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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.22 no.54 São Paulo maio/ago. 2022

 

ARTIGO ORIGINAL

 

As ruas e provocações à transcendência: espiritualidade na produção imanente de comuns

 

The streets and provocations to transcendence: spirituality in the immanent production of commons

 

Las calles y las provocaciones a la transcendência: espiritulidad en la produción inmanente de comunes

 

 

André Feliphe Jales CoutinhoI; Ana Karenina de Melo ArraesII; Maria Teresa NobreIII

IPrefeitura de Parnamirim/RN. Secretaria Municipal de Saúde. CAPS i de Parnamirim. andrefeliphepsi@gmail.com
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). akarraes@gmail.com
IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). teresa-nobre@uol.com.br

 

 


RESUMO

Trata-se de uma pesquisa-intervenção desenvolvida entre o final de 2013 e 2016, referente à caracterização das condições de vida, das histórias de vida e das violações de direitos contra a população em situação de rua. Foram realizadas 159 entrevistas semiestruturadas e narrativas de histórias de vida, com registro em diários de campos e análise de documentos políticos institucionais. Esse trabalho focalizou a temática da espiritualidade, religiosidade e religião nesses contextos. Nas narrativas se utilizou a própria linguagem do campo de pesquisa, conforme as influências etnográficas. Essa produção textual se limitou a conectar os fenômenos ditos transcendentes com aspectos imanentes das vidas dessas pessoas. Valeu-se, também, do conceito de espiritualidade nesse ancoramento, procurando produzir um discurso que facilitasse o encontro dos contextos das ruas dos sujeitos com diferentes aproximações: religiosas ou não religiosas, espirituais ou não espirituais, colaborando na produção de comuns nas diferenças.

Palavras-chave: População em situação de rua; Religião; Espiritualidade; Direitos Humanos; Narrativas.


ABSTRACT

This is an intervention research developed between the end of 2013 and 2016, referring to the characterization of living conditions, life stories and human rights violations against the homeless population. During this investigation, 159 semi-structured interviews and life story narratives were carried out, with records in field diaries and analysis of institucional policy documents. This work focuses on the theme of spirituality, religiosity and religion in these contexts. In the narratives, the language of the research field was used, according to ethnographic influences. This textual production was limited to connecting the so-called transcendent phenomena with the immanent aspects of these people's lives. The concept of spirituality was also used in this anchoring, seeking to produce a discourse that facilitated the encounter of the subjects's contexts through different approaches: religious or non-religious, spiritual or non-spiritual, collaborating in the production of commonalities in differences.

Keywords: Homeless population; Religion; Spirituality; Human Rights; Narratives.


RESUMÉN

Esta investigación-intervención desarrollada entre finales de 2013 y 2016, se refiere a la caracterización de las condiciones de vida, histórias de vida y violaciones de derechos de la población sin hogar. Se llevaron 159 entrevistas semiestructuradas y narrativas de vida, con registros en diarios de campo y análise de documentos políticos institucionales. Este trabajo se centró en el tema de la espiritualidad, la religiosidad y la religión en estos contextos. En las narrativas se utilizó el linguaje própria del campo de investigación, conforme las influencias etnográficas. Esta produción textual se limitó a conectar los llamados fenómenos trascendentes con aspectos inmanentes de las vidas de estas personas. También utilizó el concepto de espiritualidad en este anclaje, buscando producir un discurso que facilitara el encuentro de los contextos de las calles con diferentes enfoques: religiosos o no religiosos, espirituales o no espirituales, colaborando en la producción de comunes en las diferencias.

Palabras clave: Población sin hogar; Religión; Espiritualidad; Derechos Humanos; Narrativas.


 

 

A historicização do fenômeno da "população em situação de rua": uma introdução

O reconhecimento contemporâneo do fenômeno "pessoas em situação de rua" atravessa as moralizações e culpabilizações da sociedade em geral e das próprias pessoas em situação de rua reproduzidas socialmente através de termos como: moradores de rua, mendigos, pedintes, preguiçosos, vagabundos, drogados, marginais, criminosos ou bandidos. No Brasil, o Estado amparado em tais identidades tratou essa questão, de acordo com Maria Carolina Ferro (2012), tanto criminalizando e reprimindo, com violência e higienização dos centros urbanos, como invisibilizando, com negligência ou políticas assistenciais ínfimas. Ambas as abordagens (coerção e omissão) são políticas de Estado que coexistiram com ações de diversos grupos filantrópicos com o lema de "caridade aos mais necessitados" (p. 39).

Em outra via de apreensão desse fenômeno, se defende a importância de historicizar essa condição de vida, compreendendo que tal condição ocorre por meio de relações sociais, logo, são (re)produções humanas que podem seguir outros percursos (ou não), superando as opressões habitualmente invisibilizadas. Essas opressões se inscrevem nas biografias dessa população antes mesmo da inserção na situação de rua e nela se perseveram de outros modos, não sem resistências individuais e coletivas. Instaura-se, assim, uma tensão entre invisibilidade e visibilidade perversa: sua presença na cidade é invisibilizada em termos de direito à cidade e outros direitos fundamentais (moradia, trabalho etc.), enquanto são identificados pelos incômodos que provocam (ocupação "indevida" dos espaços urbanos, modos incomuns de circulação na cidade etc.). Essas práticas tencionam a relação dentro-fora da sociedade e os processos de exclusão social. A perspectiva "do fora" desresponsabiliza a coletividade em defrontar-se com certas proximidades árduas e incômodas por sinalizarem questões sobre todo o corpo social que exigem mudanças do status quo.

Esse grupo social denunciou aspectos da dimensão social contemporânea bastante contraditórios a partir de um massacre na Praça da Sé (SP), em 20041, com sete pessoas em situação de rua mortas e oito gravemente feridas, com atos semelhantes em outros estados brasileiros. Esse acontecimento permitiu a construção do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), em 2005. Com tal organização política e em uma conjuntura favorável, embora limitada, aos movimentos sociais, com Lula na Presidência da República, foi possível conquistas significativas. Entre elas, a Política Nacional para a População em Situação de Rua e o Comitê de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População de Rua (CIAMP Rua), em 2009 (Almeida, 2015).

Apesar de um longo histórico de negligência e de atraso na implantação de uma política pública específica para esse segmento populacional, não se pode desconsiderar os avanços no reconhecimento dessa questão pelo Estado Brasileiro com documentos oficiais e com a criação de serviços específicos. Isso após as mobilizações políticas do MNPR, conquistando uma participação ampliada nos espaços de controle social. Mesmo assim, esses avanços ainda não são suficientes para a superação das omissões e violências sofridas contra os que permanecem na rua, sem acesso a outros espaços e direitos sociais.

 

O contexto de origem da pesquisa-intervenção e sua composição "caminhante": enunciando os incêndios do capital e anunciando possibilidades de gentilezas

As transformações nos discursos e práticas referentes a esse grupo social no âmbito brasileiro permitiu que o Centro de Referência em Direitos Humanos da UFRN (CRDH/UFRN), criado em 2011, desenvolvesse atividades de pesquisa, extensão e ensino com a população em situação de rua local (Almeida et al., 2015). Em 23 de outubro de 2012 foi organizado um evento chamado "Vivências de rua: sou invisível pra você?", que marcou publicamente o início da parceria, contando, aproximadamente, com a participação de 50 pessoas em situação de rua e com a então coordenadora nacional do MNPR, Maria Lúcia Santos Pereira da Silva, dando início a uma articulação para formação e organização política, com representantes na cidade neste movimento social. A partir dessa aproximação institucional UFRN-CRDH-MNPR essa temática foi se consolidando tanto na universidade, quanto na sociedade, visibilizando-se para alguns atores sociais e figuras públicas importantes na cidade. Isso chegou a provocar deslocamentos transformadores nos discursos e nas práticas e/ou a tencionar os lugares instituídos em tratar essa questão: ora com assistencialismo, ora com modos coercitivos de controle e punição. Tal consolidação foi possível com a construção de espaços contínuos como oficinas, reuniões e grupos de estudos, visando uma apropriação maior desse fenômeno e iniciando um diagnóstico dessa realidade no âmbito da cidade.

Para realizar este trabalho junto a população em situação de rua, era necessário conhecer essa população, pois não havia pesquisas ou outras informações oficiais a respeito no contexto regional. Movidos pelo interesse de conhecer, caracterizar e ao mesmo tempo intervir junto às demandas relativas às violações de direitos humanos, é que esta pesquisa-intervenção se desenvolveu, ao lado de outros trabalhos de pesquisa e extensão universitária, entre 2013 e 2018. Esses processos também proporcionaram acompanhamentos psicossociais e atuação coletiva voltada à construção de possibilidades de vida e luta por direitos sociais.

No tocante aos aspectos teórico-metodológicos, trata-se de uma pesquisa-intervenção, que se caracteriza como uma forma de construção do conhecimento que contempla a inseparabilidade entre pesquisador e fenômenos investigados. Dessa forma, se busca colocar em análise as relações entre sujeito e objeto e entre teoria e prática. Esse posicionamento não busca mudanças imediatas, mas utiliza a pesquisa-intervenção como um dispositivo de transformação no cotidiano, construídas entre a macro e a micropolítica (Rocha & Aguiar, 2003). Nessa perspectiva metodológica, é colocada em questão a posição do pesquisador, suas expectativas de modificar essa posição, bem como as influências que o coletivo realiza na construção desse caminho e os riscos inerentes a qualquer fluxo colocado em ação (Paulon, 2005).

Outro marcador teórico e metodológico significativo foi a sua inspiração etnográfica, sendo a pesquisa pensada como prática e experiência (Magnani, 2009). Trata-se de buscar uma inserção profunda no campo, na sua rede complexa de interações, trocas e conflitos, numa aproximação "de perto e de dentro", percebendo os arranjos, as possibilidades e os movimentos dos atores sociais, que imprimem sentido às suas práticas nas paisagens e cenários onde ocorrem. Neste sentido, é preciso estar atento tanto aos encontros inusitados quanto aos fatos corriqueiros, não apenas para observá-los, mas sobretudo para vivenciá-los intensamente, numa experiência de deixar-se guiar pelo campo e de ser afetado pelo que nele acontece. Faz parte desse percurso o registro em diário de campo das experiências, impressões e sensações vividas e também de informações colhidas, o que representa uma rica fonte de dados sobre esse encontro com o universo do outro e uma releitura dos seus significados, contemplando as singularidades e a totalidade do campo.

Com esse aporte epistemológico e teórico, realizamos entrevistas com 159 participantes, através de um questionário semiestruturado, que abordou as seguintes dimensões: (a) Dados gerais; (b) Trajetória na rua; (c) Vínculos familiares; (d) Trabalho e renda; (e) Saúde; (f) Cidadania e participação social; e (g) Preconceito e violência. Em seguida, os dados quantitativos produzidos foram organizados e analisados por meio do programa de computador "IBM SPSS - Pacote de software de análise estatística, versão 20".

Outra prática de investigação foi o registro de reuniões, oficinas e eventos, tanto do CRDH/UFRN quanto do MNPR, por meio de arquivos escritos: atas de reuniões; narrativas biográficas registradas, por vezes, durante as entrevistas; diários de campo registrando experiências durante as entrevistas e oficinas em direitos humanos; documentos políticos construídos pelo MNPR e o CRDH. Após a organização desses dados, realizou-se uma análise temática em categorias: I) Subcategorias transversais; II) Condições de vida e táticas de sobrevivência; III) Saúde Geral; IV) Saúde Mental e Álcool e outras Drogas; V) Gênero, Sexualidade e Diversidade Sexual; VI) Trabalho; VII) Violências e opressões ; VIII) Educação, cultura e lazer; IX) Vínculos significativos; e X) Espiritualidade e religião.

De todos esses temas, para este artigo, abordamos a temática da espiritualidade e das religiões reiteradamente manifestada nos campos de pesquisa. Sua legitimação permitiu o compartilhamento de conhecimentos e vivências, facilitado pelo vínculo, pela escuta e pelos silêncios contemplativos. Para uma ampliação, valemo-nos do conceito de espiritualidade na ancoragem desse empreendimento, tentando produzir um discurso que facilite o encontro sobre os contextos das ruas dos sujeitos com diferentes aproximações: religiosas ou não religiosas, espirituais ou não espirituais, facilitando a produção de comuns nas diferenças.

No que concerne a esses diferentes campos de pesquisa, boa parte das entrevistas realizadas ocorreram em dois contextos de atividades caritativas de grupos religiosos evangélicos, um desses em uma praça, no centro da cidade, semanalmente, durante um ano; e outro em um prédio de uma igreja de outra denominação, em outro bairro, durante dois meses. Um outro campo refere-se a uma visita, durante um dia, a uma comunidade terapêutica em meio rural. Essa comunidade tinha conexão com um dos grupos religiosos identificados anteriormente. Os demais contextos foram: as proximidades de uma Unidade de Acolhimento para População em Situação de Rua; um canteiro de uma avenida próximo da Rodoviária Municipal; uma praça na vizinhança de um sindicato onde ocorriam oficinas de direitos humanos e reuniões de organização política do MNPR; e, por fim, nesse mesmo sindicato.

As informações qualitativas construídos nesses diversos campos de pesquisa, os quais delineiam os aspectos relativos à espiritualidade, se referem tanto às pessoas em situação de rua, quanto aos integrantes dos grupos caritativos, porém, com menor ênfase. Essa decisão de também abranger a relação das pessoas em situação de rua com os integrantes dos grupos caritativos na análise qualitativa faz sentido em um cenário onde tais integrantes, em sua maioria, já estiveram/estão em situação de (extrema) pobreza ou mesmo, em casos isolados, em situação de rua no passado. Também faz sentido quando a maioria dos relatos em que emergiu essa temática se deu nos campos de pesquisa onde ocorriam trabalhos caritativos de igrejas. Cabe somar que com as narrativas se utilizou a própria linguagem do cotidiano do campo de pesquisa, conforme as influências etnográficas expressas.

Com o objetivo de abordar esses temas em sua complexidade é necessário articular as narrativas e discussões, escapando dos ideais cientificistas de neutralidade. Assim considerando as dimensões biográficas e as dimensões históricas, os sujeitos individuais e os sujeitos coletivos e as (re)produções de subjetividades e as (re)produções sociais.

 

Exercício ético, afetos e espiritualidade: três provocações à transcendência

Para discutir espiritualidade e religião conectadas com o fenômeno da população em situação de rua é pertinente evocar as reflexões de Patrícia Batista, Eymard Vasconcelos e Solange Costa (2014) sobre o exercício ético de libertação e solidariedade, na perspectiva da educação popular em saúde, problematizando a formação universitária. Esta confunde, por vezes, esse exercício com "éticas" normativas profissionais, ou moralidades profissionais, do agir segundo o dever, com o amparo em determinados códigos de "ética" (ou de morais) profissionais.

Em um caminho oposto ao espontaneísmo e tão prejudicial quanto no desenvolvimento dos educandos universitários, Batista, Vasconcelos e Costa (2014) demarcam que a formação hegemônica, por deslegitimar as dimensões subjetivas e afetivas, permite que se imponham silêncios referentes a complexidade do "ser cuidador" e do "ser educador". Isso porque a comunicação validada na universidade, com algumas exceções, se dá unicamente por meio de linguagens acadêmicas - que em grande parte promovem a separação entre sujeito e objeto, entre teoria e prática e entre ciência e política -, impedindo assim que problemas, necessidades, inquietações, medos e sofrimentos de aspectos relacionais na saúde e na educação sejam melhor comunicados e debatidos.

Independe de certas tradições acadêmicas hegemônicas buscarem se abster do debate envolvendo aspectos subjetivos e afetivos, Eymard Vasconcelos (2006) coloca que tais aspectos permanecem intrinsecamente presentes no cotidiano das instituições da saúde e educação, não apenas no âmbito dos usuários e educandos, como também no âmbito dos próprios profissionais e educadores. Essa presença, ao se referir à religião e à espiritualidade, nem sempre possui condições para ser publicizada e, quando ocorre, costumeiramente se dá presa a linguagens de tradições espirituais particulares. Esse cenário implica conflitos silenciosos (ou não) entre sujeitos que se agenciam de modo particular com as diversas tradições possíveis e também entre os que não se agenciam com tais tradições, promovendo certas práticas com posturas impeditivas ao acolhimento das singularidades que se apresentam.

Logo, conforme Vasconcelos (2006), uma primeira delimitação conceitual de "espiritualidade" urge diferenciá-lo de "religião". Religião se relaciona a determinada doutrina que orienta e organiza a vivência religiosa de seus adeptos. Ser adepto de uma religião significa acreditar e aceitar uma realidade metafísica ou sobrenatural proveniente dessa tradição religiosa, associada a ensinamentos, doutrinas, rituais, orações, princípios morais, monumentos e templos que conduzem tal vivência em certos moldes. Essa organização permite um sentimento de pertença e identidade ao grupo que assim se relaciona e compartilha crenças, valores e atitudes.

Outro termo derivado, "religiosidade", é elucidativo da dificuldade de as tradições religiosas darem continência às inquietações contemporâneas devido às intensas mudanças socioculturais (ainda em curso). Essa dificuldade em responder os anseios atuais se manifesta com a valorização da vivência religiosa sem identificação com nenhuma tradição particular ou pertencimento a uma comunidade religiosa específica, com uma integração pessoal de diferentes elementos rituais e doutrinários (Vasconcelos, 2006).

Já o termo espiritualidade, ainda com base nas definições de Vasconcelos (2006), parte de uma ampliação dos estudos sobre as religiões, que se limitavam em compará-las - suas ideias sobre Deus, seus ritos e sistemas de crenças -, iniciando a defesa do termo "experiência religiosa". Por tal experiência entende-se um fascínio e mistério intenso por certas realidades, ritos e acontecimentos que tomam o ser humano com pistas de uma presença (de algo) que transcende a realidade cotidiana (corriqueiramente percebida) e que possui um potencial de transformar vidas. Então, espiritualidade estaria ligada à experiência de contato com uma dimensão transcendente de abertura e força do ser humano de superar limites e interdições, nem sempre reconhecida. Dito de outra maneira, uma experiência de contato com uma atração pelo infinito em seres marcados por limitações, o que leva ao protesto contra os bloqueios que dificultam o sair de si mesmo.

Essa discussão ontológica, que considera o ser humano como biopsicosocialespiritual, reconhece que a espiritualidade pode ser desenvolvida fora da vida religiosa, por exemplo: pela arte, por alguma experiência amorosa importante, por meio de crises e sofrimentos, no envolvimento com lutas sócio-políticas, nas artes marciais e na contemplação da natureza e da dinâmica da vida. Descentralizar o aspecto do desenvolvimento espiritual da vida religiosa é necessário, pois esta pode tanto fortalecer como atrapalhar esse caminho, como e é o caso de quando as estruturas formais se tornam o centro, impedindo assim o autoconhecimento e o cultivo e expressão da experiência transcendente, a qual requer liberdade e determinação na busca de um caminho que é singular (Vasconcelos, 2006).

A concepção de espiritualidade que aqui assumimos dialoga diretamente com a concepção de subjetividade que nos orienta ética e epistemologicamente. Isso porque consideramos que a subjetividade não constitui entidade ontológica natural, individual e essencializada, mas como efeito de processos de produção que se fazem no campo social nos diferentes contextos sociais, culturais, ecológicos e históricos (Guattari, 1992/2006). Assim, a subjetividade não é passível de totalização ou centralização na dimensão do indivíduo, mas constitui-se em produção incessante de modos de existir, modos pelos quais os seres humanos tornam-se sujeitos em cada contexto, entendidos como modos de subjetivação a partir de Michel Foucault (Rabinow & Deyfrus, 1995).

No sentido de demarcar melhor as considerações teóricas até aqui articuladas, é interessante trazer a ideia de epistemologia e "caixa de ferramentas", retomando o lugar do exercício ético como um ponto de ancoragem. Reposicionando o lugar do discurso científico e provocando as posições academicistas, assumimos a posição que nos apresenta Deleuze que, em conversa com Michel Foucault sobre os intelectuais afirma que

uma teoria é como uma caixa de ferramentas... É preciso que sirva, é preciso que funcione". Elas são "como óculos dirigidos para fora" e se não lhe servem, consigam outros, encontrem vocês mesmos seu instrumento, que é forçosamente um instrumento de combate. (Foucault & Deleuze, 1979, p. 71)

Assim, os conceitos são ferramentas para lidar com os problemas no plano de imanência da vida, ou seja, no plano onde a vida mesma acontece e não como referências abstratas num plano transcendente, como propõe a metafisica platônica. A posição ética e filosófica adotada por autores como Nietzsche, Deleuze e Guattari nos orienta a pensar na imanência da vida e da natureza, em crítica constante às idealizações e à posição reflexiva que toma o pensamento apenas como "reflexo" de ideias transcendentes, tal como discutido em profundidade por Giorgio Agamben (2000).

Ao mesmo tempo em que essas considerações desorganizam as certezas impermeáveis de verdades absolutas que habitam a transcendência, designada por Leonardo Boff (2009) como "fundamentalismo", tampouco apelam ao relativismo moderno coerentemente rechaçado por esse mesmo autor. Nessa linha de pensamento, questiona certos usos da palavra "fundamentalismo" como acusação sempre ao outro. Então, na operacionalização desse conceito, contrapõe a ideia da busca da radicalidade (ir à raiz das questões), bastante necessária, com a ideia de sectarismo, que exterioriza uma compreensão ou setor da realidade como se fosse o todo. Os usos sectários possíveis não fazem com que a ideia de fundamentalismo perca sua potência de análise, pois os fundamentalismos estão aí e se apresentam por meio da religião, da globalização e de todos os sistemas culturais, científicos, políticos, econômicos ou artísticos.

Com base nesta posição epistêmica, tomamos o desafio de refletir o tema da espiritualidade na imanência da vida nas ruas, considerando a denúncia de Boff (2009) ao afirmar:

Com a introdução do neoliberalismo, especialmente a partir de 1980, este processo ganhou livre curso: houve uma privatização de quase tudo, uma acumulação de bens e serviços em poucas mãos, o que desestabilizou socialmente os países periféricos e lançou milhões e milhões de pessoas na pura informalidade. Para o sistema eles são "óleo queimado", "zeros econômicos", "massa supérflua" que sequer merece entrar no exército de reserva do capital. (p. 47)

Então, assim como Gilles Deleuze e Foucault (1979) que defendem o uso da caixa de ferramentas com exercício ético, Boff (2009) afirma que "até a tolerância tem limites, pois nem tudo vale neste mundo" (p. 58) e isso diz de determinadas situações em que ser tolerante implica ser cúmplice, omisso ou cômodo com as violações de direitos humanos e em um sentido ecológico mais amplo, com as violações à biosfera da Terra, hospedeira de todas as relações parasitárias que a humanidade vem colocando em marcha há séculos e com intensidade crescente. Então, é urgente que cada vez mais se produzam discursos e práticas que ampliem as possibilidades de vida e de crescimento participativo da verdade e realidade.

 

Nem preso ao chão, tampouco solto aos céus: espiritualidade na imanência da vida

Com tais considerações sobre a espiritualidade, cabe trazer as narrativas da pesquisa relativas a este tema, que expressam certos limites e desafiam os trabalhadores sociais na construção de sociabilidades outras com a população de rua. Esse quadro geral da realidade demarca estruturas de "inclusão perversa" reproduzidas cotidianamente. Isso porque percebemos que "a sociedade exclui para incluir de modo perverso e esse movimento marca a ordem social desigual. Essa inclusão social perversa é uma forma de disciplinarização dos excluídos, uma maneira de controle social e manutenção da ordem na desigualdade social" (Sepulveda & Sepulveda, 2014, p. 2104).

Ao profundar a análise, percebemos que as formas de controle da vida e reprodução da desigualdade se expressam e se conectam no cotidiano das pessoas em situação de rua por meio de: (a) vícios ( tais como na relação com as drogas); (b) doenças crônicas (hipertensão, diabetes, transtornos mentais etc.); (c) sofrimento mental (olhar distante/alheio; choro; tristeza; introspecção; solidão; acordar agitado com insônia e sensação de agonia como efeito de abstinência a drogas; não ter forças; sentir falta da vida que tinha; domínio das forças e da vida pelo inimigo; sentir-se culpado; sentir-se aprisionado; sentir-se mal; sentir-se humilhada; dor de ver alguém sofrer); (d) morte e medo da morte (de si próprio; dos pais; dos companheiros da rua); (e) limites do Estado na promoção dos direitos humanos (não receber benefícios do governo; não ter informações sobre os serviços que poderia fazer uso; dificuldade de locomoção na cidade; falta de recursos para contribuir com a organização religiosa que participa); (f) prisão; (g) violência policial e institucional nos serviços públicos a que tem acesso; (h) revolta/desejo de ser reativo contra os limites da vida (fazer o que não deve); (i) incômodos com identidades diferenciadas (ateia; homossexual; transexual etc.); (j) conflitos interpessoais sem agressão física (receber fala agressiva com xingamentos; receber uma ordem; não acolhimento na residência de familiares por ser travesti; clima tenso na casa que divide com ex-parceiro amoroso); (k) não existência de amizade/alguém que escute na rua; (l) ruptura de relacionamento (casamento; traição); (m) ameaças de agressão física (faca no pescoço; jogar o carro por cima) ou contra uma propriedade (não pagar o programa - prostituição); (n) dificuldades no âmbito religioso ("carne fraca"; pouca firmeza para assumir sua "missão de vida"; guerra espiritual representada por meio do demônio/diabo/inimigo e por meio de Deus como justiceiro; profanação; normas organizacionais rígidas/sem construção coletiva nas Comunidades Terapêuticas; evangelização sendo realizada de maneira intolerante). Em síntese, vemos a multiplicidade de elementos que compõem a situação de rua em sua complexidade e na qual a espiritualidade participa de modo importante como forma de lidar com o sofrimento psíquico que se produz na situação de rua, sendo um dos caminhos que manejam os impasses das dores, das doenças, dos envelhecimentos e da finitude humana (Vasconcelos, 2006), (re)produzindo modos de subjetivação.

Em nossas análises, quanto à vinculação religiosa, há majoritariamente predominância das religiões cristãs (católica, evangélica, espírita e outras). Alguns declararam praticar outras religiões não especificadas, uma pequena parcela prática regiões afro-brasileiras e alguns não têm religião. Apesar de mais da metade ter declarado pertencentes à religião cristã, essa informação isolada não é suficiente para mensurar a existência ou não de adesão religiosa, que envolve, de acordo com Paulo Dalgalarrondo (2008), a incorporação de determinada doutrina, de prática de rituais e cerimônias, de um sistema moral e de convivência em uma comunidade de fé. Percorrendo esse raciocino, é válido refletir sobre a quantidade proporcionalmente menor de pessoas que declaram ser de religiões que não estejam em matrizes cristãs ou os que não se afirmam religiosos. Assim, interrogamos se outras vozes não emergiram em função do silenciamento dessas outras práticas e discursos na vida social, o que pode dificultar o acesso dessas informações pela pesquisa, exigindo análises mais aprofundadas.

Além do modo como cada pessoa se afirma no campo da religião e da religiosidade, também foi possível observar que mais da metade dos entrevistados não participavam de grupos (político, religioso, cultural, esportivo etc.) nos territórios onde circulam. Essa informação demonstra o nível precário de laço social que essas pessoas têm à disposição, corroborando as críticas realizadas sobre a sociabilidade do capital, a como todos(as) as pessoas e cada um(a) são seduzidas a reproduzir, de acordo com Marisa Feffermann (2013), o individualismo, o consumismo e a competição, o que é conivente com o frágil laço social de pessoas em situação de vulnerabilidade. Embora também se encontrem no campo de pesquisa resistências através de práticas de solidariedade e a consequente "produção de comuns" a partir da espiritualidade, como discutimos a seguir.

Nessa linha de discussão, sobre aproximação entre as pessoas, participar de um grupo religioso também envolve o aspecto de apoio social, de apoio mútuo. Esse aspecto se torna importante ao pensarmos nos vazios das políticas públicas, os quais acabam sendo preenchidos por redes informais, como os da esfera religiosa (Valla, 2006). No decorrer dessa pesquisa se observou um caso de uma pessoa em situação de rua que se integrou em uma comunidade terapêutica, ficando nela por alguns meses, em abstinência de substâncias psicoativas. Enquanto ela auxiliava nos trabalhos de evangelização e na manutenção dessa própria instituição, essa se responsabilizava, precariamente, em garantir alimentação e, pontualmente, recursos para mobilidade urbana. Depois desses meses, quando retornou aos contextos das ruas, não mais sustentou a abstinência idealizada quando dentro daquela comunidade terapêutica. Esse itinerário de apoio social segue como um molde comum de vários outros itinerários de pessoas em situação de rua que acompanhamos no campo.

Um aspecto relevante a considerar é que todas as pessoas com 56 anos ou mais declaram ter alguma religião. Segundo Alexandre Fonseca, João Valença e Thiago Silva (2011) quanto mais próximo da terceira idade maior a identificação com alguma religião ou aproximação de religiosidade, uma vez que essa constitui elemento de proteção na velhice, facilitando as relações de afeto e proteção; a reelaboração de atitudes e crenças pertinentes à vivência do envelhecer; e a esperança com o exercício da fé, mesmo em momentos de resignação diante da finitude.

É interessante observar que os aspectos dos rituais e práticas religiosas encontrados no campo de pesquisa são diversas: olhar pensativamente, chorar, cantar, ler, sonhar, discursar, convidar, converter, testemunhar, orar, louvar, pregar, bater palmas, batizar, ajoelhar, repreender, dizer palavras agressivas, acordar alguém dormindo para falar de Deus, dar um depoimento com fins motivacionais, falar línguas estranhas, formar um círculo, entoar um hino, orar sobre os alimentos, aceitar Jesus, colocar o dedo em riste girando no centro de uma roda, foram verbos e expressões relacionadas às experiências religiosas que encontramos nas ruas... Tais práticas possuem modos intensos ou não intensos. Os primeiros nos cantos solitários e emocionados, nos discursos religiosos fortes, nos corpos com performance de batalha, nos pulos repetidos e com bastante vigor, nas vozes altas, nos gestos com intensidade, nas entonações fortes, nas formas afetadas e entusiasmadas e nas gesticulações graves. Os segundos se manifestam nas pregações comedidas, na não aceitação do grupo em cantar algo quando solicitado, acompanhado por palmas, "aleluias" e "glórias à Deus" tímidos e não entusiasmados, bem como no sentimento de vergonha. Essas ações e suas intensidades, como narradas no campo de pesquisa, se davam nos espaços de reunião de grupos religiosos e em igrejas ou templos, mediados por determinados objetos, como: os panfletos, a Bíblia, seus versículos, suas bem aventuranças, as músicas católicas e evangélicas, algumas palavras pintadas em paredes, outras gravadas em placas no chão ou em quadros de avisos.

Ao apreender os conteúdos simbólicos trazidos na esfera religiosa, percebe-se que a maioria está circunscrita ao cristianismo, o que é esperado quando se relaciona esse dado com a proporção de cristãos no Brasil e na própria população em situação de rua. Alguns desses símbolos remetem aos pontos de abertura ou às possibilidades encontradas diante das dificuldades do dia a dia, corroborando as considerações de Victor Valla (2006), direcionam-se às virtualidades desejadas na lida com a realidade: o sobrenatural, o bom sinal, a crença no acontecimento de algo tremendo, a cura, o conserto e a conversão. A palavra "Deus" também surgiu em vários momentos generalizando o que há além da realidade experienciada nas ruas.

Também se evidenciou a temática da constante "Guerra Espiritual" entre agentes benignos (como Deus) e agentes malignos (como o Diabo), numa visão maniqueísta. Nesse combate, as substâncias psicoativas ou drogas se colocavam frequentemente no lugar de agente maligno, destoando, por exemplo, da perspectiva complexa e não maniqueísta da redução de danos no campo da saúde mental (Passos & Souza, 2011). Ainda sobre esse combate entre o Bem e o Mal, outro ponto que se destacou na relação com símbolos religiosos é a compreensão sobre a rua e a carne, como registrado em diários de campo. "A rua não é lugar para quem quer viver com Jesus, porque aqui você tem recaída. A carne é fraca! Tem que largar essa vida de vez" (fala de missionária protestante). Nesse sentido, estar na rua significava um limite e como uma fraqueza, por se considerar a situação de rua como "castigo divino", efeito de determinadas decisões dos sujeitos no decorrer de suas histórias de vida. Assim, a fraqueza de estar na rua é atribuído às supostas escolhas dos sujeitos que teriam determinado a situação de vulnerabilidade em que se encontravam. Do mesmo modo, a carne ou o corpo, também se relacionavam com limite e fraqueza. Essa visão sobre a carne/o corpo - e sobre os afetos - se desenha na inferiorização do corpo pela mente/espírito, dos afetos pela razão, reiterando nas ruas por meio de missionários protestantes, elementos da perspectiva de Platão, de Aristóteles e da Escola Estóica, como discutido por Israel Brandão (2012).

Também ligada ao maniqueísmo bem versus mal, Deus versus Diabo, Carne versus Alma aparece a questão da sexualidade. Os pontos trazidos pelos conteúdos simbólicos, a palavra homossexualismo (ao invés de homossexualidade) imbrica as dimensões entre fé e política, considerando as pessoas cujas práticas destoam da heteronormatividade como doentes psicopatologicamente ou como praticantes de atos pecaminosos, como fica evidente em nossa etnografia ao presenciarmos uma prática de exorcismo dirigida a uma pessoa da rua e justificada por ela ser entendida como homossexual:

Com paridade a todos esses gritos do outro lado estavam cerca de seis protestantes repreendendo o mal e o diabo nele. Cristina falou com o pastor que eles têm um caso há 8 anos. O pastor concluiu 'é um caso de homossexualismo junto!' (Diário de campo, 29/09/14)

Ainda em relação aos conteúdos simbólicos, o "falar para" (diferente do "falar com") como um modo de evangelização se mostrou recorrente. Essa postura relacional se dá pela responsabilidade (missionária) atribuída pelas diversas instituições cristãs aos seus membros religiosos para revelarem a verdade cristã e fazer com que outras pessoas a conheçam e possam, assim, também se tornarem membros da instituição. É interessante imaginar a possibilidade em se conceber, um dia, tanto a tarefa missionária cristã quanto os modos de conversão de outras religiões em um viés de "falar com", abstendo-se da palavra "tarefa" para pensar essas práticas de trocas religiosas e, de modo mais amplo, de trocas culturais e humanas como "exercícios". Isso pressuporia contaminações recíprocas entre as partes que interagiriam entre si, como tratado por Boff (2009) em diálogo inter-religioso, intercultural e humano, sem uma previsão a priori do que poderia acontecer a partir de um encontro "com", distanciando-se das serializações das relações "para", das posturas messiânicas e fundamentalistas (que são necessariamente hierárquicas) tão em voga na contemporaneidade. A proposta de Boff nos conduz a pensar que a espiritualidade pode ir se configurando como "produção do comum" nas ruas, como cenário em que esses diálogos podem acontecer. Ou seja, as ruas podem ser concebidas como espaço de experimentação de "novos espaços e novos tempos, pela invenção de novas formas de cooperação e novas formas de associação, de novos desejos e de novas crenças", constituindo um "comum" que nada tem a ver com unidade, com medida e que se compõe das singularidades em jogo em certo cenário social (Pélbart, 2015, p. 24).

A adesão a uma religião também apareceu como algo central na vida de algumas pessoas em situação de rua, como na centralidade de Jesus; na gratidão principal à Deus; nos sacrifícios que se está disposto a realizar por Deus, sejam financeiros ou mesmo envolvendo a mudança do território de origem, compreendendo o desejo de evangelização; e na perspectiva de Deus como chave de libertação da situação de limitação de vida no momento presente (Valla, 2006). Essa centralidade ou adesão religiosa, junto às relações de maior flexibilidade das tradições, rituais e doutrinas religiosas nas aproximações de religiosidade, podem se vincular à dimensão transcendente em seu aspecto de justiça, perdão, liberdade e amorosidade, no amor que muda o estado de coisas. Como também podem se vincular à dimensão transcendente no que existe de justiçamento, punição, prescrição, culpa e ressentimento.

Observamos tanto na população em situação de rua como nos próprios evangelizadores que em seus discursos a espiritualidade é acionada como resposta ou tentativa de ruptura com um mundo limitador que permite, por exemplo, a existência de drogas, vista como destruidoras de vidas; o uso de drogas que gera dependência; a venda de drogas e a prostituição como meios de subsistência; ou mesmo a imposição proibicionista de outros, que fazem com que se utilize as drogas escondido; a própria situação de rua, em sua terribilidade e nas suas características como um contexto de tentação para modos de vida destoantes de determinadas expectativas sociais; além da violência e da "morte matada".

Evangelizadores e pessoas que na rua se situam em sobrevivência esperam que tal cisão "do mundo carnal" se opere a partir de evangelizações, de convites dos grupos caritativos para a experiência de uma "conversão", de desejos e esforços das pessoas em situação de rua e da vontade do próprio Deus. Do outro lado da conversão, distante de um mundo banal e próximo dos céus, espera-se alcançar ou se alcança: o retorno a uma determinada igreja, aos caminhos de Deus, Jesus; uma "outra vida"; o afastamento das drogas; a cura dos "vícios" da droga e da prostituição; o abandono de maus hábitos; um casamento; a participação em um grupo caritativo; um lugar de destaque em um grupo caritativo ou uma adesão intensa aos tratamentos de uma comunidade terapêutica religiosa.

Acompanhado de tal ruptura entre o sagrado e o mundo, entre a transcendência e a imanência, têm-se posturas de conformação das pessoas em situação de rua em suas vidas. Isso é manifesto em uma certa gratidão pela "gratuidade" das ações dos grupos caritativos, como registrado em diários de campo, descritos a seguir: um dos participantes da pesquisa percebe ser possível retornar a uma comunidade terapêutica e "se mostrou grato por ter sido readmitido". Como alerta aos que podem vir buscar os tratamentos dessa comunidade terapêutica o missionário declara: "Agora quem for para a casa de tratamento não pode ser ingrato não, viu? A moça lá estava reclamando que tem gente que na hora de sair nem diz um obrigado e vai embora sem nem olhar para trás". Ainda é parte dessa postura conformativa a sensação de apatia e não motivação para agir em determinadas situações-problemas, como representado nos trechos: "Mas como é que pode chover na barragem e num chover na cidade? Quem vai saber? Aí são as coisas de Deus, foi Ele quem quis assim." e "Ele falava para ele ficar calado e ouvir. O senhor foi ficando menos interventivo no decorrer do culto". Essa postura conformativa, redutora das potencialidades das pessoas nas ruas, se relaciona com a culpa. Nesse tema, surgiram situações em que a própria "situação de rua" e o "uso de drogas" eram produtores desse sentimento. Isso era expresso seja verbalmente, seja nos modos sutis e indiretos, pelos modos de falar, performances e gestos. Algumas pessoas que estavam ou estiveram em situação de rua, quando no lugar de evangelizadores nos grupos caritativos, procuravam trabalhar a partir da culpa de outras pessoas em situação de rua no sentido de promover arrependimentos e novas conversões/rupturas das pessoas com "o mundo". Isso significa que a culpa era uma aliada constante no processo de evangelização.

Nessa evangelização, em seu aspecto de "falar para", nas chamadas "profetizações" e nos "messianismos" existem modos intensos de falar e gesticular, há fervor, entusiasmos, gestos graves, gritos e entonações de voz implorando. Acompanhado de homogeneizações do tempo e do espaço, em orientações centralizadoras na conformação dos espaços sagrados: "Todos se aproximem porque agora é a hora da palavra do Senhor! Eu posso permitir muita coisa, mas não permito que a palavra do Senhor seja dada de qualquer jeito!"

Nas "palavras do Senhor" compartilhadas se delineava uma imagem de Deus, abordavam-se graças dos céus e delimitavam-se condicionalidades para que essas graças fossem ofertadas. Deus era retratado como: fiel; motivação para persistir "na obra"; alguém que toca pessoas para virem trazendo o que se precisa; tem amor; tem planos para a vida; e quer resgatar almas. Enquanto suas graças se remetiam à: abertura de vida ("abrir uma porta"); a existência de vínculos familiares mesmo quando não mais se acredita que existam; se recuperar; a cura (das drogas, da "peste demoníaca estacionada", dos vícios); ser resgatado; a possibilidade de impressionar o mundo com a transformação que Deus fez; o acontecimento de algo tremendo que seria testemunhado na semana seguinte; "Deus tem um plano muito grande para a sua vida" ; não ter a vida ceifada; e a graça de quando Jesus vem e/ou age por meio de outra pessoa. Por sua vez, as condicionalidades para que essas graças se efetivassem estariam na escuta do que Deus fala; na aceitação de um convite para tratamento em uma comunidade terapêutica; no próprio desejo, querer e responsabilidade da pessoa que procura a graça; na conversão/ruptura com o "mundo", "aceitando Jesus" enquanto era tempo; na evitação do primeiro gole de bebida alcoólica e na homogeneização do tempo e do espaço na conformação dos espaços sagrados, ou seja, na não profanação do que é sagrado.

Ao lado das evangelizações, existiam as obras de caridade, com comidas e serviços (por exemplo, o corte de cabelos). Aliás, entre as pessoas em situação de rua o escopo da caridade se abrange para o compartilhamento de substâncias psicoativas (bebidas, cigarros e outras drogas), como registrado em diários de campo: "Sempre divido o que tenho com quem está ao meu redor: comida, bebida, cigarro e até drogas. Não são todos que podem comprar essas coisas, aí eu ajudo quando posso" (Fragmento de entrevista com uma idosa em situação de rua e aposentada). A caridade está em segundo plano nos grupos caritativos, estando em primeiro plano a evangelização: "Antes de servir, como habitual, houve o momento de evangelização". O nosso objetivo principal, o maior de todos, é levar Jesus. Se fosse só pelo café ninguém vinha." (conversa com integrante de grupo caritativo). Nesse cenário, é provável que algumas pessoas participassem dos rituais com os grupos caritativos simplesmente para conseguir acesso à alimentação e roupas ou serviços como corte de cabelos, sem qualquer implicação com os rituais em si. Um último aspecto sobre a caridade está na "gratuidade" com que é apreendida por quem a recebe: "Os mesmos copos que haviam sido utilizados com café, sucos etc. eram reaproveitados para tomar água".

Após isso, ajudei a entregar o pão. Ao entregar perguntava se preferiam redondo ou francês. Alguns respondiam uma das duas opções. Alguns poucos retrucavam algo do tipo: "Qualquer um! Sendo pão!". Parecia-me que esses tinham a obrigação de aceitar tudo de bom grado. Apenas aceitar e deixar de lado qualquer preferência. Afinal, estava sendo dado com tanta "boa vontade" que não lhes cabia recusar, selecionar, escolher... por muitas vezes já vi pão, copos descartáveis e talheres descartáveis caindo no chão/areia e ou alguém em situação de rua pega e utiliza/come como demonstração de gratidão ou alguém da igreja mistura disfarçadamente com o que não caiu. (Diário de campo de 24/01/15)

Assim, a caridade toma o lugar de uma ajuda, não sistemática, mas pontual e bastante limitada no cumprimento do que os próprios grupos caritativos pretendem operar na vida dos sujeitos com quem atuam. Esperam-se transformações mais profundas, o que se torna inviável pela própria compreensão do trabalho social e das metodologias empregadas para esse fim. Todavia, a caridade foi e que ainda é, como apontado por Ferro (2012), uma das formas principais de aproximação do Estado brasileiro e da sociedade para com quem se encontra/va em situação de rua, associadas a ações repressivas/punitivas e, atualmente, também a alguns serviços públicos, sobretudo da assistência social e da saúde, ainda insuficientes.

Em sequência, o uso dos símbolos e contextos religiosos também pode ser acionados como maldição, borrando os limites maniqueístas que insistem em delimitar os conteúdos oriundos de algum sistema religioso em somente aspectos positivos. Evidencia-se também outras dimensões, segundo Vasconcelos (2006), em que cabem o sombrio humano, em sua agressividade, costumeiramente reprimida e pouco elaborada, todavia, com potencial de ser desenvolvida rumo a uma integração:

Sentei no banco ao lado de um homem que estava muito chateado com a mulher da igreja, a que estava falando no começo. Ele estava com muita raiva e dizendo palavras agressivas, que ele iria pro inferno junto com ela, que não se devia negar comida a ninguém, etc. Perguntei o que havia acontecido e ele disse que pediu um copo de café para a mulher. Ela disse que ele fosse para o final da fila, porque ele tinha ultrapassado a vez de outras pessoas. No entanto, segundo ele, outras pessoas fizeram o mesmo que ele e a mulher não rejeitou o café. Ele saiu estressado da fila e disse que não ia comer mais aquela comida. Disse que não a perdoava por ter feito aquilo... (Diário de campo de 08/11/14)

Outro tópico que pode facilitar o aprofundamento da complexidade presente nos espaços de evangelização, em seus rituais e conteúdos simbólicos, afastando-se de tais polaridades, é desdobrado na cena abaixo, de rivalidade entre uma pessoa em situação de rua, homossexual, contra um grupo caritativo religioso, que estava encaminhando seu companheiro para uma comunidade terapêutica, sem o consentimento de seu parceiro:

[Quando o pesquisador ia iniciar a entrevista] um homem estava exaltado e alterado por psicoativos e Letícia pediu para eu olhar e disse que ele não queria que levassem um outro homem internado pois tinham um caso há 8 anos. Depois que as coisas foram ficando mais difíceis ela disse para eu olhar as coisas dela e se aproximou. Eu esperei uns 10 segundos, peguei as coisas dela e as minhas e me aproximei também. Ele dizia, gritando: "não vão levar ele, não!" Porém, seu parceiro queria ir. Ele repetia "não vão levar ele, não!". Se debatia quando tentaram mandar ele ir embora. Disse: "Então me levem também.". Disseram que ele podia ir. "Vocês não tinham me dado essa opção, não!". Seu parceiro tentou interceder. Porém, ele pegou um paralelepípedo do chão e gritou "Eu vou estilhaçar o vidro desse carro!". Com paridade a todos esses gritos do outro lado estavam cerca de seis protestantes repreendendo o mal e o diabo nele. (Diário de campo de 29/09/14)

Bem como se ilustra no seguinte sermão de uma evangelizadora, em forma de gritos, durante atividade caritativa em uma praça pública:

Então, não tratem isso aqui de qualquer jeito não, gente! Eu fico triste com essas coisas! Podem acreditar... Isso aqui é de Deus! Não fiquem conversando quando estivermos falando de Deus porque não é a mim que vocês tão agredindo, mas a Deus! Isso aqui é uma Igreja de Jesus! Então, quando um irmão vier interromper a palavra de Deus: não deixe! Cuidem desse espaço vocês também entre vocês. (Diário de campo de 07/03/15)

O que ainda se busca, costumeiramente, afastar do campo de visão do que faz parte do que é religioso são as relações fundamentalistas, como no caso a seguir:

Logo no início Abelardo ficou com a cara fechada e quis sair da oficina. Desconfiamos, porque ele não se explicou, que esse comportamento foi devido a declaração do oficineiro de estêncil que disse (depois que foi questionado sobre) que era ateu. (Diário de campo de 18/07/14).

Nesse caso, o fundamentalismo surge contra a identidade ateia, tornando desconfortável para um cristão em situação de rua, aprender algo com alguém que se diz ateu. Ao se pensar os pertencimentos e os grupos em seus extremos, Boff (2009) discorre que o

lema é como aquele que vigorava entre a polícia secreta nazista SS: 'Dar a própria vida e tomar a vida dos outros' (geben und nehmen). ... Para o fundamentalista militante a morte é doce, pois transporta o mártir diretamente ao seio materno de 'Deus', enquanto a vida é vivida como cumprimento de uma missão divina de converter ou de exterminar os infiéis. O grupo é o lar da identidade, o porto da plena segurança e a confirmação de estar do lado certo. (pp. 55-57)

Ao trazer essa provocação aos pertencimentos e à coesão grupal encontradas nessa investigação, duas cenas com ressonâncias nesse tema são evidenciadas. A primeira:

'Você vem para ficar no duro? Você vem para ficar na rocha?' e Elias respondeu prontamente 'Sim!'. Ele disse que iria ver um canto para ele, mas que seria para dormir no chão, devido a comunidade terapêutica estar lotada. Ele se mostrou grato por ter sido readmitido. (Diário de campo de 07/03/15)

A segunda, se refere a uma fala registrada em diário de campo: "Tem um grupo da igreja incomodando muito. Eles acordam a gente quando estamos dormindo para falar de Deus e são bem intolerantes". Na primeira cena, está descrito a readmissão de Elias em uma comunidade terapêutica, após ter desistido de uma internação anterior para ficar em situação de rua. Na segunda, um homem em situação de rua se queixa da abordagem de um grupo religioso que acorda quem está dormindo quando vai evangelizar. Em ambas as cenas está presente os contornos da dureza/rocha, de uma intensa coesão grupal, força centrípeta, que puxa para dentro, para o autorreferido, a qual anseia pela anulação das forças centrífugas, que puxam para fora, para o estrangeiro, anseiam pela diluição das diferenças, e em seu lugar, a estabilidade, as igualdades, as mesmidades e o "porto da plena segurança" do grupo.

Tal porto é concretizado densamente nas comunidades terapêuticas, presentes nos muitos itinerários de cuidados das pessoas em situação de rua. É viável associar as comunidades terapêuticas, seguindo as ideias de Peter Pélbart (2003), como instituições que se apropriam do comum, expropriam o comum, privatizam o comum, vampirizam o comum e transcendentalizam o comum. Nesse sentido, em uma visita a uma comunidade terapêutica, que possuía vínculos com o grupo caritativo que fornecia alimentos em uma praça pública, conforme registro em diário de campo: "fiquei com a impressão que o termo comunidade aqui se referia às primeiras comunidades cristãs que se formaram após a morte de Jesus". É interessante perceber esse apontamento com a discussão de "nostalgias da comunidade" empreendida por Pélbart (2003), que lembra as visões de comunidades perdidas e rompidas, a serem reencontradas ou reconstruídas. Tal comunidade perdida "pode ser exemplificada de várias formas, como a família natural, a cidade ateniense, a república romana, a primeira comunidade cristã, corporações, comunas ou fraternidades." (p. 32). Esse tempo e espaço desaparecido remetem a uma comunidade hipotética, onde havia intimidade entre seus membros, equilíbrio e unidade, compartilhando uma identidade, uma co-pertinência, uma familiaridade, uma convivialidade, aproximando-se da comunhão, "no seio do corpo místico de Cristo" (p. 32). O que é uma resposta às durezas do cotidiano moderno, em que se esconde uma promessa de ressurreição dessa comunidade porvir, em um possível plano comum entre a humanidade e Deus. De outra perspectiva, distante do que se opera nas comunidades terapêuticas, compreende-se a produção do comum como aquilo que nos acontece na imanência das ruas em sua heterogeneidade, pluralidade, distância entre os credos e ao mesmo tempo no diálogo possível entre eles. Ou seja, as experiências das pessoas em situação de rua nas comunidades terapêuticas nos fazem pensar criticamente no sentido da construção de "um outro comum" em que a espiritualidade seja percebida como possível, tolerante e dialógica entre as várias experiências religiosas e não religiosas, embasadas em outras crenças.

Uma frase sobre uma comunidade terapêutica de uma integrante de um grupo caritativo chama a atenção: "Lá na comunidade terapêutica é igual a uma casa. Tem regra como em qualquer outra casa. Não é uma clínica". Isso demarca a diferença entre uma comunidade terapêutica religiosa e uma comunidade terapêutica como instituição de saúde, em que nas segundas se busca uma reabilitação por meio de um espaço que remete a uma convivência familiar e fraternal. "É igual uma casa" significa não haver qualquer preocupação em abordar as demandas dos internados como questões de saúde e doença. No sentido de conduzir pessoas a "essa casa", à comunidade terapêutica, disponibilizam carros pessoais dos integrantes dos grupos caritativos para realizar a locomoção até essa área rural, mediam conflitos, negociam com familiares e entregam o contato do telefone pessoal às pessoas que podem ter interesse em se internarem. É comum profetizarem essa internação como um ponto que se desdobrará em aberturas de vida: "Vocês hoje estão tendo oportunidade para mudar de vida ... Deus está te abrindo uma porta hoje. Venha comigo. Amém irmão?"

Apesar dos esforços acionados, há queixas dos grupos caritativos na permanência de pessoas em situação de rua nos mesmos contextos e condições de vida, mesmo após terem se internado em algum momento na comunidade terapêutica aliada do grupo. Com relação a isso, trazemos os fragmentos dos diários de campo: "Vocês não sabem como me dói ver pessoas que saíram da comunidade terapêutica e ainda estão aqui na rua. Se Deus dá uma oportunidade para que você pegue, pegue hoje". Atrelado a essa dor se queixam ainda da ingratidão: "A moça lá tava reclamando que tem gente que na hora de sair nem diz um obrigado e vai embora sem nem olhar para trás". Outro ponto que faz pensar sobre a inefetividade das comunidades terapêuticas é a sua intensa rotatividade: "Sondei com ele que a maioria das pessoas que estavam lá não eram da sua época (há dois meses, mais ou menos). Dessa forma, inferi que existe uma grande rotatividade de internos. Só alguns poucos eram do tempo delx". Todavia, podem existir casos particulares que experienciam mudanças positivas nessas comunidades, na perspectiva dos próprios sujeitos, como no caso a seguir:

A pastora falou um pouco de seu filho, que usou por muito tempo drogas pesadas. Ela comentou, para meu espanto, que essa foi a única clínica que ele se deu. Ele é um interno dos mais antigos estando lá há meses. O que chegou a mim intuitivamente quando o vi no culto é que estava relativamente contente. Parecia bastante religioso. (Diário de campo de 07/03/15)

Ao mesmo tempo, questiona-se até que ponto essa compreensão de transformação positiva permaneceria fora da vida em reclusão. Ainda é necessário salientar que essa comunidade terapêutica funcionava com muitas dificuldades materiais e precarizações no que concernia às condições de vida dos internados, desde a alimentação, o lazer e as necessidades de saúde até as condições para dormir. Em síntese, caracterizava-se por um ambiente insalubre, onde conviviam pessoas de diferentes histórias e percursos de vida.

Os sistemas religiosos reforçam um certo mistério perante a realidade, prescindindo da necessidade de explicação de determinados fenômenos pelo acolhimento de que há mistérios inexprimíveis, ou seja, existem limites do que a humanidade pode conhecer, não se confundindo com desimplicação e apatia em compreender, sentir e agir. Ou seja, os sistemas religiosos, conforme Vasconcelos (2006), constituem um modo diferente da necessidade de esquadrinhamento extenuante dessa realidade perpetrado pela modernidade hegemônica, em que só existe o conhecimento científico, empírico e estatístico como significativo, verdadeiro, aceitável e coerente. Em seu lugar, o acolhimento do mistério na relação com os saberes sobre o mundo pode se dar no que concerne aos fenômenos naturais, as transformações de vida, a um parceiro romântico desejado, aos sonhos e às experiências em falar "línguas estranhas", provocando ora admiração e espanto, ora conformação, ora ansiedade. Nessas experiências, essa dimensão do mistério na vida está colocada:

Fui até Larissa que ficou todo o momento do café triste, ora chorando, ora segurando o choro. Tito já havia me dito que ela tinha se separado do seu marido. "Meu casamento acabou, Pedro", falava chorando. Há um mês atrás ela tinha tido um sonho e tinha recebido outras mensagens de que ela não ficaria com esse marido. Isso a deixou muito triste, porque ela o amava e ainda o ama. Segundo ela, Deus havia dito que o parceiro dela seria outra pessoa, que ela ainda não sabe. A profecia virou realidade até a metade. (Diário de campo de 11/04/15)

Ela me relata que Deus a alerta por meio de sonhos sobre pessoas que não são do bem e sobre pessoas que a prejudicariam. Depois começou a falar sobre os sonhos que tem: disse que havia sonhado com 5 pessoas desconhecidas (sendo que 3 destas ela não conseguia ver). Das outras duas, uma delas era uma mulher de cabelo longo preto que, no sonho, a puxava e ela não resistia a esse movimento, não tentava escapar, o que ela interpretou como um bom sinal. Falou que viu essa mulher do sonho na manhã seguinte ao sonho, que ela tinha falado com ela ali à margem de uma avenida da cidade. (Diário de campo de 13/09/14)

A flexibilidade no manejo das tradições religiosas é colocada em evidência nos trânsitos entre as religiões nas histórias de vida de quem se encontra na rua, assim como também ficam explícitas no diálogo inter-religioso. São esses os movimentos que circunscrevem a fluidez, a provisoriedade, as misturas e imbricações, indo em diferentes sentidos, direções e matizes: uma tradição religiosa específica para uma tradição mais ampla (identidade evangélica para identidade cristã); tradições mais amplas para tradições específicas (identificação com todas as religiões, com preferência da identidade evangélica); e aproximação de religiosidade com determinada tradição para adesão religiosa de outra tradição (religiosidade espírita para adesão religiosa evangélica). No que se refere ao diálogo inter-religioso, como tratado por Boff (2009), as misturas e imbricações se dão no compartilhamento de músicas de diferentes tradições cristãs em determinado ritual religioso; em experiências percebidas como semelhantes em diferentes contextos religiosos (no tocante às tradições e rituais que mobilizaram essa experiência); na participação em um grupo de uma tradição religiosa, apesar de se identificar com outra tradição (participação em um grupo evangélico, apesar de se reconhecer como espírita) e na própria identificação abrangente: "sou de todas as religiões" (Diário de campo de 29/05/14), mesmo reconhecendo que essa radicalidade de imbricação é uma exceção no campo. Nesses trânsitos se infiltram, se permeabilizam e se conectam diferentes ensinamentos, doutrinas, rituais, orações, princípios morais, monumentos e templos e confrontam os fundamentalismos (Boff, 2009).

A espiritualidade em sua aproximação com a justiça, o perdão, a liberdade e a amorosidade trouxeram dos campos de pesquisa as palavras chaves: amor, perdão, cura, permissão e bondade. Nessa dimensão, muito do que se apreendeu se localizava tão somente em conteúdos abstratos, relacionados com a linguagem e com estados afetivos idealizados. O que foi exceção por sinalizar uma imanência com essa transcendência foram: a mobilização de pessoas para ajudarem na obra caritativa de realização de um café da manhã em uma praça; o próprio café da manhã; a oportunidade em se internar em uma comunidade terapêutica e o desejo de uma pastora em criar uma nova comunidade terapêutica feminina onde houve cursos profissionalizantes, que as preparassem para as demandas da sociedade.

Dessas sinalizações, com alguma conexão com a imanência da vida, o que havia concretamente, apenas, era o café da manhã semanalmente aos sábados e as vagas em uma comunidade terapêutica masculina precária, insalubre e que sabia das suas diferenças com uma instituição "sanitária", se afirmando como uma "casa", tentando tratar essas pessoas com um contexto que remetia às relações familiares e comunitárias, remetendo à ideia nostálgica da "primeira comunidade cristã".

 

Considerações finais: deixemos os céus abstratos aos anjos e aos pardais2

Para Sanclair Lemos (2013), a transcendência envolve momentos de luta e ação e momentos de repouso e reparação. No ângulo do repouso e reparação, Boff (2009) faz alusão ao profeta Gentileza. Outras figuras, que trazem a dimensão de luta e ação, são citadas como São Miguel Arcanjo, São Sebastião, Santa Joana d'Arc, São Jorge, Antônio Conselheiro e os orixás Iansã, Oxóssi e Ogum. Ao se afastar de condições afetivas idealizadas cabe conjugar essas diferentes sinalizações transcendentes - de potenciais humanos imanentes. Ao se conjugar, é factível compreender que "somos a unidade viva dos contrários" (Boff, 2009, p. 84).

Retomando duas questões de Lemos (2013) - O que transcende? O que é transcendido? - se percebe, de maneira geral, que o que transcende são pessoas em situações de rua com condições de vida precárias, que na maioria das vezes, permanecem na mesma situação, pois as ações de caridade não interferem de modo mais profundo na dinâmica social que (re)produz situações de vulnerabilidade extrema. Já quando se observa o que é transcendido surge a construção de alguns vínculos, auxiliando na superação de situações de solidão ("o pior das ruas") e configurando apoios sociais, tanto referentes à alimentação, roupas e higiene pessoal, quanto a algumas relações significativas, nos rituais religiosos. Conviria radicalizar a palavra transcendência ao ponto de "o que transcende" não mais se relacionar com o fenômeno "população em situação de rua" contemporâneo? Admitir-se-ia radicalizar a palavra transcendência na imanência de "o que é transcendido" se tratar exatamente das distâncias individualistas, dando lugar, como diria Pélbart (2003), à composição de pôr em comum distâncias, na produção do comum entre solitários solidários?

Quanto às obras caritativas, que pretendem conjugar transcendência e imanência, apontamos duas direções das práticas: por uma lado, a questão da moralidade das práticas religiosas mais presentes na rua que compõem uma biopolítica de controle da vida que "pacifica" e torna "passivos" os sujeitos diante da condição de vulnerabilidade, atribuindo a eles próprios a culpa dessa condição e não às condições sociais e à omissão do Estado em promover as condições de vida a que tem direito como cidadãos; por outro, os limites da resposta caritativa que "tampona" a ausência de Estado aqui e sustentam a precariedade da resposta social oferecida às pessoas em situação de rua. O lugar que as práticas religiosas ocupam, por um lado, constitui elemento importante da existência dessas pessoas, ofertando vias de sustentação subjetiva e, por outro, legitimam práticas de omissão do Estado pela oferta caritativa, distante da concretização dos seus direitos humanos e sociais.

É interessante observar que os caminhos de espiritualidade possíveis, em sua multiplicidade, o que inclui os pertencimentos religiosos, podem se apresentar como um recurso de resistência aos limites de um mundo que modula os direitos humanos, posicionando alguns poucos em prosperidade e relegando as maiorias sociais à escassez, chegando ao extremo perverso de existirem pessoas em situação de rua no século XXI. Cabe considerar as práticas religiosas/espirituais também como um modo nutritivo de elaboração de tais limites e quiçá de sua necessária contestação. É nítido que delinear limites e desconfiar de sua impermeabilidade rumo a ultrapassagens faz dos grupos em sua diversidade um mote para o motim, o fogo para a pólvora e a dinamite, a gota d'água para o transbordamento de barragens, o grito que contesta o silêncio naturalizado, a mutação do que se engana ser impossível de mudar. São nos coletivos, é no entre pessoas, é também nas igrejas, nos templos, nos terreiros, nas rodas xamânicas, nos mosteiros, onde se encontra um desafio atual e quase inaudito, com um tom de insuspeito, em buscar produções imanentes de comuns nas diferenças. Esse artigo é um passo, sem dúvida não o primeiro tampouco será o último...

No meio desses vazios sociais, políticos, éticos e de condições dignas de vida, a população em situação de rua permanece, quer se queira quer não, dentro dessa sociedade, com suas proximidades árduas e incômodas, por problematizarem, com suas próprias existências, a reprodução desse sistema social, dando à dimensão dessa sociedade, uma dimensão perversa. Urge, nessa conjuntura, ao Estado, à sociedade civil organizada, com ênfase no Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) e aos grupos religiosos sensíveis às questões sociais, conectando o transcendente com a imanência da vida, avançarem rumo à outra sociabilidade possível, que acolha os mistérios das gentilezas, longe dos incêndios do capital, em seu individualismo, competição e consumismo, perto de amar e mudar (como diria o cantor Belchior) esse estado de coisas contemporâneo.

 

Referências

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Submissão: 08/05/2020
Aceite: 10/11/2020
Financiamento: Pibic/UFRN e Propesq/UFRN

 

 

1 Maiores informações podem ser encontradas em: https://mtst.org/noticias/com-responsaveis-ainda-impunes-massacre-da-se-completa-14-anos/
2 Em referência ao verso do poeta Heine: "Deixemos o céu aos anjos e aos pardais", presente na obra "O Futuro de uma Ilusão" de Sigmund Freud, obra essa que analisa a relação da civilização com as religiões.

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