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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.45 São Paulo maio/ago. 2019

 

ARTIGOS

 

Escrever como um ato de resistência: uma escrita rizoma

 

Writing as an act of resistance: a rhizome writing

 

Escribir como un acto de resistencia: una escritura rizoma

 

Écrire comme un acte de résistance: une écriture rhizome

 

 

Ana Lúcia S. da SilvaI; Laura Camargo Macruz FeuerwerkerII

IPsicóloga. Doutoranda da Faculdade de Saúde Pública - FSP/USP. Poeta, pesquisadora e professora; ana-lucia@usp.br
IIMédica. Livre-docente em Saúde Pública. Professora Associada da Faculdade de Saúde Pública da USP – FSP/USP; laura.macruz@gmail.com

 

 


RESUMO

O movimento desta escrita acompanha o movimento de produção de tese intitulada: Novos coletivos de resistência em produção: o que pode um corpo político poético? É uma escrita rizoma. Portanto, uma escrita resistência e não sobre resistência. Anuncia os recolhimentos de campo, as transmutações e os encontros com os coletivos de resistência que se conectam às produções de mulheres poetas, pretas e moradoras da periferia da cidade de Belém-PA. Assim, é uma batalha, uma partilha e uma saúde. O artigo parte do encontro entre a pesquisadora, e poeta, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), sua orientadora e militante do SUS, e as mulheres, manas, e poetas, de Belém e Manaus - AM, que fazem parte do coletivo Slam Dandaras do Norte, e que protagonizam encontros-batalhas de poesia, para produzir encontros poéticos, manifestos e atos que potencializem suas existências, demandas políticas, alegrias e produção de si.

Palavras-chave: Resistência, Slam, Rizoma, Corpo poético, Experimentação cartográfica.


ABSTRACT

The movement of this writing accompanies the thesis production movement entitled: New resistance groups being produced: what can a poetic political body? It is a rhizome writing. So a writing resistance, and not about resistance. It announces the field recollections, the transmutations and the encounters, with the resistance collectives that connect to the poetic productions of women poets, blacks and dwellers of the periphery of the city of Belém-PA. So it's a battle, a sharing and a health. The article starts with the cartographic experimentation between the researcher and poet, the University of São Paulo's School of Public Health (USP), its director and militant of the SUS, and the women, dudes, and poets of Belém and Manaus-AM, who are part of the collective Slam Dandaras do Norte, who play poetry encounters, to produce poetic encounters, manifestos and acts that potentiate their existences, political demands, joys and self-production.

Keywords: Resistance, Slam, Rhizome, Poetic body, Cartographic experimentation.


RESUMEN

El movimiento de esa escritura acompana el movimiento de producción de tesis titulada: Nuevos colectivos de resistencia en producción: iqué puede un cuerpo político poético? Es una escritura rizoma. Por lo tanto, una escritura resistencia y no sobre resistencia. Anuncia lo que há sido recogido en el campo, las transmutaciones y los encuentros con los colectivos de resistencia que se conectan a las producciones poéticas de mujeres poetas, negras y moradoras de la periferia de la ciudad de Belém-PA. Así, es una batalla, un compartir y una salud. El artículo parte de la experimentación cartográfica entre la investigadora y poeta, de la Facultad de Salud Pública de la Universidad de São Paulo (USP), su orientadora y militante del SUS, y las mujeres, manas, y poetas, de Belém y Manaus-AM, que forman parte del colectivo Slam Dandaras del Norte, y que protagonizan encuentros-batallas de poesía, para producir encuentros poéticos, manifiestos y actos que potencien sus existencias, demandas políticas, alegrias y producción de sí.

Palabras-clave: Resistencia, Slam, Rizoma, Cuerpo poético, Experimentación cartográfica.


RÉSUMÉ

Le mouvement de cette écriture accompagne le mouvement de production de thèse intitulé: Nouveaux collectif de résistance en production: que peut un corps politique poétique? C'est un rhizome écrit. Donc, une résistance à l 'écriture et non une résistance excessive. Annonce le rassemblements sur le terrain, transmutations et rencontres avec des groupes de résistance qui se connectent aux productions de poètes, femmes noires et femmes vivant à la périphérie de ville de Belém-PA. C'est donc une bataille, un partage et une santé. L'article commence à partir du rencontre entre le chercheur et poète de la Faculté de Santé Publique de L'université de São Paulo (USP), son directeur et militant du SUS, et femmes, manas et poètes, de Belém et de Manaus-AM, qui font partie du collectif Slam Dandaras do Norte, et qui rencontres poétiques - batailles de poésie, pour produire des rencontres poétiques, des manifestes et des actes qui potentialisent leur existence, leurs revendications politiques, leurs joies et leur production.

Mots-clés: Résistance, Slam, Rhizome, Corps poétique, Expérimentation cartographique.


 

 

Guerreiras, rainhas, mulheres de resistência
Dandaras do Norte só Slam de consciência!1
Sabotagem sem massagem na mensagem!2
Uma vez poetas ambulantes e nada será como antes!3
É tudo nosso!4

 

Introdução

Por Uma Vida poÉtica

Esses gritos de guerra, palavras de ordem, chamados, ou o que queiramos nomear, sabendo que não estamos autorizadas a falar em nome de, que anunciam essa escrita, dizem de um deslocar no mundo dos Slams, dos saraus, do ativismo político poético e da poética ativa e altiva, e que tomamos como uma convocatória para mergulhar no tema da resistência e operou como um disparador desta escritarizoma, desta escrita resistência, que percorre lugares por onde coletivos políticos poéticos têm se produzido. E é isso que esse texto-tese fala e per(segue...). As vozes ressonantes, os corpos que falam por si e que fazem uso da palavra e da escrita poética como corpos-máquinas de resistências. Sabemos também que é pelo ato de resistir que muitas vozes e corpos são calados, tombados ou invisibilizados. E nessa escrita, as produções de vidas resistentes e ridentes, são tomadas como fonte-ponte de conexão e de criação de uma escrita acadêmica e poÉtica, e de uma escrita de si.

Por que escrita-rizoma? Em primeiro lugar faz-se necessário anunciar que estamos tomando de assalto o conceito de rizoma criado por Deleuze & Guattari (1995), mas que não nos interessa reproduzi-lo aqui como repetição apenas, seria no mínimo incoerente e desonesto com a aposta dos autores por uma vida inventiva. O que nos interessa é lançar mão de um modo de escrever e produzir pesquisa como um artesão que tece sua obra e, ao mesmo tempo, transforma-se, que se deixa fisgar pelo inesperado, que acolhe as imperfeições e as vê como transmutações. Aquele que está aberto às conexões advindas do processo de criação, que não se prende à memória do que inicialmente desejara criar. E é nesse modo fluido e atenta às intensidades das existências das manas do Slam que uma cartógrafa vai se produzindo e uma tese vai sendo escrita, uma escrita-rizoma. Porém, faz-se necessário afirmar, incorrendo em um desejoso paradoxo, que "o rizoma procede por variação, expansão, conquista, captura, picada. Oposto ao grafismo, ao desenho ou à fotografia, oposto aos decalques, o rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com sua linha de fuga". (Deleuze & Guattari, 1995, p. 43).

Temos pensado o cartógrafo como um poeta andarilho, que cata coisas e vai montando um mosaico das coisas com que se encontra, dos objetos-coisas, dos objetos-afetos, dos objetos-memória e dos encontros. E entendemos que a cartografia não só rima com poesia, como enamora a poesia. Pensar o cartógrafo como poeta não necessariamente é imaginar o sujeito que escreve poesias, declama poemas ou coisas do gênero; somos tomadas também pelo aspecto andarilho deste, nômade por excelência, que caminha conectando-se à existências e coisas. Cartografar também é andar, circular, flanar, deslocar-se, e grafar. É nas andanças, des(encontros), des(encantos), solidão, multidão, que parte da alquimia acontece, que os corpos e as coisas se cruzam, se visibilizam ou invisibilizam, falam ou calam, se transmutam.

A poeta é uma militante da poesia
Ou eu ou a poesia?
Eu! A militância poética, com ética e estética
Militar é agir, disse Guattari!
Poetizar, é fluir...
Ir ao encontro de si, devir poeta, com ética e estética.
É na(morar) na filosofia da poesia
e poder rimar amor e dor
adormecer...
A dor me ser!

Cartografia nesta escrita-rizoma também é uma espécie de alquimia, em que um dos elementos é a poesia. E nessa experimentação cartográfica, "escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar, cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir". (Deleuze & Guattari, 1995, p. 9).

Uma escrita que fala de amorosidade, de resistência, de re-existência, de liberdade, de ética, de sabedoria, de alegria. Que se escreve com afeto e afetada pelo comum partilhado, por aquilo que Jacques Rancière (2005, p. 15) denominou de "partilha do sensível", e que apresenta recortes de vários mundos poéticos, estéticos e políticos. Não acreditamos em uma escrita que não seja política e, neste texto, não só porque aborda o tema da resistência, ou das resistências, mas sobretudo, porque concordamos e nos reconhecemos no que Rancière defende em sua Política da Escrita:

[...] antes de ser o exercício de uma competência, o ato de escrever é uma maneira de ocupar o sensível e dar sentido a essa ocupação. Não é por ser o instrumento do poder, nem por ser a via real do saber que a escrita é coisa política. Ela é coisa política porque seu gesto pertence à constituição estética da comunidade e se presta, acima de tudo, a alegorizar essa constituição. (Rancière, 2017, p. 7).

É nessa partilha do sensível, do ato de escrever como ato político e ético, que o tema das resistências aparece na composição de uma tese que investiga o que pode um corpo político poético, que mergulha em uma experimentação cartográfica no universo do Slam e os modos de expressão de si e do outro que aí são produzidos, que ouve as vozes e se mistura a elas, se reconhece na convocatória das Dandaras no Norte, das guerreiras, rainhas, mulheres de resistência, diante do chamado à poetizar.

Participar do Slam me fez olhar pra mim e para os meus, de casa e da rua, saber que cada um tem o seu tempo de se movimentar, de falar e de ocupar os espaços. Isso aqui me dá mais gás para seguir! São vozes disparadas de uma das edições do Slam Dandaras do Norte, que acontece em Belém-PA desde abril de 2017, e que temos feitos mergulhos, sem colete salva-vidas. Não entramos nesse "bonde" para salvar vidas, nem mesmo para pesquisar as vidas que se produzem nas batalhas de poesia, nas batalhas da vida. Estamos, sim, interessadas em nos produzir no e com o coletivo e, assim, produzir pesquisas que digam de nossas vidas também, como temos feito ao longo deste exercício constante de cartografar os movimentos e as batalhas em que estamos inseridas e que atentam para a produção de visibilidades, escuta poÉtica, fortalecimento das vozes silenciada nas disputas político poéticas e nos encontros-batalhas.

O artigo põe em cena pesquisa vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), cujo título de tese é: Novos coletivos de resistência em produção: o que pode um corpo político poético?. Assim, abordamos o tema da resistência, conectado com o tema da poética, da estética, da ética e da política, e que se constitui como tessitura fundamental para a tese em produção.

Desse modo, parto de Belém, onde acontece o campo de pesquisa de doutorado em andamento, e me desloco para outros lugares que fazem ponte com as interrogações aqui propostas, tendo o coletivo de poetas Slam Dandaras do Norte como fonte-front na produção do estudo. Vale demarcar que não as vemos só como fonte de pesquisa; essa imagem não é digna de suas vidas afrontosas e afirmativas. Assim, o duplo também comunica uma ponte que liga a fonte (de pesquisa) e o front, que diz da vida das mulheres que estão à frente das lutas, que pautam suas próprias existências, que estão no front das batalhas poéticas e das batalhas cotidianas. É uma ligação-travessia.

 

Devir Cartógrafa

Pesquisadora aberta as afecções do que não para de passar, sujeita às experimentações e atenta ao caráter cortante da máquina que escreve e corta certezas, tece mundos, formula questões, que se conecta com os coletivos de resistência, e que se encontra com as manas, com os manos, com as minas, com as monas e com as monstras.

Tanto as Dandaras do Norte, quanto os Poetas Ambulantes, um bando de poetas da cidade de São Paulo, e demais poetas que se inscrevem neste artigo e em nossos corpos, te interrogam, te convocam, te invadem, te deslocam! Cada um e cada uma te chega de um jeito, numa espécie de dança, batuque, truque, poesia subversiva e intensiva. Bem sei que cada poeta que encontramos é uma multidão, mas tenho me perguntado: o que habita essa multidão? Como se deslocam, desdobram, desfazem o tanto de sofrimento que contêm em seus versos? Como rimam poesia com anarquia? São inquietações, eu diria, prazerosas, no sentido de que não temos pressa de chegar, adentrar, vasculhar. Bisbilhotar!

Ao assistir o primeiro episódio do documentário "Essa vida é uma viagem", do coletivo de Poetas Ambulantes, de São Paulo, percebi o quanto a poesia rima com a cartografia, mas também o quanto a poesia rima com rebeldia. Essa web série, dirigida pela produtora Chamai Leone (2017), põe em cena as vozes e trajetórias de um grupo de poetas que circula pela cidade de São Paulo nas linhas de metrôs, ônibus, trens e produzem encontros poéticos nos coletivos, ocupam praças, ruas, esquinas; sempre em bandos, como poetas lobos que andam em matilha.

As batalhas poéticas, conhecidas com Slam, têm uma dinâmica própria de funcionar e atendem às especificidades regionais, mas a grosso modo, seguem os mesmos critérios de quase todo o Brasil e de edições internacionais, tais como: cada poeta tem até três minutos para apresentar a sua poesia, pode apresentar entre duas a três poesias inéditas, que são submetidas à avaliação do júri escolhido minutos antes da cada competição; não é permitido o uso de qualquer outro recurso além da leitura ou declamação da poesia, e em seguida é escolhido o poema que obtiver a maior pontuação naquela edição, e quem obtiver a maior pontuação em todas as edições vai acumulando vitórias para concorrer a etapa nacional e, em seguida, ao Campeonato Internacional. Todo esse universo, funciona como uma mística, como um chamado a uma experimentação como pesquisadora-poeta. Assim, temos percorrido em Belém-PA, os "rolês", os passeios, as batalhas, e sempre sou surpreendida e me enCanto a cada edição, a cada encontro, seja como jurada, como plateia, como poeta, como fotógrafa, ou como pesquisadora rolezeira e, assim, sentir a força e as "bruxarias" que são produzidas. Em uma das edições até inventei uma maquinaria chamada de "Escuta poÉtica: me conte o seu conto", utilizando a poesia como dispositivo de escuta ética.

Isso aqui é um vira tempo! Eu me reportei para o filme do Harry Potter!

Declaração de uma jovem poeta de 70 anos em uma das Edições do Slam Dandaras do Norte, no dia 18 de março de 2018. Foi ali no Hall da Fundação Cultural Tancredo Neves, em Belém do Pará, que a "dra poesia", que também é uma das autoras deste texto-rizoma, instalou sua Tenda Poética. Era uma manhã de domingo e a agenda cartográfica era de escuta poÉtica. Ela foi pronta para a batalha; munida de pequenos poemas impressos em papel A4, alguns livros de poesia e de Psicologia Política, um pequeno vaso de manjericão, uma plaquinha com as inscrições "coisas boas acontecem aqui", uma sombrinha psicodélica, umas almofadas, um tapete indiano, duas maracas e um desejo enorme de revolucionar...(Arantes, 1998).

Foi em meio a uma batalha e ao som de música preta, brechó, pinturas corporais, venda de comidas e circulação de gente, que uma escuta ocorreu. Não era um consultório de psicologia nos moldes que se conhece e não obedecia a nenhum protocolo de atendimento, mas, sim, a um princípio ético: ser mais um espaço de escuta, de trocas afetivas por meio das composições poéticas, de uma escuta poÉtica. Os que ali pararam, sentaram, deitaram, falaram e até declamaram, fizeram-no de forma espontânea e foram informados de que se tratava de mais um espaço de escuta que poderia compor o corpo de um estudo e que, caso isso fosse feito, teriam sua identidade preservada, mas que até então se constituía como um dos efeitos do encontro, da conexão entre a cartógrafa-psicóloga-poeta e as Dandaras do Norte. Na página eletrônica do Slam Dandaras do Norte, no Face Book e no Instagram, principais canais de comunicação de chamado à batalha, há também um release dessa invenção.

Neste processo de doutoramento, e em meio as vivências poéticas com as Dandaras do Norte, uma cartografia vai se montando, um mapa vai sendo construído a partir das várias entradas que se apresentam e outras que são produzidas. Esse mapa comporta as batalhas, as amizades, os afetos, as cumplicidades, os conflitos, as disputas, as descobertas, a intensidade daquilo que à primeira vista se apresenta como uma batalha de poesia, mas que abre para outros mundos, para outras possibilidades de existências dos que ali "colaram" e daqueles que colam a cada edição. E quem mapeia se apresenta ora com a poeta, ora como pesquisadora, ora como cartógrafa, ora como "dra poesia", que se faz cartógrafa de si no meio das Dandaras. Não se deixando decalcar, pois está atenta às capturas e tentativas de neutralidades mornas e que possam tirar-lhe a potência de existir e de escrever sobre o vivido por meio das múltiplas entradas e múltiplas saídas. "Fazer o mapa, não o decalque. A orquídea não reproduz o decalque da vespa, ela compõe um mapa com a vespa no seio de um rizoma. Se o mapa se opõe ao decalque é por estar inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no real". (Deleuze & Guattari, 1995, p. 30).

O movimento desta escrita acompanha o movimento de produção da referida pesquisa, e se faz nos encontros-acontecimentos, via experimentações cartográficas. Experimentações que não pedem passagem para se expandir, que não necessitam de porta voz, que não se fixam em verdades pré-escritas, que se desviam das estruturas de poderes-coisas e se aproximam das potências de existir e re -existir. É uma escrita rizoma! Portanto, uma escrita resistência e não sobre a resistência. Por isso escrever uma tese que aborde os movimentos de resistência em produção na atualidade, e nessa pesquisa, acompanhar e se conectar às produções poéticas de mulheres poetas, pretas e moradoras da periferia da cidade de Belém, tem se constituído como uma batalha, uma partilha e uma saúde. Pensando saúde pelo viés da literatura e em concordância com a afirmação de Deleuze de que "a literatura é uma saúde" (Deleuze, 1997, p. 9), assim como pensar o rizoma como resistência, já que, dentre suas várias facetas, nos chama a atenção o modo de escrever rizomático "por intermédio de slogans: faça rizoma e não raiz, nunca plante! Não semeie, pique! Não seja nem uno nem múltiplo, seja multiplicidade! Faça a linha e nunca o ponto!" (Deleuze & Guattari, 1995, p. 48).

Em Crítica e Clínica, Deleuze (1997) nos dá indicações preciosas quando nos orienta a não escrever tomado por neuroses ou fantasmas e nos convoca a uma escrita viva e partilhada. "Do que viu e ouviu, o escritor regressa com os olhos vermelhos, com os tímpanos perfurados" (Deleuze, 1997, p. 14), cheio de saúde e disposto a inventar mundos, disposto a partilhar para além das lembranças e das memórias, suas desventuras, seus movimentos e delírios, seu estado de saúde poético. Regressa ainda sedenta de desejo de partilhar suas vivências, traçar seu mapa, produzir seu mosaico de existências-resistências, tecer a escrita-rizoma.

No prefácio à Política da Escrita, Rancière (2017) nos apresenta uma excelente articulação entre o ato de escrever e o que esse ato é capaz de mobilizar em nossos corpos do ponto de vista das sensações afetivas e políticas, das ações apaixonadas e implicadas. Assim, "escrever é o ato que, aparentemente, não pode ser realizado sem significar, ao mesmo tempo, aquilo que realiza: uma relação da mão que traça linhas ou signos com o corpo que ela prolonga; desse corpo com a alma que o anima e com os outros corpos com os quais ele forma uma comunidade; dessa comunidade com a sua própria alma". (Rancière, 2017, p. 7).

Nessa obra, o autor anuncia o que chamou de "partilha do sensível", que conversa com essa escrita-rizoma no que diz respeito a um comum partilhado. "Uma partilha do sensível é, portanto, o modo como a relação entre um conjunto comum partilhado e a divisão de partes exclusivas se determina no sensível". (Rancière, 2017, p. 8).

Nesta pesquisa, os recolhimentos de campo são processados sob a ótica do desejo também, uma ótica ética. Assim, aqui cabe uma passagem da Cartografia Sentimental de Suely Rolnik (1989), onde a autora aborda o tema da ética do cartógrafo e afirma que "o antiprincípio do cartógrafo o protege da captura pela moral. A análise do desejo assim concebida é, fundamentalmente, uma ética". (Rolnik, 1989, p. 73). Nessa obra a autora põe em cena o que chama de máscaras do cartógrafo para enfatizar que na realidade o cartógrafo "não 'revela' sentidos - o mapa da mina -, mas os 'cria', já que não está dissociado de seu corpo vibrátil: pelo contrário, é por meio do corpo, associado aos olhos, que procura captar o estado das coisas, seu clima, e para eles criar sentido. (Rolnik, 1989, p. 74).

E por ser tratar de uma tese em construção, os registros cartográficos estão ainda sendo processados; e em um primeiro plano são inscritos na pele, no corpo, por meio do olhar, dos gestos, das escutas, e em seguida, transformados em grafias, cartas grafias, textos-rizomas, narrativas produzidas em conjunto com os grupos, escritas de poemas, manifestos, rodas de conversas, invenções poéticas e oficinas poéticas.

Toda essa maquinaria vai constituindo o corpo de uma tese em desenvolvimento, e as devolutivas ocorrem por meio dessas trocas-conexão, sempre pautadas em um rigor ético metodológico de que o outro não é objeto a ser pesquisado, ele é parte da engrenagem da produção do conhecimento como um ato político.

A autodenominação de "pesquisadora rolezeira" diz de um modo de fazer pesquisa em meio aos encontros com os grupos com quem a pesquisadora que pesquisa, também participa das batalhas, identifica-se com as demandas e apostas ali expressas, e vê um terreno fértil às suas inquietações acadêmicas e metodológicas para captar o que pode um corpo político poético em produção na atualidade em Belém do Pará.

 

Corpos-Batalhas

Este artigo não tem a pré(tensão) de conceituar o que é resistência, seria no mínimo, desonesto com os gritos, vozes, rimas, batalhas e os bons combates. Ele opera no campo da experimentação e da invenção e quer expressar o que a pele captou e rimou. À flor da pele mesmo! E que aqui se transformou em outros gritos, outras rimas, outras batalhas poÉticas. Escritas navalhas que versam sobre liberdade, amor, afeto, abuso, poder, potência. Explodia produção de liberdade em meio ao cárcere, as intervenções, as interdições, as feridas afetivas, as relações acadêmicas assimétricas, as relações desiguais no mundo do trabalho, no cotidiano da casa, do bairro. Havia ali, no templo da palavra poética, estética e ética, espíritos nietzcheanos. Havia ali muito de Nietzche, Ana!

Quanta sabedoria cabem nessas poesias, quanta re-existência, quanto amor revolucionário, libertário. Quanto de nós existe nessas vozes, nesses "espíritos livres", declamando e recitando suas poesias em praças públicas. A cada edição e a cada imersão, a pesquisadora cartógrafa é tomada por aquelas vidas ativas e altivas, e assim segue e domina seus próprios medos e in(certezas). Sabe que o abismo é inevitável, sabe também que em meio ao abismo têm os acontecimentos e as experimentações e que estes são travessias a serem exploradas e experimentadas. Na valise e no corpo uma Vontade de Potência, uma obra viva de um homem livre, uma revolução, um Nietzsche (1998).

Em sua obra Políticas da Escrita, Jacques Rancière nos fala da revolução poética como experiência do sensível, de uma experiência política do sensível. Assim, o autor expõe o que chama de hipótese:

a revolução poética moderna tem como princípio a liberdade entendida como uma maneira de que o poeta dispõe para acompanhar seu dito. Esse acompanhamento tem como condição de possibilidade uma nova experiência política do sensível, uma maneira nova que a política tem de se tornar sensível e afetar o ethos cidadão na era das revoluções modernas. (Rancière, 2017, p.123).

Nesse sentido, esse devir político do poeta revolucionário no presente, não está preocupado com verdades, nem em representar uma forma de fazer política, ou mesmo de chamar a atenção dos políticos que o representam e, sim, em expressar, apresentar o seu eu lírico por meio de um corpo inquieto e sensível que afeta a si e seu entorno. E as poetas e os poetas revolucionários com quem estabeleci conexão nesse processo de construção da escrita-tese e do que estou chamando de escrita poÉtica, parecem andar sempre no modus convocatório de existir e de re(existir), a despeito do apelo de um outro modus operandi que os quer silenciados, imobilizados ou invisibilizados. No entanto, têm funcionado, por sua vez, como matéria prima para as suas criações, invenções e produções literárias e libertárias.

Uma vez poetas ambulantes e nada será como antes!. Assim, declamam os Poetas Ambulantes ao descerem dos ônibus e metrôs da cidade de São Paulo, após uma intensa rodada de poesias para o público que retorna de suas atividades laborais, o coletivo urbano se transforma em um sarau ambulante e intensamente fugaz, uma vez que nas próximas paradas, o grupo se despede das amizades e alianças ali construídas e descem, mas já não são mais os mesmos. Já não somos mais os mesmos, porque uma vez poetas ambulantes e nada será como antes!

Tive a honra de embarcar em uma dessas viagens poéticas com o bando de Poetas Ambulantes, no pré-carnaval de 2018, vesti minha fantasia de alegria e acompanhei o bando tocando coisas de amor...

O ponto de encontro foi o SESC Pompéia, tendo como referência para essa andarilha, a Avenida Francisco Matarazzo, Zona Oeste de São Paulo, para onde me desloco no final de uma tarde ensolarada e pré-carnavalesca da Paulicéia. Tomo um metrô, depois um ônibus, seguido de uma caminhada, saindo do bairro Aclimação-Zona Sul, bairro onde me hospedo quando das andanças de Belém à cidade de São Paulo. Após um "cá fé", me apresento aos poetas e já anuncio que vou embarcar com eles no bonde da poesia. O "seja bem-vinda!", seguido de conversas e distribuição de pequenos poemas impressos em papel colorido, um convite a declamar no bonde e outro a participar de um vídeo documentário, me fez ser um deles, uma delas, uma criança, uma poeta mirim, devir criança. E o ponto alto dessa partilha, a oração do poeta, declamado bem juntinho, ombro a ombro, num abraço urbano em meio à correria da cidade, daquela que naquele dia me encheu de feliz-cidade!

Ela queria ser feliz, mas se descobriu poeta
Lembrou que o poeta é um fingiDor
Então aceitou a sua sentença e foi ser poeta
Eis que ela descobriu as sutilizas da felicidade, naquela feliz cidade!

Tomada por aquele estado de benquerença, juntou-se aos novos poetas que conhecera e partiu para aquela expedição político poética, que faz uma aposta radical na poesia como dispositivo de luta amorosa, de re-existência e de encontros poético/estéticos. Tudo ali convocava para produção coletiva e afetiva de fazer do cotidiano outras cenas, outros mundos possíveis, e se o samba é uma forma de oração, a Oração do Poeta operou, em mim, naquela tarde, como uma espécie de transmutação. Oremos!

Oração do Poeta

Saravá, Axé
Que poetas, artistas, músicos e heróis,
autores e musas, escritores e inspirações
se façam presentes.

Que toda essa gente
da condução,
no busão, no trem, no metrô,
linha amarela, vermelha, diamante, azul,
no corredor, no passa-rápido,
no trânsito, parado,
apertado, irritado, suado, atrasado,
do mais alegre ao invocado,
da criancinha ao senhor,
do motorista ao cobrador,
a secretária, a vendedora, a aluna, a professora, o jardineiro
lixeiro, carteiro, carpinteiro, marceneiro, vidraceiro, eletricista
a diarista, o dentista, o manobrista, o oculista,
o traficante e o "polícia"
Seja atingido por nossos disparos

Causemos atentados, sorrisos, suspiros,
lembranças, saudade, incômodo, revolta
Ganhemos atenção, olhares, se possível até palmas
Porta de trás, carona, subiu, começou
Distribui papel, palavras, sentimento, alegria,
Somos AMBULANTES de poesia!
Amém!

(Poetas Ambulantes, 28 de maio de 2018).

Depois da oração, senti-me pertencendo àquele bando de poetas e embarquei naquela viagem, que declama poesias, exalando simpatia. Éramos 12 poetas, entre mulheres brancas, negras, indígenas, homens brancos, negros, mães, pais e um "poeta mirim". A Oração do Poeta é de uma delicadeza e força, feita ali onde a vida pulsava de uma forma particular, intensa, em meio aos carros que se movimentavam, acenando para os ônibus e oferecendo poemas em troca de liberdade para entrar nos coletivos sem passar na catraca. Embarcando e desembarcando, distribuindo e recolhendo poesias ambulantes. Me fez lembrar cenas do filme "Central do Brasil". Estávamos em cena, uma poesia em movimento, no centro da cidade de São Paulo. Ainda ouço a trilha sonora do filme, do motor dos carros e das nossas máquinas desejantes, dessa cartoGrafia.

 

CartoGrafias e o encontro com as Dandaras do Norte

Em Belém do Pará nos referimos ao ponto de ônibus como parada. Expressões do tipo: "onde é a parada? ", "quantas paradas faltam? ", "qual a parada mais próxima? ", são comuns e fazem parte do cotidiano de qualquer belenense, mas também quando queremos saber de alguma ação, atividade ou agenda, utilizamos a pergunta ainda mais diretiva: qual é a parada hoje? Assim, paradoxalmente, parada tem um sentido tanto sedentário quanto de movimento, de ação ou de deslocamento. E bonde é o ônibus e também o bando.

Feito esse preâmbulo, convido-os a nos acompanhar no "bonde das manas" Slam Dandaras do Norte, bonde que nessa CartoGrafia grafa sobre um bando de poetas que se encontram desde abril de 2017 para protagonizar suas existências por meio das batalhas de poesia e produzir atentados poéticos. Verdadeiras batalhas por uma vida alegre e afirmativa.

Cartografar o coletivo Slam Dandaras do Norte é lançar-se não só no bonde da poesia falada, bonde das manas mães que declamam com seus filhos no colo, ou que deixam sobre os cuidados de outras mulheres, ou do pai, dos vizinhos e familiares. É também lançar-se no bonde de mulheres que têm no Slam um espaço não só de encontro com as outras manas, mas também consigo, com sua atuação no mundo, que têm dúvidas e certezas, consensos e dissensos a respeito dos espaços que ocupam e das apostas que fazem na busca por reconhecimento, pertencimento e visibilidade. Falas como: aqui no slam eu me sinto inteira, ou ah, eu posso dizer o que eu não tenho coragem de dizer nem em casa, aqui eu posso dizer o quanto é foda ser mãe solo, posso até dizer até que não gosto de ser mãe.

Os movimentos são sempre diferentes: é uma mana que se apresenta pela primeira vez, é outra que veio de uma cidade fora da capital só para conhecer e participar do coletivo, uma que anteriormente declamava e em outro momento se apresenta como cantora, maquiadora, performer. E, assim, nunca uma edição é igual a anterior, mesmo em meio a uma certa repetição, que nesse caso é a convocação a produzir poesia, falar de si, se tocar. O grito de guerra é a convocatória e a ativação a ser uma Dandara:

Guerreiras, rainhas, mulheres de resistência

Dandaras do Norte só Slam de consciência!

Um aspecto que chama a atenção é o modo como elas desmontam os discursos e práticas hegemônicas e patriarcais por meio da poesia, como transformam a dureza da vida em escrita manifesto, escrita denuncia, escrita batalha, e passeiam entre a poesia, a grafitagem, a música, as discotecagens, a dança, o brechó, o café com pupunha, que é um momento de bate papo dentro do Slam, dos encontros-batalhas. Isso foi para mim, e tem sido, uma potente descoberta. Foi um encontro não só com elas, mas também comigo, com minhas batalhas, alegrias e poesias. É um encontro com as forças desarmadas, com uma política da amizade, com a produção de um cuidado de si e de resistência ridente, em meio a fugas e capturas.

O encontro com o Slam Dandaras do Norte se deu em meio às andarilhagens da pesquisadora cartógrafa, que foi fisgada pela batalha poética e pelo modo pouco convencional de produzir, declamar e convocar outras mulheres a se juntar à batalha. Uma convocação ao mesmo tempo suave e cortante. Elas estão sempre atentas às demandas que incidem diretamente em seus corpos e nos corpos das outras manas-mulheres. Foi um encontro com uma pilha de livros, livros ambulantes, livros falantes, cortantes e que operou como um agenciamento, literalmente!

Não se perguntará nunca o que um livro quer dizer, significado ou significante, não se buscará nada compreender num livro, perguntar-se-á com o que ele funciona, em conexão com o que ele faz ou não passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua, com que corpos sem órgãos ele se faz convergir o seu. (Deleuze & Guattari, 1995, p. 18).

Sem tomá-las como objetos, as aproximações se deram sem uma definição prévia de como seriam ou para que fins serviriam, havia sim uma aposta nas vidas que ali pulsavam, passavam, passam e resistem. Um encontro-atravessamento, que provocou conexões e criações diversas entre os corpos vibráteis e que nos convocou ao exercício de ouvi-las atentamente, e o desejo de produzir junto com elas uma tese-batalha, com dignidade, alteridade, com uma poÉtica.

Até aqui me conecto com o cheiro, com o som, o eco de vozes que foram silenciadas, mas que se reinventam a cada edição, com as bonitezas e as tristezas, os versos e reversos. Seguir com esse bonde, ora na plateia, ora no palco, nas calçadas, como jurada e seguidora nas redes sociais. Segui-las é um bom programa, é quase um espetáculo, em que se pode ver e se conectar com uma potente discotecagem, uns grafites lindos, garimpar nos brechós, participar de rodas de conversas, encontrar com manas, com as minas, com as monas nos espaços públicos da cidade. A cada batalha do Slam Dandaras do Norte um novo espaço é ocupado, tomado por elas e por aqueles que são convocados por meio de chamados nas redes sociais e presenciais.

Naquele domingo de sol, a praça da República estava especialmente iluminada e tomada por Dandaras, movimento negro, ambulantes, casais, artesões, capoeiristas, carimboleiros e carimboleiras, vendedores de balões e de acarajé. Era julho de 2017, era verão amazônico!

Foi um Slam especial, foi a minha estreia na terra da poesia subversiva, junto àquelas meninas gigantes. Ali, a língua menor não tinha pátria, e o acarajé dava o tom da brasilidade e ancestralidade belenense. Uma baiana, residente em Belém há algum tempo, ofertava seus quitutes e compartilhava sua história de resistência quilombola no Quilombo da República. A batalha foi na Praça da República e o poema de estreia foi:

DescomBater
Eu gosto mesmo é de descomBater
bater na impotência dos que se dizem gigantes
O descombate é muito mais potente do que a força bruta
que desajustada, desfocada e sedenta de poder
está carente de potência.

Caminhar com as Dandaras do Norte, é trilhar uma nova desaprendizagem, uma nova experimentação e uma nova roupagem, delas e minha. Elas são multicores, são black, de estatura baixa, alta, vozes agudas, graves, e gravam seus poemas-denúncias nos espaços por onde circulam. Seus corpos são inscrições de afeto, autorretrato, sofrimento e amor. É impossível não se deixar cartografar! Elas simplesmente te invadem!

Pesquisadora-cartógrafa aberta às afecções do que não para de passar, sujeita às experimentações e atenta ao caráter cortante da máquina que escreve, que tece mundos, que formula questões e que se conecta com os coletivos de resistência. Que se deixa afetar nos encontros com as manas, com as minas, com as monas e com as monstras. Tomada por paixões alegres e por uma ética espinozista, assim vai tecendo sua escrita poÉtica, se descolando das paixões tristes e ao mesmo tempo enfrentando-as de frente, por meio de seus versos diversos, e é assim que uma vida e uma escrita alegre vai sendo anunciada. "Simplesmente sabemos que, à medida que um corpo se cansa, as possibilidades de maus encontros aumentam. " (Deleuze, 2009, p. 58). Então, segue o bonde...

No tecer desta escrita-tese, encontro também com Adolfo Pérez Esquivel, por meio de sua obra Resistir en la Esperanza, em uma livraria em Havana-Cuba em maio de 2018, aquela obra em uma estante de uma livraria, no bairro de Habana Vieja, conectou-me com as lutas travadas no Brasil, uma conexão de espaços e de lutas, um lugar surpreendente, que eu conhecera pela primeira vez e onde tive encontros que fizeram valer muito ter cruzado a linha do equador para uma imersão na história de um povo que resiste, para dizer o mínimo. Viver o 1° de Maio na Praça da Revolução e andarilhar pelas ruas e história da cidade, em meio ao processo de feitura de uma tese-batalha, foi um exercício de aproximação e distanciamento que produz encontros inimagináveis, e que aumenta cada vez mais o grau de potência em curso. Assim, quando me deParei com aquela obra e reconheci o homem, Prêmio Nobel da Paz, que estivera há pouco no Brasil para visitar o ex-presidente Lula da Silva, pensei: estou diante de uma obra e de um homem vivo, literalmente vivo! Um homem cuja obra transborda esperança e resistência. "La resistência cultural es lo que permite sobrevivir y construir nuevos espacios de libertad de consciencia crítica y capacidade de construir y superar las dominaciones." (Esquivel, 2003, p. 107).

E nós que acreditamos em um mundo outro, um mundo de possibilidades, de possíveis, de direitos, de solidariedade e luta amorosa, estávamos tristes. Tristes, mas resistindo a esse sentimento perverso produzido pelos que, de certa maneira, sabem que a alegria é revolucionária, que um homem feliz e tomado por uma alegria alegórica pode resistir ao cinismo, às opressões, aos golpes, às trapaças, aos "espertos ao contrário", como bem disse Estamira, (Prado, 2004). Quando vi aquele grande livro, de Adolfo Pérez Esquivel, Resistir en la Esperanza, foi um alento! De fato, a vida é a arte do encontro! E a tristeza tem sempre uma esperança, a tristeza tem sempre uma esperança, de um dia não ser mais triste...O que pode um corpo que resiste?

Retorno à Rancère (2017) para concordar com sua Política da Escrita, e apresentar o que ele chama de função de resistência da poesia, e aqui nesta escrita-rizoma, do corpo político poético, que lança mão de "armas" afetivas e poéticas na luta por um pouco de possível.

Nesta livre andança, o amor e o humor são um motor comum nessa engrenagem e nas minhas andarilhagens com os poetas políticos e, assim, vou tecendo esta escrita-tese e inaugurando esta sobreposição poÉtica de um modo de escrever e de estar nos mundos dos poetas da resistência, da língua sagaz, que muito me apraz. "Sabotagem sem massagem na mensagem", como evocam os poetas do Sarau da Resistência, na Praça Rooselvet-SP.

Os sábios sabem que amar é importante e que defender a alegria é uma trincheira, como nos alerta Mário Beneditti (19--), no seu poema manifesto em "Defesa da Alegria". Tomei de assalto o seu manifesto para produzir dobras, delírios e acionar as forças ativas e altivas.

E não amam qualquer coisa não, nem de qualquer jeito
Amam à navalha, amam a navalha
Amam a altivez
Amam a lucidez do delírio
Seu amor não cala
Abala a bala, se produz no estopim, nos encontros
E em cada encontro, um conto, um ponto
Se rasgam e se refazem em suas linhas desterritorializadas e desterritorializantes
Os sábios, são sabias que cantam.
São bios
São vidas ativas, cativas e altivas
Que amam e protestam!

Em meio a esta escrita levante, fui tomada por uma onda de alegria e também de afetos tristes frentes aos acontecimentos do presente, e tive que travar uma verdadeira batalha. Me senti numa competição de Slam, com tempo pré-determinado, não de três minutos, mas tempo, tempo, tempo que não parava de passar. Assim, recuei, acolhi a tristeza, fiz um pacto com ela, mas sempre na espreita, em seu encalço. Foi quando me agarrei, tomei de assalto a defesa radical que Spinoza, pelas lentes de Deleuze (2009), faz da alegria, afinal é necessário saber produzir os encontros que potencializem as paixões alegres, visto que, para Spinoza, a tristeza não nos torna inteligentes. "Na tristeza estamos arruinados. É por isso que os poderes têm necessidade de que os sujeitos sejam tristes." (Deleuze, 2009, p. 53).

Esse era o trampolim de que precisava para retornar ao estado de alegria, "os afetos de alegria são como trampolim, eles nos fazem passar através de alguma coisa que nós nunca passaríamos se somente houvesse tristeza." (Deleuze, 2009, p. 54). E nessa escrita levante, seguimos fazendo uma defesa radical da alegria, da alegoria, nos entrincheirando ao invés de nos entristecer, entorpecer, bem ao modo "beneditino" de ser, e estar em acontecimento, em estado de alegria, e de sentinela, fazendo a sua defesa.

Defensa de la alegría

Defender la alegría como una trincheira
defenderla del escándalo y la rutina
de la miseria y los miserables
de las ausencias transitorias
y las definitivas
defender la alegría como un principio
defenderla del pasmo y las pesadillas
de los neutrales y de los neutrones
de las dulces infamias
y los graves diagnósticos

defender la alegría como una bandera
defenderla del rayo y la melancolía
de los ingenuos y de los canallas
de la retórica los parcos cardíacos
y de las endemias y las academias

defender la alegría como un destino
defenderla del fuego y de los bomberos
de los suicidas y los homicidas
de las vacaciones y del agobio
de la obligación de estar alegres

defender la alegría como una certeza
defenderla del óxido y la roña
de la famosa pátina del tiempo
del relente y del oportunismo
de los proxenetas de la risa

defender la alegría como un derecho
defenderla de dios y del invierno
de las mayúsculas y de la muerte
de los apellidos y las lástimas
del azar y también de la alegría.

(Mário Benedetti, 19--)

Você resiste a que? Fazendo uma analogia aos versos da canção Comida, dos Titãs, lanço aqui a pergunta: você resiste a que? Em substituição a pergunta originalmente lançada, qual seja, o que é resistência? Neste percurso já deu para perceber e sentir que resistência não é algo localizável, no-meável..., que resistência resiste, é da ordem do acontecimento, da desobediência, da decência, da alegria como trincheira, é comida que o Artista da Fome, do conto de Kafka (2011), se recusara a comer por quase 40 dias, resistindo às ofertas de alimentos que nunca lhe agradavam, numa espécie de recusa a uma vida besta.

No livro dedicado a Kafka, Para uma Literatura Menor, Deleuze e Guattari (2003), afirmam que uma das características da literatura menor é que tudo nela é político. As questões individuais ficam em segundo plano, o que não ocorre nas "grandes" literaturas, em que, segundo os autores

[...] a questão individual (familiar, conjugal, etc.) tende a juntar-se a outras questões igualmente individuais, em que o meio social serve de ambiente e de fundo, de tal maneira que nenhuma das questões edipianas é indispensável em particular, nem absolutamente necessária, mas todas elas fazem 'bloco' num vasto espaço. A literatura menor é completamente diferente: o seu espaço, exíguo, faz com que todas as questões individuais estejam imediatamente ligadas à política. A questão individual, ampliada ao microscópio, tornar-se muito mais necessária, indispensável, porque uma outra história se agita no seu interior. É neste sentido que o triângulo familiar se conecta com outros triângulos, comerciais, econômicos, burocrático, jurídicos, que lhes determinam os valores. (Deleuze & Guattari, 2003, p. 39).

Uma outra característica apontada pelos autores, que vale enfatizar nesta articulação entre literatura menor, política e escrita resistência, é que, na literatura menor, tudo é da ordem do coletivo. "A máquina literária reveza uma máquina revolucionária por vir, não por razões ideológicas, mas porque esta está determinada a preencher as condições de uma enunciação coletiva que falta algures nesse meio: a literatura é assunto do povo" (Deleuze & Guattari, 2003, p. 40). Assim, a pergunta disparada pelos autores, "O que é uma literatura menor?", é uma boa provocação e nos convoca a uma batalha por uma vida menor.

Nesse processo de escrita de uma tese, encontrei-me com a escrita poética, com a poesia. Poesia que rima com alegria, com democracia, com artilharia. Não sei mais escrever sem rimar, viver sem me manifestar. Militar é agir! Como nos alertou Guattari (1985).

 

Considerações... CartasGrafias finais

"Sempre coloquei em meus escritos toda a minha vida e toda a minha pessoa, ignoro o que podem ser problemas puramente intelectuais." (Nietzsche, 1998, p. 144).

Como os conceitos não estão separados da vida, essa experimentação cartográfica operou por um devir esquizo, sem compromisso com o dentro ou com o interior, no sentido de querer entender e interpretar o que se viu, sentiu, viveu e sente. Buscamos nos distanciar das máquinas de capturas e nos aproximar das máquinas de produção de vida poética. O que se acoplou em nossos corpos nesse passeio, nesse "rolê", por uma vida poÉtica, foram as vozes-levantes e que nos levaram a acreditar que o delírio poético tem tudo a ver com a vida ética e que "o lirismo moderno deveria então ser pensado, antes de mais nada, não como uma experiência de si ou uma descoberta da natureza ou da sensibilidade, mas como uma nova experiência política do sensível ou experiência sensível do político." (Rancière, 2017, p. 121).

No Passeio do Esquizo, Deleuze & Guattari (2011) anunciam: "eis um modelo melhor do que o neurótico deitado no divã. Um pouco de ar livre, uma relação com o fora." (Deleuze & Guattari, 2011, p. 12). Esse devir esquizo nos auxilia e, ao mesmo tempo, nos permite ficar à espreita dos acontecimentos e vivê-los na sua multiplicidade, atentas às conjunções e não aos pontos finais...

Assim, apresentamos esta escrita e estas andanças rizomáticas, com abertura para novas cartoGrafias, com uma canção de Chico Buarque, que nos remete aos territórios existenciais por onde me enfiei, bisbilhotei. Fazendo aqui uma menção ao modo de e o que me transmitia, só consigo nomear isso agora, um misto de alegria e agonia, eu estava sempre À flor da pele, e ainda estou! E esse "estado de poesia", como canta outro Chico, o César (2015), se instalou feito posseiro em meu corpo, e se fez resistência! O que será, que será?

Escrita-rizoma que demorou a sair do papel, talvez porque não se presta a nenhum papel, ou porque não se reconheça somente como um capítulo de uma tese, mas, sim, como um manifesto à liberdade, ou um capítulo-manifesto, e até mesmo um porta estandarte anunciando um por vir libertário, que não tem pressa, e que sonha com os olhos abertos, que se conecta com o presente e provoca fissuras...

Rasgar a carne é minha especialidade
O sangue que jorra, alimenta o solo para florescer as plantas
e produzir néctar aos beija-flores
que iram alimentar os louva-a-deus,
onde irão pousar as mariposas em sua fase larval.
Rasgar tudo aquilo que não respeite formosura, me apraz!

 

Agradecimentos

Nesta escrita estão inscritas as falas-levante das Dandaras do Norte - Slam Dandaras do Norte/ PA, dos Poetas Ambulantes/SP, dos poetas do Sarau da Cooperifa/SP, do Slam da Resistência/SP e da plateia.

Obrigada Shaira Mana Josy pela amizade poética! Pela poÉtica da amizade!

Obrigada Thiago Peixoto pela partilha! Por comPartilhar a Oração do Poeta!

Obrigada Jefferson Santana pela acolhida no bonde dos Poetas Ambulantes!

Obrigada Alice Carroll, que em uma conversa on-line me apresentou Mario Benedetti!

 

Referências

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1 Slam Dandaras do Norte - Belém/PA.
2 Slam da Resistência - São Paulo/SP.
3 Poetas Ambulantes - São Paulo/SP.
4 Sarau da Cooperifa - São Paulo/SP.

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