso em 15 de janeiro de 2018.
9 O que torna a empreitada deste ensaio paradoxalmente impossível e indispensável ou assumida um tanto quanto devir do qual o ensaio também faz parte.
10 Tradução livre para "an occupation or reterritorialization of a term that has been used to abject a population can become the site of resistance, the possibility of an enabling social and political resignification. And this has happened to a certain extent with the notion of "queer." The contemporary redeployment enacts a prohibition and a degradation against itself, spawning a different order of values, a political affirmation from and through the very term which in a prior usage had as its final aim the eradication of precisely such an affirmation".
11 Tradução livre de: "paradoxically, but also with great promise, the subject who is "queered" into public discourse through homophobic interpellations of various kinds takes up or cites that very term as the discursive basis for an opposition".
12 Tradução livre para: "as a consequence of being in the mode of becoming, and in always living with the constitutive possibility of becoming otherwise, the body is that which can occupy the norm in myriad ways, exceed the norm, rework the norm, and expose realities to which we thought we were confined as open to transformation. These corporeal realities are actively inhabited, and this "activity" is not fully constrained by the norm. Sometimes the very conditions for conforming to the norm are the same as the conditions for resisting it".
13 Quando perguntados sobre a dificuldade em conseguirem financiamento público, eles responderam: "A gaymada é um evento difícil de definir e eu acredito que o poder público tenha essa dificuldade também. E como é festiva e consegue ter um público grande, eles tenham interesse em estar junto com a gente. Já fizemos algumas Viradas Culturais, já conseguimos financiamento público da Lei Municipal de Cultura para realizar gaymadas pelas periferias, enfim... Já soubemos de uma pessoa, membro de alguma comissão da Fundação municipal de Cultura, que achou absurdo conseguirmos esse financiamento porque, segundo ele a gaymada era só um jogo, uma atividade recreativa e não teatro. Tivemos nas reuniões da tal comissão apoio de grande parte das pessoas e o pedido dele, que era de reavaliação do nosso projeto, foi negado" (Toda Deseo, 2017).
14 Tradução Livre para: ""the "we" voiced in language is already enacted by the assembly of bodies, their gestures and movements, their vocalizations, and their ways of acting in concert".
15 Tradução livre para: "in other words, they have to be made evident, which means that they are not self-evident. This circularity seems to risk contradiction or tautology, but perhaps the truths only become evident in the manner in which they are declared. In other words, the performative enactment of the truth is the way of making evident that very truth, since the truth in question is not pregiven or static but enacted or exercised through a particular kind of plural action. If it is the very capacity for plural action that is at stake in claiming popular sovereignty, then there is no way to "show" this truth outside of the plural and invariably conflictual enactment we call self-constitution".
16 Tradução livre para: "there is an indexical force of the body that arrives with others bodies in a zone visible to media coverage: it is this body, and these bodies, that require employment, shelter, health care and food, as well as some of a future that is not the future of unpayable debt, it is this body, or these bodies, or body like these bodies, that live in the condition of an impelled livelihood, decimated infrastructure, accelerating precarity".

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