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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.19 no.46 São Paulo set./dez. 2019

 

ENSAIO

 

O sopro das coisas

 

Oipeju Pambae

 

 

Fernando Carreira

ferncarreira@gmail.com

 

 

"O mundo só pode ser respirado" (Emanuelle Coccia)

 

 

Este ensaio é o produto da mistura entre o trabalho de campo que realizei com os Guarani Mbyá no Rio Grande do Sul e minha leitura da filosofia de Emanuelle Coccia. Trata-se de um exercício de respiração, de se deixar atravessar por estes outros - inspirá-los - para então expirar-me através deles.

É com certa frequência que ouvimos os Mbyá comentarem de suas coisas com os brancos. Falam daquilo que os aproxima, do mais próximo ao mais distante. Contam, por exemplo, que são seres divididos e que "tem na cabeça as coisas dos dois mundos1". E tudo isso - estas coisas de distância e aproximação -envolve, por certo, questões importantes relacionadas ao poder. Quando os índios falam sobre o assunto, sem entusiasmo, é bom que se diga, o fazem procurando mostrar que existem tipos ou modalidades distintas de poder - poderes que estão conectados a modos particulares de relação e ocupação do mundo.

 


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Certa feita, um dos índios comentava a existência do poder dos xamãs, um tipo de poder que, segundo ele, os brancos jamais serão capazes de compreender por inteiro. Para nós [os brancos] basta considerar que os xamãs são aqueles que possuem o poder de curar as doenças do espírito, de dialogar e receber dos seres extra-humanos - os nhanderukuery - as belas palavras com as quais devem conduzir a vida de seus parentes. Mas os Guarani revelam mais, contam que existe outro poder que é o poder dos brancos - os índios dizem JkWlá o papel, instrumento de visão dos juruá por oposição a bruma sagrada dopetyngua, a fumaça do tabaco que conecta o mundo terrestre à esfera celeste, lar dos deuses, permitindo aos Mbyá comunicarem-se com as divindades. Assim os xamãs contam a repeito do mundo mudado de hoje, afirmando que é preciso meditar, fumar, rezar e concentrar-se para ouvir as palavras para este novo mundo, "é preciso", afirmam, I "adaptar as palavras ao mundo mudado2".

 


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Os índios dizem ainda que hoje, quando não dispõem mais do livre acesso ao vasto território [mbyá retã] pelo qual circulavam em busca da Terra sem Mal, torna-se fundamental que sejam capazes de dominar este outro poder que é o poder dos brancos. Isto é, o poder da linguagem burocrática [do kuatiá] através da qual poderão se tornar capazes de garantir o acesso a seus direitos mais elementares. Portanto, a conquista das condições necessárias à defesa de algum futuro para as próximas gerações passa também pela capacidade de equalização das forças no embate político com o Estado - novas palavras para o mundo mudado. Tornar-se branco, e é isto o que parecem sugerir suas falas, impõe-se como possibilidade de criar novas formas de vida [uma vida durável] através do controle dos poderes do Juruá, pois os Mbyá afirmam que sim, é possível ser branco sem deixar de ser Guarani.

 


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A fumaça do tabaco é para os Mbyá o que a bruma [Tatachina] é para os imortais: fonte de vida e saber.

Mas o que exatamente quer dizer isto, ser branco? Significaria assumir em definitivo a posição de mestiço, este modo particular de "branco"? Ou ainda uma forma de criptografia que dissimularia uma essência indígena encoberta pelo corpo [em aparência] branco. Possivelmente nem uma coisa nem outra. Pois assumir tais prerrogativas seria situar a conversa no âmbito de uma teoria da mestiçagem, isto é, em termos da passagem de uma posição a outra. Seria lidar com um aparato explicativo que tende a fazer desaparecer toda diferença. A mistura entre os termos atuaria aqui de maneira subtrativa expressando todo seu caráter corrosivo. Ela exprimiria assim um processo de decaimento em que virar branco significaria simplesmente deixar de ser índio, e isso [como se sabe, ou ao menos se deveria saber] é coisa de branco.

 


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Jaicara Ru Ete, senhor da bruma, é o senhor das palavras e é ele quem inspira aos profetas o belo saber - Reunião política sobre o projeto de duplicação da BR-116.

Portanto precisamos dizer tudo isto de outro modo. Falaremos então em termos de Anti mestiçagem3. Neste caso, como dizem os Mbyá, ser branco [sem deixar de ser índio] manifesta um movimento, algo implicado na capacidade de andar sobre duas linhas. Andar sobre as linhas representa achar o ponto médio, o meio [mileu], porque o que conta de fato é encontrar este "entre" onde toda multiplicidade cresce. E por multiplicidade quero dizer o conjunto de linhas ou dimensões de que toda coisa é feita4. De tal forma, o que importa nestas multiplicidades não são os termos ou elementos, porque uma linha não vai de um ponto a outro [índio/branco], mas passa entre os pontos sem jamais parar de bifurcar e divergir. O que interessa, de fato, é aquilo o que há entre os termos. As entrelinhas são as linhas de devir de que uma multiplicidade é feita - é a elas que devemos estar atentos.

 


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Entre – Linhas ou Toda forma de poder.

 


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Logo, quando os índios falam que são brancos - que também são brancos, já que nunca deixam de também ser índios - parecem falar numa forma de imersão. De estarem abertos ao mundo, e da capacidade de corresponderem àquilo o que ele apresenta - ou simplesmente como dizem: virar branco é fazer o presente. Todavia, ao contrário do que poderiamos ser levados a imaginar, não se trata de imergir no mundo dos brancos; aliás, "mundo dos brancos" é apenas a forma dos Mbyá chamarem a linha. Abrir-se, acompanhar o fluxo que se apresenta entre as linhas, é estar imerso no mundo tal como um peixe está no mar - o mar, meio fluído que contém e é contido pelo peixe. Deste modo, como o mar para o peixe, o mundo para os índios não é apenas um lugar, mas um estado de imersão de toda coisa em toda outra coisa5.

 


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O mundo apresenta-se então como um espaço de mistura marcado não pela condição temporária de um corpo em outro corpo, ou mesmo pela relação entre dois corpos, mas pela condição de tudo estar em tudo. Abrir-se, seguir o fluxo, estar-no-mundo, significa fazer a experiência de uma imersão transcendental6. Significa estar no mundo [segui-lo] com a mesma intensidade e força com que ele está em cada pessoa [com que ele os segue]. Os Mbyá respiram o mundo. O inspiram, fazendo-o entrar, e depois o expiram, projetando-se no mundo. O mundo é um contágio perpétuo, um estado constante de movimento em que tudo está em tudo, em que tudo circula, se transmite e se traduz7. De modo que nele só é possível viver da vida dos outros8. Pois é justamente por que tudo está em tudo que cada ser vivo produz a vida transitiva capaz de circular por todas as partes e ser respirada pelos outros. É isto o que significa abertura ou imersão, o fato da vida ser sempre ambiente de si mesma e por isso circular de corpo em corpo, de sujeito em sujeito, de lugar em lugar9.

 

 

Como diz Coccia, na respiração a mistura funciona através de um movimento em que os corpos ocupam um o lugar do outro ao mesmo tempo em que preservam suas qualidades de individualidade. É assim que é possível ser índio e também ser branco. Pois a mistura não trata de composição ou fusão -da passagem de uma posição a outra pelo decaimento de um dos termos. As coisas formam um mundo justamente porque são capazes de se misturar sem perder sua identidade. Ser simultaneamente branco e índio, misturar sem se fundir, significa partilhar o mesmo sopro. Este sopro que é a arte da mistura10, a dinâmica do mundo, seu ritmo imanente e aquilo o que permite tudo se misturar a tudo. De tal forma podemos dizer que misturar-se é penetrar naquilo o que nos penetra, é estar imerso naquilo o que imerge em nós. Respirar é fazer mundo, é misturar-se num processo infinito de auto-redimensionamento. Respirar, isto é, mistura-se, é conhecer o mundo.

 

 

Playground

 


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Corpos simultâneos

 


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Teia

Adaptar as palavras ao mundo mudado, ter novas palavras para este mundo, quer dizer simplesmente misturar o sopro dos deuses a este mundo que se apresenta. Porque andar sobre as linhas é, no fundo, um exercício de respiração. Tudo entra e sai de toda parte. O mundo é liberdade de circulação, é abertura que se dá através dos corpos e dos outros. Estar- no-mundo é fazer-se atravessar por toda coisa 11. Sair de si, ser índio e branco, ter na cabeça as coisas dos dois mundos, significa entrar em alguma coisa do outro, em suas formas e em sua aura 12. E se tudo no mundo se produz na mistura produzindo mistura, adquirir novas palavras representa o movimento inverso de voltar para si como preparação para o encontro. Respirar é deixar-se atravessar pelo mundo para então atravessá-lo.

 

 

Recebido em: 01/07/2019
Aprovado em: 06/07/2019

 

 

1 Bergamaschi, M, A. (2005). Nhembo'e: enquanto o encanto permanece! Processos e práticas de escolarização nas aldeias Guaranis. Tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS.         [ Links ]
2 Friedrich, N. (2016). Entre xales, cachimbos, mulheres e xamãs. Curitiba: Appris.         [ Links ]
3 Utilizei o termo antimestiçagem de forma bastante livre a partir do trabalho de José Antonio Kelly. Para a noção exata da ideia cunhada pelo autor em torno do termo, ver: Kelly, J. A. (2016). Sobre a antimestiçagem. Desterro (Florianópolis): Cultura&Barbárie. Recuperado de http://culturaebarbarie.org/novo/wp-content/uploads/2016/05/antimesticagem.pdf         [ Links ]
4 Deleuze, G. (2016). Dois regimes de loucos: textos e entrevistas (1975-1995). São Paulo: Editora 34.         [ Links ]
5 Coccia, E. (2018). A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Desterro (Florianópolis): Cultura e Barbárie.         [ Links ]
6 Idem. P.68
7 Idem. P.70
8 Idem. P.50
9 Ibidem.
10 Idem. P.55
11 Idem. P.70
12 Ibidem.

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