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Revista Psicologia Política
versão On-line ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.21 no.51 São Paulo maio/ago. 2021
ARTIGO
"Quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda toma... Vacina"
"Who is on the rightist takes chloroquine, who is on the leftist takes... a vaccine"
"Quien está a la derecha toma cloroquina, quien está a la izquierda toma... Una vacuna"
Gilmara Joanol ArndtI; Milena Tarcisa TrindadeII; Juliana de Oliveira AlvesIII; Raquel de Barros Pinto MiguelIV
IMestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGP/UFSC) / gilmaraarndt@gmail.com
IIGraduanda do curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina -UFSC. Bolsista PIBIC / milena_trindade@outlook.com
IIIGraduanda do curso de Psicologia da UFSC. Bolsista PIBIC / julianadeoalves@gmail.com
IVDoutora em Ciências Humanas - UFSC. Pós-doutora pela Université Paris Diderot - Paris 7 e pela Université Paris 13 - Sorbonne Paris Cité. Docente do Departamento de Psicologia da UFSC / raquelbarros@hotmail.com
RESUMO
A presente pesquisa teve por objetivo investigar o fenômeno da desinformação na pandemia de Covid-19. Para tanto, elegemos como objeto de estudo conteúdos falsos relacionados ao tema, que circularam no Brasil entre os meses de janeiro e novembro de 2020. Buscamos analisar os discursos presentes em tais informações inverídicas, visando discuti-las a partir do contexto político e social de nosso país. A partir disso, foi possível identificar que os conteúdos de desinformação estavam voltados para produzir descrédito quanto: aos dados produzidos pelas instituições científicas e de saúde; às medidas sanitárias implantadas no combate à Covid-19 e, por fim, à vacina. Em contrapartida, o medicamento hidroxicloroquina é mencionado como a solução rápida e barata para a atual crise sanitária. Ao longo da análise, foi possível perceber, ainda, a contínua convergência entre os discursos do presidente Jair Bolsonaro e os discursos que compuseram os conteúdos falsos analisados.
Palavras-chave: Fake news; Desinformação; Covid-19; Pandemia.
ABSTRACT
This research aimed to investigate the phenomenon of disinformation in the Covid-19 pandemic. To this end, we elected as the objective of study false content related in Brazil between the months of January and November of 2020. We seek to analyze the discourses present in such untrue information, we seek to discuss them from the political and social context of our country. From that, it was possible to identify that the disinformation contents were aimed at producing discredit regarding: the data produced by the scientific and health institutions; the sanitary measures implemented in the fight against Covid-19 and, finally, the vaccine. In contrast, hydroxychloroquine is mentioned as a quick and inexpensive solution to the current health crisis. Throughout the analysis, it was possible to perceive, still, the continuous convergence between the president Jair Messias Bolsonaro and the speeches that composed the false contents analyzed.
Keywords: Fake news; Disinformation; Covid-19; Pandemic.
RESUMEN
El objetivo de esta investigación fue entender el fenómeno de la desinformación en la pandemia Covid-19. Para tanto, elegimos como objeto de estudio contenidos falsos relacionados con el tema, que circularon en Brasil entre enero y noviembre de 2020. Buscamos analizar los discursos presentes en tales falsas informaciónes, buscando discutirlos desde el contexto político y social de nuestro país. A partir de esto, se pudo identificar que los contenidos de desinformación tenían como objetivo producir un descrédito sobre: los datos producidos por instituciones científicas y de salud; medidas sanitarias implementadas para combatir el Covid-19 y, finalmente, la vacuna. Por el contrario, el fármaco hidroxicloroquina se menciona como la solución rápida y económica a la actual crisis sanitaria. A lo largo del análisis, también se pudo percibir la continua convergencia entre los discursos del presidente Jair Messias Bolsonaro y los discursos que componían el contenido falso analizado.
Palabras-clave: Fake news; Desinformación; Covid-19; Pandemia.
Introdução
A pandemia de Covid-19 desencadeada pelo novo coronavírus e o isolamento social imposto para frear sua disseminação trouxeram novas realidades, bem como potencializaram determinados hábitos e comportamentos. O meio digital tem sido protagonista, mais do que nunca, nesse momento. Além de fonte de informação, as novas tecnologias têm proporcionado encontros que estão proibidos no "mundo real".
Cabe, inicialmente, apresentar as concepções de mídia e de meio digital das quais partiremos neste texto. Com relação à mídia, ela é tida como um instrumento de mediação que, ao mesmo tempo em que participa do processo de constituição dos sujeitos, retrata um contexto cultural e social construído e transformado por estes mesmos sujeitos (Miguel, 2012).
No que tange ao meio digital, entendemos que este constitui uma nova esfera pública (Levy, 2017) e um importante espaço de produção de sentidos, uma vez que tem possibilitado novas formas de significação da realidade política, econômica e afetiva. Neste sentido, pode-se pensar que o digital é condição de produção dos processos de subjetivação hoje, produzindo uma materialidade discursiva (Dias, 2018).
As mídias informais, como blogs, Twitter, páginas no Facebook e grupos no WhatsApp tornaram-se uma grande esfera de informação e propagação de notícias. Consequentemente, vemos que "A massificação do acesso à internet e a polarização do debate público criaram um ambiente propício para a difusão de conteúdos informacionais que corroboram crenças previamente aceitas por usuários que se identificam com algum dos polos do debate." (Ortellado & Ribeiro, 2018, p. 5). É em um cenário de intensa circulação de informações que tem sido possível acompanhar a propagação de notícias falsas, popularmente conhecidas como fake news.
A produção de notícias falsas e demais conteúdos de desinformação, por sua vez, não constituem algo necessariamente novo. Contudo, no contexto atual, centrado na comunicação digital, há uma articulação dos canais midiáticos que modificam a dinâmica característica da comunicação de massa, contribuindo para a disseminação de conteúdos inverídicos (Ortellado & Ribeiro, 2018). A utilização de mensagens rápidas é um ponto chave para sua propagação, reforçando as "bolhas" que reafirmam suas próprias convicções individuais.
É importante destacar que há uma falta de consenso quanto ao uso da expressão fake news e quais conteúdos seriam abarcados por essa definição. Para alguns autores, a polissemia do termo se apresenta como uma dificuldade para a compreensão e enfrentamento da problemática que este busca nomear. Isso porque, ao fazermos uso dessa definição, contemplamos apenas uma parcela do fenômeno, desconsiderando outros fatores que o compõem (Ribeiro & Ortellado, 2018; Unesco, 2019; Wardle, 2017).
Além disso, o termo vem sendo frequentemente utilizado por políticos de todo o mundo para desmerecer e enfraquecer instituições e organizações de notícias, que fazem coberturas que são, por eles, consideradas desagradáveis (Derakhshan & Wardle, 2020). Não é raro encontrarmos falas de personagens da cena política que atribuem o título de fake news às notícias que possam desfavorecê-los. Nesse contexto, o termo passa a ser um mecanismo de repressão, uma forma, dentre outras, de coibir a liberdade de imprensa.
O que a literatura nos mostra acerca da expressão fake news, portanto, é que sua utilização tem se dado para descrever diferentes conteúdos, que não se limitam à emulação de notícias, antes, estão relacionados a todo o "ecossistema de informação" (Wardle, 2017, s/p). Nesse sentido, propõe-se que o fenômeno da "desordem da informação" produzido nesse ecossistema (Unesco, 2019) possa ser melhor delineado a partir de três categorias, que escapam da expressão mais conhecida - fake news. São elas: "informação incorreta/falsa" (misinformation); "má-informação/ informação maliciosa" (mal-information); e, ainda, "desinformação" (disinformation).
Tal diferenciação leva em conta dois elementos, que são característicos dos processos de produção e disseminação desses conteúdos: a falsidade da informação transmitida e a intenção de causar dano (Unesco, 2019). A partir das contribuições de Márcio Moretto Ribeiro e Pablo Ortellado (2018), acrescentamos ainda que a inautenticidade pode se dar em diferentes níveis. Assim, um conteúdo pode ser produzido a partir de diferentes gradações de distorção.
Sob a classificação proposta nos termos da "desordem da informação", as "informações falsas" seriam aqueles conteúdos divulgados por pessoas que acreditam na veracidade da informação. Ou seja, não há intenção de enganar ou prejudicar terceiros. A "má informação" por sua vez, faz uso de uma informação verídica, com o evidente propósito de prejudicar uma pessoa, instituição ou organização. Estariam relacionados a vazamentos de informações sigilosas, discursos de ódio e, ainda, situações de assédio. Já o termo "desinformação" é utilizado para classificar aquelas informações deliberadamente falsas, que são divulgadas por pessoas que possuem a intenção de enganar. (Unesco, 2019; Wardle, 2017).
Os autores ainda sugerem que a atual crise da desinformação pode ser melhor compreendida se soubermos distinguir o formato narrativo utilizado na produção de desinformações, informações incorretas e/ou informações maliciosas. Assim, são propostas sete tipologias para classificar esses conteúdos: sátira e/ou paródia; conexão falsa; conteúdo enganoso; contexto falso; conteúdo impostor; conteúdo manipulado e conteúdo fabricado. (Unesco, 2019; Wardle, 2017).
Diante de tais reflexões, fica evidente que o termo fake news - especialmente quando pensado a partir de sua tradução "notícia falsa" - não deve ser adotado para designar os diversos fenômenos que compõem o sistema de desinformação. Contudo, não desconsideramos a importância conceitual que o termo fake news carrega, uma vez que, devido à sua popularização, tornou-se sinônimo de qualquer informação falsa, conferindo, ao termo, um peso político, especialmente no que tange ao combate a este tipo de informação - ou desinformação, especialmente no meio digital.
A massificação do acesso à internet além de criar um ambiente profícuo para a disseminação de notícias falsas, colabora para a solidificação da chamada "infodemia". Essa, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), seria "um excesso de informações, algumas precisas e outras não, que tornam difícil encontrar fontes idôneas e orientações confiáveis quando se precisa" (OMS, 2020, p. 1). Segundo Patrícia Campos Mello (2020), quando todos estão falando sobre determinado assunto, ofuscam-se outros temas e informações. Assim, a instantaneidade das novas mídias é um elemento chave para a difusão de informações inverídicas, que são produzidas e disseminadas sob os mais diferentes formatos.
A crescente onda de informações sobre a pandemia, que muitas vezes são conflitantes, torna difícil o processo de encontrar aquelas que de fato são úteis, o que dificulta o enfrentamento da pandemia. O discurso de risco e o apelo emocional - características intrínsecas das notícias falsas e boatos relacionados à saúde (Garcia, Cardoso, & Rabello, 2019) - contribuem para uma rápida difusão e apropriação das narrativas veiculadas, gerando uma infodemia no meio de uma pandemia, ou seja, uma guerra de narrativas.
Além disso, o constante bombardeio de informações através das diferentes mídias acarreta uma sobrecarga, que pode ser um estopim para desencadear ansiedade, exaustão e incapacidade de responder e de reagir às demandas que emergem (Garcia & Duarte, 2020). Somam-se ao já exposto, o crescente movimento de descrédito frente às mídias tradicionais, bem como o negacionismo científico.
Como resultado, testemunhamos no contexto atual, a recorrência de intervenções sem validação científica, desacato às orientações da OMS e, até mesmo, descrença em relação à existência do vírus (Caponi, 2020). Esse movimento é acentuado e reafirmado pelos discursos de representantes políticos que convergem com as informações enganosas disseminadas durante a pandemia - contexto político em que a desinformação encontra-se elevada "à condição de política pública oficial" (Silveira, 2020, p. 3).
Diante disso, e a fim de investigar o fenômeno da desinformação na contemporaneidade, a presente pesquisa elegeu como objeto de estudo conteúdos falsos1 referentes à pandemia da Covid-19, que circularam no Brasil entre os meses de janeiro e novembro de 2020. Sendo assim, o principal objetivo é analisar os discursos presentes em tais informações inverídicas, buscando discuti-las a partir do contexto político e social de nosso país. Dessa forma, espera-se evidenciar uma rede de significados que se articulam, se organizam e reorganizam, conforme o acontecimento de eventos na cena política brasileira.
Caminhos metodológicos
Para a construção do corpus de análise, foram realizadas consultas em diferentes sites de "checagem de fatos"2 , a fim de localizar conteúdos falsos que circularam durante o ano de 2020 no Brasil. Esse levantamento foi realizado a partir das seguintes agências: Lupa, Aos Fatos, Fato ou Fake e Boatos.org. Finalizada a consulta, foram listados os conteúdos mais recorrentes, noticiados pelas agências, mês a mês, de janeiro a novembro. Assim, chegou-se a um total de 47 conteúdos falsos.
Uma primeira análise dessa coleta permitiu identificar a presença de temas que predominaram a cada mês. Diante disso, foram selecionados aqueles conteúdos que apareceram com mais frequência no decorrer do levantamento. Dessa forma, o corpus de análise é composto por 21 conteúdos falsos, que circularam por diferentes plataformas e redes sociais, sob variados formatos, desde notícias tiradas de contexto até informações totalmente fabricadas.
Esses serão apresentados e descritos no decorrer do texto, na medida em que forem sendo mencionados em nossa análise. Para isso, cada conteúdo falso recebeu um apelido, indicado a partir de um número (CF1, CF2, ... CF21), que será utilizado ao longo do texto sempre que nos referirmos a um dos conteúdos inautênticos mencionados. Essa organização numérica se deu a partir do mês de circulação, por ordem das mais antigas para as mais recentes.
A análise de cada um dos 21 conteúdos falsos amparou-se nos preceitos da Análise de Discurso (Orlandi, 2015; Pêcheux, 1997) Para esta abordagem, o discurso é tido como uma prática social, sendo construído no movimento em que se interligam o intradiscurso e o interdiscurso. Sendo assim, seu objeto é a materialidade dos discursos produzidos, situados em seus contextos social, histórico e cultural.
Entendemos, então, que são os acontecimentos de ordem política, social e econômica que compõem as condições de produção dos discursos presentes nas informações inautênticas analisadas. Esses conteúdos, por sua vez, retratam os contextos sociais e políticos que se desdobraram durante a pandemia de Covid-19 no Brasil.
A partir de nossa análise, destacaram-se quatro grandes temas, que circundam os conteúdos falsos de nossa coleta. Tais temas nos permitiram organizar a análise a partir de quatro categorias, que serão apresentadas nas seções a seguir.
"Sem motivos para pânico"3
Ao longo da análise foi possível perceber a contínua convergência entre os discursos do presidente Jair Messias Bolsonaro e os discursos que compuseram os conteúdos falsos analisados. Essa convergência sugere mais do que um "alinhamento" ocasional entre os discursos presidenciais e os discursos de desinformação. Antes, ela aponta para o caráter estratégico da produção e circulação de "fake news". Tal compreensão tem permeado nossa pesquisa desde a escolha do tema e se confirmou durante a análise dos conteúdos.
Dessa forma, entendemos que o fenômeno de produção e circulação das fake news - que marca a crise da informação - não é um erro ou uma falha de percurso e sim um projeto articulado, que constitui uma estratégia política:
Assim, equivocar-se, mentir uma vez ou outra, exagerar, são elementos notórios da trajetória de quase todos os políticos que disputam eleições. Mas o fenômeno da desinformação que vivenciamos não é esse. Minha prima ou meu tio no WhatsApp podem reproduzir mensagens, mas não são eles que organizam as estratégias de desinformação. As ondas de desinformação são construídas intencionalmente pela extrema-direita. São fabricadas e sustentadas mesmo quando fatos apresentados demonstram a sua completa improcedência. (Silveira, 2020, p.7)
Trata-se, portanto, de uma articulação deliberada e intencional, cujo principal efeito é produzir confusão, desconfiança. Fenômeno que é alimentado pela junção entre uma crise de confiança nas instituições, um capitalismo neoliberal pautado na extração de dados e a mediação digital da vida (D'ancona, 2018; Morozov, 2018). Tal junção reconfigura o ecossistema de informação e nossa forma de nos relacionarmos com os conteúdos informacionais (Wardle, 2017).
Tudo isso se atualiza no contexto da produção de conteúdo falso sobre a pandemia. Nos discursos presentes no material coletado, é possível identificar certa "vontade" de atenuar o alcance e os efeitos do vírus. Sob esse entendimento, podemos dizer que, do CF1 ao CF21, conseguimos extrair uma mensagem semelhante: "desconfie da pandemia". Dentro da cadeia de significados que tece a trama dos 21 conteúdos falsos, essa mensagem desdobra-se em mais três: "desconfie dos dados"; "desconfie das medidas sanitárias" e "desconfie da vacina". Em nossa análise, tomamos essas quatro mensagens como imperativos que norteiam esse ecossistema. Dessa forma, é possível conjecturar que tais conteúdos falsos também contribuíram para preparar o terreno da aceitação popular às respostas do governo brasileiro à crise sanitária que se aproximava.
No Brasil, as fake news chegaram antes da confirmação do primeiro caso de Covid-19 no país4. Entre os primeiros boatos que passaram a circular, havia o de que pessoas estavam sendo forçadas à internação e afastadas de seus familiares, impedidas de receber visita. Outros conteúdos de desinformação, em circulação pelo Whatsapp, indicavam, ainda, que a China estaria matando os contaminados. Também passou a ser disseminada a teoria de que o vírus seria uma forma de controle ou arma biológica, como informa a reportagem publicada pela BBC News Brasil (2020).
Já nesse período, foi possível perceber que tais conteúdos produziram desinformação a partir de diferentes efeitos. Ou seja, por um lado, fez soar um primeiro alarme entre aqueles que confiaram nos boatos. Por outro, produziu descrença entre os céticos, que passaram a duvidar da existência do próprio vírus, uma vez que o primeiro contato com o tema foi mediado por notícias reconhecidamente falsas e demais conteúdos de desinformação.
Essa já é uma pista para pensarmos que a recepção da população brasileira às informações referentes ao coronavírus e à pandemia foi permeada pela "importação" de informações distorcidas, manipuladas ou, ainda, totalmente fabricadas, advindas de países que já estavam a lidar com o primeiro pico da doença: notícias falsas, portanto, que dialogavam com o medo frente ao desconhecido.
Algumas, porém, já traziam um vislumbre do que seria repetido das mais diversas formas nos conteúdos falsos de 2020: "não é tão grave". Nos meses de janeiro e fevereiro, encontramos predominantemente conteúdos enganosos relacionados à prevenção do vírus. Nesse período, ainda não se vivia a situação de pandemia, que só foi declarada pela OMS no dia 11 de março de 2020. Nesses dois meses, os conteúdos estavam voltados, principalmente, para fornecer "dicas" de prevenção ao contágio do vírus. Tais dicas envolviam receitas de chás, alimentos alcalinos e vitaminas, que ajudariam o organismo a se proteger. Servem de exemplo os conteúdos nomeados CF15 e CF26 , identificados pelas agências de checagem ainda no final do mês de janeiro
Enquanto o CF1 foi formulado em formato de mensagem de texto e compartilhado no Whatsapp, o CF2 foi lançado como uma postagem no Facebook, composta por texto breve e imagem. Juntas, as mensagens sugerem: uso de álcool gel, vitamina C, chá de erva-doce - por supostamente conter uma "substância semelhante ao medicamento Tamiflu7" -, bem como a ingestão de fígado de boi e de sucos de laranja e acerola. Complementando as indicações, há recomendações para que as mãos sejam lavadas com frequência e que sejam evitadas aglomerações. Os conteúdos veiculados pelas CF1 e 2 mobilizaram, no mínimo, 5.900 compartilhamentos até o final de janeiro8.
Como dito anteriormente, esse tipo de notícia não é uma novidade da atual pandemia. Há registros de versões dessa desinformação que circulam, pelo menos, desde 2018, associadas ao vírus H1N1. É a realidade concreta, portanto, que confere o contexto para a criação do conteúdo falso, que se reinventa conforme novas demandas vão surgindo, para atender às apreensões de seu tempo. CF1 e CF2 retratam um período no Brasil em que a negação efetiva do vírus ainda não se fazia presente no discurso. Não obstante, os impactos e alcance já são minimizados nessa primeira fase de desinformação, uma vez que ambas mensagens pressupõem uma prevenção a partir de dicas básicas, que supostamente ajudariam na prevenção de uma gripe comum.
Atrelar a Covid-19 a uma gripe comum é também uma estratégia do presidente da República, repetida inúmeras vezes. Em seu terceiro pronunciamento oficial (24 de março), por exemplo, Bolsonaro declarou: "90% de nós não teremos qualquer manifestação caso se contamine ... no meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha (...)" (Bolsonaro, pronunciamento, 24 de março de 2020).
Ainda no que diz respeito às mensagens veiculadas em CF1 e CF2, pode-se perceber que, às informações inautênticas acrescentam-se medidas de prevenção indicadas pela própria OMS. A partir do CF1 e CF2, juntamente com os demais conteúdos falsos abarcados em nosso levantamento, podemos considerar que as desinformações são formuladas a partir de diferentes gradações de distorção.
Nossa análise evidenciou a importância central de plataformas como Whatsapp e Facebook na distribuição de desinformações. Nessas plataformas, o alcance desses conteúdos depende principalmente dos usuários que decidem o que compartilhar com seus "amigos" e "seguidores". Esse movimento, segundo Mello (2020), pode ser classificado como circulação orgânica, onde basta que um acredite em quem compartilhou para seguir compartilhando, assim vai se estabelecendo uma rede em torno do conteúdo enganoso. Essa rede criada serve como um ponto de articulação com outros conteúdos, que vão produzindo uma trama de desinformação.
Assim, diante da predominância das redes sociais como "fontes de informação" na contemporaneidade, pode-se conjecturar que todo o ecossistema de informação se encontra emaranhado em uma trama comunicacional. Tal circunstância está relacionada, diretamente, com o fato de que nossa relação com as informações - sejam elas apuradas ou falseadas - se dá através de mediações algorítmicas (Dias, 2018; Morozov, 2019). Questões, estas, importantes para pensar a disseminação das desinformações analisadas, ainda que sob os mais distintos formatos.
Os conteúdos CF39 e CF410, por sua vez, foram primeiramente distribuídos via blog e canal do youtube, respectivamente. Foi ao chegar às plataformas já mencionadas que sua disseminação foi intensificada. Tais conteúdos também se vinculam à mensagem central de "apaziguar os ânimos", prometendo soluções que, até aquele momento, não estavam disponíveis. Nos primeiros dias de sua veiculação, juntas, essas desinformações alcançaram 12.870 compartilhamentos11.
O CF3 foi lançado no dia 11 de março por meio de um blog. Fazendo uso de um formato noticioso, a manchete - ilustrada pela foto do presidente cubano em um pronunciamento - informa: "Cuba anuncia que já fabricou vacina contra coronavírus". Conforme explica a agência de checagem Lupa, a notícia falsa começou a circular a partir de um tweet do presidente Miguel Díaz Canel-Bermúdez, do dia 07 de fevereiro, em que anunciou a participação do país na produção de um medicamento selecionado para ser utilizado no tratamento de pacientes com Covid-1912.
Já o CF4 anuncia que Israel teria encontrado a "cura para o coronavírus". Essa desinformação, veiculada originalmente no YouTube no canal Pátria Amada PE, mostra uma matéria do Jornal da Record fora de contexto. No vídeo selecionado para dar credibilidade à notícia falsa, aparecem cientistas trabalhando em laboratórios e, frequentemente, a imagem da bandeira de Israel. O conteúdo data de 14 de março de 2020, apenas dois dias após a primeira confirmação de óbito em virtude da Covid-19, no Brasil.
Diante do exposto até o momento, pode-se afirmar que os quatro primeiros conteúdos falsos, que compreenderam os meses de janeiro a março, eram organizados em torno de "dar uma solução" para um problema que ainda apenas se anunciava, para "conter o pânico" - na expressão comumente adotada por Bolsonaro em seus pronunciamentos. É a partir dos casos de vítimas fatais no Brasil, que os conteúdos falsos analisados abandonam as recomendações para dar lugar à desconfiança nos dados.
"Morre mais gente de pavor"
O mês de março no Brasil - que marcou o primeiro caso de morte em decorrência da Covid-19 - finalizou com o saldo de 5.812 casos de contaminação e 165 óbitos. Esse contexto confere um novo pano de fundo para a produção de desinformações. Nesse período, começam a se multiplicar os primeiros conteúdos falsos que colocam em questão tanto a exatidão dos dados coletados, como a confiabilidade das projeções científicas que sustentam a manutenção das medidas de isolamento.
Para produzir desconfiança nos dados e informações, os alvos de deslegitimação dessas notícias são as instituições científicas e de saúde, que têm defendido as principais medidas sanitárias, como isolamento e uso de máscaras. De conteúdos totalmente fabricados a distorções de declarações médicas e estudos científicos, tais desinformações buscam localizar um furo na lógica das argumentações científicas ou, ainda, inviabilizar por completo a credibilidade desses dados.
São conteúdos falsos dos mais variados formatos narrativos que vão tomando o meio digital, por meio de Whatsapp, Facebook, Youtube, além de blogs e os chamados "sites de notícias". Conteúdos que, por sua vez, vão produzindo no imaginário coletivo um certo entendimento da doença, do vírus e da crise sanitária. Assim, nos primeiros meses da pandemia era comum ouvir que "mais pessoas morreram de outras doenças".
Lógicas semelhantes também permeiam os conteúdos abordados na presente categoria. Neste tópico, serão apresentados quatro conteúdos falsos - CF513, CF614, CF715, CF816 - que, juntos, mobilizaram 14.000 compartilhamentos entre os dias 28 de março e 13 de maio.
CF5 é um post que entrou em circulação no Facebook no dia 28 de março. Surgiu no período em que as primeiras mortes por Covid-19 no Brasil começaram a ser contabilizadas. Nele, podemos ver um suposto aviso do Ministério da Saúde: "ATENÇÃO. Aos parentes das vítimas de óbito recentes: não aceitem atestados de óbito em que o médico estiver [sic] atribuindo a causa morte ao Covid-19." Esse falso comunicado chegou a ser compartilhado 2000 vezes até o dia primeiro de abril, apenas nessa postagem.
Plantar uma dúvida quanto ao número de mortes por Covid-19 é a premissa de três dos quatro conteúdos aqui analisados. Além disso, todos os quatro conteúdos buscam sugerir que a pandemia não passa de um "jogo político", sendo o vírus um artifício utilizado politicamente para o exercício de controle e dominação.
O mês de abril se inicia no Brasil com a marca de 5.868 diagnósticos positivos de Covid-19 e um total de 203 mortes. Ainda no dia primeiro do mês, entra em circulação CF6. Esse é formado a partir de uma postagem no Facebook, ilustrada por uma foto de caixões enfileirados, afirmando que a Rede Globo teria veiculado imagens de um velório coletivo de vítimas de um naufrágio na Itália como se fossem da pandemia de Covid-19.
O conteúdo também circulou pelo whatsapp, dessa vez com uma foto diferente, acrescida da pergunta: "alguém ainda tem dúvida que é um jogo político?". Nessa lógica, seriam os veículos de imprensa os responsáveis por sustentar uma narrativa sobre a pandemia incondizente com a realidade, ao instaurar um clima de pavor. Lógica sustentada pelo presidente em seus posicionamentos sobre o contexto nacional: "Houve uma potencialização das consequências do vírus ... Levaram o pavor para o público, histeria. E não é verdade. Estamos vendo que não é verdade" (G1., O Globo., Extra., Estadão., Folha., & UOL, 2020). Tal discurso de deslegitimação da imprensa tradicional sugere uma estratégia. Afinal, são justamente os veículos de imprensa que têm contribuído para disponibilizar os dados atualizados sobre a pandemia à população brasileira.
Um exemplo é o consórcio de imprensa formado em 08 de junho por G1, O Globo, Extra, Estadão, Folha e UOL que, em um esforço conjunto, passaram a recolher os dados sobre a Covid-19 no Brasil diretamente das secretarias de saúde, para divulgá-los conjuntamente. A iniciativa - inédita na imprensa brasileira - se deu após o "apagão de dados" do portal do Ministério da Saúde, que desde então parou de informar o número total de mortes ou casos confirmados e passou a mostrar somente os dados registrados no último dia (Gomes, 2020). A iniciativa do Governo Federal se deu após dois dias seguidos com recorde de mortes. Em um de seus pronunciamentos sobre o tema, o presidente ironizou: "acabou reportagem no Jornal Nacional" (Machado, Carvalho, Teixeira, & Cancian, 2020).
Não por acaso, testemunhamos no ano de 2020 uma escalada na hostilidade contra jornalistas, voltada tanto para os profissionais que têm feito a cobertura da pandemia, como para aqueles que estavam acompanhando o presidente na saída do Planalto (Mello, 2020). Nesse sentido, é possível percebermos o entrelaçamento do fenômeno da fake news ao shitstorm. Termo, este, utilizado para nomear o ataque a pessoas ou instituições através de reações verbais difamatórias em massa, caracterizando-se pelo uso de grande carga emocional. Em conteúdos falsos como CF5 podemos ver essa carga atrelada às mortes que estariam sendo forjadas e ao pânico que a imprensa e, mais especificamente a emissora Globo, estaria supostamente tentando criar (Caldas & Caldas, 2019).
Nessa mesma direção, ainda no mês de abril, houve a circulação de uma desinformação que, apesar de não fazer parte do corpus de análise, nos ajuda a pensar a construção da trama discursiva a respeito da pandemia e do vírus no país. No dia 29 de abril, em um programa da Rádio Bandeirantes, a deputada federal de São Paulo, Carla Zambelli (PSL) apresentou uma suposta denúncia de que haveria uma fraude no Estado do Ceará, onde caixões vazios estariam sendo enterrados para aumentar o número de vítimas da Covid-19. Na sequência dessa desinformação, muitos outros conteúdos falsos começaram a circular pelas redes, sem citação à deputada ou outras figuras políticas. Em uma delas, uma foto de um caixão vazio de 2007 passou a circular no Facebook como se fosse do Amazonas em 2020. Em 52 posts, a desinformação chegou a receber 464 mil compartilhamentos, entre 29 de abril e 6 de maio.
Também aponta para os efeitos das desinformações na reconfiguração da relação dos sujeitos com a cidade, o espaço público e as instituições políticas, que passa a ser mediada pela crise da informação. Nesse sentido, também a noção de cidadania passa a ser atravessada por esses conteúdos inautênticos que, por vezes, são produzidos por iniciativas individuais, com o propósito de realizar denúncias. Para além da (boa ou má) intenção, ficam os efeitos devastadores da disseminação de tais conteúdos.
O CF7 compreende um vídeo publicado em um perfil pessoal no Facebook, no dia 05 de maio. Neste, o usuário da rede social alega que o hospital de campanha da Unicamp teria sido desmontado por falta de pacientes. A construção do hospital seria, então, parte do jogo político, cuja estratégia consiste em inflacionar a gravidade, o alcance e a letalidade da pandemia. Assim, os discursos estão voltados para atenuar a gravidade do contexto brasileiro, colocando em questão os recursos gastos em medidas de saúde - justifica-se, portanto, a falta de dinheiro "colocado" em recursos médicos. Assim, a narrativa criada e reafirmada mês a mês, na articulação de discursos públicos com discursos de desinformação, têm fornecido um repertório de justificativas para a gestão ineficiente da pandemia.
O CF8 é um texto escrito por Rodrigo Constantino, colunista do jornal Gazeta do Povo, e presidente do Instituto Liberal. A partir do título "Morreu a mesma quantidade de pessoas no Brasil, em 2019 e 2020, por doenças respiratórias", o blogueiro tenta desmontar os dados produzidos pelo Ministério da Saúde e divulgados pela imprensa, fazendo uso dos dados de registro de óbitos fornecidos pelos Cartórios de Registro Civil. Contudo, os cartórios têm um prazo para atualizar essas informações junto ao registro nacional, informação que Constantino não levou em conta.
O conteúdo de desinformação foi veiculado em seu blog, no dia 13 de maio e chegou a alcançar mil compartilhamentos nos três primeiros dias. A desinformação foi desmentida pela agência Lupa, já em 16 de maio. Contudo foi em junho, que os dados oficiais conferidos pelos Cartórios de Registro Civil do Brasil liquidaram o argumento de vez: na verdade, o mês de maio de 2020 foi o mais mortal de todos os tempos, no Brasil (Madeiro, 2020). Foi também em maio que a Covid-19 se tornou a maior causa de mortes no Brasil, superando o conjunto de todas as doenças cardiovasculares e superando as mortes diárias por câncer (Alves & Machado, 2020).
Nesses textos mais elaborados, em que há um verniz de seriedade, tenta-se demonstrar uma lógica matemática, mas que não se sustenta em uma leitura mais atenta. Contudo, sabemos que as "fake news" se alimentam justamente da desatenção (Mello, 2020). Mensagens simples, mas que, ao mesmo tempo, carregam uma aura de cientificidade (pressuposição de evidências) podem ser facilmente assimiladas por aqueles que buscam uma argumentação um pouco mais elaborada.
Nesse contexto, não importa que o mês de maio tenha sido o de mais mortes e nem que o mês de junho tenha derrubado por vez os argumentos levantados pelo blogueiro, o estrago já estava feito: superadas inúmeras marcas de morte, ao longo dos meses no Brasil, ainda se pode ouvir nas conversas cotidianas, o mesmo argumento proposto pelo conteúdo falso de Rodrigo Constantino. Assim, basta colocar a seriedade dos dados e informações em questão, para desestabilizar a confiança da população nas medidas sanitárias.
"... é a vida, vai morrer"
Nessa categoria, reunimos as desinformações que colocam em questão a validade das medidas sanitárias no combate à Covid-19. Esse grupo abarca sete conteúdos falsos. Para exemplificar, serão apresentados os conteúdos indicados como CF917, CF1018, CF1319, CF1420, CF1521, F1622 e CF1723,24. Semelhantemente aos conteúdos destacados até aqui, estes variam em nível de distorção, fabricação de informações e em formato narrativo, ganhando destaque nas redes sociais onde circularam, pelo menos, entre 05 de maio e 15 de outubro.
Mais uma vez, é possível perceber que são discursos que se retroalimentam. O presidente fornece a legitimidade para uma série de desinformações. Por outro lado, grande parte das desinformações compõem um repertório discursivo semelhante ao de Bolsonaro. Desde março, mês em que data os primeiros lockdowns decretados pelos governadores da maioria dos estados brasileiros, o presidente tem se posicionado de forma contrária às medidas sanitárias no combate à pandemia e recomendadas pelas principais instituições de saúde:
Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, como proibição de transporte, fechamento de comércio e confinamento em massa. O que se passa no mundo tem mostrado que o grupo de risco é o das pessoas acima dos 60 anos. Então, por que fechar escolas? Raros são os casos fatais de pessoas sãs, com menos de 40 anos de idade. 90% de nós não teremos qualquer manifestação caso se contamine. (Bolsonaro, pronunciamento, 24 de março de 2020)
Nos conteúdos analisados, tanto o uso de máscaras como o isolamento horizontal foram alvos de estratégias de desinformação. Sob a lógica negacionista, que finca raízes na desordem da informação, são as medidas sanitárias, e não o vírus, a principal ameaça à saúde das pessoas.
No dia 05 de maio entrou em circulação o CF9. Em formato de texto, compartilhado no Facebook, o conteúdo anuncia: "Ouça quem sabe e tem compromisso apenas com a verdade dos fatos" e, na sequência, explica como o uso prolongado da máscara poderia levar à hipóxia, uma vez que o ar respirado na máscara poderia "ser transformado em dióxido de carbono" - desinformação desmentida por entidades médicas e noticiada por agências de checagem. Ao final, o texto é remetido à autoria de "Dr. Eduardo Herreira", sem nenhum outro dado de identificação.
Como nos sugere Miguel (2020), basta que elementos como a gravidade do vírus e a efetividade do isolamento sejam colocados em questão, para que a pandemia seja ignorada por completo. Conteúdos como o CF9, por exemplo, abrem um espaço narrativo para que inúmeras teorias conspiratórias sejam disseminadas. Nesse caso específico, o suposto médico seria aquele com acesso à "verdade dos fatos". Com isso, o conteúdo estabelece uma relação direta entre uso de máscara e "desconhecimento", "ignorância": arrogância própria das teorias de conspiração, cujas narrativas sempre circulam em torno de um seleto grupo de pessoas que supostamente teriam acesso a um dado, informação ou conhecimento, negligenciado pelo restante da população (D'Ancona, 2018).
Com alguns acréscimos e argumentos semelhantes, é lançada a desinformação número 10. O vídeo intitulado "O uso de máscaras é perigoso" foi postado primeiramente em um canal no Youtube e de lá migrou para as redes sociais. Nele, o médico João Vaz, informando o número de seu CRM e portando sua máscara no pescoço, sugere o mesmo: as máscaras aumentariam a concentração de gás carbônico levando à acidificação do sangue que, com esta característica, tornar-se-ia propício para a propagação do vírus. Ainda, acrescenta: "parece que estão querendo nos matar com essas informações falsas".
Uma diferença interessante entre o grupo de notícias falsas da categoria 2 para a categoria 3 é que, se para descredibilizar os dados, na categoria 2 os médicos são o alvo de desconfiança, já nas desinformações de maio a outubro, são eles que vão garantir "a verdade dos fatos" sobre o uso de máscaras. Assim, o discurso enganoso utiliza-se do poder conferido ao especialista, ao mesmo tempo em que nega o saber produzido por esta comunidade (Miguel, 2020).
Como se sabe, as estratégias políticas de desinformação não são uma exclusividade da extrema direita brasileira. Também no restante do mundo, a mentira tem sido instrumentalizada para orientar a opinião pública no que diz respeito às medidas sanitárias. Durante o mês de setembro, na Alemanha, a morte de uma menina de 13 anos, enquanto se encontrava no transporte escolar, forneceu o elemento faltante para a estratégia de mobilização do medo. A deputada da extrema-direita alemã Birgit Malsack-Winkemann soube fazer uso desse episódio para implantar mais uma dúvida: a morte teria sido causada pelo uso das máscaras?
Não levou muito tempo para o episódio ser usado como roteiro para conteúdos de desinformação no Brasil. Ainda em setembro, apenas quatro dias depois, a deputada Beatriz Kicis Torrents de Sordi (PSL) postou em seu perfil no Twitter uma fotomontagem, que corresponde ao CF16. Nela, há a imagem de uma multidão de pessoas com máscaras, fora de foco. Abaixo, os dizeres: "Alemanha: obrigatoriedade do uso de máscaras é questionada após menina de 13 anos desmaiar em ônibus escolar e morrer".
A falsa conexão estabelecida entre a morte de uma criança e o uso da máscara denota mais uma das características do processo de negacionismo, que se refere ao uso de deturpações ou falácias lógicas (Miguel, 2020). Aliás, o pretexto de proteger as crianças de possíveis ameaças é estratégia utilizada de forma recorrente. Haja visto os discursos construídos em torno da suposta "ideologia de gênero" e do "kit gay", fortemente amparados e disseminados nas redes sociais via "fake news" (Sombrio & Miguel, 2020).
Em mais de um conteúdo falso produzido sobre a máscara, a morte aparece como ameaça central. Relacionar o uso de máscaras ao número de mortes em um contexto pandêmico aponta para a perversidade das estratégias de desinformação. Tal estratégia parece atrelar-se à banalização da morte que visa, sobretudo, a uma dessensibilização frente à tragédia que representa as inúmeras quebras de recordes de mortes no Brasil.
Questionado a esse respeito, no mês de abril, a resposta de Jair Bolsonaro foi: "quem é que fala de [morte]? eu não sou coveiro", diante da insistência do jornalista, o presidente repetiu: "não sou coveiro, tá"? [20 de abril] (Gomes, 2020). Frente a um saldo que não pode ser negado publicamente, o presidente oferece a banalização, fazendo da "morte" um mero recurso semântico, que ele acopla ao seu repertório: "a chuva está aí, vamos nos molhar e alguns vão morrer afogados." (8 de abril), (Brasil Urgente, 2020); "Lamentamos as mortes, e é a vida. Vai morrer" (21 de abril), (Gomes, 2020).
Judith Butler (2019), quando fala dos mortos de guerra, comenta sobre os enquadramentos que possibilitam que as mortes de uns sejam mais choradas que as mortes de outros e afirma:
Essas populações são 'perdíveis', ou podem ser sacrificadas, precisamente porque foram enquadradas como já tendo sido perdidas ou sacrificadas; são consideradas como ameaças à vida humana como a conhecemos, e não como populações vivas que necessitam de proteção contra a violência ilegítima do Estado, a fome e as pandemias. ... Consequentemente, quando essas vidas são perdidas, não são objeto de lamentação, uma vez que na lógica distorcida que racionaliza sua morte, a perda dessas populações é considerada necessária para proteger a vida dos 'vivos.' (Butler, 2019, p. 53)
Para a política pautada na banalização da morte, as desinformações ganham um papel central. Nesse contexto, qualquer fala, pronunciamento, estudo, relatório, que possa ser utilizado - ainda que fora de contexto - para inviabilizar o apoio da população às medidas de isolamento, será tomado como "evidência final". Trata-se de uma característica das estratégias negacionistas, que se refere ao uso do recurso da seletividade (Caponi, 2020). Nesse caso, os conteúdos de desinformação focalizam-se em artigos e pesquisas científicas isoladas, que contrariam o consenso científico (cherry-picking), respondendo a um discurso político já existente. É por meio de supostos estudos e argumentos científicos que a medida de isolamento tem sido questionada.
Um exemplo, foi o uso indevido dos comentários feitos pelo neurocientista alemão Karl Friston a respeito de um estudo publicado pela revista americana Cell, em 14 de maio25. Este estudo trabalha com o conceito de "imunidade cruzada" para pensar a diferença de resposta ao coronavírus entre alemães e britânicos. Retirado do seu contexto, os comentários do neurocientista deram origem ao CF13, postado no mês de junho, em um blog conservador de extrema direita brasileiro, tendo como manchete: "A maioria das pessoas é imune ao vírus da Covid, diz Karl Friston". O cientista já se manifestou, alertando nunca haver afirmado que o lockdown fosse inútil.
Essa notícia circulou em diferentes formatos e por diferentes redes sociais. Uma de suas derivações é o CF14, publicado em agosto no Facebook de Jair Bolsonaro. Nele o presidente embasa-se na referida notícia falsa para afirmar que "a política de 'fechar tudo' teria sido baseada numa ciência falha, e as consequências danosas à sociedade serão sentidas por décadas", e termina convidando seus leitores a conferirem o estudo do cientista, disponibilizando o link para o blog com a notícia falsa. Mesmo após ter sido notificado pelo Facebook de que a notícia era falsa, até o dia 1 de dezembro a postagem seguia no perfil do presidente, tendo mais de 40 mil compartilhamentos, 13 mil comentários e 181 mil reações.
CF13 e 14 evidenciam as inúmeras gradações de distorção de uma mesma desinformação (Ribeiro & Ortellado, 2018). Vejamos o caminho percorrido: primeiro temos um estudo científico mencionado em uma entrevista, seguido de uma entrevista com neurocientista sobre tal estudo; posteriormente, entrevista e estudo são tirados de contexto para produzir o CF13, que nas mãos de Bolsonaro ganha mais um nível de distorção no CF14.
Além das distorções, o conteúdo, especialmente do CF14, aponta para as contradições na fala do presidente: ao mesmo tempo em que desmerece a ciência, apoia-se em informações científicas (mesmo que falsas) para defender seu ponto de vista. Mais uma vez percebe-se a utilização do recurso da seletividade, tão presente nas narrativas negacionistas.
O negacionismo marcou as "fake news" que atacam as medidas sanitárias. Contudo, diante do apresentado, é possível pensar que não se trata de mera negação, parece tratar-se de um projeto: deixar morrer, especialmente as populações "perdíveis". Nesse contexto, as fake news seriam uma de suas armas políticas, mas também, e no fim, a única "política pública" aplicada: desinformação para todo mundo!
Nesse ponto, cabe refletir que mesmo que nem todos consumam tais informações de modo acrítico, mesmo entre os mais céticos, mesmo entre os que pensam que nunca "caíram em uma fake", a propagação de notícias falsas compõe uma problemática de amplo alcance. Haja vista a preocupação da OMS com o fenômeno intitulado "infodemia", tal como falado anteriormente. Assim, a disseminação desse tipo de desinformação produz efeitos na maneira como lidamos com o vírus e a pandemia, o que, por sua vez, contribui para uma certa passividade diante da tragédia sanitária, humanitária, civilizatória, que se estendeu por 2020 e que se anuncia para 2021 no Brasil.
"Se você virar um jacaré, é problema seu!"
A popularidade da cloroquina iniciou no final de fevereiro, quando o médico francês Didier Raoult26 passou a defender o seu uso. A partir disso, sua utilização começou a ser amplamente defendida por alguns atores políticos, como o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
Logo após a compra do medicamento pelo presidente estadunidense, o governo brasileiro - sem indicar qualquer pesquisa que apontasse a eficácia do mesmo contra a Covid-19 - investiu mais de 1,5 milhão de reais para a produção de hidroxicloroquina pelo Laboratório do Exército Brasileiro (Junqueira, 2020). Mas, o Brasil importou não só a ideia de um medicamento milagroso, que seria a solução para a pandemia, como também as fake news relacionadas à cloroquina.
No conteúdo falso 1127 - vídeo amplamente compartilhado no Twitter - a médica Stella Immanuel28 afirma que obteve sucesso no tratamento de 350 pacientes utilizando a combinação de hidroxicloroquina, zinco e azitromicina. Já o CF1229 compõe um post compartilhado no Facebook, com as supostas quantidades de um "Coquetel com hidroxicloroquina" que teria "99% de eficácia".
O CF11, por sua vez, possui uma particularidade, quando comparado à postagem no Facebook. Trata-se de um conteúdo formulado a partir de uma suposta experiência clínica individual bem sucedida, por parte da médica em questão, não havendo como afirmar ou contestar se ela realmente obteve os resultados que postula. Entretanto, mesmo que os dados sejam verdadeiros, não podem ser considerados como evidência científica.
Como sugere Sandra Caponi (2020), as estratégias utilizadas em CF11 e 12 constituem uma dinâmica característica do negacionismo que, no caso específico da pandemia, converte-se em consentimento a intervenções não comprovadas, de sérios efeitos colaterais e na recusa às medidas sanitárias propostas pela OMS e demais órgãos de saúde. Dentro dos processos de negacionismo apontados pelo autor (2020), um deles - o uso de falsos experts - nos ajuda a pensar as fake news vinculadas ao tratamento com cloroquina.
Como pôde ser observado, nos conteúdos que anunciam a eficiência desses medicamentos no combate à Covid-19, é comum que se recorra à figura dos especialistas, a fim de conferir credibilidade à mensagem informada. Nesse conteúdo, especificamente, podemos supor que a figura da médica relatando sua própria experiência como "testemunha" do resultado positivo, apresenta aspectos de "evidência" muito mais aparentes do que a abstração de uma pesquisa científica. Nesse contexto, a trama que se constrói em torno dos discursos presentes nessas notícias falsas vão compondo um jogo perverso, pois ao mesmo tempo que se nega a massiva base de evidências científicas que apontam para a ineficácia da cloroquina, convenientemente recorre-se ao conhecimento especializado para legitimá-la. Mais uma vez, identifica-se o recurso negacionista da seletividade (Caponi, 2020).
Desinformações que vão tomando forma, principalmente quando endossadas pelo presidente: "Muitos médicos dizem que a hidroxicloroquina funciona. Não estou fazendo nenhuma campanha para o medicamento, afinal de contas, o custo é baratíssimo. Talvez por causa disso que tem muitas pessoas contra. E outras, parece, que é por questões ideológicas." (Correio Braziliense, 2020).
A presença da polarização político-ideológica nesta fala, bem como em várias fake news, evidencia o que Ortellado e Ribeiro (2018) colocam a respeito desse conteúdo enganoso onde, sendo verdadeiro ou falso, possui um "potencial de atração de audiência seja com a intenção de convencimento ou de monetização" (p. 1). Evidencia-se também o aspecto das bolhas, que atuam para reafirmar as convicções e pensamentos individuais a partir de uma coletividade. Tal movimento contribui para que esses conteúdos enganosos circulem com mais intensidade entre as pessoas alinhadas ao pólo político-ideológico correspondente.
Na mesma direção, Raquel Recuero e Anatoly Gruzd (2019) apontam que a disseminação de conteúdos enganosos possui um elemento chave que está diretamente ligado à polarização. Pois, para que a fake news seja efetiva, ela precisa alcançar o maior número de pessoas e isso depende das próprias escolhas dos atores que decidem o que vão compartilhar. Deste modo, as autoras apontam que
como os atores tendem a compartilhar informações baseadas em suas próprias crenças e percepções, especialmente em contextos polêmicos, a mídia social tende a apresentar redes de conversação extremamente polarizadas. ... as pessoas tendem a acreditar em informações que condizem com sua percepção das narrativas sociais e a desacreditar em narrativas que desconstroem essa percepção... (Recuero & Gruzd, 2019, p. 33)
Os anúncios das supostas vacinas cubana e israelense (CF 3 e CF4 - descritos na seção 1) também parecem corresponder a espectros da polarização político-ideológica brasileira, principalmente quando levamos em conta os países invocados por cada conteúdo enganoso. Ao comparar ambas as notícias falsas sobre a vacina, vemos algumas particularidades nos dois discursos. Na primeira, por exemplo, Cuba não "produz", o país "anuncia". Já Israel, "sai na frente", o que sugere uma corrida, uma competição entre os países em que Israel ganha. Neste caso, podemos inferir que a polarização ideológica também está presente no discurso e repertório das fake news.
Ainda no que diz respeito ao CF3, é possível questionar se ela serviu também para alimentar uma "teoria da conspiração comunista", uma vez que ela converge com outros discursos veiculados nesse período, sobretudo o de que o vírus seria uma arma biológica, produzida pelo governo chinês, em laboratório, para fins de controle político global. Nesse sentido, cabe ressaltar que, desde as primeiras notícias falsas que circularam é frequente o uso de termos como "vírus chinês" ou "gripe da China". Desde então, tal discurso xenofóbico tem sido propagado não apenas por meio de conteúdos interamente fabricados, que circulam pelas redes sociais, mas também por meio da grande imprensa30 e, ainda, por personagens do cenário político brasileiro.
No mês de outubro, as vacinas voltam a protagonizar conteúdos falsos. Dessa vez, porém, no lugar de solução elas são atacadas, reunindo discursos que as descredibilizam, como pode ser visto nos CF1831, 1932, 2033 e 2134,35. Nesses, as vacinas são tidas como uma ameaça à vida, tanto por alterarem o DNA humano, quanto por causarem doenças e, até mesmo, a morte.
Como exemplo, o CF19 aborda os supostos riscos adversos da vacina. Em um vídeo, veiculado no Youtube, um suposto enfermeiro, em frente à uma ambulância, afirma: "os adjuvantes da vacina podem causar Alzheimer, podem causar fibromialgia, podem causar uma série de fatores e doenças". Até o dia 26 de outubro o vídeo tinha mais de 3 mil visualizações.
Mais uma vez, a convergência entre conteúdos falsos e falas do presidente da república se faz presente. Bolsonaro tem vociferado, em diferentes momentos, sua desconfiança e oposição com relação às vacinas. Em entrevista, no dia 16 de dezembro, para a TV Bandeirantes (2020), ele disse: "Como cidadão é uma coisa e como presidente é outra. Mas como nunca fugi da verdade, digo: não vou tomar a vacina. Se alguém acha que minha vida está em risco, o problema é meu e ponto final". Esta sua fala, bem como outras, instauram no país um clima de desconfiança e de descrédito frente à vacina e ao conhecimento científico. Tal visão reflete nas políticas governamentais- ou na ausência destas- voltadas ao combate da Covid-19 no país, especialmente no que tange à vacinação.
Assim como as notícias em torno da cloroquina, as notícias sobre a vacina descortinam o quanto a produção de tais conteúdos são atravessados por questões políticas e ideológicas, expondo o cenário polarizado no qual esses conteúdos se inserem. Nessa direção, Ribeiro e Ortellado (2018), afirmam que "parte do interesse no consumo e disseminação de notícias em uma sociedade polarizada é corroborar narrativas pré-estabelecidas independentemente da qualidade do trabalho de investigação ou apuração necessário para produzi-las." Nesse sentido, os autores abrem mão do termo "notícias falsas" e passam a utilizar o conceito de "mídias hiper-partidárias", entendendo-as como resultado da polarização da esfera pública.
Em meio à maior pandemia já vivida mundialmente, nos encontramos mergulhados em um mar de desinformação. Desinformação, esta, criada não por falta de conhecimento, mas sim, na grande maioria dos casos, para atender a interesses políticos e ideológicos. Ser adepto à cloroquina ou à vacina virou questão política/partidária/ideológica, quase como ser torcedor do Fluminense ou do Flamengo. Enquanto isso, milhares de vidas já foram perdidas, milhares de famílias choram suas perdas. Perdas, onde nenhuma vida é "perdível".
Considerações finais
Analisar os discursos propagados por notícias falsas a respeito da pandemia de Covid-19 permitiu acompanhar a construção de narrativas em torno de um novo fenômeno. Mais do que novo, um fenômeno vivo, imprevisível, em processo de transformação e de abrangência mundial. Alguns aspectos - inclusive algumas "fake news" - são semelhantes em diferentes países do globo terrestre. Porém, particularidades do contexto brasileiro puderam ser observadas, especialmente devido aos aspectos políticos, econômicos e sociais vividos atualmente no país.
Evgeny Morozov (2018) questiona se a ascensão das fake news seria o colapso da democracia ou a consequência de um mal-estar mais profundo, estrutural, que está em desenvolvimento há muito tempo. O autor apresenta também que a forma mais conveniente de um governo autoritário escapar das censuras virtuais é apontar que tudo aquilo que não convém é falso. Sendo a verdade, assim, tudo aquilo que interessa ao grande sistema do poder - caso contrário, não é a verdade (Tiburi, 2017).
Então, quais seriam as estratégias mais viáveis no combate à desinformação? A regulamentação da esfera digital é uma possibilidade, porém, pode trazer novos riscos. Como apontam Ribeiro e Ortellado (2018) a proliferação das chamadas notícias falsas está intimamente ligada a uma dinâmica de polarização da esfera pública que transforma o debate público em um embate entre duas narrativas. Assim, quem decide o que é a verdade no meio dessa guerra de narrativas?
Um aspecto que não se pode perder de vista é que as notícias falsas fazem parte de um mercado lucrativo. Buscando combater a indústria da desinformação vem sendo utilizada a já conhecida estratégia de combate à corrupção intitulada "Follow the Money". Ela consiste em procurar empresas anunciantes em sites que criam e compartilham "fake news", informando que sua marca está financiando desinformação e, se não houver resposta, fazendo boicote a essas empresas até que retirem seu financiamento desses espaços.
Nesse contexto infodêmico, as agências de checagem tiveram um papel importante, ao serem uma peça chave para o enfrentamento de conteúdos falsos. Todavia, é necessário problematizar a quem chegam as informações checadas pelas agências e de que modo poderiam se tornar acessíveis a todos. Nesse sentido, seria importante refletirmos sobre a democratização da informação, que pode ser vista como elemento primordial para lidar com a guerra de narrativas. Muitos jornais utilizam recursos pagos para dar acesso a determinados conteúdos, contribuindo para que a informação seja acessível a apenas uma parcela da população.
Outra alternativa frente ao mar de desinformação seria a educação midiática. Referenciada por diferentes termos - mídia-educação, educomunicação, media literacy, educação midiática - a educação midiática tem como objetivo central promover uma apreensão crítica e criativa das mídias, de forma que o indivíduo possa se reafirmar como cidadão, contribuindo para sua emancipação e responsabilização (Miguel et al., 2017). Dessa forma, ela estaria atrelada à "adoção de uma postura 'crítica e criadora' de capacidades comunicativas, expressivas e relacionais para avaliar ética e esteticamente o que está sendo oferecido pelas mídias, para interagir significativamente com suas produções e para produzir mídias também" (Fantin, p. 31).
Por fim, ao compreendermos a pandemia como um problema de saúde pública, entendemos ser necessário somar esforços para o combate à desinformação, que ganha um novo patamar na era das redes sociais digitais. Este cenário acaba por contribuir para o agravamento da pandemia e ineficiência das medidas de contenção do vírus. Em síntese, espera-se com essa pesquisa poder contribuir para o desenvolvimento de reflexões acerca da estreita relação entre "fake news", aspectos políticos e a importância de uma educação que vise a leitura/produção/compartilhamento crítico dos conteúdos midiáticos.
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Recebido em: 12/01/2021
Aprovado em: 30/03/2021
1 Ressaltamos que alguns termos serão utilizados como sinônimo de conteúdo falso: informação inautêntica, informação inverídica, conteúdo inautêntico, conteúdo inverídico, desinformação e, ainda, "fake news".
2 De acordo com a agência Aos Fatos, a checagem de fatos constitui uma metodologia do jornalismo que consiste na apuração da confiabilidade das fontes que informam determinado fato, visando conferir maior credibilidade a uma notícia. https://www.aosfatos.org/checagem-de-fatos-ou-fact-checking/
3 Os títulos de cada sessão fazem referência a pronunciamentos públicos do presidente Jair Messias Bolsonaro, relacionados à pandemia, durante o ano de 2020.
4 No dia 26 de fevereiro, foi confirmado o primeiro caso de contaminação no Brasil. No dia 05 de março, foi confirmado o primeiro caso de contaminação por transmissão interna.
5 https://www.aosfatos.org/noticias/medicos-nao-indicaram-vitamina-c-e-cha-de-erva-doce-contra-coronavirus/
6 https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/02/01/verificamos-coronavirus-erva-doce/
7 Trata-se de um medicamento antiviral utilizado para tratamento de gripe.
8 É importante destacar que o alcance não pode ser medido com precisão, principalmente quando se trata de informações originadas do Whatsapp, cujo rastreamento é mais difícil, como é o caso do CF1, por exemplo.
9 https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/03/13/verificamos-cuba-vacina-novo-coronavirus/
10 https://www.aosfatos.org/noticias/israel-nao-descobriu-cura-ou-vacina-para-o-coronavirus/
11 É importante ressaltar que o CF3 foi compartilhado 170 vezes, enquanto o CF4 alcançou 12.700 compartilhamentos.
12 https://twitter.com/DiazCanelB/status/1225847292541968384.
13 https://www.aosfatos.org/noticias/ministerio-da-saude-nao-orientou-que-parentes-duvidem-de-atestados-de-obito-por-covid-19/
14 https://www.aosfatos.org/noticias/globo-nao-veiculou-foto-de-mortos-de-naufragio-como-se-fosse-de-vitimas-de-covid-19/
15 https://www.aosfatos.org/noticias/e-falso-que-hospital-de-campanha-da-unicamp-foi-desmontado-por-falta-de-pacientes/
16 https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/05/13/verificamos-mortes-iguais-2019-2020/
17 https://g1.globo.com/fato-ou-fake/coronavirus/noticia/2020/06/24/e-fake-que-uso-de-mascara-de-protecao-faca-mal-a-saude-tornando-o-sangue-mais-acido.ghtml
18 https://www.boatos.org/saude/mascara-ajuda-coronavirus-espalhar-gas-carbonico-so-usada-conversar.html
19 https://www.aosfatos.org/noticias/nao-e-verdade-que-estudo-aponte-que-maioria-das-pessoas-seja-imune-covid-19/
20 https://www.facebook.com/jairmessias.bolsonaro/posts/2054360908046218
21 https://g1.globo.com/fato-ou-fake/coronavirus/noticia/2020/09/14/e-fake-que-uso-de-mascara-eleva-inalacao-de-dioxido-de-carbono-para-nivel-acima-do-suportado-pelo-organismo-humano.ghtml
22 https://www.boatos.org/mundo/menina-13-anos-morre-alemanha-usar-mascara-aspirar-co2.html
23 https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/10/15/verificamos-reportagem-globo-mascaras/
24 CF15 e CF17, embora tenham participado do processo de análise, não serão abordados no presente texto.
25 https://www.cell.com/cell/fulltext/S0092-8674(20)30610-3
26 Médico francês e microbiologista especializado em doenças infecciosas: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-arauto-da-cloroquina/
27 https://www.boatos.org/saude/stella-emanuel-verdade-hidroxicloroquina-cura-covid-mascaras-fazem-mal.html
28 Médica clínica geral, pastora, de origem/nacionalidade camaronesa-americana, residente em Houston, Texas (EUA).
29 https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/07/31/verificamos-coquetel-hidroxicloroquina/
30 https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-01-30/oms-declara-alerta-internacional-diante-da-expansao-incontrolavel-do-coronavirus.html
31 https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/10/20/verificamos-nanorrobos-vacinas-covid/
32 https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/10/26/verificamos-enfermeiro-adjuvantes/
33 https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/11/02/verificamos-singapura-testes-vacina/
34 https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/11/16/verificamos-voluntarios-testes-vacina-chinesa/
35 Ressaltamos que, no presente texto, somente CF19 será abordado como exemplo da categoria.