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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.21 no.52 São Paulo set./dez. 2021

 

ARTIGO

 

Do projeto político pedagógico às práticas cotidianas: perspectiva psicossocial sobre violência na escola

 

From the pedagogical political project to daily practices: psychosocial perspective on violence at school

 

Del proyecto político pedagógico a las prácticas cotidianas: perspectiva psicosocial sobre la violencia escolar

 

 

Jacqueline MeirelesI; Ana Paula Gomes MoreiraII; Raquel Souza Lobo GuzzoIII

IDocente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Educacional (UNIFIEO); Unesp - Rio Claro. E-mail: jacmeireles@gmail.com
IIDocente do Departamento de Psicologia Social - Unesp Assis. E-mail: anapaulaa.moreira@gmail.com
IIIDocente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia na PUC-Campinas. E-mail: rslguzzo@gmail.com

 

 


RESUMO

A partir de uma compreensão psicossocial de violência, tal como postula a Psicologia da Libertação, o presente trabalho visa problematizar o hiato existente entre as propostas de ação que constituem o projeto político pedagógico no contexto das escolas públicas e a sua execução, no que se refere às situações de violência. Objetiva-se compreender como educadores de uma escola pública de ensino fundamental lidam com expressões de violência no cotidiano escolar; analisar o projeto político pedagógico da escola para identificar se existem e quais são as diretrizes relacionadas à questão da violência e, finalmente, comparar estas diretrizes com os registros de observação de psicólogas da escola, considerando suas complementaridades ou divergências.

Palavras-Chave: Psicologia da Libertação; Violência; Situação-li mite; Projeto político pedagógico; Psicologia escolar.


ABSTRACT

From a psychosocial understanding of violence, as proposed by Liberation Psychology, the present work aims to problematize the gap between the action proposals that constitute the political pedagogical project in the context of public schools and its execution, regarding situations of violence. The aim is to understand how educators from a public elementary school deal with expressions of violence in everyday school life; to analyze the political pedagogical project of the school to identify if they exist and what are the guidelines related to the issue of violence and, finally, to compare these guidelines with observation records of school psychologists, considering their complementarities or divergences.

Keywords: Liberation Psychology; Violence; Limit situation; Polit ical pedagogical project; School psychology.


RESUMEN

A partir de una comprensión psicosocial de la violencia, como postula la Psicología de la Liberación, el presente trabajo tiene como objetivo problematizar el desfase entre las propuestas de acción que constituyen el proyecto político pedagógico en el contexto de las escuelas públicas y su ejecución, frente a situaciones de violencia. El objetivo es comprender cómo los educadores de una escuela primaria pública lidian con las expresiones de violencia en el cotidiano escolar; analizar el proyecto político pedagógico de la escuela para identificar si existen y cuáles son las pautas relacionadas con el tema de la violencia y, finalmente, comparar estas pautas con los registros de observación de los psicólogos escolares, considerando sus complementariedades o divergencias.

Palabras-clave: Psicología de la liberación; Violencia; Situación límite; Proyecto político pedagógico; Psicología escolar.


 

 

Introdução

Este trabalho é parte dos estudos organizados no âmbito de um projeto de extensão universitária denominado "Voo da Águia". Desde 2000 ele é desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa "Avaliação e Intervenção Psicossocial: Prevenção, Comunidade e Libertação" do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC-Campinas. Desde uma perspectiva singular, ao longo deste período, o "Voo da Águia" tem construído uma consistente proposta teórico-metodológica para atuação de psicólogos nas escolas do município (Costa, 2005).

A partir de uma perspectiva mais ampla estes esforços somam-se à conjuntura nacional empreendida pela área no sentido do debate e proposição de políticas públicas que, efetivamente, delimitem a inserção de psicólogos nas escolas básicas brasileiras. Esta conjuntura está refletida, nos trabalhos produzidos pelo GT de Psicologia Escolar e Educacional da ANPEPP bem como em uma série de estudos produzidos pelos pesquisadores que, historicamente, dedicam-se a esta seara (Guzzo, 2014; Patto, 2015; Souza, Tanamachi, & Barbosa, 2016).

A compreensão sobre a participação dos psicólogos no interior das dinâmicas pedagógicas remonta ao contexto de delimitação da perspectiva crítica no interior da Psicologia. Esta perspectiva está sustentada pelos princípios da Psicologia Histórico-Cultural e suas especificidades teórico-metodológicas delimitadas pelo Materialismo Histórico-Dialético (Dafermos, 2018). A relação entre os processos de desenvolvimento e aprendizagem se estabelece desde os movimentos iniciais de organização da Psicologia Soviética ainda que seus determinantes tenham sido apropriados de maneiras distintas por iniciativas variadas ao redor do mundo (Bozhovich, 2009). Segundo Guzzo, Moreira e Mezzalira (2016), no Brasil estas apropriações aparecem, por vezes, distorcidas no que diz respeito aos seus pressupostos ontológicos o que resulta em fraturas metodológicas importantes para a delimitação da atuação do psicólogo escolar.

Nesse sentido, é recorrente observamos uma lacuna no que diz respeito à compreensão do papel do psicólogo no interior das instituições escolares. Nossos esforços se vinculam ao lastro da Psicologia Histórico Cultural na direção daqueles que tem se dedicado a delimitar a relação entre Psicologia e Pedagogia Críticas. Acentuamos que o desenvolvimento das funções psíquicas superiores acontece a partir de situações que a demandem e, portanto, a atividade pedagógica é determinante para que este desenvolvimento aconteça na direção de suas máximas possibilidades de organização (Martins, 2011).

O contexto que envolve esta dinâmica, no entanto, acontece, como sugeriu Vigotski, no bojo dos dramas1 que caracterizam as situações sociais de desenvolvimento (Vigotski, 2000). As funções psíquicas superiores constituem-se a partir dos conteúdos culturais, simbólicos e políticos contidos nas relações sociais que são transmitidos para a singularidade para delimitar a dinâmica da personalidade. No interior das escolas públicas brasileiras, este drama do desenvolvimento envolve a presença de uma dinâmica de violência, percebida e reportada pelos atores do cenário escolar e que tem sido evidenciada nos trabalhos que produzimos (Meireles & Guzzo, 2019; Moreira & Guzzo, 2013). Estas evidências refletem uma intrincada trama cuja complexidade exige uma cuidadosa reflexão capaz de destituí-la de suas aparências individualizantes e idealizadas.

A compreensão desta dimensão política para o desenvolvimento do psiquismo é central para a concepção crítica que mencionamos e, nesse sentido, a análise desta conjuntura se enriquece significativamente quando recorremos a autores e formulações que, articulados ontologicamente aos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, potencializam nossa compreensão acerca das interconexões sociais e psicológicas. No interior do nosso Grupo de Pesquisa essa articulação agrega a perspectiva de Ignácio Martín-Baró disposta na Psicologia da Libertação. A organização teórico-metodológica construída por Martín-Baró envolve uma delicada concepção sobre a gênese e os determinantes do fenômeno que chamamos de violência.

Para os propósitos deste trabalho, portanto, as relações entre escola, desenvolvimento e violência nos são, especialmente, caras. Sabemos, a partir dos robustos estudos desenvolvidos por Saviani (2008), que, no interior da escola brasileira, estas relações estão materializadas na organização dos projetos político pedagógicos (PPP) que formalizam a condução das ações empreendidas pelos profissionais da educação no cotidiano das escolas. Segundo Penteado e Guzzo (2010), a compreensão do que significa um PPP foi alterada a partir do movimento tecnicista, que desloca a lógica de produção industrial de mercadorias para a realidade da escola. Nesse sentido, não apenas o que diz respeito às disciplinas aprendidas, mas todo o sentido político da atividade educativa, bem como as formas de acompanhamento do desenvolvimento dos estudantes são esvaziados na construção do PPP como uma mera formalidade.

Atualmente, esta questão torna-se ainda mais premente no contexto da Base Nacional Comum Curricular (Marsiglia, Pina, Machado, & Lima, 2017). As iniciativas de pesquisa há algum tempo exploram as possibilidades de construção democrática de projetos pedagógicos que reflitam, efetivamente, os pressupostos críticos dos fundamentos materialistas constitutivos de uma educação libertadora (Sant'Ana & Guzzo, 2016).

As atuais políticas educacionais caminham, no entanto, para um sentido oposto: a partir da instituição do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Decreto n. 10.004, 2019), oferecendo grandes atrativos financeiros para as escolas que aderirem, caminhamos para uma militarização das práticas pedagógicas, com público alvo a ser disciplinado bastante definido: crianças e adolescentes das regiões mais socialmente vulneráveis. A presente pesquisa insere-se nesta conjuntura e pretende endossar a defesa de que problemas das escolas, como a questão da violência, podem e devem ser resolvidos por vias democráticas e não coercitivas como a construção e aplicação coletiva do projeto político pedagógico. Isso será realizado por meio do confronto das práticas cotidianas institucionalizadas pelas instituições educativas com as categorias desenvolvidas pelo psicólogo Ignácio Martin-Baró para compreensão da violência a partir da Psicologia da Libertação.

Este esforço coaduna com os fundamentos da chamada pesquisa-ação participação. Toma-se como princípio a necessidade de que, no contexto das práticas de intervenção em desenvolvimento humano, a pesquisa produza indícios capazes de fundamentar as intervenções ao mesmo tempo em que as intervenções possam ser avaliadas enquanto são desenvolvidas (Walter, 2009). Nessa conjuntura, este trabalho vincula-se à compreensão metodológica que parte da unidade extensão-pesquisa. A atividade de extensão é tomada, a um só tempo, como participação e intervenção nos dispositivos sociais que circundam a Universidade, bem como fonte que possibilita a realização de pesquisa cujo resultado será incorporado à própria comunidade. As atividades de extensão são registradas em diários de campo e constituem-se como valioso conteúdo de análise.

São nossos objetivos: compreender como professores e funcionários de uma escola pública de ensino fundamental lidam com as expressões de violência no cotidiano escolar; analisar o Projeto Político Pedagógico da escola para identificar se existem e quais são as diretrizes relacionadas à questão da violência e, finalmente, comparar estas diretrizes com os trechos de diários de campo escritos por psicólogos do projeto Voo da Águia, considerando suas complementaridades ou divergências. Para isso, partimos de uma breve discussão sobre a perspectiva psicossocial de violência, proposta por Martin-Baró (1990b, 1990a, 1990c) e de suas implicações sobre o desenvolvimento infantil, refletindo sobre o papel da Psicologia escolar na prevenção e enfrentamento desta problemática.

 

Violência: Contribuições da Psicologia da Libertação

A temática da violência tem sido amplamente estudada e elucidada por uma série de perspectivas psicológicas, com seus enfoques biologicistas, ambientalistas ou históricos (Jimerson, Hart, & Renshaw, 2011). A Psicologia Libertação propõe uma concepção sobre a violência dedicada a superar possíveis dicotomias na direção de uma compreensão dialética de sua gênese e consequências (Martin-Baró, 1990a). Com a intenção de favorecer a compreensão desta conjuntura faremos uma breve recuperação da literatura dedicada à abordagem da violência e, em seguida, nos dedicaremos às formulações de Ignácio Martín-Baró.

Conforme explica Minayo (2005), a violência tem sido estudada segundo suas manifestações que podem ser domésticas ou institucionais. Para esta autora, a violência deve ser considerada, segundo a natureza dos atos violentos, a partir de quatro modalidades possíveis: física, psicológica, sexual e aquela que envolve qualquer tipo de abandono ou negligência. O abuso físico denota o uso da força para produzir danos ou injúrias ao outro, o abuso psicológico envolve agressões verbais ou gestuais, o abuso sexual refere-se à imposição de práticas sexuais por meio de aliciamento ou ameaças e, o abandono diz respeito à ausência, recusa ou deserção de cuidados necessários a alguém que precise.

Em contrapartida a esta visão, outros pontos de vista, pautados na literatura internacional, enfatizam as relações sociais em que as expressões de violência se constituem. Este ponto de vista está ancorado, principalmente, no modelo ecológico proposto por Bronfenbrenner (2006). Segundo este modelo, os ambientes familiares, social, econômico e cultural funcionam como um todo organizado, no qual os subsistemas se articulam de modo inter-relacionado. Dessa forma, elementos da vida cotidiana, como a dinâmica das relações familiares, as condições de emprego, moradia e acesso aos serviços de saúde e assistência, o abuso de drogas lícitas e ilícitas e o envolvimento com o tráfico atuariam na constituição e manifestação de atos de violência.

Posteriormente, esta compreensão pautou os trabalhos que investigaram as circunstâncias de violência em que se desenvolvem a maioria das crianças e adolescentes do Brasil. Estes trabalhos destacam os indicadores macroestruturais, investigam condições de vulnerabilidade social, discutem a proeminência de fatores de risco e proteção e descrevem os impactos possíveis para o processo de desenvolvimento que assim se desenrola (Guzzo & Machado, 2007; Morais, Neiva-Silva, & Koller, 2010; Poletto & Koller, 2008; Yunes & Szymanski, 2001).

Outra modalidade de compreensão é oferecida pela chamada perspectiva crítica. A partir deste referencial, o trabalho de Azevedo (2009), por exemplo, explica a violência como um fenômeno historicamente constituído. Sob este ponto de vista, atos violentos estariam intimamente relacionados às características de organização de sociedades específicas. A Psicologia Histórico-Cultural também propõe que a violência seja considerada a partir de sua constituição histórica. No entanto, de acordo com Tanamachi (2007), o faz a partir da epistemologia histórico-dialética, ou seja, explicita as contradições que fundam a constituição dos fenômenos, a partir da sua materialidade que, a um só tempo, constitui e é constituída pelos sujeitos.

Finalmente, a Psicologia da Libertação formulada por Ignácio Martín-Baró como uma elaboração crítica construída especificamente no contexto da América Latina aborda, diretamente, a questão da violência para além de oferecer os princípios estruturantes para esta análise. Martin-Baró (1990a), parte da perspectiva psicossocial, que analisa a violência enquanto surge e se configura nas relações entre indivíduo e sociedade, visto que no âmbito destas relações constitutivas do ser humano, as forças sociais se materializam por meio dos indivíduos e grupos. No sentido de elucidar sua posição teórica, o autor aponta uma significativa confusão que se estabelece entre os conceitos de violência e agressão. Segundo ele, a agressão envolve a aplicação de uma força contra alguém com a intencionalidade de causar dano, enquanto a violência significa um estado ou situação que obrigue uma pessoa ou um grupo de pessoas a agirem contrariamente ao seu sentir ou parecer2.

Martin-Baró (1990a) aponta ainda quatro dimensões que constituem a violência: (a) A estrutura formal do ato, isto é, a violência assumirá a estrutura de instrumento (meio pra alcançar um objetivo) ou de finalidade (a violência é realizada por si); (b) A equação pessoal, que se define pelos elementos do ato que são explicáveis pelo caráter de seu executor; (c) O contexto possibilitador, que pode ser tanto um contexto amplo e social, como um contexto imediato, uma situação propícia e (d) O fundo ideológico, isto é, a perspectiva ideológica que se assume para caracterizar ou não algo como violência: se algo vai contra a ordem dominante, é considerado violência.

Dessa maneira, a Psicologia da Libertação organiza-se como uma construção teórica que surge a partir da inserção de Ignácio Martín-Baró na realidade da América Latina, e, portanto, aglutina elementos semelhantes àqueles que caracterizam a realidade brasileira. Por esta razão, anunciamos a Psicologia da Libertação como um fundamento a partir do qual refletimos sobre a temática da violência. A partir dela, pretendemos discutir a relação entre violência e escola, pois, apesar da considerável e já reconhecida literatura dedicada ao estudo desta relação, ainda é novidade considerá-la sob a ótica desta matriz teórica.

Como consequência desta opção, interessa-nos investigar quais são as possibilidades daí decorrentes para a compreensão do desenvolvimento das crianças no contexto das escolas públicas, cujas dimensões refletem as características da realidade brasileira. Portanto, o item seguinte será dedicado a uma reflexão do desenvolvimento infantil por meio de uma categoria elaborada no interior da Psicologia da Libertação: a situação-limite.

 

Desenvolvimento Infantil e situação-limite

Se o marco da Psicologia da Libertação amplia e problematiza a temática da violência ao nos oferecer a possibilidade de confrontá-la com as questões estruturais de ordem econômicas, sociais e políticas (Martin-Baró, 1990b, 1990c, 1997), ele também nos ensina a pensar sobre o quanto as relações instituídas por uma sociedade podem ser violentas ao se basearem em vínculos de opressão, submissão e exploração.

Assim, é no contexto desta elaboração que Martín-Baró sugere uma análise específica para a compreensão do impacto da violência no processo de desenvolvimento infantil, por meio da construção da categoria "situação-limite". Esta categoria é desenvolvida a partir das ideias de Freire (2016), para quem as situações-limite seriam as dimensões objetivas presentes no cotidiano da criança. Estas dimensões devem ser compreendidas em sua historicidade, não podendo ser consideradas como barreiras intransponíveis. O autor destaca a visão de Vieira Pinto (1960), em que o limite não demarca o espaço onde terminam as possibilidades, mas, sim, a margem onde elas começam. Estabelece-se aqui, por meio do anúncio de fundamentos filosóficos comuns, a relação com a ideia de crise anunciada por Vigotski (1933/2006) ao explicitar as características de desenvolvimento das funções psíquicas superiores. Ainda que a consideração detalhada desta relação não seja o escopo deste trabalho é preciso anunciar que ela tem sido objeto de estudo dos trabalhos que desenvolvemos (Moreira, 2015).

Da compreensão de crise assim organizada inaugura-se uma concepção essencialmente inovadora sobre as noções de patologia no interior da Psicologia. Isto significa dizer que, no contexto do desenvolvimento do psiquismo humano, nem todas as vivências críticas dizem respeito ao adoecimento ou à disfunção. Martin-Baró (1990a, 1990c) concebe os limites como processos imersos nas relações da criança com o mundo, e não como um fator externo que torna seu desenvolvimento fadado ao fracasso. A partir do referencial que toma as relações sociais como fonte do desenvolvimento, as situações-limite desvelam, por meio da identificação de eventos concretos, a possibilidade de mediação, superação e libertação. Aqui salientamos a concretude da lógica dialética que mobiliza esta compreensão. Não se deve associá-la a alguma forma de relativismo, mas, ao contrário, tomá-la como algo que garanta uma avaliação criteriosa das situações sociais de desenvolvimento. É preciso que saibamos quando a patologia se instaura e quando a crise é motor necessário de um desenvolvimento que segue um curso revolucionário (Vigotski, 1932/2006).

Ao propor a investigação da relação entre as expressões de violência e a escola, o presente trabalho expressa sua vinculação aos estudos de Moreira e Guzzo (2013, 2016) que apresentam evidências de que as ações na escola, quando balizadas pela identificação das situações-limite, são favorecedoras do desenvolvimento das crianças e adolescentes no cenário escolar. Esta proposição acentua as situações-limite como momentos críticos que, expressos nas situações do cotidiano escolar, circunstanciam o processo de desenvolvimento dos sujeitos, constituindo-se como seus determinantes subsequentes.

Partindo deste argumento, postulamos que as expressões de violência no cotidiano da escola, sejam elas físicas, psicológicas ou institucionais, podem constituir-se como situações-limite para o desenvolvimento das crianças e adolescentes. Nesta perspectiva, segundo Guzzo e Moreira (2012), a Psicologia da Libertação ilumina possibilidades de construção junto à Psicologia Escolar, chamando-a a inteirar-se da realidade da escola como palco da vida cotidiana de crianças e de suas famílias e advertindo-a contra o risco de construir diagnósticos apressados e prever tratamentos possivelmente equivocados.

A Psicologia da Libertação, por meio da categoria situação-limite desvela possibilidades ainda negligenciadas pela literatura psicológica acerca da presença de fenômenos de violência no espaço da escola. Por isso, o item seguinte pretende discutir a função da Psicologia na Educação. E, assim, esperamos explicitar as bases que justificam e anunciam o objetivo deste estudo: confrontar as ações de enfrentamento das situações de violência tomadas pelos professores da escola pública em que desenvolvemos o projeto de extensão com as diretrizes contidas no Projeto Político Pedagógico que orienta as ações pedagógicas na instituição.

 

Psicologia e Educação

Trouxemos no item anterior uma compreensão da violência e do desenvolvimento infantil a partir de uma perspectiva crítica da psicologia, que clama para que observemos mais detidamente as relações constitutivas que se estabelecem entre indivíduos e sociedade de modo a não nos deixarmos enganar por posições que pretendem fazer com que as pessoas se ajustem a situações explícita ou implicitamente violentas. Afinal, não se pode supor soluções individuais para questões estruturais (Martin-Baró, 1997).

Martin-Baró (1997) defende que a psicologia precisa assumir uma responsabilidade com as maiorias populares, contribuindo para a mudança das condições concretas de vida que as mantêm subordinadas à alienação e suprimem sua identidade histórica. No contexto da escola, isso significa que consigamos divisar com clareza urgente um modelo de atuação que decorra da interface entre Psicologia e Educação. A avaliação dos processos de desenvolvimento das crianças nas escolas pode e deve ser feita a partir dos fundamentos da Psicologia Histórico-Cultural (Guzzo, Moreira, & Mezzalira, 2011).

Nesta perspectiva, segundo Guzzo, Moreira e Mezzalira (2011), a psicologia escolar estaria intimamente relacionada à psicologia comunitária, pois emerge e atua na comunidade e busca compreender os fatores psicossociais presentes na construção das situações-limite. Desta forma, a intervenção da Psicologia escolar se expande e complexifica, na medida em que a criança na escola revela características da família, e a criança na família revela características da escola, e tanto escola quanto família revelam características de um país com determinada condição econômica, política, moral e cultural.

 

Método

As fontes de informação deste trabalho consistem no Projeto Político Pedagógico de uma escola de ensino fundamental localizada na Região Noroeste da cidade de Campinas-SP. A opção pela análise deste documento se fundamenta na compreensão de sua própria natureza. Segundo Aranda e Matias (2018), o projeto político pedagógico é um documento que tem sua origem na redemocratização do Brasil após o período de Ditadura Civil-Militar, a partir da Constituição de 1988 que institui a gestão democrática das instituições. A partir deste documento, cada comunidade escolar deveria definir sua concepção de homem, de escola e de sociedade e, assim, construir "a organização da escola, do trabalho docente e do ensino; a natureza das relações escolares; que conhecimento e que saberes ensinar; o caráter das práticas pedagógicas; as formas e meios de redimensionar a relação escola e sociedade" (Aranda & Matias, p.74). Desta forma, partimos do pressuposto que a questão da violência, que se constitui como um grande problema no cotidiano escolar, deve ser caracterizada no PPP, que também deve abordar os encaminhamentos e planos de enfrentamento estabelecidos pela comunidade escolar.

Também foram analisados 29 diários de campo produzidos por uma profissional de psicologia, por meio de sua inserção no projeto Voo da Águia. Moreira (2015) discute a escolha pela utilização de Diários de Campo como técnica de pesquisa, apontando sua potencialidade reveladora do olhar do psicólogo, que, neste caso, é parte integrante e se relaciona com as situações descritas. Ao trazer a perspectiva do sujeito/pesquisador, não desconsidera a perspectiva dos sujeitos participantes da pesquisa, mas busca registrá-la e interpretá-la na medida em que se revela nas relações estabelecidas no cotidiano compartilhado e coproduzido. Neste sentido, a própria construção dos diários já se institui como materialidade de autoria. Aqui importa dizer que subjetividade, tanto do pesquisador quanto dos sujeitos do cenário de pesquisa é dimensão constitutiva desta modalidade de pesquisa. A neutralidade é rechaçada como impossibilidade e considera-se o exercício refletido sobre a subjetividade que não se expressa como tendenciosa, mas se sustenta a partir dos princípios de rigor do método. Isto significa que o conteúdo do discurso cotidiano é transcrito e submetido à uma análise que inclui a subjetividade, mas a submete sempre a rigorosos critérios de interpretação (Schraube & Sørensen, 2013). Dos 29 diários analisados, 21 contém relatos que mencionam situações de violência. Ambas as fontes acumulam informações imediatas relacionadas aos objetivos anunciados por este trabalho. Pretendemos realizar um escrutínio entre as informações contidas no PPP que visam explicar e orientar as possíveis situações de violência com fragmentos da realidade que materializam a condução destas situações. Assim, delimita-se a execução de um estudo piloto que não pretende apresentar conclusões generalizadas, mas, ao contrário, espera nos convocar a todos para a necessária consideração da violência no contexto econômico e político que envolve o desenvolvimento das crianças e adolescentes no cenário da escola brasileira.

Este percurso metodológico delimita um esforço de proposição daquilo que poderíamos chamar de método de análise decorrente do Materialismo Histórico-Dialético. É um movimento que visa potencializar um percurso de confronto entre documentos que formalizam a prática dos profissionais nas escolas e a condução real destas práticas. É um passo inicial, de avaliação e escrutínio que, entendemos, deve anteceder ações posteriores de pesquisa capazes de engendrar o que Vigotski chamou de método genético (Vigotski, 1934/2001).

Nesse sentido, com relação ao PPP, as seguintes ações foram conduzidas: conduzimos uma leitura detalhada da sua totalidade, em seguida realizamos a extração de trechos que correspondiam às orientações de encaminhamento para situações de violência ou à sua prevenção. Os trechos foram categorizados conforme o título sob o qual apareciam no projeto político pedagógico. Finalmente, quando este processo estava concluído, realizamos a leitura detalhada dos diários de campo com o objetivo de extrair do seu conteúdo as situações cotidianas de violência que foram vivenciadas e devidamente registradas. O passo seguinte envolveu uma leitura comparativa entre o conteúdo extraído do PPP e dos diários de campo. Esta análise transversal é o cerne da pesquisa. Dela decorre um processo de organização de novas categorias estabelecidas a partir do confronto entre as duas fontes de informação. Isto é o que podemos chamar de resultado da análise, é um esforço de produção de categorias a partir dos fundamentos teóricos que nos sustentam. As categorias são, portanto, delimitadoras das sínteses. Ao explorarmos cada categoria alcançamos um conjunto de conhecimentos depurados da iniciativa de pesquisa-intervenção. É o que se pode extrair da práxis e o que se pode tomar como orientador de ações e pesquisas subsequentes.

 

Resultados e discussão

A partir da análise à qual nos referimos foram construídas sete categorias que anunciam as expressões de violência identificadas: (a) Relações de poder do crime na comunidade; (b) Dinâmicas de violência na família da criança; (c) Expressões de violência na relação professor-estudante; (d) Expressões de violência na relação estudante-professor; (e) Expressões de violência na relação entre estudantes.

Cada categoria será exposta e ilustrada com trechos de trechos de diários de campo, contendo a descrição das situações, bem como a ação dos educadores sobre elas, e o que há no projeto político pedagógico sobre essa questão. Foi construída também, uma categoria específica para análise mais aprofundada das compreensões e ações dos educadores. Ela constitui-se como a sexta categoria e foi assim nomeada: 6. Sentimentos e compreensões dos professores e equipe administrativo-pedagógica. Passamos a exposição e discussão de cada uma delas:

1. Relações de poder do crime na comunidade

Dados dos diários de campo. O crime organizado está presente no cotidiano escolar e estabelece uma delicada dinâmica de disputa de poder. A tensão que se estabelece entre trabalho, emprego e informalidade ultrapassa a compreensão que se estabelece a este respeito no interior da escola. Os dispositivos legais não podem ser utilizados porque eles não absorvem as dimensões da realidade. Aqui, destaca-se dimensões variadas de violência, desde a formação dos professores que não contempla a compreensão desta política até às condições de desenvolvimento das crianças que dependem do recurso financeiro proveniente do tráfico. Observemos:

A professora falou ainda sobre a dinâmica daquela comunidade, explicando que o pessoal da "boca" é quem toma conta da região. Ela diz que um dos portões da escola fica aberto o dia todo, inclusive à noite porque isso é uma exigência dos chefes da comunidade. Eles entram na escola para usar o pátio e a quadra. Ela disse que quando o portão é fechado eles entram, roubam e picham, mas quando fica aberto, eles protegem o espaço e cuidam dele. (DC02)

Dados do Projeto Político Pedagógico. Sobre a questão do crime organizado, o Projeto Político Pedagógico (PPP) não apresenta qualquer encaminhamento específico. Apesar de ser uma questão que afeta claramente o ambiente escolar, a questão é tratada como "política de boa vizinhança", isto é, a comunidade escolar submete-se as exigências do tráfico que, por sua vez, preserva o espaço escolar. O que ultrapassa a esfera do espaço físico, contudo, não entra nesse "acordo" e não é assumido como uma responsabilidade da escola ou dos dispositivos de supervisão educacional. Não há uma discussão sobre a questão social do trabalho ou encaminhamento coletivo para os dispositivos de Assistência Social.

2. Dinâmicas de violência na família da criança

Dados dos diários de campo. Nos relatos sobre violência na escola, uma das questões predominantes é a família da criança. As relações violentas na escola se revelam, na compreensão dos educadores, como uma expressão do ambiente familiar em que a criança se desenvolve. Nota-se uma iniciativa de imputação de responsabilidade às famílias quando, na realidade, elas se organizam a partir de uma possibilidade de sobrevivência que se engendra nos limites da relação com a pobreza. L.C. é uma criança cujos pais trabalham no tráfico de drogas e que acumula um grande número de faltas na escola, apesar de sempre ser visto nas redondezas:

Segundo a secretária da escola que mora no bairro, a mãe de L.C. é traficante e a casa onde moram é ponto de venda de drogas, por isso, a mãe sai de casa com frequência deixando os filhos sozinhos. O pai, segundo palavras da secretária, é 'um coitado' que vive sem saber o que fazer, submisso aos desmandos da mãe. (DC19)

Este trecho revela a sutileza desta relação que se estabelece na conjuntura do tráfico. É preciso que tenhamos clareza absoluta sobre os critérios que visam garantir a proteção das crianças nas circunstâncias de vulnerabilidade social (Dias & Guzzo, 2018). Mas, também é preciso que não nos afastemos das condições políticas que envolvem esta proteção. Imputar exclusivamente à família uma responsabilidade que é social não se configura como uma alternativa para esta problemática. Por isso, apontamos a necessidade de que a escola assuma a centralidade do processo de condução do desenvolvimento das crianças e adolescentes, que requer a compreensão de que isto significa a promoção do desenvolvimento das famílias. E, para que isso aconteça, é preciso que nos articulemos conjuntamente, porque, de outro modo, estaríamos, contraditoriamente, imputando também a responsabilidade exclusiva aos atores das escolas.

Foram encontrados também, relatos que envolviam questões de violência doméstica e negligência por parte dos cuidadores. Nos dois relatos a seguir, é possível observar as questões de negligência que chegam ao conhecimento da equipe escolar. Neste trecho, destaca-se uma conversa entre a diretora e a psicóloga:

Ela começou a falar sobre os 'casos' da semana com ênfase nos alunos do sexto ano, especialmente, M.R., cujo pai estivera na escola esta semana falando que iria 'entregar' o filho e queria saber quais eram os procedimentos para isso. A diretora notou meu espanto e então perguntei o que isso significava. Ela disse que quando os pais usam esta expressão eles estão se referindo a procurar o juiz da vara da infância e assinar um termo que o coloca na responsabilidade do juizado. (DC13)

Na fala da diretora, evidencia-se o fato de que casos como este já ocorreram mais de uma vez: "quando os pais usam esta expressão". A situação de violência, assim como vimos acentuando, claramente atravessa as conjunturas sociais e atinge com extrema dureza as pessoas singularmente. Como discutir a possibilidade de que essa família negligencie seus filhos sem considerar que há muito vem sendo negligenciada pelo Estado?

Ainda neste âmbito da discussão, diversos são os casos em que a violência doméstica está presente no cotidiano da criança. Um exemplo se revela quando uma das funcionárias da escola conta à psicóloga:

Quando chegamos à escola, procurei L. e pedi que ela me contasse os detalhes do episódio de agressão. Ela disse que naquele dia, C. (professora de R.) havia segurado as crianças na sala por alguns minutos além do horário e quando R. se aproximou do portão, a mãe já a aguardava do lado de fora de um carro dirigido pelo irmão. Segundo ela, a mãe a chacoalhou com força dizendo que ela estava atrasada e a jogou no banco traseiro do carro golpeando a sua cabeça (DC08)

É possível identificar dificuldades expostas por professoras ao tentar lidar com situações de violência sofridas por seus estudantes no âmbito familiar. Neste trecho, duas professoras conversam com a psicóloga do projeto:

Quando entrei no corredor, D. e J. já me esperavam. Foi uma reunião agradável e produtiva, ... Elas reafirmaram minha sensação de que os encaminhamentos não estavam conseguindo atravessar o que dependia da gestão, as convocações não estavam sendo feitas, o Conselho Tutelar não era acionado quando necessário e as reuniões conjuntas não eram feitas. Elas me pediram para agilizar o que eu pudesse a partir da autonomia oferecida pela diretora, dizendo que elas fariam o mesmo e que assim tentássemos ter a presença de alguém da gestão para as reuniões que nós marcássemos. (DC20)

Dados do Projeto Político Pedagógico. "Amenizar a violência" encontra-se dentre os propósitos explicitados no corpo do PPP e, para tanto, o texto do documento faz uma pequena reflexão sobre como concebe a relação família/escola, e sua influência nas relações violentas que se estabelecem no ambiente escolar:

Há uma preocupação grande da escola no cuidado com os alunos, pois entendemos que educar e cuidar caminham juntos, pois no momento social que vivemos com a gritante crise familiar e de seu papel na educação dos filhos, muito do que deveria ser função da família acaba sendo repassado a escola. É claro que não é nossa obrigação transmitir valores familiares aos nossos alunos, mas temos que prepará-los para vida em sociedade como cidadãos cônscios de seus direitos e deveres. Assim devemos ser um "amigo" dos alunos, isto é, estarmos abertos a escutar os alunos em suas angústias para ajudá-los a saná-las e a serem mais resilientes, proativos, aumentando suas autoestimas e capacidade de absorver os conteúdos trabalhados. (PPP, p.76)

Neste trecho, a escola apresenta-se como responsável pelo cuidado dos estudantes, buscando, para isto, estabelecer uma relação de confiança e ouvi-los. No entanto, observamos no conteúdo do documento uma lacuna já retratada na literatura que explora o papel da educação, a função do professor e os dilemas que se estabelecem entre cuidar e educar. Certamente, as políticas de educação não têm sido capazes de explorar a complexidade deste conteúdo que acaba por antagonizar escolas e famílias quando não se pode admitir que restem dúvidas quanto à função dos professores, inclusive, com relação às famílias (Oliveira & Marinho-Araújo, 2010).

3. Expressões de violência na relação professor-estudante

Dados dos diários de campo. Muitas vezes, as relações violentas na escola ocorrem no interior da relação professor-estudante, conforme expressa a orientadora pedagógica:

O principal problema que eles enfrentam são as relações entre professores e alunos, especialmente do último ano. O "lidar de igual para igual" revela que, nestes casos, o professor já não se reconhece no papel de educador, como no relato a seguir: "... fiquei na portaria conversando com a funcionária L. .... Ela disse que com uma semana de trabalho já conquistou várias crianças. Disse que não concorda com a postura da maioria dos professores e funcionários que gritam com os alunos. (DC02)

O conteúdo sobre a relação entre professores e estudantes também aparece nas falas das famílias, como revela o trecho a seguir:

(M., mãe do aluno G.) reclamou do relacionamento entre C. (professora) e G., ela acha que às vezes a professora o discrimina quando faz com que ele se sente ao lado da mesa dela e disse que suspeita que ela o chame de burro, porque ele tem dito isso aos amigos e quando interpelado sobre as razões, desconversou. A mãe acha que ele protege a professora porque, apesar de tudo, eles têm um bom vínculo. (DC10)

Dados do Projeto Político Pedagógico. Para iniciar a discussão sobre a questão da violência, o PPP faz uma reflexão sobre a "Cultura de Paz". Há uma pequena definição do que se compreende por Cultura de Paz: "Respeitar a vida e a diversidade, rejeitar a violência, ouvir o outro para compreendê-lo, preservar o planeta, redescobrir a solidariedade, buscar equilíbrio nas relações de gênero e étnicas, fortalecer a democracia e os direitos humanos" (PPP, p 83).

Aqui, mais uma vez, observamos a lacuna que se estabelece entre os fundamentos teóricos que deveriam sustentar a formalização de um PPP e a realidade de produção deste documento. Os pressupostos psicológicos e pedagógicos se perdem em uma intrincada mistura de resvala em argumentos pseudocientíficos e reducionistas.

4. Expressões de violência na relação estudante-professor

Dados dos diários de campo. No que concerne aos estudantes, foram identificadas situações em que agridem pessoas que trabalham da escola. Nesta situação, quem é agredida é a diretora da escola: "J. contou-me ainda que na quinta-feira passada uma aluna do oitavo ano havia batido no rosto da diretora quando ela tentara impedir a garota de usar o celular na escola, conforme as regras elaboradas pelos professores" (DC16).

Dados do Projeto Político Pedagógico. O PPP não discrimina encaminhamentos para agressões feitas contra estudantes, professores, funcionários ou gestores.

5. Expressões de violência na relação entre estudantes

Dados dos diários de campo. As expressões de violência entre estudantes são extremamente comuns nos diários de campo. Elas assumem diversas formas, seja verbal ou física. B., estudante do 8º ano, por exemplo, relata à psicóloga seu sofrimento:

Ela me disse que preferia nem comer na escola porque os alunos do 8º ano B a xingavam e colocavam apelidos como feia, horrorosa e Fiona. Ela disse que se sentia constrangida e que se afastava ... disse que era difícil porque quanto mais os colegas diziam que ela era feia, mais ela acreditava que ela era mesmo feia e que estava cada dia mais feia. (DC03)

A escola tem também que lidar com expressões de violência entre estudantes, nas quais a agressão física pode gerar sérias consequências à vítima:

A professora V. é a mais antiga da escola é já tem mais de 60 anos. Ela é aposentada pelo estado e trabalha agora no município. A.L. contou que J. entrara na sala com uma barra de ferro dizendo que bateria no K. A professora interveio, mas a confusão piorou. J., chuta, bate e xinga. Segundo as meninas na secretaria, V. ficou muito perturbada e abalada. Ela tremia muito e não conseguia se acalmar. (DC05)

As ocorrências de violência repercutem no sentimento de insegurança, não apenas para aqueles diretamente envolvidos na situação, mas em toda a comunidade escolar:

Vimos que o episódio do dia anterior havia mobilizado a escola toda. As meninas estavam agitadas, diziam que a escola estava horrível e que a diretora deveria tomar alguma providência, 'porque senão daqui há alguns anos o J. voltaria e mataria as pessoas, como fez aquele rapaz em Realengo'. (DC05)

É possível identificar na fala das estudantes, uma concepção de centralização do poder nas mãos da direção, uma vez que não encaram a resolução de problemas como responsabilidade de toda a comunidade escolar, mas unicamente da diretora.

Dados do Projeto Político Pedagógico: O PPP apresenta a seguinte reflexão sobre a violência e seus diversos determinantes:

Cada agressão que vemos entre qualquer um de nós que vive em uma Unidade Escolar deve ser conversada e pensada, ainda que não seja naquele dia de fúria em que nos vemos envolvidos, é necessário retomar no dia seguinte, quando os ânimos já se acalmaram. Estarmos atentos para os pequenos detalhes de agressão, onde alguém se magoa, (as pessoas têm grau de tolerância bem diferentes), e conversar sobre o assunto, em particular ou na sala, talvez seja um caminho. Penso que determinadas ocasiões são as únicas onde as crianças e adolescentes pensarão sobre determinados assuntos (brincadeiras de mau gosto, apelidos, brigas, ofensas, etc. (PPP, p. 82)

Neste fragmento notamos indícios produtivos no que diz respeito à construção de uma possível abordagem coletiva para o enfrentamento das marcas da violência entre os atores da escola. Mas, ainda não é possível notar práticas que efetivamente produzam modificação nas situações de violência.

6. Sentimentos e compreensões dos professores e funcionários

Dados dos diários de campo. As relações de violência na escola despertam inúmeros sentimentos nos professores. Tendo em vista o enfraquecimento das ações coletivas, diferentes são as perspectivas e ações sobre as situações de violência que identificam na escola. A psicóloga comenta sobre uma das professoras:

Ela é uma professora vivaz e disposta, investiga a vida de cada um de seus alunos e recorre a estratégias diversas para promover seu desenvolvimento. Ela não se contenta com o usual, faz pesquisas e procura profissionais de outros serviços para complementar seus recursos pedagógicos. (DC18)

Este trecho revela um esforço individual feito por uma professora no sentido de estabelecer a atuação que ela considera mais eficaz. Esta conjuntura revela uma ausência de organização metodológica coletiva que formalize a formação e intervenção das professoras sobre processos que são, intrinsecamente, pedagógicos.

A professora verbaliza que não acredita mais na educação, que não se aposentou ainda para não ter o seu salário reduzido pela metade, mas acentuou que não precisa dele, que sua vida está estabilizada e que ela gasta este dinheiro à toa. Mas, impressionantemente, ela disse que a razão deste caos é social, que nas nossas salas não vemos um único descendente de europeu. (DC10)

Infelizmente, concepções e comentários como os desta professora são frequentemente encontrados em nossas intervenções nas escolas. Sobre isso, Guzzo e Nogueira (2017) realizam uma importante reflexão, apontando a necessidade de se repensar a educação das relações étnico-raciais no Brasil, no sentido de desnaturalizar concepções construídas historicamente sobre a supremacia racial branca e a suposta inferioridade de povos não brancos. Temos uma Lei de 2003, que estabelece a obrigatoriedade da inclusão da temática "História e Cultura Afro-Brasileira" no currículo (Lei n. 10.639/2003), e 15 anos depois ainda observamos este discurso, o que demonstra a necessidade de se avançar na consolidação desta lei e na construção de uma verdadeira democracia racial no Brasil.

Além disso, essa professora, assim como outros, apresenta sentimentos de fatalismo e desânimo em relação às mudanças, esperando sempre da direção uma espécie de punição para seus estudantes:

O clima da reunião confirmou hipóteses que eu já nutria. Os professores parecem muito cansados e descrentes com questões pontuais referentes à indisciplina e violência e esperam resoluções rápidas e também individuais, fazendo referência, sempre, aos 'problemas da minha sala de aula'. É possível notar que alguns professores possuem opiniões preconceituosas e uma visão restrita do que seja a educação. A professora M.A., por exemplo, disse que não concorda em prejudicar sua sala de aula por conta de dois ou três alunos que a sociedade e o discurso politicamente correto dizem que são coitados, porque suas 'famílias são desestruturadas'. Ela disse que não se preocupa com eles e que a providência deve ser sempre puni-los e/ou retira-los da sala. Outros professores, como I. e C. parecem mais engajados, analisam a situação mais amplamente e consideram as questões macro, mas ainda esperam soluções punitivas e dizem que não podem prejudicar seus alunos que estão bem. I. chegou a sugerir que seus três alunos mais difíceis fossem suspensos para que ele tivesse oportunidade de se dedicar mais aos seus alunos que estão quase alfabetizados. ... Eles retomaram a discussão sobre as regras, mas ficou claro que o que eles tem chamado de regras na verdade é uma discussão sobre quais seriam as punições para quem descumprisse as regras estabelecidas pelos professores. (DC14)

Neste relato, é possível identificar uma série de concepções que dificultam o avanço da escola enquanto um espaço democrático e promotor do desenvolvimento. A própria orientadora pedagógica da escola compartilha de uma visão que focaliza as penalidades, frustrando-se com a direção, pois não a vê punindo suficientemente os estudantes que infringem as regras:

A coordenadora pedagógica me falou longamente do seu desconforto, do desânimo com as coisas da escola e do seu descontentamento com as posturas da diretora. Ela e os professores esperam que ela coloque limites, suspendendo os alunos e não conversando com eles. ... A diretora, por sua vez, parece abatida e perdida, especialmente, depois do episódio com a aluna que a agrediu. Ela tenta defender uma direção democrática, mas que é confundida com falta de firmeza. (DC22)

Mais uma vez, compreende-se o papel da gestão como a centralização do poder e responsável direta pelos problemas da escola, ao invés de uma construção coletiva de possibilidades de enfrentamento. Enquanto os princípios de gestão democrática são defendidas (Araújo, 2009; Chagas & Pedroza, 2013) e garantidas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n. 9.394/1996), a comunidade escolar sinaliza aspirar uma gestão autoritária.

Dados do Projeto Político Pedagógico. Alguns espaços são determinados para discussão das questões trazidas pelos professores no PPP, tais como a RPAI e o TDC. A RPAI consiste em "reuniões periódicas e pontuais em que participam professores, funcionários e equipe gestora e onde são discutidos ... assuntos que exijam decisões coletivas sobre o trabalho pedagógico na unidade e outros assuntos pertinentes as questões do cotidiano" (PPP, p. 42). O TDC é apresentado dentre as atividades desenvolvidas nos tempos pedagógicos, como um espaço de formação dos professores e socialização de experiências.

Todavia, não é possível notar uma organização mais efetiva no sentido do aproveitamento destes espaços para o estabelecimento e aplicação de critérios pedagógicos ou psicológicos para conduzir a dinâmica da violência no cotidiano escolar. Esta iniciativa inicial representa nosso esforço de estabelecer as principais características do cotidiano de uma escola no que diz respeito aos processos de enfrentamento da violência. Faremos algumas considerações a este respeito com a convicção de que é mais do que necessária a condução de estudos posteriores a este respeito.

 

Considerações finais

O confronto dos dados dos diários de campo com os do projeto político pedagógico da escola revelou uma série de contradições que permeia a vida cotidiana escolar. Evidencia-se que as relações de violência se sobressaem na escola, tanto quantitativamente, visto que esta questão foi identificada em 21 dentre 29 diários de campo lidos, quanto qualitativamente, pois é possível verificar quase todos os tipos de violência descritos por Minayo (2005).

Se por um lado é evidente que diferentes situações-limite vivenciadas pelas crianças e adolescentes se sobressaem na escola, por outro, parece não haver uma clareza entre o que é responsabilidade da escola e o que não é. Isto porque muitas questões são trazidas de fora para dentro (a questão do tráfico e da violência familiar são dois bons exemplos). No entanto, estas questões se relacionam com as atividades escolares, pois tanto prejudicam a convivência das crianças, quanto as relações sociais que se estabelecem na escola, visto que nelas há uma reprodução da violência estabelecida também em outros espaços.

Os resultados demonstraram que professores e orientadora pedagógica tenderam a compreender as situações de violência como causadas por características individuais, o que gera sentimentos de fatalismo e impotência diante desta realidade e as faz enxergar as punições como o encaminhamento apropriado. Isto revela uma espantosa ausência de compreensão sobre o papel da escola e a função do professor e dos atores escolares na construção de ações para o enfrentamento das situações-limite, que guardam a potencialidade do desenvolvimento saudável.

A Psicologia tradicional não parece oferecer, realmente, os fundamentos sobre o que significa o processo de desenvolvimento psíquico no bojo das relações pedagógicas. Uma breve análise da literatura nos faz, inclusive, notar uma tendência de que elaborações psicológicas, por um lado, se somem ao discurso que culpabiliza e, por outro, se afastam dos critérios da conjuntura teórica que afirmam defender (Guarda, Luz, Rodrigues, & Beltrame, 2017). A dimensão da crítica na Psicologia não pode referendar uma espécie de espontaneísmo no que diz respeito às suas noções de desenvolvimento. É preciso que se tenha clareza sobre o que e como se desenvolve aquilo que chamamos de psiquismo. É preciso que insistamos em evidenciar as conexões deste desenvolvimento com o conteúdo formal oferecido pelos professores. E é preciso que nos dediquemos à atividade de ampliar o debate político no interior das escolas, estreitando as iniciativas junto aos dispositivos de Saúde e Assistência (Martins, 2011). Ao trazer para a escola estes conhecimentos e discutir com os atores escolares as possibilidades de ação que se desvelam a partir dos limites identificados cotidianamente, a psicologia pode trazer grandes contribuições, apontando caminhos para a realização das máximas potencialidades no desenvolvimento dos estudantes.

Nesse sentido, é que apontamos a importância da obra de Martín-Baró, especialmente, seu conteúdo dedicado à explicação e análise das expressões de violência, para os estudos e pesquisas no âmbito da Psicologia Escolar e Educacional. É preciso que a conjuntura da violência no cotidiano seja abordada em suas dimensões estruturais universalizadas para que suas características cotidianas, no interior das escolas, seja abordada de maneira singular, mas nunca individualizante.

Concluímos neste trabalho, que diante das contradições que permeiam a escola pública, há dois caminhos a seguir: o primeiro é ignorar as relações sociais que constituem a criança, tratando a violência como um problema pontual e individual que deve ser tratado com punição e disciplina, como propõe o modelo das escolas Cívico-Militares; o segundo, consiste em exercitar a crítica no âmbito das contradições que se evidenciam e assumir a responsabilidade pela construção democrática de um projeto político pedagógico com princípios que orientem, efetivamente, as práticas cotidianas para a formação integral da criança. Sabemos que a segunda não é o caminho mais simples, e que assumir esta responsabilidade implica em um trabalho árduo e, necessariamente, coletivo.

Por isso, defendemos a integração da psicologia escolar nas equipes educativas. Acreditamos a Psicologia oferece os fundamentos necessários para que o professor compreenda os rumos do seu trabalho, e promova o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Esta complementaridade é crucial para que as dinâmicas das situações sociais de desenvolvimento não sejam apartadas do desenvolvimento psíquico efetivamente possível. As escolas, como espaços importantes de desenvolvimento das crianças e adolescentes precisam desenvolver ações coletivas institucionalizadas, programadas e avaliadas, para que os indicadores de violência sejam conhecidos e monitorados por todos agentes envolvidos nesse processo, desde gestores das políticas até as famílias e as próprias crianças, que têm o direito de viverem em um espaço saudável e seguro para crescerem e aprenderem o que necessitam para desenvolverem suas potencialidades.

 

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Recebido em: 19/10/2019
Aprovado em: 03/07/2020

 

 

1 A ideia de drama pertence à epistemologia da Psicologia Histórico-Cultural. Vigotski busca na analogia com o teatro a explicitação da dialética que circunscreve o desenvolvimento das funções psíquicas superiores. Para uma análise mais acurada a este respeito, ver Delari (2011).
2 Así, resulta posible hablar de violência estrutural o institucional, ya que las estructuras sociales pueden aplicar uma fuerza que saque a las personas de su estado o situación, o que les obligue a actuar en contra de su sentir y parecer (Martín-Baró, 2003, p. 75).

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