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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.46 São Paulo set./dez. 2019

 

ARTIGOS

 

Colonialidade, invisibilização e potencialidades: experiências de indígenas no ensino superior

 

Coloniality, invizibilization and potentialities: experiences of indigenous people in higher education

 

Colonialidad, invisibilización y potencialidades: experiencias de indígenas enlaenseñanza superior

 

Colonialité, invisibilité et potentiel: expériences autochtones dans l'enseignement supérieur

 

 

Iclicia VianaI; Felipe Augusto Leques TonialII; Marcelo Felipe BruniereIII; Katia MaheirieIV

IMestre em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Colaboradora na Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia (CRP-12) e membro da Rede de Articulação de Psicologia e Povos da Terra em Santa Catarina. Exerce o cargo de psicóloga educacional na Universidade Federal de Santa Catarina/Campus Araranguá; iclicia.ufsc@gmail.com
IIDoutor em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, com período sanduíche na Universitat Autònoma de Barcelona. Professor do Centro Universitário Estácio de Santa Catarina/São José.; felipetonial@gmail.com
IIIDoutorando e mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Integra a rede de psicólogos e povos da terra de Santa Catarina ligada ao CRP/SC e à Associação Brasileira de Psicologia Social; marcelo2x2@hotmail.com
IVDoutora em Psicologia Social (PUC/SP), com estágio pós doutoral em Educação na UNICAMP e em Psicología Social na Universitat Autónoma de Barcelona e na PUC/SP. Professora titular do Departamento e do Programa de Pós-graduação em Psicologia na Universidade Federal de Santa Catarina. Membro da Diretoria da ANPEPP (2018-2020). Pesquisadora em Produtividade do CNPq; maheirie@gmail.com

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é problematizar as experiências de indígenas no contexto universitário, tomando a noção de colonialidade como articuladora da análise. Para tanto, o artigo analisa duas cenas que ocorreram em uma universidade brasileira. A partir da ideia de campo-tema, a produção das informações deu-se no cotidiano universitário em diferentes ocasiões e em distintas atividades junto a estudantes indígenas, finalizando com uma roda de conversa em torno da experiência na universidade. Os resultados apontam que, por um lado, essas/es estudantes têm vivenciado uma formação colonizada e colonizadora, que invisibiliza suas experiências, saberes e modos de vida; por outro lado, eles/elas (re)existem produzindo fissuras de descolonização, objetivando-se em diálogos interculturais, que produzem novos caminhos e alternativas à colonialidade cotidiana.

Palavras-chave: Ensino Superior; Povos Indígenas; Experiência; Colonialidade; Descolonização.


ABSTRACT

This paper aims to problematize the experiences of indigenous people in the university context, taking the notion of coloniality as an articulator of the analysis. Therefore, it analyzes two scenes that occurred in a Brazilian university. From the idea offield-theme, the production of the information occurred in the university 's daily life on different occasions and in different activities together with indigenous students, ending with a round of conversation around the experience in the university. The results show that, on one hand, these students have experienced a colonized and colonizing formation, making their experiences, knowledge and ways of life invisible. On other hand, they (re)exist producing fissures of decolonization, aiming at intercultural dialogues, which produce new paths and alternatives to everyday coloniality.

Keywords: Higher education; Indigenous peoples; Experience; Coloniality; Decolonization.


RESUMEN

El objetivo de este artículo es problematizar las experiencias de indígenas en el contexto universitario, tomando la noción de colonialidad como articuladora del análisis. Por lo tanto, analiza dos escenas que ocurrieron en una universidad brasilena. Por la idea de campo-tema, la producción de las informaciones se dio en el cotidiano universitario en diferentes ocasiones junto a los estudiantes indígenas, finalizando con una rueda de conversación en torno a la experiencia en la universidad. Los resultados apuntan que, por un lado, estes estudiantes han vivido una formación colonizada y colonizadora, invisibilizando sus experiencias, saberes y modos de vida. Por otro lado, ellos (re)existen produciendo fisuras de descolonización, objetivándose en diálogos interculturales, que producen nuevos caminos y alternativas a la colonialidad cotidiana.

Palabras-clave: Ensenanza Superior; Pueblos Indígenas; Experiencia; Colonialidad; Descolonización.


RÉSUMÉ

L 'objectif de cet article est de problématiser les expériences des peuples autochtones dans le contexte universitaire, en prenant la notion de colonialité comme articulateur de l'analyse. Pour cela, l'article analyse deux scènes qui se sont déroulées dans une université brésilienne. A partir de l'idée de thème de terrain, la production de l'information s'est produite dans la routine de l'université à différentes occasions et dans différentes activités aux côtés des étudiants autochtones, se terminant par une série de discussions autour de l'expérience vécue à l'université. Les résultats montrent que, d'une part, ces étudiants ont connu une formation colonisée et colonisatrice qui rend leurs expériences, leurs connaissances et leurs modes de vie invisibles; d'autre part, ils (ré) existent, en créant des fissures de décolonisation, en visant des dialogues interculturels, qui donnent lieu à de nouvelles voies et alternatives à la colonialité quotidienne.

Des mots-clé: Enseignement supérieur; Les peuples autochtones; Expérience; Colonialité; Décolonisation.


 

 

Introdução

O processo de escolarização dos povos indígenas no Brasil tem suas raízes com o projeto colonizador e foi, dentre outras coisas, uma ferramenta para subjugar esses povos, produzindo hierarquias e violências em diferentes aspectos, inclusive no nível epistêmico, produzindo e reproduzindo a colonialidade (Coelho, 2016). No entanto, diante da impossibilidade de negar o ensino escolar dentro das aldeias, juntamente com o movimento indígena na década de 1970, construiu-se a luta por uma educação escolar com protagonismo indígena, uma educação escolar bilíngue e diferenciada, mais adequada aos interesses de cada comunidade. A escola passou a ser um espaço que, aos poucos, foi resinificada como lugar a ser ocupado e reinventado, a partir de outras propostas educacionais (Tassinari, 2001)1.

Mais tarde, diante do crescimento do processo de autodeclaração e da autonomia conquistada pelo movimento indígena, surge nos anos de 1980 e 1990 a busca pelo acesso a níveis médios e superior de educação (Nascimento, 2016). A formação específica como professor indígena não era mais suficiente para cobrir as necessidades, tendo em vista os conflitos que se acirraram com as mudanças legais ocorridas na Constituição Federal (CF) de 1988. Com a intensa mobilização política e indigenista no país - e na América Latina, de modo geral -, os indígenas passam a adentrar cada vez mais em espaços políticos de disputa, bem como assumir cargos de liderança em organizações não governamentais. A formação em nível superior em diferentes áreas do saber tornou-se um instrumento de luta, com o objetivo de articular saberes em suas lutas políticas. Neste contexto, a reserva de vagas por meio de Políticas de Ação Afirmativa serviu como um instrumento para o protagonismo na luta pela manutenção e avanços dos direitos garantidos aos/as indígenas na CF de 1988 (Oliveira, 2011).

Por meio das Políticas de Ações Afirmativas, e, especialmente a Lei de Cotas (Lei n. 12.711/2012), a presença de indígenas no contexto universitário tem aumentado significativamente, assim como o processo de autodeclaração tem ganhado força. Desta forma, se antes, em diferentes momentos da história brasileira, especialmente no período colonial, a possibilidade de ser indígena lhes fora negada, agora "os debates passaram a ser de constituição de políticas educacionais pautadas em uma educação afirmativa das identidades e do pertencimento étnico" (Lira, Silva, & Salustiano, 2014, p. 148). Vale ressaltar que tais políticas são frutos de intensa luta dos movimentos sociais, com protagonismo dos movimentos negros e indígenas, apontando a uma política de cotas que denuncia os privilégios de certos grupos em relação ao acesso ao ensino superior gratuito. Essas atualizações constitucionais objetivam a garantia do direito desses segmentos sociais (Baniwa, 2007; Segato, 2006).

Assim, temos visto, cada vez mais, a presença de estudantes indígenas nas universidades brasileiras, sejam particulares ou públicas. Segundo levantamento do Instituto Nacional de Ensino e Pesquisa (INEP), em 2015 eram 20.030 indígenas em Instituições de Ensino Superior (IES), sendo aproximadamente 7.000 em IES públicas. Como algumas pesquisas apontam (Nascimento, 2016; Paz, 2013; Souza, 2016), estes ingressos têm mudado algumas dinâmicas nas universidades em que estes estudantes se fazem presentes, sendo imprescindível debater os efeitos e possíveis potencialidades desses espaços. O presente artigo se propõe a problematizar duas cenas, protagonizadas por duas alunas indígenas, que ocorreram em uma universidade pública brasileira, ressaltando especialmente os tensionamentos que estes corpos provocam neste contexto.

 

A colonialidade nossa de todo dia

Em princípio, um belo jardim, mas o esquadrejamento não deixa dúvidas: estamos em um ambiente analítico, a arquitetura aponta para o imperativo comum das diferentes linhas de montagem, a espacialidade das especializações. Quando ingressamos às universidades nos defrontamos com seus recortes, cada forma tem um lugar específico, cada departamento é subdividido a partir de outras especializações. Até aqui algo é bastante distintivo: as atividades nas organizações científicas são distribuídas em torno de critérios técnicos. Não apenas isso, tais organizações das especialidades correspondem a uma organização arbórea, todas as disciplinas estão ligadas ao mesmo tronco administrativo, do qual fluem os diversos códigos normativos (Baremblitt, 1996). Nos cargos de decisões administrativas desse centro-tronco encontramos pessoas, novamente, selecionadas a partir de referências eminentemente técnicas. De onde tiramos esse modelo de educação? Os alunos de etnias indígenas, ao se defrontarem com todos esses segmentos, o fazem por meio de seu recorte próprio: aluna(o)s indígenas - muitas vezes se acrescenta outros códigos nesse recorte: aluna(o)s indígenas que ingressaram por cotas.

Podemos dizer que as ações afirmativas correspondem a uma correção de diferentes desigualdades sociais; no caso das cotas para pessoas de etnias indígenas, uma constatação histórica se destaca: o ensino superior no Brasil é descaradamente racializado e eurocentrado (Palermo, 2005). Em que meio essa racialização opera? Ora, se precisamos criar mecanismos formais de igualdade, a fim de tornar os ambientes acadêmicos mais humanamente diversos, é por constatar que as distribuições entre funções e performances dessa organização privilegiam - ou poderíamos dizer, se baseiam - em uma noção de humano bem específica, a de pessoas brancas pertencentes às classes econômicas de maior poder aquisitivo. Essas relações hierárquicas entre classe econômica, raça, gênero e epistemologias correspondem a um diagrama posto em andamento a partir da noção de colonialidade (Mignolo, 2011, 2013; Restrepo & Rojas, 2012). A modernidade e suas instituições como a universidade, encarregada de produzir um conhecimento e um modo de vida considerados como ocidentais, são a outra face da colonialidade, seu lado oculto (Mignolo, 2011).

Tomando as reflexões de Lugones (2014), produz-se uma ideia de humanidade segundo a qual aqueles/as que podem decidir e governar pelos demais são apenas aquela parcela de seres que podem ser identificados como cristãos, homens e brancos, sendo todos os restantes (indígenas, mulheres, africanos, não-cristãos etc.) identificados como menos humanos ou até não-humanos. O efeito colonialista que apaga as experiências e saberes de povos como os indígenas e africanos está alicerçado na modernidade, que classifica a população do mundo, assim como seus saberes e modos de vida, a partir da proximidade que tem com certa estética universalista.

Entendemos estética a partir de Rancière (2009), que apresenta essa noção para além do campo da arte, sendo uma configuração particular do sensível (modos de ver, de ouvir, de perceber, de pensar a vida em sociedade) que contingencia as experiências, delimitando potencialidades, limites e hierarquias. Estética, para Rancière (2009), é uma forma de organizar o mundo, uma distribuição de lugares, funções e identidades em sociedade, produzindo diversas hierarquias. Para Rancière (1996), a forma que temos de denunciar a hierarquia na sociedade é evidenciando os dissensos que também são inerentes a essa distribuição. Discutir o dissenso não é uma forma de salientar as diferenças sociais, é muito mais profundo e está diretamente voltado a hierarquização e valorização dos povos e suas experiências e saberes. Se a estética é uma distribuição dos lugares, das funções e das identidades, o dissenso, inerente à sociedade, é o choque entre distintas formas de pensar o futuro desta sociedade, deixando turvas as certezas identitárias e a legitimidade quanto às possibilidades e potências de fala de cada segmento social. Assim, essa estética, a partir das hierarquias citadas acima (raciais, culturais, de gênero e epistêmicas), produz-se e reproduz-se em diferentes mecanismos de dominação, como por exemplo, a universidade, uma das principais instituições modernas.

Na modernidade/colonialidade, as distribuições de títulos e privilégios para governar se constituíram principalmente a partir de categorias raciais, econômicas (Quijano, 2010) e de gênero (Lugones, 2008). Nesse sentido, com o assalto às riquezas encontradas no novo continente, os cristãos puderam passar a sonhar mais seguramente com a conquista do comércio mundial, tão almejada desde as primeiras navegações, consolidando-se economicamente; por outro, a partir da consolidação das rotas marítimas que transportavam as diferentes etnias africanas no processo de escravatura e os espólios da colonização e dominação das Américas, paralela à subaltemização dos povos nativos do novo continente, a categoria de raça passa a circular conforme a emergência das filosofias ditas modernas, se concretizando no séc. XVII como enunciado científico (Mignolo, 2013).

Tal hierarquização coloca a concepção de homem branco como único tipo de existência planetária capaz de produzir cultura que, por sua vez, seria o cume da evolução e prova de sua superioridade. Para os cristãos, nem todos os povos tinham cultura, nem todas as pessoas eram homens. Se nem todos eram homens e nem todos os povos produziam culturas, temos uma hierarquia que classifica o diferente como inferior. A natureza aparece neste imaginário como dimensão de tudo que é dado, que está para ser explorado e dominado.

Como efeito destas hierarquias, temos a subaltemização e o apagamento da diversidade, ou seja, tudo que não vem do homem branco, europeu e cristão, não merece ser preservado. Como efeito imediato, temos os modos de vida, saberes e epistemologias dos/as que não ocupam o lugar de poder sendo apagados e subalternizados. O mesmo se processa nas universidades, pois estas legitimam o saber moderno (científico) e o modo de vida moderno em detrimento de outros, sendo mantenedoras da colonialidade (Ribeiro, 2014).

A estética moderna/colonial na universidade atualiza diferentes formas de subaltemização construindo imaginários, ou melhor, legitimando os saberes eurocêntricos como superiores, a partir de classificações societárias que operam fundamentalmente com base em enunciados científicos. Portanto, quão mais próximos estiverem os sujeitos e suas epistemologias da ciência moderna (a qual se propõe neutra, objetiva e universal), mais legitimidade têm de governar e propor leituras e projetos de mundo.

Sob esta configuração sensível, supomos algumas implicações aos povos subalternizados, as universidades na América e o capitalismo como forma de divisão do trabalho, pois o lucro sistemático de certos blocos econômicos atua na proporção exata dos mecanismos de desigualdades sociais perpetuados pela colonialidade do poder (Quijano, 2010). Temos, até aqui, duas formas de etnocídio: a dizimação própria das pessoas colonizadas (genocídio, escravização, morte por doenças, pouca assistência do Estado etc.) e a sobreposição dos saberes, experiências e modos de vida das pessoas colonizadas pelo modelo moderno.

Segundo Palermo (2005), é inquestionável que o ensino superior na América Latina corresponde a um modelo baseado na matriz de controle global e, nesse sentido, peça central para a manutenção da colonialidade. No caso do Brasil, basta que recordemos que nossas primeiras instituições de ensino estavam ligadas a Igreja Católica e à coroa portuguesa. Entranto, não é apenas por isso que elas são coloniais; o são, sobretudo, por perpetuarem uma perspectiva moderna e eurocentrada do conhecimento. Além da própria divisão dos departamentos e disciplinas corresponderem a estes modelos, as referências estão montadas de forma a proporcionar certa produção de subjetividades: pensadores politicamente neutros (não misturam conhecimento científico com a mundanidade de assuntos políticos); perspectivas históricas evolucionistas e universalizantes que partem de uma geopolítica unívoca; memorização compulsiva do nome de qualquer homem branco que tenha contribuído minimamente para manter as coisas como estão; exaustivas retrospectivas de acontecimentos históricos que ilustram certa visão de mundo e história, dentre outras características.

Assim, entendemos que a colonialidade tem sido reproduzida nas universidades brasileiras invisibilizando saberes, experiências, percepções e modos de vida daqueles/as que são considerados/as inferiores na perspectiva da modernidade. Os povos indígenas compõem um destes segmentos discriminados que lutam diariamente para serem reconhecidos integralmente, inclusive em suas epistemes. A partir disso, nos perguntamos: que experiências essas pessoas têm vivenciado nos contextos universitários?

 

Metodologia

Os relatos que compõem as cenas analisadas neste trabalho advêm de um processo de pesquisa realizado entre 2015 e 2016 junto a estudantes indígenas de uma universidadepública. Como principal estratégia de pesquisa, realizou-se uma roda de conversa, na qual participaram 7 estudantes, sendo 4 mulheres e 3 homens, todas/os de um mesmo povo indígena. Entretanto, a pesquisa ocorreu a partir de um campo-tema (Spink, 2003, 2008), de modo que o processo foi composto por diferentes momentos e lugares, sendo alguns deles: uma roda de conversa gravada e transcrita; a convivência com esses indígenas no cotidiano da universidade; idas à Terra Indígena; participação em eventos, manifestações, festas; bem como o acompanhamento de mídias e redes sociais e o momento de devolutiva da pesquisa. Em todos estes momentos, foram feitos registros em diário de campo que posteriormente foram também usados na análise.

O conceito de campo-tema compreende o pesquisar como movimento dialógico e dialético, onde pesquisadores/as e interlocutoras/es estabelecem redes de conexões que ultrapassam o espaço e o tempo predeterminado ou a ideia de pesquisa de campo. Desde a perspectiva de campo-tema, não há um lugar para colher informações, mas uma rede de micro-lugares que possibilitam a construção das informações a partir do encontro que a pesquisa no cotidiano promove (Spink, 2008), em que os sujeitos são produtores e produzidos pelas redes de comunicação que vão se estabelecendo. Assim sendo, foi pela relação no cotidiano com estudantes indígenas na universidade que a pesquisa produziu relatos, cenas, informações que foram registradas em diário de campo e/ou áudio e vídeo, e aqui utilizadas como material para identificar as cenas de dissenso a serem analisadas.

Para Rancière (2014), as cenas de dissenso têm a potência de evidenciar distintos projetos de mundo, desnaturalizando as hierarquias presentes nas distribuições dos lugares e das funções em sociedade. Nossa intenção ao buscar trabalhar com cenas de dissenso é, a partir da análise dessas cenas, discutir algumas das formas pelas quais acontece a invisibilização dos saberes e das experiências dos indígenas nos contextos universitários, apontando outros mundos possíveis.

Dessa forma, as cenas de dissenso servem como uma estratégia de visibilização dessas hierarquias e das formas outras de pensar e experienciar o mundo e a sociedade na qual se está inserido/a. No contexto deste artigo, analisar cenas de dissenso serve também como estratégia para descolonizar nosso imaginário, na medida em que essas cenas apresentam outra estética possível, que difere da estética moderna.

 

Cenas e análises

Este trabalho faz uma nova leitura sobre cenas que trazem elementos para compreendermos e problematizamos como ocorrem situações que concretizam a invisibilização dos/as indígenas e seus saberes no contexto acadêmico. Novamente, faz-se necessário retomar que estas experiências estão atreladas à colonialidade. Portanto, as cenas trazidas abaixo precisam ser complexificadas e, neste sentido, nosso intento é focar no modo como estas/es indígenas têm experienciado a universidade, buscando também identificar fissuras decoloniais neste processo, resistências e agenciamentos outros que questionam as assimetrias de poder2. Chamamos de fissuras decoloniais aqueles movimentos de resistência e enfrentamentos cotidianos à colonialidade, de agência tanto no plano epistêmico como no plano relacional, e que vão aos poucos abrindo brechas para novidades nas relações, nascompreensões, nos discursos sobre povos indígenas e na produção de modelos alternativos ao hegemônico, sem excluir as contribuições ocidentais agora numa perspectiva de pluriversalismo.

Nesta busca, dentre muitas cenas possíveis, elegemos duas que acreditamos nos auxiliar nos objetivos deste artigo. A primeira nos remete ao curso de Direito da universidade em que a pesquisa se desenvolveu, à forma como os artigos que definem os direitos dos povos indígenas em nossa Constituição foram abordados por um docente e a experiência decorrente desta cena para uma indígena graduanda deste curso. A segunda cena trata da fala de uma estudante indígena a um público de antropólogas/os, em um seminário no qual ela compunha uma Mesa Redonda sobre educação superior e indígenas.

Cena 1: "AtéÍndio Tem Direito?"

O texto que fala da questão indígena na CF de 1988 (Constituição Federal, 1988) - artigos 231 e 232 - é resultado de um longo processo de disputa, no qual o movimento indígena da época protagonizou o debate de propostas que estavam em vias de serem aprovados para o novo texto constitucional (Oliveira, 2006).3 No contexto da constituinte, o então presidente da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Romero Jucá, propunha um texto que retirava direitos de indígenas em contexto urbano, ou o que ele chamava de "índios em elevado estágio de aculturação" 4. Também fazia parte deste primeiro texto a manutenção da tutela jurídica, termo historicamente ligado à ideia de que o indígena é incapaz civilmente. Mesmo com as dificuldades de diálogo com o Congresso Nacional, a partir da mobilização do movimento indígena, foi possível reverter estas duas ideias produzindo um texto mais coerente em que, pela primeira vez na história do Brasil, os indígenas são reconhecidos como cidadãos não tutelados.

Trazemos aqui a experiência de uma aluna indígena em um curso de graduação em Direito em uma universidade pública. Sua fala mostra como este texto da Constituição (?), muitas vezes, é experienciado no cotidiano de formação acadêmica. É Importante ressaltar que neste curso não há, até o momento, nenhuma disciplina específica (nem optativa) sobre direitos indígenas. A cena trata do relato de uma estudante sobre sua experiência na disciplina que enfocou a CF de 1988. Nessa disciplina, de acordo com o que foi descrito, o próprio docente faz piada com direitos sociais conquistados:

Quando eu estava na quarta fase eu reprovei em [na disciplina de] porque eu briguei com uma professora, porque ela sempre fazia piadinha com a Constituição, dizendo que a constituição tinha lei pra tudo, inclusive pra índios, ela falou isso três vezes em sala de aula e quando a gente brigou, eu reprovei na matéria dela. Nem fiz questão de fazer a prova de recuperação porque acabamos brigando durante a prova, eu preferi brigar, falar um monte pra ela e sair, e reprovei na matéria dela, ela me reprovou mesmo. Evitei bater de frente com a professora duas vezes, porque quando ela fazia essas piadinhas ela não sabia que eu era índia, mas o mestrando dela sabia. Um dia as meninas que sentavam na frente acabaram contando para o estagiário, então ele sabia. Toda vez que ela fazia piadinha ele sabia que eu estava lá no fundo, não só ele, como a turma inteira. E por mais que ela [a professora] ficou sabendo, ela não pediu desculpas. Ela não assumiu o erro dela, ela disse que não fez aquilo, que era coisa da minha cabeça e....é complicado. (Estudante indígena do curso de Direito)

Segundo os relatos da estudante, foi uma grande decepção o currículo deste curso e a invisibilização da questão indígena.

Talvez minha decepção maior é porque eu fui com a ideia de que eu ia aprender muita coisa em direitos indígenas. [...] No direito tu aprendes para ganhar dinheiro mesmo. Porque quando chegas [na disciplina], que tem umas coisas de direito indígena, eles pulam. Eles só lêem o trecho final que diz que o que rege os direitos indígenas é o Estatuto do Índio. [...] E o direito penal também diz isso. E a Constituição, o artigo 231 eles pulam. Literalmente, chegou o 231 eles pulam, eles não disfarçam, nem sequer leem. [...] Tudo que eu aprendi de direitos indígenas, foi no movimento indígena. E querendo ou não, a universidade te ensina a teoria, a prática você tem que estar no meio pra aprender, só assim. (Estudante indígena do curso de Direito)

Esta cena de um curso de graduação se constitui como dissensual, que nos apresenta dois mundos distintos acerca de uma mesma partilha societária. Podemos observar no relato dessa estudante indígena a visibilização da hierarquia vivida nas práticas universitárias e sua argumentação apontando em direção a outros possíveis. Este movimento de dar importância para alguns artigos da Constituição e desprezar outros exemplifica uma sociedade que destina lugares de forma desigual, insistindo em não reconhecer as pessoas indígenas em sua condição de cidadania e humanidade. Assim, esta cena aponta a uma outra experiência de sociedade, de reconhecimento da condição de sujeito sempre emancipado, de outra partilha onde se experiência um efetivo lugar e uma posição de cidadania.

Com base na racionalidade moderna que hierarquiza os diferentes modos de vida e saberes, os artigos 231 e 232 da CF de 1988, que versam sobre os direitos dos indígenas, foram pulados e viraram motivo de piadas. O que legitima e torna esses artigos fontes de humor em um ambiente que, a rigor, deveria versar sobre a seriedade da Constituição na proteção de direitos de todos/as os/as cidadãos/ãs se não a colonialidade?

Antes da CF de 1988, os povos indígenas estavam sob a tutela jurídica diante de uma suposta incapacidade civil. Agora, juridicamente são considerados cidadãos/ãs deste Estado, tendo direito à cidadania, ao protagonismo, à preservação de suas terras, tradições, línguas e crenças, sendo considerados capazes de responder por seus próprios atos. Em comparação com todas as Constituições que o Brasil já teve, a de 1988 é considerada a mais progressista - de tutelados/as, passam a ser sujeitos de direito (Baniwa, 2006).

Esses artigos, entretanto, não surgem de uma benfeitoria do Estado em relação aos indígenas. Eles existem, na forma como estão escritos, por conta da participação e mobilização popular indígena da época e, por isso, podem ser considerados saberes indígenas. À medida em que houve intensa disputa e luta contra o olhar colonial do Estado na aprovação destes artigos, vemos que o próprio texto constitucional traz a presença de saberes indígenas que perpassam pelo movimento social e pelas parcerias com atores externos e diferentes coletivos da sociedade civil (como comunidades eclesiais de base, antropólogos, etc).

Entretanto, apesar de muita luta e movimento, não há garantia que indígenas sejam vistos como sujeitos de direitos, cidadãos, que seus saberes e modos de vida sejam reconhecidos ou que eles sejam pensados como iguais a qualquer outro ser humano. Assim, fruto da colonialidade, uma experiência de vida é invisibilizada em detrimento de um modo de vida que é considerado mais legítimo.

Cena 2: "Nós Temos Voz!"

Durante um encontro de Antropologia Social que tinha como objetivo debater com estudantes, intelectuais e lideranças indígenas da região a questão da educação e a interculturalidade, a fala de uma estudante indígena da graduação em Nutrição provocou o grupo de intelectuais que ali estavam.

Diante da greve de servidores vigentes naquele momento, a jovem de 18 anos falou sobre as dificuldades de auxílio à alimentação e dos atrasos nas bolsas, enfatizando, principalmente, da dificuldade de estudar com os brancos, pois "fui educada em escola indígena onde o ponto central é o meu povo. Não estamos preparados pra um vestibular assim" (Estudante indígena do curso de Nutrição). Segundo ela, teve sorte por ter encontrado dois professores simpatizantes da causa indígena em seu curso, no mais, o saber indígena no que diz respeito à alimentação, não é reconhecido no curso de Nutrição. Ainda assim, percebe que estar naquele curso é um ato político.

A estudante provocou os presentes, problematizando a expressão: "dar voz aos índios". Disse que ela mesma já usou esta expressão, mas hoje entende que não é necessário dar voz, pois os indígenas já tem voz. É preciso, na verdade, aprender a ouvir e reconhecê-los enquanto atores fundamentais, excluídos historicamente de diversos aspectos da política nacional. Mais do que fazer a crítica à relação objetificante histórica de brancos sobre indígenas, a estudante elenca uma proposta de alternativa nesta relação: 1º ouvir de verdade; 2º valorizar o saber do outro; 3º desconstruir estereótipos; 4º reconstruir as relações em outros fundamentos, construindo compreensões outras sobre aqueles sujeitos e seus conhecimentos. E, por fim, ela afirmou com veemência:"o lugar de vocês é aí! Ouvindo a gente. Nós é que somos índios. Vocês não precisam nos dar voz. Nós já temos voz, vocês que não têm ouvidos. Nós somos os atores principais. A história precisa ser contada em 1ª pessoa!" (Estudante indígena do curso de Nutrição).

Quando a acadêmica indígena se dirige a esse público, naquele tom, e com aquela argumentação, vemos uma cena de dissenso que denuncia as relações de poder em sociedade e na universidade: indígenas são historicamente objetos de estudo para o campo das ciências humanas e sociais, e dentre as diferentes perspectivas teórico-metodológicas que orientam as pesquisas com indígenas, há uma desigualdade que na prática revela a estética segunda a qual estamos sujeitos à divisão e distribuição de lugares possíveis para cada segmento social. Suas presenças ativas na universidade tensionam o lugar de objeto de estudo ao qual foram destinados e produzem a verificação da igualdade de todo ser falante com todo ser falante (Ranciére, 1996). Assim como brancos têm voz, indígenas também têm. A diferença é como cada segmento social é ouvido, pois a fala de alguns soa como ruídos para o grande sistema.

Além da cena dissensual deste evento acadêmico, vemos que a hierarquia aqui é também a experiência da diferença colonial pois, para nós latino-americanos, e para eles, povos indígenas no Brasil, a estética moderna está atravessada pela realidade sócio-histórica da colonização e do projeto eurocentrado (Mignolo, 2013). Além de denunciar a diferença colonial presente em sua experiência na relação com a universidade e a hierarquia presente nessa estética, a estudante indígena ainda apresenta uma proposta de diálogo em que ambas as partes ocupam o lugar que lhes cabe. Quando ela diz que a história precisa ser contada em 1ª pessoa, anuncia a necessidade de reconhecer a experiência enquanto indígena como algo que não pode ser objetificado, mas que deve ser dialogado. Neste caso, é preciso ouvir de verdade, valorizar o saber do outro, desconstruir estereótipos ere-construir as relações em outras bases. Sua proposta é assim compreendida como uma fissura decolonial na estética partilhada na nossa sociedade, uma fissura decolonial que leva os estudiosos da questão indígena a aprender a desaprender(Giuliano & Berisso, 2014)e a trabalhar na perspectiva da coexistência de saberes, da pluriversalidade e a intercultu-ralidade crítica (Walsh, 2009).

 

Considerações finais

Temos visto as universidades públicas, historicamente acessadas por uma elite branca, serem agora cena de outras caras e cores, de vidas antes negligenciadas e posições subalternizadas pelo processo de desigualdade social produzido pelo projeto colonial. Indígenas de diferentes povos têm pintado o espaço universitário de urucum e jenipapo5, questionando as relações e burocracias institucionais, produzindo também fissuras decoloniais num contexto em que, em geral, defende uma ciência marcada pelo euro-centrismo e pela colonialidade.

Nas duas cenas trazidas à análise, identificamos que o lugar que os indígenas ocupam na universidade é de subalternidade, sendo invisibilizados/as como sujeitos de direito. Mais que isso, pudemos identificar que nesse espaço excessivamente moderno seus saberes e modos de vida estão em risco. Na primeira cena, em que uma estudante indígena se desentende com a figura docente do curso de Direito por fazer piadas com indígenas na sala de aula, podemos ver a força que coloniza as experiências e saberes, pois subalterniza o modo de vida indígena e enaltece, na ironia da piada, o modo de vida e os saberes modernos.

Por outro lado, apesar da CF de 1988, nos seus artigos 231 e 232, reconhecer os indígenas em suas crenças, costumes, línguas, tradições e organização social, parece ficar evidente que a presença desses artigos no texto não garante o respeito ou a proteção necessária a estes povos no mundo moderno e euro-centrado. As experiências, os saberes e os modos de vida dos/as indígenas são motivos de piada aos olhos modernos; em outras palavras: digno de respeito e proteção é o modo de vida e o conhecimento moderno.

Na segunda cena, na qual podemos ver uma estudante indígena denunciar o embrutecimento, revelado na lógica da não audibilidade da voz, fica explícita a objetificação na qual são capturados/as os/ as indígenas. Tal cena é um ótimo exemplo de subalternização, pois exemplifica o lugar social que foi destinado para os indígenas. Quem pode falar e produzir conhecimento é o homem branco moderno, que fala pelos seus diferentes e que tem o poder (e a pretensão) de dar voz, fruto da cegueira e arrogância colonial à qual está sujeito.

Por um lado, ambas as cenas nos chamam a atenção para o fato do contexto acadêmico e universitário ser motor e estratégia de colonização, por ter seu funcionamento e pressupostos atrelados à modernidade e ao modo de vida eurocentrado. Por outro, afirmamos com toda certeza que as Políticas de Ações Afirmativas têm sido um importante instrumento para propiciar na academia reflexões e fissuras decoloniais, à medida em que estas políticas contribuem para diversificar os rostos e corpos das pessoas presentes na universidade, tornando esse espaço acessível aos/às que historicamente não tiveram acesso a ele. A presença de indígenas e afrodescendentes nas universidades tem confrontado nossas certezas e produzido fissuras decoloniais na estética moderna, na proporção em que introduz outras estéticas no jogo universitário.

A ressignificação do espaço universitário como um território de luta cotidiana pelo reconhecimento, manutenção e ampliação dos direitos a partir da organização coletiva de diferentes povos, tem produzido fissuras num cenário historicamente mais branco e burguês. Os povos indígenas não desejam ser "enquadrados pelas lógicas academicistas que alimentam e sustentam os processos de reprodução do capitalismo individualista, que tem gerado uma sociedade cada vez mais desumana" (Baniwa, 2007, p. 17).

Vemos a necessidade de nos desindentificarmos (Rancière, 2014) com nosso lugar, nos descolonizar-mos como pesquisadoras/es em busca de uma prática intercultural. Faz-se importante, como propõe Walsh (2009), olhar a diversidade e diferença a partir do problema estrutural-colonial-racial. Reconhecer que a diferença se constrói dentro de uma inteligibilidade e matriz colonial de poder racializada e hierarquizada dos brancos e branqueados sobre os outros povos (indígenas, asiáticos, afrodescendentes, em especial).

Experiências como estas nos permitem, talvez, criar caminhos para outros possíveis e tornar comum a audibilidade das vozes que não reconhecemos como tal, não porque elas não existem, mas pela incapacidade de nossos ouvidos em perceber a condição inteligível das sonoridades dissonantes.

 

Referências

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Recebido em: 17/04/2018
Aprovado em: 10/04/2019

 

 

1 Convêm destacar que este debate é amplo e possuem aspectos que não iremos explorar neste artigo. Para maiores informações consultar o trabalho de Viana (2017, pp. 63-68).
2 A escolha dos/as autores/as pelo anonimato dos/as participantes da pesquisa se dá tendo em vista os processos delicados que envolvem as políticas de ações afirmativas e a tensão política que existe em relação a presença de indígenas na universidade.
3 Fala retirada do longa-metragem "Índio Cidadão?" produzido por Rodrigo Siqueira no ano de 2014. (Siqueira, 2014)
4 O termo "acultuturação" baseia-se em fundamentações da antropologia que vigoraram no Brasil a partir da década de 1950 e se embasava numa visão culturalista norte-americana muito forte, porém muito criticada, inclusive pelo grande nome da antropologia social, Malinowski, ainda em 1940. Segundo ele, além de uma "fonética ingrata", o termo aculturação é "etnocêntrico e tem uma significação moral" (Malinowskii, 1940, citado por Athias, 2007, p. 72). (poderia incluir uma discus-são/crítica mais contemporânea sobre o conceito)
5 Urucum e Jenipapo são frutos dos quais se retira coloração (vermelha e verde, respectivamente) para a pintura corporal. A expressão "pintar a universidade de urucum ejenipapo" tem sido utilizada por universitários indígenas no contexto das mobilizações políticas, e pode ser pensada como um sinal diacrítico que marca a diferença e suas presenças neste contexto.

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