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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.20 no.48 São Paulo maio/ago. 2020

 

ARTIGOS

 

Gênero, classe e raça: representações de jovens sobre o mundo do trabalho

 

Gender, class and race: representations of young people about the world of work

 

Género, clase y raza: representaciones de jóvenes sobre el mundo del trabajo

 

Genre, classe et race: représentations des jeunes sur le monde du travail

 

 

Simone Regina dos Reis NunesI; Giovana Ilka Jacinto SalvaroII; Giani RabeloIII

IPsicóloga pela Universidade Luterana do Brasil. Mestra em Desenvolvimento Socioeconômico pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Professora adjunta no curso de psicologia da Universidade Luterana do Brasil Campus Torres/RS / simone.reis.nunes@hotmail.com
IIDoutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora dos Programas de Pós-Graduação em Desenvolvimento Socioeconômico (PPGDS) e Direito (PPGD), dos cursos de graduação em psicologia e direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC) / giovanailka@gmail.com
IIIDoutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora permanente dos Programas de Pós-Graduação em Educação (PPGE) e Desenvolvimento Socioeconômico (PPGDS) e professora do curso de pedagogia da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC) / gra@unesc.net

 

 


RESUMO

Este artigo propõe analisar a ausência de debates sobre gênero, classe e raça no campo das representações sociais de jovens sobre o mundo do trabalho. É parte dos resultados de uma pesquisa realizada entre 2016 e 2018, cujo objetivo geral foi compreender a configuração do mundo do trabalho e as representações sociais de estudantes do Ensino Médio. A pesquisa foi qualitativa e contou com a participação de 55 estudantes de escolas públicas do litoral norte do Rio Grande do Sul e do Sul de Santa Catarina. Foram realizados grupos focais, cujas informações foram analisadas por meio da análise de conteúdo. A ausência dos debates de gênero, classe e raça foi discutida a partir de dois aportes teóricos: a sociologia das ausências, de Boaventura de Sousa Santos; e a Teoria das Representações Sociais, de Serge Moscovici. Verificou-se a necessidade de questionar tais ausências a partir das desigualdades sociais construídas e naturalizadas.

Palavras-chave: Jovens; Trabalho; Gênero; Classe; Raça.


ABSTRACT

This article proposes to analyze the absence of gender, class and race debates in the field of youth social representations about the world of work. It is part of the results of a survey, conducted between 2016 and 2018, whose overall objective was to understand the configuration of the world of work and the social representations of high school students. The research was qualitative and included the participation of 55 students, from public schools on the North Coast of Rio Grande do Sul and South of Santa Catarina. Focus groups were carried out and the information was analyzed through content analysis. The absence of gender, class and race debates was discussed based on two theoretical contributions: the sociology of absences, by Boaventura de Sousa Santos; and Serge Moscovici's Theory of Social Representations. There was a need to question such absences based on constructed and naturalized social inequalities.

Keywords: Youth; Work; Gender; Class; Race.


RESUMEN

Este artículo se propone analizar la ausencia de debates de género, clase y raza en el campo de las representaciones sociales juveniles sobre el mundo del trabajo. Es parte de los resultados de una encuesta, realizada entre 2016 y 2018, cuyo objetivo general era comprender la configuración del mundo del trabajo y las representaciones sociales de los estudiantes de la secundaria. La investigación fue cualitativa e incluyó la participación de 55 estudiantes de escuelas públicas en el Litoral Norte de Rio Grande do Sul y el sur de Santa Catarina. Se llevaron a cabo grupos focales y la información se analizó mediante análisis de contenido. La ausencia de debates de género, clase y raza se discutió en base a dos contribuciones teóricas: la sociología de las ausencias, de Boaventura de Sousa Santos; y Teoría de las representaciones sociales de Serge Moscovici. Era necesario cuestionar tales ausencias por desigualdades sociales construidas y naturalizadas.

Palabras clave: Jóvenes; Trabajo; Género; Classe; Raza.


RÉSUMÉ

Cet article propose d'analyser l'absence de débats sur le genre, la classe et la race dans le domaine des représentations sociales des jeunes sur le monde du travail. Il fait partie des résultats d'une enquête, réalisée entre 2016 et 2018, dont l'objectif général était de comprendre la configuration du monde du travail et les représentations sociales des lycéens. La recherche était qualitative et comprenait la participation de 55 étudiants, des écoles publiques de la côte nord de Rio Grande do Sul et au sud de Santa Catarina. Des groupes de discussion ont été organisés et les informations ont été analysées par l'analyse du contenu. L'absence de débats sur le genre, la classe et la race a été discutée sur la base de deux contributions théoriques: la sociologie des absences, par Boaventura de Sousa Santos; et Théorie des représentations sociales de Serge Moscovici. Il fallait remettre en question ces absences des inégalités sociales construites et naturalisées.

Mots-clés: Jeunes; Travail; Genre; Classe; Race.


 

 

Introdução

Este artigo é parte dos resultados de uma pesquisa de mestrado, realizada entre 2016 e 2018, cujo objetivo geral foi compreender a configuração do mundo do trabalho e as representações sociais de estudantes do Ensino Médio de escolas do litoral norte do Rio Grande do Sul e do Sul de Santa Catarina (Nunes, 2018). Por ora, buscamos analisar a ausência de debates sobre gênero, classe e raça no campo das representações sociais de jovens sobre o mundo do trabalho. O estudo em questão utilizou a Teoria das Representações Sociais (TRS), cunhada por Serge Moscovici, como aporte teórico para investigar como esses jovens representam para si o mundo do trabalho. A TRS valoriza o conhecimento constituído de forma coletiva e subjetiva, compreendendo como nasce o saber social a partir desse conhecimento, buscando uma forma de cientificizar o cotidiano.

No que se refere às pesquisas sobre a juventude no Brasil e as interfaces temáticas a partir da década de 1990, fazemos menção ao estudo de Sposito e Tarábola (2017), por meio do qual é possível vislumbrarmos caminhos percorridos nas últimas décadas e desafios que se apresentam ao campo de estudos. Sposito e Tarábola analisaram 32 artigos sobre a temática, publicados pela Revista Brasileira de Educação (RBE) até o ano de 2016, tendo como marco a publicação do dossiê intitulado "Juventude e contemporaneidade" (1997) pela mesma revista. Conforme já evidenciado em outras publicações (Sposito, 2002, 2009), a autora e o autor destacaram a continuidade e a consolidação de estudos sobre jovens pela perspectiva da categoria "estudante" (Sposito & Tarábola, 2017, p. 5).

De igual modo, registraram a constituição de campos de estudos com foco em processos que dimensionam interesses sobre temáticas das desigualdades "sociais, de gênero ou étnicas e raciais" (Sposito & Tarábola, 2017, p. 4). Além disso, ao tratar da categoria geracional "juventude" em uma perspectiva interseccional, conforme registram Carrano, Marinho e Oliveira (2015, p. 1441), torna-se central considerar "que muitas das características sociais e individuais (em termos de gênero, de idade, raça/cor, de estado de saúde e de recursos materiais) adquiririam sentido na relação com esses desafios existenciais pelo e no contexto social que rodeia o indivíduo".

Portanto, ao falarmos de jovens, remetemo-nos ao conceito de "juventudes", trazido aqui por Esteves e Abramovay (2007), ao destacarem a heterogeneidade presente na diversidade de classe, gênero e raça, que não é considerada ao ser utilizado o termo no singular. Buscamos contemplar juventudes heterogêneas e contribuir para a problematização de questões de gênero, classe e raça que se intersectam, por exemplo, nas experiências coletivas e singulares de jovens.

Para tanto, é fundamental compreendermos a interseccionalidade como "uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação", conforme preceitua Crenshaw (2002, p. 177). E, ainda, de acordo com Collins (2015, p.14), "precisamos de novas categorias de análise que incluam raça, classe e gênero como estruturas de opressão distintas, mas imbricadas". Em tal direção, a emergência do debate sobre interseccionalidade emerge no campo dos feminismos negros, com ênfase na questão racial e nas opressões sociais que constituem, em oposição aos feminismos que não consideram as experiências das mulheres negras (Collins, 2015).

Retomando o conceito de gênero enquanto "um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos", como definido no clássico artigo de Scott (1995, p. 86), é coerente destacarmos que o mundo do trabalho é organizado e dividido a partir de certo binarismo de gênero (masculino e feminino), produzido e naturalizado por instituições e organizações sociais. Por conseguinte, de acordo com convenções historicamente produzidas, são atribuídas atividades a mulheres e a homens, tendo como base conjuntos de características naturalizadas como femininas e masculinas.

Sendo assim, no que se refere a espaços de ocupação das mulheres, podemos observar processos de feminilização e de feminização, os quais, conforme ressalta Yannoulas (2011), respectivamente, dizem da inclusão quantitativa de mulheres no mundo do trabalho nas últimas décadas e da dimensão qualitativa de tal inclusão em termos de precarização e de desvalorização laboral.

A permanência das mulheres no espaço público, aqui considerado espaço de trabalho remunerado, é significativamente menor que a dos homens, o que traz uma reflexão com base em dois aspectos: (a) a feminilização dos espaços não significa que as mulheres consigam ascender no mercado de trabalho, mas sua permanência representa uma questão digna de análise mais atenta; (b) a divisão sexual do trabalho continua presente e fortemente constituída, uma vez que, após a jornada de trabalho remunerado, as mulheres ainda são responsáveis pelo trabalho doméstico não remunerado. No caso das mulheres jovens, podemos observar um duplo fator de exclusão decorrente da divisão geracional do trabalho: ser jovem e ser mulher.

O relatório da ONU Mujeres (2016) deixa claro que o mundo está longe da equidade entre homens e mulheres quando se trata da população economicamente ocupada. O documento atesta que 75% da população economicamente ativa é formada por homens, porém, no caso das mulheres em idade de trabalhar, apenas metade possui ocupação remunerada. Os índices ajudam a fundamentar a relevância de se falar sobre as diversas invisibilidades experienciadas por mulheres no mundo do trabalho.

Também é importante percebermos que, no Brasil, falar de classe pode significar falar de raça, já que a intersecção classe e raça é evidente, embora comumente negada no senso comum. É sabido que as diferenças raciais, bem como a intersecção raça e gênero, remetem sua origem à própria história do Brasil, cujo regime escravista se prolongou até 1888, às portas do século XX. Há um aspecto cultural enraizado em nossa história que se perpetua e persiste ainda hoje nas relações sociais.

Conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2016, (IBGE, 2016), a população brasileira somava 205,5 milhões e, do total, a autodeclarada preta somava 16,8 milhões de habitantes, o que correspondeu a 14,9%. Se somado à população autodeclarada parda, o número chegaria a 112,7 milhões de pessoas, o que representaria mais da metade da população total. É importante ressaltar que a autodeclaração (branco, pardo, preto, amarelo ou indígena, conforme IBGE) está relacionada com a cor da pele e não representa por si só uma identidade étnico/racial. Guimarães (1995) observa que o conceito de raça compreende uma construção social para além das questões biológicas. Como considerado no estudo de Schucman (2014, p. 85), o racismo compreende "qualquer fenômeno que justifique as diferenças, preferências, privilégios, dominação, hierarquias e desigualdades materiais e simbólicas entre seres humanos, baseado no conceito de raça". Logo, como conceito construído socialmente a partir da hegemonia branca, reafirma privilégios e perpetua ausências.

A definição de "ausência", no sentido posto por Boaventura de Sousa Santos (2007, p. 20), em sua sociologia das ausências, compreende que "o que não existe é produzido ativamente como não existente, como uma alternativa não crível, como uma alternativa descartável, invisível à realidade hegemônica do mundo". O autor argumenta que essas realidades ativamente produzidas são formas de não existência forjadas ou legitimadas pelo que ele chama de "razão metonímica", que explicaremos adiante. Portanto, o termo "ausências" aqui abordado configura o sentido de não existência ou de negação da existência, ainda que representações de classe e gênero tenham sido timidamente reconhecidas nas narrativas. Dessa forma, pretendemos analisar, neste artigo, a ausência dos debates de gênero, classe e raça, tanto nas narrativas dos/ as jovens pesquisados/as quanto no questionamento das pesquisadoras, a partir da importância de tornar visível o que é invisível, tornar presente o que está ausente, ou tornar existentes essas não existências.

 

Percurso metodológico da pesquisa

A pesquisa que originou o artigo - de abordagem qualitativa - foi realizada com jovens estudantes do terceiro ano do Ensino Médio de duas escolas: a primeira, situada no Município de Torres, litoral norte do Rio Grande do Sul, e a segunda, no Município de Sombrio, no sul de Santa Catarina. Foram pesquisados/as 55 jovens entre 16 e 18 anos, sendo 33 mulheres e 22 homens, conforme declarado pelos/ as participantes. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC), bem como atendeu a todos os requisitos de sigilo e conforto para os/as participantes, os/as quais aderiram voluntariamente após o convite da pesquisadora mestranda, efetuado na ocasião da preparação do estudo. Foram formados oito grupos focais (com oito participantes cada um), e os encontros gravados em áudio, mediante autorização expressa dos participantes com 18 anos completos ou mais e/ou de seus responsáveis, no caso de menores de 18 anos. A autorização para a participação se deu pela assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE. Para a realização da pesquisa, inicialmente, foram aplicados questionários (não analisados neste artigo) baseados no questionário de frases incompletas de Rodolfo Bohoslavsky (1998)1, composto de dois blocos de questões fechadas e de um bloco final de frases incompletas, que foram completadas pelos sujeitos a partir de suas percepções.

O locus da pesquisa foi o projeto de extensão universitária Cinema, Papo e Profissão (CPP), na ocasião, coordenado pela primeira autora e vinculado às atividades de extensão da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), campus de Torres/RS, que trabalha a Orientação Profissional com alunos e alunas do terceiro ano do Ensino Médio em uma perspectiva psicodinâmica denominada, por Sparta, Bardagi e Teixeira (2006), Modelo de Avaliação Psicológica Centrado no Processo, justificando a necessidade de ampliar o conhecimento sobre a forma como os/as jovens representam o mundo do trabalho. A pesquisa se entrecruzou com o projeto de extensão universitária como parte de um processo de articulação e de produção de conhecimento a partir de atividades com foco na inserção social.

Os/as jovens tinham idades entre 16 e 18 anos e, do total, 31 residiam com o pai e a mãe, 17 apenas com a mãe, dois com o/a cônjuge, dois apenas com o pai, dois com os avós e um com os tios. A análise dos dados foi orientada pela Análise de Conteúdo proposta por Bardin (1977). A partir das degravações e transcrições dos áudios de cada grupo focal e da impressão do material transcrito, foi feita uma primeira categorização, seguida da formação de unidades de registro descritas como unidade de significação à codificação do conteúdo, a fim de identificar quais palavras e/ou temas apareciam com mais frequência. Na segunda fase da análise, realizamos o processo de categorização e construímos duas dimensões representacionais, que possibilitaram indagar sobre as ausências aqui abordadas, bem como a necessidade de lhes dar visibilidade.

As não representações aqui analisadas emergiram das duas dimensões representacionais que constituíram a organização analítica da dissertação, denominadas "objetiva" e "subjetiva", em relação aos mundos do trabalho. Na dimensão objetiva, destacamos as representações oriundas de experiências laborais dos/as jovens ou pela busca de trabalho; na dimensão subjetiva, nominamos as representações em "perspectivas" e orientadas pelo processo de escolha de uma futura profissão, sobremaneira, marcada pela possibilidade de ingresso em uma universidade via políticas públicas educacionais.

Para a presente análise, foram selecionados depoimentos que são representativos das informações construídas nos grupos e que possibilitam dialogar com estudos aqui reunidos.

 

A Sociologia das Ausências e a Teoria das Representações Sociais: tornar existentes as não existências

Ao tentarmos compreender aquilo que em nossa pesquisa chamamos de não representações, trazemos, inicialmente, a sociologia das ausências, de Sousa Santos (2007), como um dos aportes teóricos da discussão. A sociologia das ausências faz uma crítica ao crescente processo de globalização neoliberal, acompanhada de uma profunda análise epistemológica que indica alternativas para ouvir as vozes e possibilitar visibilidade às minorias. O uso do termo "minoria", aqui proposto, relaciona-se com a concepção de Moscovici (2011, p. 79) de que "muitas categorias de desviantes e de minorias representam grupos em situação de inferioridade, excluídos da ideia de normalidade da sociedade por meio de diversas formas de discriminação: econômica, social, racial".

Sousa Santos (2007) faz uma crítica ao que chama de razão indolente, uma forma de abordagem das ciências sociais em relação aos fenômenos que considera hegemonicamente a forma ocidental de "ver o mundo". Como um desdobramento da razão indolente, a razão metonímica desperta maior interesse no foco de nossa discussão. A razão metonímica tem como ponto de partida as dicotomias que, para Sousa Santos, são necessariamente hierárquicas: homem/mulher, branco/preto, ocidente/oriente, civilizado/ primitivo e assim por diante.

Não é difícil relacionar a razão metonímica à lógica capitalista neoliberal. O que vivemos em nossas sociedades, mundialmente, evidencia essa relação no sentido em que Sousa Santos (2007, p. 25) refere: "forma um conceito de totalidade que só considera as partes homogêneas, numa racionalidade que toma a parte pelo todo". Dessa forma, o mundo passa a ser considerado (e regulado) a partir da lógica das hegemonias: a lógica branca, rica, ocidental, patriarcal.

O que a sociologia das ausências propõe é justamente um olhar alternativo sobre as dicotomias. Ou seja, um esforço constante para olhar cada parte como existente e atuante na composição do mundo, em uma visão de que o todo não é apenas a soma das partes, mas uma totalidade particular e, para Sousa Santos, ecológica. Dessa forma, a sociologia das ausências propõe visibilizar o invisível, em uma abordagem que esteja fora das articulações de poder que produzem a invisibilidade a partir do conceito de "inferioridade natural" (Sousa Santos, 2007, p. 29): a "outra parte" das dicotomias (a mulher, o negro, o primitivo, o oriente...) é naturalmente inferior, portanto, deve ser desconsiderada ou inexistente.

No campo epistemológico, visualizamos a relação entre a sociologia das ausências e a teoria das representações sociais a partir da visibilização dessas ausências. Moscovici (1981, p. 181) conceitua a TRS da seguinte forma:

por Representações Sociais, entendemos um conjunto de conceitos, proposições e explicações originado na vida cotidiana no curso de comunicações interpessoais. Elas são o equivalente, em nossa sociedade, aos mitos e sistemas de crença das sociedades tradicionais; podem também ser vistas como a versão contemporânea do senso comum.

A TRS de Moscovici propõe que sejam considerados e visibilizados os saberes construídos no senso comum e este seria o ponto de fusão dos dois conceitos: a visibilização do saber popular, não necessariamente hegemônico. Mas antes de fazermos a intersecção dos conceitos, traremos uma breve explanação da TRS, assim como fizemos com a sociologia das ausências. A TRS nasceu no campo da psicologia social, quando Moscovici, em 1961, analisou a apropriação pública de alguns termos psicanalíticos na França. Para Moscovici, o que faz o sujeito é o social, e o que faz o social é o sujeito. Assim, trabalhar as representações sociais significa considerar cientificamente os conhecimentos produzidos pelo senso comum, uma vez que esses conhecimentos constituem os sujeitos individual e coletivamente, instituindo, portanto, as sociedades enquanto conjunto de olhares, tradições e costumes.

Nesse sentido, a representatividade do senso comum emerge através da TRS como um rico campo epistemológico. Ivana Marková (2006, p. 191) considera "o senso comum como senso social" ou, em outras palavras, um saber constituído individual e coletivamente, que intersecciona os saberes científico e popular em um campo representacional que define formas de pensar e agir socialmente.

Mas que relação podemos fazer entre a sociologia das ausências e a teoria das representações sociais? Embora Moscovici não refira explicitamente às hegemonias, acaba por contemplá-las ao considerar o senso comum um campo epistemológico rico e de necessária visibilização. Quando a TRS considera como ciência aquilo que é construído dentro do saber popular, está tornando existente, assim como a sociologia das ausências, uma não existência. Ao negar a forma de fazer ciência que desconsidera o saber popular, ainda que se aproprie dele, a TRS possibilita visibilizar o invisível. Essa concepção dialoga com a sociologia das ausências (Sousa Santos, 2007), que critica a monocultura do saber e do rigor científico, baseada na realidade da ciência ocidental, hegemônica e dominante, e por trazer a ideia do saber científico como único saber válido.

Relacionar a TRS com a sociologia das ausências se torna possível quando, na pesquisa realizada, uma "não representação" pode ser problematizada. A teoria das representações sociais e a sociologia das ausências possibilitam emergir o que está obscurecido pela hegemonia daquilo que Sousa Santos chamou de "monocultura da naturalização": aquilo que não é visto, não é percebido como existente porque é subjetivamente considerado como naturalmente inferior. Mas, por que não é visto? Porque, na lógica da razão metonímica, só é visto aquilo que é definido como hierarquicamente superior pela sua própria lógica.

Por exemplo, podemos sugerir que a ausência das questões de raça nas representações dos/as jovens estudantes sobre o mundo do trabalho não se dá só pela não existência de alunos/as negros/as nos grupos focais nem nas turmas de terceiro ano do Ensino Médio pesquisadas. Essa ausência acabou por ser concebida já na formulação dos procedimentos por parte das pesquisadoras (brancas) quando não contemplaram questões de raça.

Problematizar a ausência de questões de raça implica, conforme Almeida (2018, p. 25), considerar o racismo estrutural como "uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios, a depender ao grupo racial ao qual pertençam", configurado pela naturalização dos espaços como hegemonicamente brancos. Não há estranhamento das ausências. Por exemplo, negros/as não ocupam determinados espaços acadêmicos ou laborais, mas isso é visto como um fato natural, despercebido pela perspectiva da hegemonia branca. Não estranhar representa naturalizar que os espaços acadêmico e laboral são ocupados por pessoas brancas, não negras ou pardas.

Portanto, quando os/as jovens participantes da pesquisa não consideram existente aquilo que não é visto, esse fato deve ser problematizado a partir de sua emergência na pesquisa: não perceberam por que não existiam colegas negros/as e/ou por que não foram questionados/as pelas pesquisadoras. Aqui, a dupla ausência justifica a urgência de uma profunda reflexão, visto que estamos falando de categorias que deveriam visibilizar as "minorias" que, interseccionadas, são representadas pelos sujeitos marginalizados pela hegemonia branca masculina. Essa invisibilidade representa, para Sousa Santos (2007), a monocultura da naturalização, ou, no caso das negritudes, dos/as estudantes negros/as que ocupam desproporcionalmente os espaços acadêmicos e laborais em relação aos brancos.

Pela articulação teórica em questão, em síntese, enfatizamos a potência dos pressupostos elencados para uma análise possível da não representação social e da ausência de questões de gênero, classe e raça no estudo realizado, de modo a escapar de leituras individualizantes de sujeitos e grupos.

 

Gênero e raça: não representações e ausências como não existências

Desde a sua concepção, a pesquisa trouxe uma ausência: a categoria raça não apareceu nas questões que orientaram as discussões propostas nos grupos focais e nas narrativas dos/as jovens. Questões relativas ao gênero, questionadas pelas pesquisadoras, apareceram de forma dividida: das 33 jovens, três se manifestaram quando perguntadas se havia diferença entre homens e mulheres no mercado de trabalho. Uma delas, a única que já trabalhava, afirmou que sim, havia discriminação. As outras duas, que ainda não haviam ingressado no mercado de trabalho, não viam diferença, afirmando que as mulheres conquistaram espaço, como um indicativo de que as desigualdades deixaram de existir. Quanto aos jovens, dos 22, quatro se manifestaram e apenas um, já inserido no mercado de trabalho, afirmou que, embora as mulheres tenham conquistado espaço, ainda são discriminadas nas funções que exercem. As outras três narrativas, uma delas citada na sequência, trouxeram a inexistência de desigualdades, posto que mulheres e homens, possuindo os mesmos direitos e capacidades, são tratados como iguais no mercado de trabalho.

Todo mundo fala que, dependendo da área, muitas mulheres recebem menos que os homens, né, mas também é o fato do esforço, se a mulher se esforçar, se ela se dedicar, ela pode ser muito melhor que o homem, a mesma coisa com o homem. Se o homem se dedicar, ele vai ser muito melhor que a mulher. Não é o fato do sexo em si, mas sem dúvida do esforço, da qualidade do serviço de cada um. (Participante 5, grupo focal 1)

Por um lado, constitui-se uma representação do mundo do trabalho orientada pelas lógicas liberal e meritocrática, por meio das quais as desigualdades de gênero, classe, raça, entre outras, não são consideradas e, portanto, os sujeitos são os únicos responsáveis por suas trajetórias laborais de sucesso ou de fracasso. Por outro, a frágil representação da desigualdade de gênero remete ao já citado conceito de feminilização, representação quase que onipresente no senso comum, que vê no caráter quantitativo a solução do problema que "outrora existiu"; ou seja, o aumento no índice de participação de mulheres no mercado de trabalho é diretamente relacionado ao fim das desigualdades de gênero. A feminilização, nesse caso, acaba por produzir uma espécie de invisibilidade do problema, ou, nos termos de Sousa Santos, uma ausência. As palavras de Kergoat (2010, p. 94) permitem aprofundar a discussão:

A participação da mulher no mercado de trabalho aumenta, mas as segmentações, horizontais e verticais, entre empregos masculinos e femininos, perduram. As desigualdades de salário persistem, e as mulheres continuam a assumir o trabalho doméstico. A meu ver, no entanto, isso não representa nenhuma aporia ou contradição interna às relações sociais de sexo, mas aponta para o fato de que o capitalismo tem necessidade de uma mão-de-obra [sic] flexível, que empenhe cada vez mais sua subjetividade: o trabalho doméstico assumido pelas mulheres libera os homens e, para as mulheres de alta renda, há a possibilidade de externalização do trabalho doméstico para outras mulheres.

A autora discute a forma como ocorre a naturalização das desigualdades entre homens e mulheres no mundo do trabalho e refere como a lógica capitalista instrumentaliza essa naturalização. Embora as mulheres participem do mercado de trabalho, interessa ao capitalismo que continuem responsáveis pelo trabalho doméstico e reprodutivo. No caso de mulheres jovens, há o agravante da conciliação com os estudos e, muitas vezes, com a maternidade precoce. O resultado quase sempre é o trabalho informal com supressão de direitos e em condições precárias. Além disso, é importante destacar a intersecção de classe quando o trabalho doméstico é "externalizado" para outras mulheres.

Conforme a narrativa de uma das participantes do Grupo Focal 3 sobre a desigualdade de gênero: "Sim, acontece, eu pensei que não acontecia mais, quem pensa assim são as pessoas mais velhas, mas na profissão que eu escolhi não existe" (Participante 1, Grupo Focal 3). Ou seja, "na prática, não acontece, já mudou bastante". Esse é um exemplo de como a participação crescente de mulheres no mercado de trabalho e a feminilização de determinadas profissões podem contribuir para a produção da ausência das desigualdades de gênero ou relacioná-las a um contexto geracional.

As representações de classe e raça apareceram de forma ainda mais frágil na pesquisa. A questão de classe foi evidenciada apenas no grupo focal 2. Um dos jovens observou: "Um rico tem mais condições de passar em algo ou pagar pra ter um estudo melhor" (Participante 2, Grupo Focal 2). Nesse caso, a discussão no grupo seguiu a lógica de que era necessário se esforçar mais para vencer a concorrência com os mais ricos. Uma representação meritocrática forjada dentro de uma concepção capitalista neoliberal que é, segundo a sociologia das ausências, uma incubadora de não existência.

Mais do que gênero e classe, a ausência do debate de raça é presente e a não existência é clara: aquilo que não se vê deixa de existir. Ou, nas palavras de Sousa Santos (2007, p. 28): "a armadilha maior para nós é reduzir a realidade ao que existe. Assim, de imediato compartimos essa racionalidade preguiçosa, que realmente produz como ausente muita realidade que poderia estar presente". É necessário, portanto, que tornemos presente o que é ausente, porque não deixa de existir. Essa leitura reforça a concepção de que não se pode fazer uma discussão sem considerar o quanto as desigualdades de gênero, classe e raça se entrecruzam nas/ pelas relações de poder. Outra constatação central em relação à ausência da questão racial emeige a partir do racismo estrutural (Almeida, 2018), que produz e naturaliza relações sociais desiguais em nosso país.

Analisar as intersecções torna possível visualizar as diferentes formas de discriminação que alguns grupos sofrem dentro das discriminações já conhecidas. Seria a discriminação dentro da discriminação. Crenshaw (2002, p. 173) pondera que

Assim como é verdadeiro o fato de que todas as mulheres estão, de algum modo, sujeitas ao peso da discriminação de gênero, também é verdade que outros fatores relacionados a suas identidades sociais, tais como classe, casta, raça, cor, etnia, religião, origem nacional e orientação sexual, são diferenças que fazem diferença na forma como vários grupos de mulheres vivenciam a discriminação. Tais elementos diferenciais podem criar problemas e vulnerabilidades exclusivos de subgrupos específicos de mulheres, ou que afetem desproporcionalmente apenas algumas mulheres.

Nas ausências aqui discutidas, a intersecção se dá pela própria natureza das categorias: todas representam a parte não hegemônica invisibilizada pelas relações de poder. Na prática, a ausência se deu por jovens negros/as sem acesso ao Ensino Médio, mas também pela não representação na pesquisa. Uma ausência ignorada, naturalizada pelo racismo estrutural e, portanto, não representada.

É inegável que as mulheres têm ainda mais desvantagem nesse cenário e que a divisão sexual do trabalho evidencia isso de forma contundente. Na intersecção gênero e geração, o Relatório Anual Socioeconómico da Mulher - RASEAM (Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2015, p. 15) evidenciou que,

Nos últimos anos, houve uma significativa redução do desemprego, mas ainda permanecem as desigualdades por sexo, por região e por idade da taxa de desocupação: a taxa verificada entre as mulheres era quase 80% superior à masculina, com importantes disparidades regionais e por grupos de idade, sendo a população mais vulnerável a de jovens entre 16 e 24 anos.

No que concerne ao mundo do trabalho, essas ausências são evidentes, inclusive como extensão das ausências sentidas na escola. Nesse universo, a escolaridade é sinônimo de hierarquia, tendo em vista que uma maior escolaridade pode contribuir para aumentar as chances de acesso a melhores postos e condições de trabalho. Todos esses elementos são relevantes para que se discutam as não representações no e fora do espaço acadêmico, a partir dos que a sociologia das ausências e a TRS propõem.

 

Dicotomias e ausências como (des)combinações (im)possíveis

Ao tornar ausências presentes, joga-se luz sobre a face obscura de cada dicotomia e se busca visibilizar sujeitos marginalizados. Nesse contexto, os sujeitos representam as não hegemonias ou o lado obscurecido das dicotomias, de acordo com Sousa Santos (2007). Para a discussão, consideramos duas dicotomias evidenciadas na sociologia das ausências e uma identificada por nós (adulto/jovem), com a intenção de articulá-las com as não representações produzidas ao longo da pesquisa: (a) mulheres como minoria na dicotomia homem/mulher; (b) jovens como minoria na dicotomia adulto/jovem; (c) negros/ as como minoria na dicotomia branco/negro.

Na primeira dicotomia, as mulheres, como minoria ou a parte obscura da dicotomia homem/mulher, embora a população feminina no mundo seja maior em número, é sabidamente menor em representatividade. Como já observado, obviamente isso se reflete e produz desigualdades de gênero nos mundos do trabalho na medida em que diferenças entre os sexos são instrumentalizadas para justificar a divisão sexual do trabalho, atribuir e desvalorizar atividades realizadas por mulheres. Dessa forma, e retomando os conceitos de feminização e de feminilização, é necessário interrogar acerca dos índices de participação, das condições de ingresso e de permanência de mulheres nos mundos do trabalho.

No caso da pesquisa realizada, questões relativas ao debate e às desigualdades de gênero emergiram no âmbito da feminilização laboral: as mulheres estão ocupando os espaços em maior número ou as mulheres possuem as mesmas capacidades que os homens, portanto, não há diferença e desigualdades nos mundos do trabalho. Logo, se ausentes, não se constituem problemas que devem ser enfrentados.

Em estudo pioneiro sobre as mulheres na sociedade de classe, Saffiotti (1976) ressaltou aspectos da divisão social do trabalho na lógica capitalista. A partir de uma leitura marxista, observou a relação de poder que se estabelece entre quem detém o capital e quem vende a força de trabalho. Quem não detém o capital vende sua força de trabalho não somente como valor de troca pela sobrevivência, mas com a finalidade de, futuramente, detê-lo e ascender socialmente. A partir de tal lógica e da competitividade inerente ao sistema capitalista, compreendemos os mecanismos históricos que sustentam as dicotomias mulheres/homens, jovens/adultos, negros/brancos, ricos/pobres e, sobretudo, como eles produzem hegemonias e ausências.

Percebe-se aí uma prática cultural a partir da qual, sabe-se, são construídas as relações desiguais de gênero, classe, raça e geração. Uma cultura de alto custo para as mulheres que almejam equidade nas relações e nos mundos do trabalho, mais ainda quando se intersecciona com a questão geracional. Desenha-se aqui mais um questionamento: o que esperar da inserção das mulheres de 15 a 24 anos no mercado de trabalho? Eis a segunda dicotomia: jovens como minoria na dicotomia adulto/jovem. A hegemonia de trabalhadores/as adultos/as em relação a jovens nos mundos do trabalho evidencia dois importantes fatores: empregabilidade e inexperiência.

O conceito de empregabilidade se refere a ser empregável, estar apto para utilizar as habilidades e competências adquiridas (geralmente via qualificação técnica ou acadêmica) no mercado de trabalho e de acordo com os interesses das empresas (Leite & Melo, 2017; Lemos & Costa, 2012). Os estudos mencionados criticam esse conceito quando apontam a contradição com que a empregabilidade é tratada dentro da lógica capitalista: coloca-se a responsabilidade do êxito do trabalhador na qualificação, eximindo o Estado da responsabilidade de garantir melhores condições de inserção e permanência de trabalhadores/ as no mercado. Por sua vez, o/a trabalhador/a não pode garantir a inserção ou a permanência, visto que a demanda de trabalhadores/as é tradicionalmente maior que a oferta de vagas. O mascaramento de tal cenário se produz no/pelo discurso de que é necessário que os/as trabalhadores/as se qualifiquem para ocupar os postos disponíveis. Trata-se de um movimento circular sustentado por um discurso que cria a representação de que se o/a trabalhador/a não consegue se inserir, é porque não se esforçou o bastante.

Na população jovem, a visão superficial desse quadro contribui para reforçar a representação de uma forma meritocrática de programar o futuro, tendo o esforço pessoal como o melhor caminho para o êxito. Portanto, no mundo do trabalho, representado pela maioria dos/das jovens, identificamos a perversa relação entre empregabilidade e meritocracia. Na representação desses jovens, é preciso se qualificar, mas essa qualificação não é útil se não houver esforço pessoal e experiência, aliados a uma boa condição socioeconómica.

Na pesquisa, algumas das narrativas trouxeram a representação de que as condições socioeconômicas fazem diferença quando se pensa nas oportunidades de trabalho de forma geral, mas mais especificamente para os/as jovens que estão em busca dessas oportunidades. Para quem já estava no mercado de trabalho, as oportunidades de ascensão foram relacionadas à qualificação, que, por sua vez, dependia de boas condições socioeconômicas ou das políticas públicas de educação. Nesse sentido, convém destacar a importância de estudos sobre juventudes que contemplem relações entre escolaridade e mundos do trabalho. O estudo publicado por Sposito, Souza e Silva (2018), realizado a partir da análise da Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (PNAD), relativa aos anos de 2004 e de 2014, é representativo de mudanças, continuidades e desafios, nos âmbitos da educação e do trabalho, enfrentados por populações de jovens de 15 a 29 anos no Brasil.

O estudo realizado por Carrano, Marinho e Oliveira (2015), envolvendo 593 jovens de escolas de Ensino Médio da rede estadual do Rio de Janeiro, demonstrou a recorrência de situações de jovens que conciliam as condições de estudantes e de trabalhadores. É interessante observar que, no caso das perspectivas dos jovens quanto ao futuro, os dados do estudo apontaram o desejo de ampliação da escolaridade, "seja por meio do ingresso na universidade (43,3%) ou pela realização de algum curso profissionalizante (26%)" (Carrano, Marinho & Oliveira, 2015, p. 1449).

No âmbito das políticas públicas para jovens participantes da pesquisa, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) configurou como uma forma proeminente para o ingresso na universidade e a oportunidade de, por meio de uma profissão de nível superior, ascender socialmente e amenizar a concorrência desproporcional, descrita por Natividade (2014, p. 51) da seguinte forma: "as condições de concorrência para a entrada no ensino superior entre alunos oriundos de escolas públicas e particulares, após o Ensino Médio, são abusivamente desproporcionais". A partir de sua vinculação com o Programa Universidade para Todos (PROUNI), a prova do ENEM passou a representar, para os/as alunos/as oriundos/as da escola pública, a possibilidade de ingresso na universidade, aumentando significativamente os índices de universitários/as dessa categoria nas instituições de ensino superior do Brasil. Para quem não consegue as bolsas integrais do PROUNI, o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), que promove financiamento aos/às estudantes de graduação com baixa taxa de juros e início do pagamento após a conclusão, pode se apresentar como possibilidade de ingresso e permanência. Porém, com o número de vagas limitado, as duas políticas, como uma espécie de funil, limitam as oportunidades a cada etapa, deixando grande parte dos/as estudantes sem oportunidade de ingresso no ensino superior e, portanto, com menores chances de ascender no mercado de trabalho.

Tais questões oferecem subsídios para uma discussão sobre a não escolaridade. Sousa Santos (2007, p. 27) fala de uma "simetria dicotômica que esconde sempre uma hierarquia" e que, nesse caso, apresenta-se na forma de uma hegemonia econômica que inicia no campo da escolaridade e avança naturalmente para o mundo do trabalho. Nesse sentido, as políticas públicas acabam por cumprir um papel fundamental, mesmo que aquém do ideal. Souza (2006, p. 26) argumenta sobre a "política pública como o campo do conhecimento que busca, ao mesmo tempo, 'colocar o governo em ação' e/ou analisar essa ação (variável independente) e, quando necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas ações (variável dependente)". Na pesquisa realizada, foi possível observar que políticas públicas de educação (ENEM e FIES) podem ter um papel central para a continuidade dos estudos no ensino superior. Mas, além da demanda ser maior que a oferta de vagas, o problema começa bem antes, no Ensino Fundamental, com a evasão escolar, que atinge de forma intensa crianças e jovens negros/as, o que nos leva à terceira dicotomia: negros/as como minoria na dicotomia branco/negro.

Gonzalez (1983, pp. 225-226) problematiza o racismo como um fenômeno cultural no Brasil e, por ser cultural, naturalizado, ausente:

A primeira coisa que a gente percebe, nesse papo de racismo, é que todo mundo acha que é natural. Que negro tem mais é que viver na miséria. Por que? Ora, porque ele tem umas qualidades que não estão com nada: irresponsabilidade, incapacidade intelectual, criancice, etc. e tal. Daí, é natural que seja perseguido pela polícia, pois não gosta de trabalho, sabe? Se não trabalha, é malandro e se é malandro é ladrão. Logo, tem que ser preso, naturalmente. Menor negro só pode ser pivete ou trombadinha, pois filho de peixe, peixinho é. Mulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta. Basta a gente ler jornal, ouvir rádio e ver televisão. Eles não querem nada. Portanto têm mais é que ser favelados.

As últimas duas frases de Gonzalez remetem à representação de que negros não gostam de trabalhar, representação essa que isenta o Estado da responsabilidade de promover, sem distinção, o bem-estar social. Ou seja: se não conseguem melhores oportunidades, é porque não querem ou não se esforçam o suficiente. Tal representação implica realçar as condições históricas de racismo por meio das quais se reproduzem sistematicamente estereótipos que subjugam e inferiorizam as populações negras.

A não representação do debate de raça nos grupos focais oportuniza refletir sobre em que condições os/as jovens negros/as entram na concorrência por melhores oportunidades quando não conseguem nem fazer parte do já seleto grupo dos que concluem o Ensino Médio completo. Não foi por acaso que a questão de raça não foi visibilizada na pesquisa: não foram vistos porque não estavam lá e, além de não estarem lá empiricamente, também não "estavam lá" na representação das próprias pesquisadoras, o que acabou por anular a chance de discussão acerca da face não hegemônica da dicotomia. Por fim, as três dicotomias aqui trazidas formam uma espécie de espiral, em que uma ausência vai se interseccionando com as outras, formando novas invisibilidades, novas ausências e não existências.

 

Considerações finais

Embora gênero, classe e raça se constituam marcadores potentes de discriminação, em grande medida, não foram representados pelos/as jovens participantes da pesquisa e problematizados a priori pelas pesquisadoras. A análise das não representações enquanto ausências emergiu no decorrer do percurso investigativo, orientada por aportes teóricos da Sociologia das Ausências e da Teoria das Representações Sociais, os quais permitiram interrogar acerca de processos e do modo como se constituem sujeitos em sociedades estruturalmente desiguais.

A análise da ausência dos debates de gênero, classe e raça no campo das representações sociais de jovens sobre o mundo do trabalho implicou considerar as desigualdades interseccionadas e as dicotomias homens/mulheres, jovens/adultos, brancos/negros. Pelo modo como foram apresentadas ao longo do texto, as intersecções, problematizadas e analisadas a partir das dicotomias que as sustentam, demonstram como as desigualdades de gênero, classe e raça operaram na produção de hierarquias, ausências e não existências. As não representações como ausências dizem da articulação de condições sociais, econômicas, culturais, políticas, historicamente forjadas, (re)produtoras de discriminação e desigualdades nos mundos do trabalho.

 

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Recebido em: 28/09/2019
Aprovado em: 09/03/2020

 

 

1 O Questionário de Frases Incompletas, criado em 1977 por Rodolfo Bohoslavsky, é composto por 25 frases, "adequadas à situação de escolha (Bohoslavsky, 1998, p. 94)", pensadas especificamente para a situação de escolha/orientação profissional. Conforme o autor, a escolha dos instrumentos e sua combinação com outras atividades fica a cargo do/a psicólogo/a. Na coleta de dados da pesquisa, achamos viável utilizar a ideia das frases incompletas, mas mantendo apenas algumas frases do questionário original e criando outras que serviram à especificidade do estudo. O questionário utilizado, portanto, é apenas baseado no de Bohoslavsky, que não foi utilizado na íntegra.

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