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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.20 no.49 São Paulo set./dez. 2020

 

ARTIGOS

 

Por ordem e segurança: quais juventudes? Quais territórios?

 

In order to guarantee order and security: which youth? Which territories?

 

Por orden y seguridad: ¿qué juventudes?¿Qué territorios?

 

 

Flávia de Abreu LisboaI; Roberta Brasilino BarbosaII; Thiago Colmenero CunhaIII

IPsicóloga do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Rio de Janeiro (DEGASE). Mestranda pelo Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ, Brasil / flisboa.psirj@gmail.com
IIMembro da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia. Psicóloga e Doutora em Psicologia pelo Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ, Brasil / robertabrasilino@gmail.com
IIIPsicólogo, pedagogo. Professor da Universidade Santa Úrsula. Mestre e doutorando (bolsista CNPq) pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil / colmenerocunha@gmail.com

 

 


RESUMO

Este manuscrito possibilita um debate partindo da transversalização das noções de juventude, território e segurança. Pensar essas noções e seus entrelaçamentos faz-se relevante como forma de analisar racionalidades que perpassam e sustentam as formas de controle da juventude no Brasil. Utilizam-se analisadores emergentes de três pesquisas, as quais perpassam essa temática: a primeira discutindo a questão da segurança nas escolas públicas do estado; a segunda envolvendo adolescentes inseridos no sistema socioeducativo também do estado do Rio; e a última, com análises acerca das políticas brasileiras sobre drogas. Afirma-se que, na diversidade e na multiplicidade das formas de ser jovem, são traçadas linhas de segregação que delimitam algumas juventudes como mais perigosas, as quais tornam-se alvo principal de controle social. Assim, segurança e território sustentam-se como linhas transversais às temáticas de cada pesquisa e delineiam-se como racionalidades que comparecem na construção das políticas públicas para certas juventudes no Brasil.

Palavras-chave: Juventude; Segurança; Ordem; Território, Criminalização.


ABSTRACT

This manuscript enable a debate based on the transversalization of notions of youth, territory and security. To think of these notions and their interlacements becomes relevant as a way of analyzing rationalities that permeate and sustain the forms of youth control in Brazil. Emerging analyzers of three surveys are used, which cross the theme: the first discusses the issue of security in state public schools; the second involving adolescents inserted in the socio-educational system also of the state of Rio; and the last, with analyzes about Brazilian drug policies. It is said, therefore, that in the diversity and multiplicity of forms it is young, lines of segregation are drawn which delimit some youths as more dangerous, which become a greater target of social control. Thus, security and territory are sustained as lines that cross the themes of each research and are outlined as rationalities that appear in the construction of public policies for youth in Brazil.

Keywords: Youth; Security; Order; Territory; Criminalization.


RESUMEN

Este manuscrito apunta a La posibilidad de que una discusión debate integra lãs nociones de juventud, territorio y seguridad. Piensar que esas nociones y entrelazamientos se vuelven relevantes como medio de análisis y justificacion esperpassan y mantener El control como formas de juventuden Brasil. Los analizadores de três investigaciones, como los que atravesan este tema son usados: El primero discute un problema de seguridad em escuelas públicas del Estado; un segundo sobre adolescentes insertados sistema de justicia juvenil, pero también el estado de Río; y una final, com el análisis sobre la política de drogas en Brasil. Afirmando que La diversidad y multiplicidad de formas son jóvenes líneas, se trazan líneas de segregación que delimitan a algunas juventudes como más peligrosas, que se convierten em um mayor objetivo de control social. Así, La seguridad y El territorio se sostienen como líneas transversales a las temáticas de cada investigación y se delinean como racionalidades que concurren em la construcción de las políticas públicas para cierta juventud en Brasil.

Palabras clave: Juventud; Seguridad; Orden; Territorio; Criminalización.


 

 

Introdução

Este manuscrito se propõe disparador de um debate teórico acerca das relações entre juventude, segurança e território no estado do Rio de Janeiro, utilizando-se de analisadores emergentes em três pesquisas que perpassam tal temática. A primeira delas discutindo a questão da segurança nas escolas públicas do estado, partindo de uma análise do Programa Estadual de Integração na Segurança (PROEIS). A segunda envolvendo adolescentes em unidades de privação de liberdade, inseridos no sistema socioeducativo também do estado do Rio. E a última pesquisa, com análises acerca das políticas brasileiras sobre drogas e seus impactos sobre a população. Segurança e território sustentam-se como linhas transversais às temáticas de cada pesquisa e dessa forma permitem afirmações que sinalizam esses elementos enquanto integrantes de racionalidades, ou seja, lógicas, modos de funcionamento, que comparecem na construção das políticas públicas para juventude no Brasil.

Acerca desse público, parte-se de uma perspectiva de juventude, em contraponto à noção de adolescência. Segundo Simão (2013), o surgimento dessa categoria está vinculada às práticas de controle descritas como práticas de normatização e disciplinarização dos indivíduos, sendo criada para configurar-se como uma etapa de vida apontada para o futuro, para a vida adulta. Nesse sentido, estaria atrelada a um modo de definição da categoria humana que parte de uma temporalidade linear, numa classificação da vida sob critérios etários, comportamentais, físicobiológicos e culturais. Ou o que se descreve como biocronologia.

Para Coimbra, Bocco e Nascimento (2005), trata-se de uma definição universal e a-histórica, na qual mudanças biológicas produzem formas de estar no mundo comuns a toda adolescência. Nesse encadeamento, a própria produção da categoria adolescente vem atravessada por uma lógica de controle e aniquilação do diferente, na medida em que afirma essa universalidade, homogeneidade e unicidade.

Nessa perspectiva de continuidade da vida e de preparação para a maturidade, afirma-se uma regularização dos modos de viver a adolescência, que se sustenta no estabelecimento de um roteiro único. Enquanto futuros adultos, o público de adolescentes e jovens se torna um objeto sobre o qual se exerce um cerrado controle social.

Aqui encontra-se uma costura possível entre a perspectiva de controle social e a noção de segurança: as políticas direcionadas à adolescência/juventude vêm entrelaçadas pelo estabelecimento de uma ordem, que formata os corpos, os modos de vida, a constituição dos processos subjetivos. Uma lógica pautada numa tentativa incessante de homogeneização de tudo e de todos a uma referência, que busca formas de controle daquilo que é diferente, aquilo que escapa à norma. Uma ordenação da vida. Em suma, processos que afirmam padronizações de comportamentos, bem como de modos de vida (normatizações e normalizações, respectivamente) e atribuem àquilo que está fora dessa ordem uma lógica punitiva (criminalização), tal qual pode ser observado nos analisadores que seguem.

 

Proteção e Exclusão no Programa de Integração na Segurança nas Escolas Estaduais

Para iniciar as discussões que aqui estão propostas, optou-se apresentar o cenário educacional, o que para tal é preciso contextualizar a rede pública de escolas estaduais do Rio de Janeiro. A Secretaria de Estado de Educação (SEEDUC, 2012) do Rio de Janeiro tem sob sua administração 1.354 escolas estaduais, isto é, que oferecem ensino gratuito presencial de Ensino Médio Regular, Ensino Médio Técnico, Ensino de Jovens e Adultos (EJA), Ensino Médio Normal nos turnos da manhã, da tarde, da noite e integral. Sendo divididas em 14 regiões administrativas (Metropolitanas), estão distribuídas por todas as regiões e municípios do estado.

Em 02 de maio de 2012, a Secretaria de Estado de Educação (SEEDUC), a Secretaria de Estado de Segurança (SESEG) e a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) assinam termo de cooperação técnica para implementação do Programa Estadual de Integração na Segurança (PROEIS) nas unidades escolares estaduais do Rio de Janeiro, com o objetivo de manter, restaurar e promover a segurança no ambiente escolar por meio da presença de policiais militares nessas escolas. É crucial apontar que o PROEIS já existia desde o ano anterior à assinatura do convênio com a SEEDUC, não tendo sido esta, portanto, a primeira ação deste Programa. Instituído pelo Decreto governamental n. 42.875 de 15 de março de 2011, o PROEIS oficialmente é criado para articular medidas de ordem pública nos espaços urbanos, como meio de reduzir índices de criminalidade (SESEG, 2011).

O programa é implementado a partir de amostra inicial de 90 escolas da rede ao longo de todo o estado do Rio de Janeiro. Com a ampliação do programa a partir de 2013, das 1337 escolas de rede, em março de 2015 o programa foi executado em 357 escolas, ou seja, em cerca de uma a cada quatro escolas existia a presença ostensiva da polícia em sua unidade.

Estabelecendo política do convívio social e do comportamento ideal, tal intento prescreve uma regulação do corpo-espécie e do existir em toda sua extensão, promovendo processos de homogeneização e exclusão dos indivíduos, na medida em que atualiza o biopoder no governo da infância e em defesa da sociedade. Foucault (2005) indica a presença no exercício do biopoder de uma relação entre liberdade e segurança, uma vontade de liberdade associada a uma vivência incerta, incontrolável e assustadora do mundo. Essa experiência produzida geraria uma necessidade de ordem e de segurança que os aparelhos de proteção públicos e privados deveriam possibilitar.

Um analisador potente que nos apresenta essas racionalidades de ordem e de segurança são os discursos presentes na solicitação dos diretores de escolas estaduais à Secretaria de Estado de Educação para que sejam atendidos pelo PROEIS, dizendo da necessidade da polícia em suas unidades. Quem pede polícia, pede por quê? Como dizem, o que dizem?

A diretora de uma escola de um município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro em entrevista responde essas perguntas. "Solicitamos por necessidade mesmo, por questão da vulnerabilidade da escola em relação a ameaças externas: principalmente em relação à violência e a circulação de pessoas suspeitas aqui na nossa porta - putas, traficantes, meliantes, delinquentes". Ela continua: "mal intencionados depredam, invadem, pulam o muro e a cerca; querem entrar na quadra para jogar bola; assediam as meninas do lado de fora, todos ficavam com receio de sair porque eles ficavam ali."

O relato dessa diretora nos faz visualizar os critérios entendidos como prioridade para quem está na escola para a ação desse programa, mesmo que muitas vezes sejam impalpáveis, abstratos, etéreos. Entender que existem regras penais que afastam, isolam e muitas vezes também matam fora das leis e ditos jurídicos e visibilizar as máquinas e engrenagens sociais que nos constituem e só fazem operar violências. Os processos de criminalização cumprem a função de conservar e reproduzir o que está posto em sociedade, de maneira integrada com as instituições sociais: casa, escola, polícia, empresa, hospital.

Ao estudar o mapa produzido pela pesquisa das 357 escolas atendidas pelo programa, 62 delas no município do Rio de Janeiro, percebe-se que mesmo existindo escolas policiadas em todas as regiões do estado, a ocupação das zonas e áreas mais concentradas populacionalmente e com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), como municípios da Baixada Fluminense (Nova Iguaçu, São João de Meriti, Duque de Caxias, Belford Roxo, Nilópolis, Queimados), Zona Oeste do Rio de Janeiro, e Região Leste (Itaboraí, Niteroi, São Gonçalo) é discrepante em relação a outras áreas, como por exemplo Zona Sul e Centro do Rio de Janeiro.

Operam-se processos de individualização e culpa pelo cenário em que se vive, sendo totalmente responsável pela sua reprovação nas matérias daquele ano, pelo seu fracasso escolar crônico. Essa postura que olha para o estudante dessa forma, a partir de um olhar de incompletude transformado em problema age de maneira perversa: para fazer operar esses discursos, extraídas narrativas das próprias crianças e dos adolescentes, transformando-as em depoimentos contra elas mesmas.

Ao passo que seleciona, discrimina e marginaliza sendo o primeiro aparelho social formal da vida de um indivíduo, a escola reedita as desigualdades sociais, pois entende diferenças como defeitos pessoais; estereótipos transformados em 'injustiça institucionalizada'; desadaptando o 'mau' aluno cada vez mais, até a exclusão do sistema. O sistema escolar, primeiro segmento do aparelho de seleção, discriminação e marginalização, reproduz a estrutura social pelos critérios de avaliação do mérito individual, com efeitos discriminatórios sobre crianças e jovens de estratos sociais inferiores.

Nessa perspectiva, segundo Patto (1990), o 'fracasso escolar' tende a ser concebido como resultante de obstáculos - sejam eles orgânicos, afetivos, familiares ou culturais - que afetam o indivíduo isoladamente considerado. As relações todas que acontecem dentro da escola, por sua vez, tendem a ser vistas em abstração do entorno institucional em que ocorrem e dos condicionantes políticos e ideológicos que sobre elas incidem.

Com bom intuito e querendo o bem de todos, para legitimar posições e atitudes, são extraídos falas e argumentos que acabam os colocando como culpados e deficientes. Presente em discursos como: "esse menino não tem salvação", "já está no tráfico"; "eles são terríveis"; "tá vendo, olha o que ele disse? Não adianta, ele é assim!"; "o policial tem que ser o herói desses meninos"; nos dizem que olhar para essa população que frequenta as escolas estaduais do Rio de Janeiro é ver imagens de perigosos, marginais, delinquentes, fracassados, perdedores.

Em uma escola localizada na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, a diretora diz:

entendemos que a necessidade do PROEIS na escola devido à violência que estamos enfrentando com atos de depredação e pichações no cotidiano escolar. É muito frequente alunos destruírem banheiros, picharem paredes e agredirem-se. Apesar da vigilância e da limpeza, os alunos continuam deixando suas marcas nas carteiras, paredes, portas, etc.

Continuam deixando suas marcas. Porque os conflitos são pensados quando chegam ao extremo e chama-se a polícia, e não a rede que produz tais realidades? Além da racionalidade que prevalece na lei, percebe-se um esvaziamento dos espaços formativos e educativos da escola como espaço de discussão. Ao entender que chamar o policial para resolver um conflito é o melhor a se fazer, se esvaem as oportunidades de debater com todos os atores envolvidos, segmentarizando quem deve responder e se responsabilizar pelo tal problema. Atender essa demanda das escolas e buscar uma saída paliativa e emergencial é uma forma de individualizar os conflitos e a polícia reinar como a lei que os dirime afirmando-se como estrutura poderosa. O olhar judicializante impera.

A inflação dos riscos é sincrônica à intensidade de demanda pela segurança da população, em uma política da vida em que a disciplina e a biopolítica são interligadas nos dispositivos de segurança, como aponta Foucault (2008). A produção de um sentimento inundante de insegurança contribui amplamente para que seja aceita a visão de uma sociedade na qual a violência está em toda a parte e ameaça cotidianamente a estabilidade social. Só há paz se for com armas, pois sempre estaremos em perigo, dentro e fora dos muros da escola. É necessário nos perguntarmos: com tantas medidas ostensivas para conter os conflitos, o que sentimos é paz ou medo? Medo de que(m)?

A atenção da opinião pública é direcionada para um dos inúmeros aspectos da violência social, e centra a ação dos órgãos públicos de Estado e o ódio da população sobre a figura do criminoso comum. A figura do criminoso comum se materializa também no estudante de ensino médio da rede pública estadual de ensino do Rio de Janeiro. Homem, negro, pobre, morador de favela, a invisível carapuça criminalizante recai sobre o adolescente de uniforme cinza e calça jeans. A polícia militar é chamada para vigiar suas escolas, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. A carapuça infantiliza: você não sabe o que é melhor para você, você é menor de idade ainda para opinar sobre algo. A polícia na sua escola vai te fazer bem, vai te dar disciplina. A carapuça carrega culpa: Será? Será que eu sou mau pra merecer que a polícia fique me olhando? Deve ser mesmo, eu preciso me comportar... Vou me calar.

Frente aos desvios que acontecem no cotidiano escolar, seja o confronto, a indisciplina, discussões, brigas e desestabilizações do cotidiano escolar, chama atenção a solução encontrada em algumas delas, chamar os representantes da segurança pública estadual para resolver esses desvios. A Polícia nas escolas tanto quanto a polícia que nos habita são práticas produzidas numa sociedade em que predomina a cultura da vingança e do castigo, que produzem assujeitamento, fazendo assim se perder a potência criadora.

Colocá-las em questão torna-se um grande desafio tendo em vista a naturalidade com que são vistas, o que nos faz pensar em criar outras estratégias para lidar com aquilo que nos incomoda, não conservar práticas que recorram aos tribunais formalmente estabelecidos ou àqueles que estão em nós, fazendonos ora juízes, ora acusados, ora algozes, ora vítimas.

Frente às medidas atuais aqui estudadas, é fundamental discutir a judicialização do espaço escolar e da vida, isto é, como atualmente tem se requerido instâncias, contratos ou outros atores, como a polícia, para mediar relações, como as questões da escola são levadas para fora para que alguém as resolva, ausentando a responsabilidade dos próprios atores desse cenário sobre o que tem que fazer.

Apesar da vigilância e da limpeza, os alunos continuam deixando seus registros, suas leis, suas marcas. E fora da escola? A seguir, segurança e território comparecem enquanto constituintes de racionalidades sobre e para juventude, contudo a partir de outra política pública.

 

Adolescentes em Conflito: De Que Leis Estamos Falando, Afinal?

O Departamento Geral de Ações de Socioeducativas (DEGASE) é um órgão executivo do Estado do Rio de Janeiro, responsável pelo cumprimento das determinações judiciais diante do envolvimento de adolescentes em atos infracionais. Desde 2008, com as propostas de municipalização, assume mais especificamente as medidas que envolvem privação e restrição de liberdade.

No cotidiano das unidades do Sistema Socioeducativo, adentra-se um mundo específico, distinto, mas não dissociado. Gestos, dizeres e valores próprios. Elementos que compõem as relações dos adolescentes que se encontram em situação de privação de liberdade, relações consigo, com o outro e com o mundo dentro e fora dos muros. Adentrando, é possível conhecer um conjunto de leis que regem essas relações e que organizam sua convivência. São regras de conhecimento de todos os adolescentes que ali estão e são legitimadas pela grande maioria.

São leis não escritas em códigos penais. Diferem-se das leis jurídicas ou do sistema socioeducativo. Mas que juntas compõem uma espécie de estatuto. São doutrinamentos. "São nossas leis". Para a grande maioria dos adolescentes, são regras necessárias, para que a vida ali dentro fique "ritmada". Sem a presença das regras a convivência fica desorganizada, fica uma bagunça. São vividas de maneira bastante rigorosa, estabelecendo formas de imposição e submissão, cobranças ou punições às possíveis transgressões. E delineiam formas próprias de relações de poder, com hierarquias a serem respeitados, como é o caso do respeito a ser dado ao mais antigo do alojamento, adolescente que está na unidade há mais tempo. A rivalidade entre facções criminosas, que organiza a divisão entre os alojamentos, bem como os horários das atividades de escolas, cursos, e culturais ou até os dias e espaços das visitas familiares. Muitas vezes, a insistência em ignorar ou tentar ultrapassar essa divisão de facção, como forma de não legitimação dessa segregação resulta em ameaças, brigas, violências e até mortes. O respeito à família, principalmente nos aspectos sexuais. Em dia de visita, não se pode olhar para a família do outro, todos tem que usar duas camisas e não se pode coçar qualquer parte do corpo. A masturbação, chamada por eles de 'quebrar', só pode acontecer em dias específicos, os mais distantes dos dias agendados para as visitas. Há ainda uma hierarquia entre os atos infracionais, sendo alguns atos não toleráveis. Estupro é inaceitável, pelo argumento de que poderia ter sido alguém da própria família. O assalto a ônibus, criticado por ser entendido como assalto a um trabalhador, o que também desperta uma relação de empatia com os próprios familiares. Leis que aparecem na relação com os funcionários, mais especificamente com os agentes socioeducativos, de maneira que não se pode apertar a mão deles ou comer a comida que tenha sido tocada por eles. Em relação à equipe técnica ou às "tias da limpeza", deve-se respeito, pois são mulheres e, portanto, também podem ser mães.

São regras que ganham o status de lei pela seriedade com que circulam. Ganham inscrição em papéis que são colados nas paredes dos alojamentos. Os recém chegados são ensinados, uma a uma. Alguns passam por rituais de memorização, para que decorem e não cometam falhas. E uma vez não respeitadas, existem diversas formas de punição e cobrança. Em algumas situações se faz uso de violência, de agressões físicas ou até levando à morte. Outra forma de punição é a exclusão do jovem do círculo social dos adolescentes, transferindo-o para uma parte do alojamento chamada de 'seguro', destinado a adolescentes que, em sua maioria, correm riscos se estiverem na convivência do coletivo das outras facções.

Torna-se necessário colocar em análise a relação desses mesmos adolescentes com as leis, partindo dessas regras que delineiam seus modos de existência e convivência. Esses adolescentes são categorizados por teóricos, pelas instâncias jurídicas e pela sociedade como 'em conflito com a lei'. Estão dentro dos muros das unidades pelo cometimento de um ato infracional, que equivale a uma transgressão a uma lei do código penal e, portanto, passível de punição, sanção, castigo, na forma jurídica da medida socioeducativa. Mas, adolescentes em conflito com a lei que respeitam e cobram respeito a outras leis? De que leis estamos falando, afinal?

Pensar a proposição discursiva do 'Adolescente em conflito com a lei' aponta dois problemas: a individualização do conflito, quando a construção e responsabilização do ato infracional é colocada toda e somente sob o indivíduo, sob o adolescente, sem considerar a existência de aspectos sócio-históricos que perpassam essa construção; bem como pela perspectiva do conflito como algo inerente ao comportamento adolescente, mas mais ainda, como a inerente a um tipo específico de adolescente que é mais conflituoso (e ameaçador) do que outros.

Vale ressaltar que os 'adolescentes em conflito com a lei, seus modos de existência, e suas regras são atravessados pela lógica de transgressão a muitas normas. Encarcerados, privados de liberdade pelo cometimento de um ato infracional, que se configura como um conflito com a lei. Transgridem sim às leis jurídicas e às vezes às normas que se estabelecem no próprio sistema socioeducativo e aos funcionamentos de cada unidade. São jovens merecedores dessa punição aos olhos da lei, por inadequação aos limites sociais, por estarem em conflitos. Mas também são merecedores, aos olhos da sociedade, por inadequação a outras categorizações. As normas que transgridem ultrapassam as instâncias jurídicas. A lógica que os criminaliza perpassa a existência de outras normas subjetivas, que incidem sobre os modos de vida no cotidiano do Rio de Janeiro.

Normas que funcionam como referenciais hegemônicos, de forma que há uma tentativa incessante de enquadramento de todos os modos de vida a esses referenciais e, por conseguinte, a criminalização daquilo que escape, que desvie. Do diferente. O que se afirma é que os adolescentes que se encontram no sistema socioeducativo estão marcados como "fora da norma", privados de ir e vir e de diversos outros direitos, mesmo antes de cometerem um ato análogo a um crime.

Os 'adolescentes em conflito com a lei' tem cor, idade e território. Em pesquisas com 100 jovens em unidades de internação provisória no Rio de Janeiro, nota-se que aproximadamente 75% encontram-se na idade de 16-17 anos e residem em territórios populares; 78% estavam fora das instituições escolares no momento em que foram apreendidos e 81% declaram-se como "pretos" ou "pardos" (Câmara, 2015). Isso não significa afirmar que outros adolescentes não cometam infrações, mas que os jovens que chegam à privação de liberdade são os mesmos carimbados anteriormente com as características da periculosidade. São os mesmos que são expulsos da escola públicas (policiadas e as não policiadas), ou que ganham o título de traficante, ao invés de usuário (como será melhor apresentado logo a seguir). São as mesmas características presentes na figura do jovem perigoso (padrão suspeito). Fora dos muros das unidades de internação, ganha visibilidade a periculosidade de uma figura específica, que precisa ser encarcerada. Jovem negro, jovem pobre, jovem de favela, jovem infrator. Jovem. Ameaça. Em nome da segurança, o controle.

Vicentin (2005) nos aponta que os aparatos que atuam no controle da infância e juventude são violentos por diversos caminhos, seja pela via dos maus tratos, seja pela via da sujeição, essa última também chamada de modelagens psicossociais. A juventude, mais especificamente essa juventude dita perigosa, tem sido alvo sistemático de violações de direitos no Brasil: um exercício de dominação, num massacre contínuo da multiplicidade de modos de vida em nome da tal 'conformação à norma'.

Tal massacre pode ser observado numa análise histórica das práticas de institucionalização dos adolescentes, prática marcante na história das políticas públicas para crianças e adolescentes no Brasil. Desde o Serviço de Atendimento ao Menor (SAM), fundado em 1941 e conhecido como "Internato de Horrores", que veio a ser extinto em 1964 e substituído pela Fundação Nacional de Bem Estar do menor (FUNABEM) de administração federal. Junto à FUNABEM, criam-se as Fundações Estaduais do Bem Estar do Menor (FEBEMs), como forma de execução estadual de tais políticas. Com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) há a extinção da FUNABEM e FEBEM e, em 1993, passa-se do âmbito federal para a responsabilidade Estadual, e se funda o DEGASE (Souza, 2013).

Apesar das transformações ocorridas, a prática de repressão e punição vai percorrendo essas instituições, permeando toda essa linha do tempo institucional. O DEGASE e suas unidades de internação ainda fazem pulsar esses momentos históricos de violências institucionais ou de modelagens psicossociais. Vincentin (2005) complementa: o contato com essas instituições adestra os jovens a um cotidiano de humilhações e violências. A autora chama o corpo assim produzido de corpo institucionalizado, efeito de diversas formas de violência institucional, a qual "tem modos mais requintados de operação, para além da repressão física e das humilhações constantes" (p. 76). Diante de um cumprimento de medida de privação de liberdade e de semiliberdade, o que se priva não se limita à liberdade de ir e vir, mas refere-se aos processos de assujeitamento, aniquilamento de singularidades.

Para além dessas institucionalizações, essas violências se reverberam em outras diversas práticas sociais voltadas para esse jovem negro, pobre, de origem popular. Dessa forma, quando chegam às unidades de internação, esses adolescentes já passaram por uma infinidade de outras violências institucionais, legitimadas por essa lógica de controle e segurança. Violências que existem muito antes do ato infracional e da passagem pelos muros. E continuam para além dela.

No entanto, apesar das práticas de controle e violências que se desencadeiam, em meio ao título de 'conflito com a lei', os mesmos adolescentes que descumprem uma série de normas, criam outras, e conseguem mantê-las vivas por diversas estratégias, apesar das diversas tentativas (por vezes violentas) de 'conserto'. São criadores, executores, fiscalizadores.

Por um lado, a criação dessas leis próprias marca mais uma forma de violência às quais eles mesmos estão submetidos e se submetem. No entanto, é necessário cuidado para que, ao pensar no fato de eles seguirem suas próprias leis - inclusive nos efeitos (violentos) que elas geram -, não se crie mais um motivo que justifique a formulação discursiva "eles não têm jeito mesmo!". De encontro com isso, afirmar a existência desse conjunto de leis próprias é uma forma de dar visibilidade ao que eventualmente escapa à homogeneização dos corpos e dos modos de vida.

A juventude negra, pobre, de origem popular, seja dentro dos muros socioeducativos ou antes deles, criam sinais de não aceitação dos processos de rejeição e violência. Delineiam-se formas de resistência, estratégias de sobrevivência-subjetivação, em meio a tantas violências sofridas (Vicentin, 2005). Legitimar essa potência contrapõe-se a toda uma lógica de deslegitimação desses jovens, dos seus desejos. De um modo geral, as instituições sociais não são espaços de legitimação desses sujeitos enquanto sujeitos desejantes. A sociedade não tem dado respostas às suas inquietudes. E são sempre eles a serem retirados - da escola, do tal "convívio social", de certas ruas da cidade.

E, olhar para esses adolescentes não como em conflito com a lei, mas como criadores de outras leis, nos oferece um potente analisador das relações com as instituições sociais. Mais do que estar em conflito, produzem a questão: esse adolescente é o centro do problema, por não saber se submeter a uma lei, ou a maneira como essa lei tem chegado até esse adolescente é que precisa ser repensada? Criar e cumprir leis próprias é presentificar. Fazer do seu modo, criar sua própria narrativa. A legitimação desses sujeitos enquanto potências ao invés de ameaçadores e (em constante) conflito se sustenta enquanto uma aposta na carência e no conflito sim, mas das instituições.

 

Políticas Brasileiras Sobre Drogas e Seu Papel no Controle de Uma Juventude

O tratamento social no Brasil dispensado às questões envolvendo alguns psicoativos tem como marca principal a atribuição a essas substâncias da etiqueta de problemas-em-si. Em relação às drogas - como são denominados tais psicoativos - defende-se uma necessária manutenção de distanciamento total e irrestrito de contato, sob pena de se tornar automaticamente sua próxima vítima.

Hegemonicamente, por conseguinte, emergem os pilares das políticas públicas brasileiras nesse campo: o proibicionismo e a guerra às drogas. É também porque se acredita que alguns psicoativos são capazes de gerar problemas-em-si que são construídos mecanismos legais de proibição e práticas bélicas para alcance de tal fim. Da mesma forma, tais medidas prestam-se a manter essa lógica, uma vez que ratificam a associação drogas-morte/miséria/violência ao promoverem, por sua conta, aquilo que visam combater.

Contudo, é preciso estranhar essa verdade que está pautada na proibição e no combate às drogas: esse não precisa ser o único ponto a orientar as intervenções nesse campo, principalmente quando se intenta estar sob a regência do respeito aos direitos humanos. Uma análise acerca dos efeitos que tais políticas - sustentadas exclusivamente por uma perspectiva penal - vêm provocando permite afirmações sobre seu uso para controle de uma certa juventude, própria de certos territórios. As realidades do sistema socioeducativo fluminense, assim como do programa que colocou policiamento nas escolas públicas do estado do Rio de Janeiro bem demonstram isso. E a maneira aqui eleita para estranhar a hegemonia da guerra e da proibição às drogas se dá a partir de uma problematização acerca da construção e dos impactos gerados pela diferenciação usuário-traficante.

A lei que atualmente determina o tratamento para assuntos referentes ao campo das drogas foi promulgada em 2006 e em certos aspectos é considerada progressista em relação àquela que substitui. Especificamente no que tange a penalização de usuários de drogas, a lei n. 6.368 de 1976 previa, em seu artigo 16, pena de detenção de seis meses a dois anos àqueles que para uso próprio adquirissem, guardassem ou trouxessem consigo substância entorpecente ou que determinasse dependência física ou psíquica. Na normativa vigente esse aspecto é bastante diferente. Autores como Boiteux e Pádua (2014) apontam que a atual lei reconhece direitos do consumidor de drogas e sustenta uma abordagem multidisciplinar para o tema. No entanto reconhece como consumidor apenas alguns de seus usuários para quem aplica tratamento bastante diferenciado daqueles identificados como traficantes.

Se no Título III (espaço em que é mencionada atenção à redução dos fatores de vulnerabilidade e risco e à promoção e fortalecimento dos fatores de proteção) as determinações legais estão orientadas a partir da lógica da prevenção, no Título IV, quando o assunto é produção e tráfico de drogas, a lógica da repressão impera por meio da força. Estarão passíveis a sanções penais aqueles que prepararem, produzirem, adquirirem, venderem, oferecerem, terem em depósito, e transportarem, ainda que gratuitamente. A associação de pessoas, o financiamento e a colaboração como informante para prática dos atos descritos também configuram crime. As penas previstas variam em cada caso, podendo alcançar vinte anos de detenção. No entanto, a lei prevê ainda a possibilidade de as mesmas serem aumentadas de um sexto a dois terços se houver, por exemplo, uso de violência, arma de fogo ou grave ameaça.

No ano de 2010, o médico Osmar Terra, então deputado federal (PMDB-RS) alçado ao cargo de ministro do (des) governo Michel Temer no ano de 2016, propôs um projeto - PL n. 7663 - para modificá-la. O projeto apresentado incluía entre seus intentos dispor sobre a obrigatoriedade da classificação das drogas (baixo, médio ou alto potencial de causar dependência), introduzir circunstâncias qualificadoras aos crimes previstos na lei e definir as condições de atenção aos usuários ou dependentes de drogas. Figuravam no texto a valorização de parcerias com instituições religiosas na abordagem das questões nessa esfera; a criação de um sistema nacional de informações sobre drogas que deveria ser alimentado pelas instituições com atuação nas áreas de atenção à saúde e da assistência social que atendessem usuários e dependentes de drogas; e um novo artigo abordando as modalidades de internação previstas como tratamento para usuários de drogas, internações estas para as quais seriam destinadas verbas públicas a instituições privadas. Estavam ainda contemplados novos aspectos determinantes de aumento na dosimetria da pena1 para produtores e distribuidores, quais sejam, envolvimento em crimes com drogas de alto poder de causar dependência e mistura de drogas para aumentar a capacidade de causar dependência.

Antes de ser aprovado na Câmara, o PL n. 7663 sofreu alterações em seu conteúdo. A proposta de instituição de um cadastro nacional de usuários de drogas foi abandonada, assim como limitado o financiamento público às comunidades terapêuticas2, resultado de forte pressão dos movimentos sociais da saúde e de direitos humanos, destacando-se a atuação da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia baseada na realização de inspeção nacional a 68 comunidades terapêuticas de todo país, evidenciando uma série de possíveis violações de direitos que ali ocorriam (Conselho Federal de Psicologia, 2011). A força da bancada religiosa na Câmara foi indispensável no processo que resultou na aprovação do projeto.

Uma vez aprovado na Câmara, o projeto de lei foi para apreciação do Senado e pela Comissão de Constituição, Cidadania e Justiça novas observações foram feitas. O relator do PLC 37/2013 nessa comissão, senador Antonio Carlos Valadares (PSB-SE), ao apresentar parecer aprovando o projeto, destacou: o tratamento ambulatorial como prioritário, mas permaneceu prevendo internação, inclusive involuntária, como forma de tratamento; e demarcou como quantidade que caracteriza o consumo de drogas aquela suficiente para cinco dias de uso médio para uma pessoa, a ser definida pelo Poder Executivo da União3.

A lei n. 11.343 afirma e o PLC n. 37 reafirma uma grande distinção em relação ao tratamento previsto para usuários e dependentes de drogas e aqueles outros identificados como envolvidos na produção e tráfico dessas mesmas substâncias, figurando entre os dois primeiros o paradigma médico e entre os demais, o penal - tal qual aponta D'Elia Zaccone (2007). E certamente ela contribui assim para a própria criação dessa diferenciação e consequentemente para a funcionalidade que a diferenciação adquiri.

Diante da importância que assume essa marcação de diferença, uma pergunta se torna central ao debate: como operar essa distinção? A não estipulação em lei da quantidade que caracteriza crime de tráfico permite que outros fatores sejam preponderantes a caracterização da ação do sujeito que traz consigo ou cultiva drogas. Outros fatores que estão previstos na própria lei. O local e as condições em que se desenvolveu a ação, assim como as circunstâncias sociais e pessoais são aspectos que não só juízes como também policiais levam em consideração no momento dessa identificação.

Ainda que após passagem pela Comissão de Constituição Cidadania e Justiça o PLC n. 37 tenha sido contemplada alguma observação no sentido de quantificar essa diferenciação, foram feitas críticas em relação a esse aspecto considerando que se trata de uma falsa beneficência que pode legitimar a prisão de mais pessoas, na medida em que pode aquecer o comércio varejista (já que só se pode comprar pouco, mais vezes se comprará, aumentando o número de pontos de vendas e vendedores). Também se afirma que, por não despenalizar o consumo e nem o pequeno tráfico (apenas tentar criar padrões mais objetivos de distinção entre usuário e traficante), não liberará a polícia de coibição do uso, podendo impactar negativamente na abordagem policial, que terá respaldo em lei para tratamento arbitrário e taxativo daquele que for pego com quantidade maior do que a determinada (quantidade essa que pode ser considerada uma intervenção estatal abusiva, tendo em vista que cada droga, não só cada pessoa, tem seu padrão de uso)4.

A Plataforma Brasileira de Políticas sobre Drogas, solicitada pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) a emitir um parecer técnico acerca da questão5, apresentou um posicionamento sobre a adoção de critérios objetivos para diferenciar uso e tráfico de drogas. Afirmam que o principal motivador na produção do parecer foi contribuir para o estancamento do encarceramento por crime de tráfico (por meio do afastamento definitivo da esfera penal da posse de drogas para uso pessoal e da declaração de inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei n. 11.343), mesmo acreditando que a discussão sobre critérios de distinção não possa estar alijada do debate, amplo e democrático, sobre a política de drogas brasileira no geral. Acreditam que o estabelecimento de critérios de distinção precisa considerar que limites distantes do padrão realista de consumo e da movimentação do comércio varejista de drogas podem ter efeitos de superencarceramento; que a simples adoção desses critérios não atuará na problemática prisional, a menos que se considere a presunção absoluta de uso pessoal para a posse de drogas dentro do limite a ser fixado; e que balizamentos técnicos para além das quantidades precisam ser adotados.

É importante considerar que a distinção entre usuário e traficante é extremamente frágil, gerando ampla margem de discricionariedade à autoridade policial responsável pela abordagem, fato que resulta na constatação de que a grande maioria dos casos que envolvem porte de psicoativos ilícitos deriva de prisão em flagrante, sem a devida tramitação de processo legal, fato que eleva (a já elevada) estatística que aponta que cerca de 30% das pessoas presas no Brasil são consideradas presos provisórios. Tais dados incriminatórios são atravessados por processos de criminalização que apontam a existência de um perfil nítido de pessoas selecionadas nesses casos: jovens, pobres, negros e pardos, moradores de periferias e favelas da cidade e, em regra, primários. A maior parte das pessoas detidas por envolvimento com psicoativos encontrava-se só na hora do flagrante; são ínfimos os casos em que a pessoa portava arma; na grande maioria deles portava pequena quantidade de substância proibida; em regra, a única testemunha do caso é o policial (ou policiais) que efetivou a prisão, cuja palavra é supervalorizada pelo Judiciário por possuir fé pública. Desde a promulgação da Lei n. 11.343/2006, o comércio e o consumo de psicoativos e o número de pessoas presas por tráfico seguem cada vez mais ascendentes (Lemgruber & Fernandes, 2011).

E, pela maneira como o projeto de lei n. 37/2013 tramitou no Senado, esse quadro de superencarceramento de certa parcela da população brasileira associado a um descuido com a saúde dos consumidores mais vulneráveis tende a aumentar. Afinal, a construção de uma identidade traficante (que não é própria a todos os comerciantes de drogas e que em alguns casos nem comerciante de drogas de fato o é) como inimigo público tem se dado aí a todo o vapor e podem ser observadas a partir das propostas legislativas de aumento da dosimetria da pena, bem como na introdução de circunstâncias qualificadoras para comercialização de drogas específicas6 e até mesmo para presença de elementos tipicamente utilizados em espaços específicos de comercialização de drogas7.

De igual maneira vem ocorrendo o incentivo a espaços como as comunidades terapêuticas, cujo trabalho é totalmente questionado em termos de tratamento em saúde por diferentes conselhos profissionais. E é por essas razões, que a criação e os efeitos da distinção usuário-traficante são utilizados aqui como instrumentos de questionamento do Proibicionismo e da Guerra às Drogas, em especial no que se refere às políticas de controle de uma juventude brasileira.

 

Últimas Considerações

Sustenta-se a afirmação política da multiplicidade como marca do público jovem. Concorda-se com Coimbra, Bocco e Nascimento (2005), que, em contraponto a noção de adolescência, propõem a utilização de juventude, como forma de romper com a ideia de faixa etária e de características fixas e universais. Juventude não como identidade adolescente, mas como intensidade juvenil. Isso porque a lógica homogeneizante de uma identidade contribui para análises generalizantes e desencadeia na eliminação das particularidades. A homogeneidade esconde a multiplicidade e a diferença.

Trabalhar com a(s) juventude(s) pela via da diversidade, multiplicidade e heterogeneidade permite o cuidado de analisar as formas de controle que vão sendo traçadas dentre os modos de ser jovem no Brasil. E assim afirmar a existência de linhas de segregação e hierarquização que perpassam diversas políticas para juventude e por meio das quais é acoplado a uma parte dos jovens a noção de periculosidade, especialmente na forma de ameaça à ordem social estabelecida.

Coimbra e Nascimento (2003) ressaltam que as políticas de juventude têm sido destinadas apenas a um grupo de jovens, os quais têm sido alvo de maior controle, nas escolas, no sistema socioeducativo, nas ruas das cidades. Um grupo considerado mais ameaçador de desviar-se dessa "perfeita" condução da vida. Essa parcela da juventude, juventude-ameaça social, tem características específicas, pertence a uma faixa etária, tem uma raça e cor específica e é pobre, moradora de determinados territórios. Jovens. Jovens negros. Jovens de territórios pobres, favelas, periferias. Configura-se assim um rosto para a juventude pobre, negra, de favela:

toda uma máquina abstrata funcionando na construção de rostos, num processo de rostificação da juventude pobre brasileira, com uma política pautada pelo medo do imprevisível no jovem, pelo medo do imprevisível da vida, toda uma vida pautada na demanda por segurança. (Rodrigues, 2014, p. 58)

Em nome da ordem e da segurança, controla-se aquilo que se aponta como risco social por meio de políticas públicas ditas de atenção e cuidado. Seja no encarceramento, quando a grande maioria dos jovens que se encontram em cumprimento de medida socioeducativa são negros e oriundos de territórios populares; ou quando as intervenções nas escolas onde essa juventude se encontra muitas vezes vem acompanhada da presença armada de policiais. E sempre se utilizando das políticas sobre drogas como fortes legitimadores. Políticas que criminalizam, e assim se afastam da proposta de se relacionar com juventude que se quer defender aqui. Proposta que paute intervenções que não olhem para esses jovens como ameaça, mas sim como potência, que afirmem a diversidade e a multiplicidade das formas de ser jovem, sem traçarem linhas de segregação que delimitam algumas juventudes como mais perigosas, as quais tornam-se alvo principal de controle social. Intervenções em que segurança e território não compareçam enquanto racionalidades que legitimam e reforçam exclusões de certas juventudes brasileiras.

 

Referências

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Recebido em: 24/09/2018
Aprovado em: 19/09/2019

 

 

1 Cálculo que pondera fatores agravantes e atenuantes e determina o tempo em que um apenado permanecerá cumprindo a pena por ele recebida.
2 As comunidades terapêuticas - CTs - são espaços, normalmente vinculados a alguma religião, que oferecem tratamento a dependentes químicos baseado na internação dos mesmos e na manutenção da abstinência às drogas.
3 O PLC n. 37 foi aprovado pelo Senado em 15 de maio de 2019 e logo após sancionado pelo presidente da república Jair Bolsonaro. Trata-se da lei n. 13.840/19.
4 Recuperado de http://smkbd.com/descompasso-da-leide-drogas-brasil-com-realidade-consumo/
5 Recuperado de https://drive.google.com/file/d/0B8wnwVLa_o9oZzE2SmtfZk5PVmc/view
6 Estava previsto no projeto que visava alterar a lei de drogas brasileira a instituição de uma classificação entre as drogas, dividindo-as entre alto, médio e baixo poder de causar dependência e a introdução de circunstâncias qualificadoras capazes de aumentar a dosimetria da pena daqueles com envolvimento em crimes com drogas de alto poder de causar dependência e mistura de drogas para aumentar a capacidade de causar dependência. Para além do fato de a classe médica apontar que a dependência química é um conceito controverso, cuja determinação não pode estar restrita a substância em si (e sim a tríade sujeito-ambientepsicoativo), a droga qualificada como responsável pelo alto poder de causar dependência e que essa lei pretende alcançar é o crack, um derivado da cocaína de baixo custo que tem circulado entre grupos altamente vulneráveis nas ruas das cidades brasileiras, os mesmos que são frequentemente apreendidos como traficantes.
7 O uso de violência, arma de fogo ou grave ameaça somente se faz necessário em ambientes de comercialização como as favelas e periferias, nas quais o aparato policia tem fácil acesso e escolhe coibir a prática do comércio de psicoativos ilícitos, ao contrário do que ocorre nos condomínios fechados tipicamente presentes nos bairros mais nobres das cidades brasileiras.

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