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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.22 no.54 São Paulo maio/ago. 2022

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Linguagem, poder, gênero e subjetividades na interface com teorias feministas

 

Lenguage, power, gender and subjectivities in interface with feminist theories

 

Lenguaje, poder, género y subjetividades en la interfaz con las teorías feministas

 

 

Karla Galvão AdriãoI; Paloma SilveiraII

IUniversidade Federal de Pernanbuco Recife/PE, Brasil. karla.galvao@ufpe.br
IIUniversidade Federal de Pernanbuco Recife/PE, Brasil. palomasilveira25@gmail.com

 


RESUMO

Este ensaio reflete sobre como as noções de linguagem, poder, gênero e subjetividades, dialogam entre si, tomando como base epistemológica para este debate, a perspectiva teórica feminista pós-estrutural (Haraway, 1995; Scott, 2002), em sua inflexão com as propostas feministas negra (Gonzaléz, 2018); e descolonial (Lugones, 2014; Rivera Cusicanchi, 2010). Discutiremos a partir de duas cenas que atuam enquanto "eventos discursivos" (Beaugrande, 1997). O primeiro trata de uma evocação, em um encontro entre uma das pesquisadoras e uma criança, ao sistema-sexo/gênero e às ciladas discursivas que atravessam corpos e subjetividades. A segunda, descreve o encontro entre duas jovens mulheres brancas de classe média, sobre questões de aborto provocado, desnudando tensões entre igualdade e diferença e o campo dos direitos reprodutivos. Nas duas cenas as provocações se estabelecem, trazendo a centralidade da linguagem e do poder em relação com questões de raça, classe e gênero para as construções subjetivas.

Palavras-chave: Teorias feministas pós-estruturais; Linguagem; Feminismo negro; Descolonialidades; Subjetividades.


ABSTRACT

This essay reflects on how the notions of language, power, gender and subjectivities dialogue with each other, taking as an epistemological basis for this debate the post-structural feminist theoretical perspective (Haraway, 1995; Scott, 2002), in its inflection with the black feminist (Gonzalés, 2018); and decolonial (Lugones, 2014; Rivera Cusicanchi, 2010) proposals. We will discuss from two scenes that act as "discursive events" (Beaugrande, 1997). The first deals with an evocation, in a meeting between one of the researchers and a child, about the sex/gender system and the discursive pitfalls that cross bodies and subjectivities. The second describes the encounter between two young white middle class women on issues of induced abortion, laying bare tensions between equality and difference and the field of reproductive rights. In both scenes, provocations are established, bringing the centrality of language and power in relation to issues of race, class and gender to the subjective constructions.

Keywords: Poststructural feminist theories; Language; Black feminism; Decolonialities; Subjectivities.


RESUMEN

Este ensayo reflexiona sobre cómo las nociones de lenguaje, poder, género y subjetividades dialogan entre sí, tomando como base epistemológica para este debate, la perspectiva teórica feminista post-estructural (Haraway, 1995; Scott, 2002), en su inflexión con las propuestas feministas negras (Gonzalés, 2018); y descolonial (Lugones, 2014; Rivera Cusicanchi, 2010). Discutiremos desde dos escenas que actúan como "eventos discursivos" (Beaugrande, 1997). El primero trata de una evocación, en una reunión entre una de las investigadoras y un niño, sobre el sistema sexo-género y las trampas discursivas que cruzan cuerpos y subjetividades. El segundo describe el encuentro entre dos jóvenes mujeres blancas de la clase media, en torno a temas de aborto inducido, exponiendo tensiones entre igualdad y diferencia, y el campo de los derechos reproductivos. En ambas escenas, las provocaciones se establecen, llevando a las construcciones subjetivas la centralidade del lenguaje y el poder em relación a los problemas de raza, clase y género.

Palabras clave: Teorías feministas post-estructurales; Lenguage; Feminismo negro; Descolonialidades; Subjetividades.


 

 

INTRODUÇÃO

Neste artigo pretendemos trazer algumas reflexões sobre linguagem, poder, gênero e subjetividades, a partir do diálogo com a perspectiva teórica feminista pós-estrutural (Haraway, 1991, 1995; Scott, 1999, 2002), feminista negra (Gonzaléz, 2018) e descolonial1 (Lugones, 2014; Rivera Cusicanqui, 2010). O percurso analítico propõe colocar em relação as perspectivas supracitadas tendo o fenômeno da linguagem como elemento que baliza, constrói e conforma o mundo (Butler, 1997; Costa, 1995; Wittigenstein, 1991). A linguagem em sua relação com as práticas de poder, as posições de gênero e outras desigualdades, e as conformações subjetivas adivindas daí, serão analisados a partir de duas imagens narradas, que atuarão como um evento discursivo2. Por 'evento discursivo' compreendemos, amparadas em Robert de Beaugrande (1997), que os distintos elementos que compõem uma cena, se integram e revelam as diversas facetas de um mesmo fenômeno, analisados a partir de um olhar micro e macro social. Desse modo, tanto as questões que deveriam ser de um âmbito mais subjetivo, se fosse possível essa divisão, quanto as que seriam de uma esfera mais social, se imbricam na constituição do discurso-imagem3.

A primeira destas foi o encontro que a primeira autora teve com Duda, no período em que escrevia a sua tese de doutorado (Adrião, 2008), sobre 'O campo feminista no Brasil e seus Encontros com os Feminismos', numa manhã de sol tímido viajando entre cidades nos pampas gaúchos. Na segunda apresentamos outra forma de encontro, que ocorreu ao acessarmos uma narrativa sobre uma experiência de aborto provocado, no blog do projeto As Rodadas4. A partir dessas duas imagens exploraremos os entrelaçamentos entre linguagem, poder e constituição de subjetividades.

 

O ENCONTRO COM DUDA5

Duda estava lá, no ônibus, fazendo o trajeto entre cidades e estados, nossa viagem era longa. Ela (a criança), disse ter três anos, juntando seus dedos pequenos e gorduchos. Entre sorrisos aguardava minha próxima pergunta, início de uma amizade de estrada entre uma mulher adulta e uma criança, tentativa de diminuir o tédio da viagem. Mais que isto, Duda colocou, de seu lugar de entendimento da vida, elementos para pensar questões sobre linguagem, poder, gênero e feminismos, e o debate em torno de uma normatização que parte da binarização de corpos e subjetividades.

Antes de saber seu nome, Duda atraía a atenção como uma criança esperta e animada, pois corria pelo ônibus e, por vezes, parava, com vontade de conversar. Então, surgiu a primeira pergunta que, em geral, fazemos a qualquer criança: 'Como te chamas?' Ao que ela silenciou, um pouco ressabiada. 'Tudo bem, como teus pais te chamam?' Desta vez, veio a resposta: Duda. Iniciamos um diálogo, no qual falamos sobre fatos da viagem e sobre a distância entre as cidades. Duda ia e vinha, e perguntava recorrentemente: 'Onde fica Rio Grande?' Ao que eu apontava para a estrada e as montanhas. Enquanto isso, outra pergunta frequentemente aparecia: 'Seria Duda uma menina ou um menino?' Esta era a questão naquele momento.

Suas roupas eram vermelhas, Duda vestia um agasalho do time de futebol Internacional. Perguntei a ela, a criança, sobre futebol e, do alto de seus três anos, ela me ignorou. Então pensei: isto me diz algo? Será Duda uma menina por isto? Evidente que não, os costumes e as ações cotidianas estão em transformação. Futebol deixou de ser 'coisa de homem' há, pelo menos, mais de 30 anos. Duda volta a correr pelo ônibus e me persegue a questão: 'porque a necessidade de classificá-la como tal?' Fará diferença em nossa relação, neste ônibus, o fato de Duda ser menino ou menina? Apesar disso a indagação e a recorrência da questão persistiram, quando Duda voltou, após correr mais um pouco e conversar rapidamente com uma senhora, dizendo-me: 'minha camisa de dentro tem linhas que estão caindo, vou puxá-las'. Duda estava com uma camisa de manga e gola alta, por dentro do agasalho, também vermelha, com fios prateados que caiam, discretamente. Então, a pergunta retornou: 'esta camisa poderia ser usada por um menino ou uma menina, entretanto com fios prateados, talvez não...' 'Será Duda uma menina?' Questionamentos sobre os motivos para a persistência dessa indagação surgiram. A questão em torno das relações entre gênero, linguagem, poder e subjetividades estava presente nas nossas (minhas e dela) ações cotidianas6: ser identificada como mulher, homem ou não se definir como nenhum destes marcadores, traz marcas subjetivas, mas também políticas, para indivíduos e grupos. Duda, enquanto sujeito individual, seria atravessada por este significante, mas também as mulheres (seja lá o que este termo ainda queira enunciar, polissemicamente) poderiam se reconhecer enquanto grupo através dele. Portanto, o termo 'mulher' demarcaria questões individuais e grupais que começavam a intrigar, a partir desse encontro com Duda.

Se, ao pensar sobre Duda e sua relação com o(s) debates em torno do(s) feminismo(s), aparecia o par homem/mulher, este diálogo lembrou que ser identificado como um ou outro demarca formas de constituição que, por sua vez, têm levado a desigualdades e/ou a formas de acessar a cidadania muito próprias. Além disso, exclui outras possibilidades de subjetivação que não estão dentro desse par, necessariamente. A conversa com Duda continuou até que a viagem chegou ao seu destino final. Na atribulação de pegar mochilas, de pessoas se empilhando no corredor, ansiosas por descerem, não houve despedida. Foi importante abrir mão da busca de alguma resposta para aquela pergunta persistente; ainda assim, para Duda, essa questão iria demarcar sua forma de estar no mundo, de alguma maneira.

Duda torna-se sujeito 'ocupando posições de assujeitamento7' no mundo, a partir da identificação da pergunta recorrente 'será menino ou menina?', mas também da outra pergunta, a da criança, que era 'onde fica o Rio Grande?'. Ou seja, Duda é atravessada por discursos que a constituem enquanto sujeito no mundo, um mundo genderificado, mas também situado temporal e espacialmente. A pergunta recorrente sobre a relação sexo/gênero8 se complementa às próprias preocupações da criança, em sua pergunta - onde ela está situada e em que contexto de fala, de lugar e de tempo se encontra.

Duda lançava de seu lugar de discurso e ação, questões que não podemos deixar de considerar. Primeiro, Duda inquiria ao lançar a dúvida sobre se era uma menina ou um menino, sobre a legitimidade da ocupação de um lugar de discurso. Segundo, Duda revelava o quanto os lugares de ocupação, de posições de sujeito, como pesquisadoras e militantes, somos atravessadas pelas normatividades discursivas do sexo/gênero: a necessidade recorrente de designarmos as pessoas, crianças como Duda, de menino ou menina. O marcador de gênero constitui as relações sociais de forma tal que, é difícil escaparmos dessa ordem normativa que é, eminentemente, uma ordem performativa de gênero (Butler, 1997), que trata de uma repetição, quase que à exaustão, de uma norma.

Dessa primeira parte, guardamos duas questões: a legitimidade da ocupação de um lugar discursivo genderificado, e as normatividades discursivas do sexo-gênero, são permeadas por imagens e linguagens. Cabe, assim, discorrer nesse momento, um pouco sobre imagens-noções em Jacques Ranciére (2016) O destino das imagens. Nesta obra, o autor apresenta elementos que nos inspiram na sua discussão sobre imagem e arte. Não pretendemos discutí-los profundamente nesse artigo, mas trazemos aqui um trecho no qual Ranciére diz que a imagem nunca é uma realidade simples. As imagens do cinema, por exemplo, são, antes de mais nada, operações, relações entre o dizível e o visível entretanto, há imagens que estão todas em palavras.

De uma forma ou de outra, essas imagens são signos linguísticos que operam a partir da máxima saussuriana da relação entre significado e significante. São metáforas-alegorias que trazemos aqui para esta reflexão. Somada a esse conceito de Ranciére (2016), apresentamos mais algumas reflexões sobre linguagem, que se tornam importantes nesse argumento. Duas reflexões teóricas são utilizadas com maior frequência no campo9 teórico-político feminista: a filosofia da linguagem ordinária (Wittgenstein, 1991), e a teoria pragmática dos atos de fala (Austin, 1962), particularmente por terem desdobramentos interessantes no campo dos estudos das subjetividades e dos modos de subjetivação. Podemos ver isso nos argumentos de Jurandir Freire Costa (1995), em sua obra a A Face e o Verso, com a realidade linguística, os jogos de linguagem, as proposições, forma de vida, regras e usos. E nos escritos de Judith Butler (1997), ao tratar dos usos da linguagem performativa, do poder e dos jogos identitários para explicar reiterações das normas de gênero, por meio de termos como performatividade, atos de fala, normas, regras e repetição exaustiva.

Butler (1997) em seus argumentos, vai desafiar o sistema regulador normativo, ao discutir, por exemplo, como em outra obra, os marcos de guerra (Butler, 2010), sobre o não reconhecimento do próprio estatuto de humano em algumas condições de vida que, por não serem inteligíveis a partir do referencial da normatividade, não carregam em si a possibilidade de humanidade, não são lidos como humanos. Nessa perspectiva, as condições de reconhecimento de uma subjetividade generificada/gendrada dependem da possibilidade de seu gênero ser culturalmente inteligível e de ser socialmente vivível (e aqui não apenas o gênero enquanto identidade, mas como a matriz hegemônica de constituição de masculinos e femininos construídos dentro de uma norma). Precisamos lembrar que acreditamos que ninguém se identifica completamente dentro de uma categoria e, que, por outro lado, as pessoas não controlam totalmente as marcas subjetivas que carregam, sendo continuamente afetadas pelos significados culturais que atravessam seus corpos, discursivamente.

É importante pontuar como o pensamento feminista atual traz o gênero, tanto como conceito - marcador identitário -, quanto como categoria analítica. Ao tratar do conceito de gênero também ainda, uma disputa entre escolhas conceituais se faz presente, convivendo noções que tratam desde gênero e sexo de forma tal que sexo estaria para natureza, enquanto que gênero para cultura; até aquelas que tomam o mesmo como posições performativas, nas quais as discursividades das desigualdades do poder ganham centralidade (Butler, 1997, 2004; Scott, 1999 dentre outras). Compartilhamos, dessa última conceituação, assomada da perspectiva de tomar gênero como uma escolha analítica, pois nela reside a maior possibilidade do uso do gênero, na compreensão dos fenômenos sociais, tratando impreterivelmente das relações de poder e desigualdades a partir das posições ocupadas, de raça, etnia, classe, território, sexualidade, geração.

Ademais, é importante salientar a questão dos binarismos e hierarquizações nos processos discursivos. Sabemos que binarismos trazem imagens hierárquicas de pares opostos, nos quais, como também afirmam Foucault (1994) e Butler (2004), um seria o pólo superior e o outro, o pólo do abjeto. O pólo superior estaria dentro da norma enquanto que o pólo oposto seria classificado, então, como doente, antinatural, inferior. Estes pólos, ainda segundo Foucault (1994), conformariam os regimes de poder-saber que moldam as ordenações dos nossos desejos, dos corpos e das sexualidades, produzindo subjetividades abjetas e vulneráveis à violência.

Tanto a hetero norma, quanto a produção hegemônica de pares dicotômicos masculino- feminino, nos quais, por exemplo a mulher aparece associada à maternidade e o homem ao ato de prover, revelam a necessidade de reiteração das normas regulatórias para garantir a identidade sexual e a identificação de gênero legitimada, cultural e socialmente legíveis. Além disso, são insistentemente reiteradas, mas nunca alcançadas, por serem ficções obtusas da dinamicidade e criticidade discursivo-subjetiva das pessoas, no cotidiano.

Tendo dito isto, abrimos novamente o espaço para mais um relato. A segunda história que vamos narrar foi recebida, como supracitado, no blog do projeto As Rodadas. No momento em que recebemos esse relato10, o debate no projeto se concentrava em torno dos direitos reprodutivos, especificamente, do aborto.

 

SOBRE O CUIDADO E A EXPERIÊNCIA DO ABORTO PROVOCADO

Quando recebemos um pedido de ajuda, recebemos também a responsabilidade e a preocupação do cuidado. Não aquele cuidado que se restringe apenas ao saber técnico, mas um cuidado constituído pelo encontro ético com o(a) outro(a) e com toda a sua potência de afetos, como nos faz refletir José Ricardo Ayres (2001):

Cuidar é querer, é fazer projetos, é moldar a argila. Querer é o atributo e o ato do ser. Cuidar é sustentar no tempo, contra e a partir da resistência da matéria, uma forma simplesmente humana de ser. Mas é igualmente soprar o espírito, isto é, ver que essa forma não seja pura matéria suspensa no tempo (mesmidade), mas um ser que permanente trata de ser, um ente 'que se quer' (ipisiedade). (Ayres, 2001, p. 71)

No começo, era mais uma mulher que queria abortar, mas era a primeira que procurava Maria, militante feminista. A mulher era uma jovem, branca, classe média, com ensino superior. Sendo assim, com vários marcadores que a colocariam em um lugar privilegiado de "segurança". Mas, antes de tudo, era uma mulher e mulheres nunca estão seguras de violências, sobretudo, quando se trata de uma prática ilegal e condenada moralmente, como o aborto11.

Ela, Bia, procurou Maria e contou sua história. Havia alguns meses daquele ano de 2016 que se relacionava com um homem. Há muito tempo ele era seu amigo, mas passou a se mostrar estranho e agressivo. Usava do seu poder para chantageá-la e dominá-la, chegando a ameaçar 'dar um pau nela', caso descobrisse que ela pretendia abortar. Bia estava desesperada, com 5 semanas de gravidez e não podia levá-la adiante, por variados motivos.

Ela tinha entrado em contato com algumas pessoas para conseguir o Cytotec12, mas ainda estava na insegurança da clandestinidade e, consequentemente, da desinformação, afinal realizar o aborto em contextos ilegais pode expor as mulheres a variados riscos, incluindo a compra de medicamentos em que se desconhece a procedência (Arilha, 2012). Precisava de companhia, mas não de qualquer companhia. Maria tinha algum conhecimento sobre os caminhos para realização do aborto, se sentia bem informada sobre o assunto, conseguindo argumentar, em diferentes espaços, sobre ele. O discurso de Bia tocava Maria, as aproximava por meio de sentimentos e pensamentos em torno da culpa, da ilegalidade, que controla os corpos femininos e mata física e simbolicamente, todos os dias, muitas mulheres13. A sensação era de que ela não podia levar aquele aborto adiante - por ser mulher.

Ciente da complexidade do tema e de todos os atravessamentos que o envolvem, subjetivos, legais, morais e religiosos, Maria se comunicava com Bia e com outras pessoas de forma discreta. A insegurança sobre como falar e com quem se fazia presente, assim como o medo de serem descobertas fazendo algo que era legítimo para elas, mas ilegal e envolto por muitas polêmicas. O aborto não é um tema que se pode conversar com qualquer pessoa. É revelar camadas sobre camadas de segredos, cada uma das quais obedece a uma lógica peculiar e marca, de forma cumulativa, as experiências de aborto das mulheres. Existem, ao menos, três esferas às quais estas lógicas estão atreladas, a legal, a moral e a relacional que, em uma perspectiva hermenêutica, correspondem a distintos níveis estruturais: (a) o mais abrangente é aquele das normas estabelecidas na lei para a aplicação do Estado por meio de imposição de força; (b) o mais difuso, mas nem por isto menos poderoso, é a ideologia hegemônica que sanciona e condena o aborto como contrário à moral; e (c) o mais imediato seria aquele que corresponde ao mundo relacional das pessoas. As lógicas identificadas decorrem da criminalização da prática do aborto; do atual recrudescimento da sua condenação moral no Brasil; e também dos contextos específicos, relacionados aos processos biográficos, que só podem ser entendidos como inseridos no contexto sócio-histórico que os engloba (Silveira, 2014).

Depois de uma espera, o remédio chegou e tudo estava pronto. Conseguiram seis comprimidos e escolhereram a casa de Maria para ser o local, onde Bia utilizaria o medicamento com o apoio de outras amigas mais experientes. Enquanto um vídeo da abertura das Olimpíadas passava na televisão, Maria cuidava de Bia oferecendo-lhe água, perguntando se estava bem e com fome, escutando o que ela tinha para "botar para fora": sobre gravidez e aborto provocado etc. Às 21h as amigas de Bia já haviam ido para casa e Maria ficou sozinha com ela. O medo aumentou, mas se mantiveram firmes. Bia já estava sentindo uma cólica e dizia que não era uma dor estranha, comum em seu ciclo menstrual. Às 22h, Bia sentiu muito sangue escorrer em suas pernas e foi ao banheiro, quando ela baixou a calcinha para se sentar no sanitário, algo caiu no tapete.

Bia repetia angustiada "tira, tira, tira", Maria, sem pensar muito, enrolou em um bom pedaço de papel higiênico e recolheu. Maria assistiu Bia em desespero limpar o sangue que escorria dela. Bia um pouco confusa e um tanto aliviada, enfim, afirmou "não estou mais grávida". Ela ria, ficava tensa, com fome, com sede, sem sono. Maria só se lembrava de como foi difícil estar ali sendo forte, acolhendo uma mulher que desabava, por algo que diz respeito à autodeterminação, à máxima do feminismo "nosso corpo nos pertence". Na madrugada, Bia cobriu Maria com um cobertor, enquanto esta cochilava, cuidou também dela, já que sabia que Maria também estava com medo.

Gostaríamos de salientar, nesse segundo relato, três momentos. O primeiro quando Bia é apresentada no início: ao demarcar de onde fala e as posições de sujeita que ocupa, seus 'lugares de privilégio são evidenciados'. Os debates advindos do feminismo negro e do feminismo descolonial são pontos cruciais para esta compreensão e nos casos de abortos, fundamentais. São as mulheres negras, jovens, de estratos sociais baixos e residentes em áreas urbanas periféricas as que mais sofrem consequências graves do aborto clandestino no Brasil14 (Ministério da Saúde, 2009). Para Emanuelle Góes (2018) o racismo e suas diferentes expressões marcam de maneira contudente os caminhos reprodutivos das mulheres negras em situação de abortamento. São elas que possuem contextos menos favoráveis para a continuidade da gravidez, que apresentam maiores dificuldades individuais na busca pelo cuidado e acesso à atenção hospitalar pós-abortamento.

O segundo momento, quando é enunciado, através do poder da norma/das normatizações que 'ela não poderia levar aquele aborto adiante - por ser mulher', está tratando das questões de 'agência e autonomia', através das marcas do sexo-gênero nas vivências de sexualidade permeadas pela ideologia judaico-cristã. Além disso, pelo que se entende como feminilidade - norma - padrão regulatório, e como esse padrão tem na figura da maternidade um elemento de muita força discursiva. As mulheres que realizam o aborto, por diversos motivos que se entrelaçam e estão relacionados ao momento de vida em que aconteceu a gravidez (Silveira, 2014), personificam a anti-maternidade, como uma subversão da norma.

E o terceiro momento, traz a questão política, da 'política de circulação dos corpos', quando pontua que 'a ilegalidade controla os corpos e as sexualidades das mulheres'. Este ponto toca em como estas noções ultrapassam os limites do âmbito privado, sendo tomadas no público, inclusive na busca por acesso a direitos15. Mesmo em situações de privilégio, quando conseguem acessar as clínicas privadas clandestinas, os corpos das mulheres estão subjulgados ao controle do poder médico. As experiências de abortos em clínicas privadas, descritas no estudo de Paloma Silveira, Cecilia McCallum e Greice Menezes (2016), revelam práticas que vão desde algumas situações, como a falta de informações sobre os medicamentos utilizados, até outras mais graves, como procedimentos realizados sem anestesia. A criminalização do aborto no Brasil pune todas as mulheres, submetendo-as às circunstâncias históricas, culturais e sociais semelhantes e a variadas situações de vulnerabilidade e de sofrimento evitáveis, ainda que em graus bastante diferenciados (Silveira, Mccallum, & Menezes, 2016).

Esses três momentos convergem na imagem do cuidado de si (Foucault, 1994) e do(a) outro(a), no caso de outra mulher, como elementos que tratam dos modos de subjetivação genderificados. Para pensar nesses termos, gostaríamos, neste ponto deste artigo, de refletir a partir de questões advindas do debate do feminismo negro, a partir de autoras como Angela Davis (2016) e Lélia Gonzalez (2018) e da perspectiva descolonial, como propõem María Lugones (2014), Silvia Rivera Cusicanqui (2010), dentre outras. Pretendemos trazer algumas das imensas contribuiçoes que as reverberações desses estudos ampliam para pensar sobre os processos de subjetivação que se constituem em situações de desigualdade e seus entrelaçamentos dialéticos com o contexto macro social, com seus jogos de poder.

Levando em consideração a importância dos processos de subjetivação, compreendemos gênero como categoria importante para refletir sobre tais subjetividades, visto que ele mesmo é um aspecto constituinte das mesmas, mas o mesmo só faz sentido de ser trabalhado se atrelado a raça, etnia e classe, principalmente numa sociedade racista, que encobre seu racismo, como a brasileira16.

Nos últimos anos, os debates advindos dos feminismos negro e do Sul, bem como dos estudos descoloniais e decoloniais vem tratar de um deslocamento importante dos estudos de gênero, atrelando os mesmos ao debate em torno do sistema-mundo capitalista e neoliberal, e na própria criação da modernidade com as invasões, também chamadas de "descobrimentos" das Américas, e da escravização de povos africanos, destituídos de suas terras e suas culturas e tradições para serem utilizados como mão de obra da máquina do sistema-mundo nos países colonizados (Quijano, 1992). Aqui também a invenção do termo raça vem destituir aquelas pessoas de pele negra de qualquer humanidade, e atribuir as de pele branca a legitimação em escravizá-las e desumanizá-las. Aliada a esta diáspora africana, os povos originários passam a ser chamados de índios(as) e, depois, de indígenas. Essas nações também sofrem atrozmente uma dizimação de suas tradições, cosmologias, vivências e nestes espaços as mulheres ocupam os lugares de maior violência (Davis, 2016; González, 2018). Importante neste momento colocar que as duas autoras deste texto são mulheres brancas, de classe média. A visibilização da branquitude e de seu lugar de privilégios de raça, classe e gênero precisam ser destacados, tendo em vista que a racialização só acontece porque existem, o que os discursos racistas chamam de "pessoas brancas e não brancas". A invenção da racialização coloca o branco, no sistema colonial, como o humano, em contrapartida aos negros/as e aos povos originários, que são desumanizados e violentados, sob a autorização de difundir a violência do racismo. Portanto, os estudos sobre branquitude precisam ser realizados e trazidos para o debate sobre poder, linguagem e subjetividades.

Maria Lugones (2014) traz o debate sobre sistema-mundo e a colonização, a partir da noção de colonialidade do gênero. Ela discute como, no processo de colonização capitalista, particularmente, na realidade das Américas, estamos atravessadas por algumas desigualdades que nos constituem em torno das questões de trabalho, ou seja, estamos em um modelo desigual capitalista, que para seguir existindo, se nutre das desigualdades de raça, de classe e de gênero, de forma imbricada, interseccionalizada. Um contrato social e econômico instituído que se enraíza por meio de dois outros contratos: racista e sexual. Nesses, as posições de sujeito(a/e) são demarcadas por lugares de privilégio e de exclusão, a partir de sua cor da pele, de sua classe social e de suas escolhas sexuais.

Silvia Rivera Cusicanqui socióloga boliviana, transitando entre as culturas indígenas andinas e uma formação europeia invoca esses híbridos não solucionáveis para trazer um debate potente e vigoroso sobre o lugar das culturas indígenas andinas na Bolívia. A mesma vai discutir em um texto publicado em 2010 sobre o que chamamos de "a má tradução" (Jesus, 2019) e seus grandes e violentos equívocos produzidos nos encontros entre colonizados(as) e colonizadores. Atualizando essas ações e sua evocações para o momento atual, Rivera Cusicanqui (2010) mostra como a escrita, marca da colonização, provoca estes maus encontros. Para a autora, há um controle colonial por meio da escrita, e portanto, a autora opta pelo diálogo com as imagens, pois a escrita não apenas designa, mas encobre a realidade, criando um registro imaginário ao invés de nomear esta realidade. Rivera Cusicanqui (2010) vai se utilizar de obras de arte e buscar estas outras linguagens para fazer uma crítica à colonialidade, evocando as versões dos povos andinos para o centro do debate. Com isso, a autora critica veementemente a (re)produção continuada de uma lógica colonial que oprime e satura as relações com os povos originários e toda a potência de sua produção para a constituição de uma vida e de modos de subjetivação possíveis para as pessoas dentro do sistema-mundo capitalista e neoliberal atual.

 

GÊNERO, OUTROS MARCADORES E O CAMPO PSI

Apesar de todo o debate travado acima, gênero, na interface com outros marcadores, vem sendo compreendido, ainda em algumas áreas de conhecimento a exemplo da psicologia17, como um tema e não como um demarcador de processos de subjetivação. As teorias feministas também não têm destaque enquanto domínio epistemológico que apresenta relações teórico-metodológicas entre micro e macro análises dos fenômenos intrapsíquicos. Historicamente, pode-se perceber certa negligência da psicologia frente às relações de poder, e mais especificamente às relações de gênero, enquanto essenciais para a própria constituição das subjetividades. No entanto, são cada vez mais frequentes atuações de resistência ao modelo de psicologia hegemônico que ao longo do tempo vem normatizando corpos e enquadrando subjetividades (Foucault, 1994).

As ciências psicológicas vêm assumindo de forma significativa, ainda, que não hegemonicamente uma postura de reivindicação da igualdade entre os sexos nas produções teóricas e nas intervenções da psicologia. Nestes termos, as teorias feministas se posicionam numa linha de ação ativamente anti-sexista. Entretanto, não só propõe a compreensão da chamada 'condição feminina', mas também de outros sistemas de classificação geradores de opressão como raça, orientação sexual, classe entre outros (Neves & Nogueira, 2003).

Na busca por outros modelos, outras epistemologias e outros procedimentos metodológicos que guiassem os estudos em um viés feminista, Donna Haraway (1991) define o espaço diferenciado que ocupa o feminismo dentro da ciência. A autora defende que as definições de gênero colocam de modo agudo os problemas da comparação cultural, da tradução linguística e da solidariedade política. Pode-se afirmar que os estudos de gênero e feministas sempre são posicionados do ponto de vista político e, portanto, não comungam da crença positivista que defende a neutralidade, e separa sujeito e objeto de investigação.

O campo de estudos feministas não escapa a uma crítica construcionista18, ainda que tenha a seu favor o fato de, desde as propostas mais iniciais, ter optado por estudos que enfatizam a política, as traduções transculturais, o subjugado e parcialmente compreendido. Nestes termos, Haraway (1995) apresenta um projeto que utilize a objetividade corporificada, ou seja, uma "objetividade feminista (que) significa, simplesmente, saberes localizados" (Haraway, 1995, p. 18). A promessa de objetividade é uma conexão parcial, e não uma busca por uma posição de identidade com o objeto, pois não se pode estar em todas as posições, ou inteiramente em uma posição privilegiada para a observação do objeto científico, e isso se aplica às categorias subjugadas (ou privilegiadas) como no caso dos estudos de gênero, de raça, de etnia, de classe, de geração e de território.

Grada Kilomba, psicóloga e artista plástica, com vivências em Portugal e Àfrica, é uma importante presença no debate interdisciplinar sobre como o racismo opera subjetivamente, provocando e atualizando violências coloniais até os dias de hoje. A autora vai esmiuçar em sua obra Memórias da plantação: episódios de racismo no cotidiano (2019) os processos de subjetivaçao atravessados por raça, classe e gênero, através de relatos de afetos e de intimidade. A autora vai enfatizar como o racismo é composto por eventos discursivos violentos, que são reiterados, também a uma exaustão, revelando um padrão de abuso racial histórico.

Junto com Kilomba (2019), psicólogas feministas brasileiras vêm discutindo essas questões, formando fóruns de debate e encontros de pesquisadoras e profissionais no campo, desde 201719. Por outro lugar, mas não menos importante, Lia Vainer Schucman e Hildeberto Vieira Martins (2017) discutem sobre como a psicologia mainstream omitiu as discussões sobre raça e racialização como importante elemento de subjetivação de corpos e identidades. Apropriou-se do debate do racismo, tomando-o primeiro, a partir de sua vertente normatizadora, no qual o negro era visto como um "objeto da ciência"; até chegar ao momento atual, no qual estas pessoas continuam não sendo percebidas como sujeitos(as/es) de sua própria história. Nesta discussão estão ainda as disputas em torno da racialização e privilégios das pessoas brancas e de como é premente trazer este debate para o centro sob pena de a psicologia seguir reiterando práticas e teorias racistas.

Aliado a todo esse debate o próprio sistema Conselhos, Federal e Regionais - de Psicologia, vem produzindo ações de visibilização em torno destas questões. Destaque ao texto sobre 'Relações Raciais' (CFP, 2017), 'Referências Técnicas para Atuação das(os) Psicólogas(os)', produzido pelo Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP), em 2017. Estas normativas orientam e, mais que isso, mostram que os estudos sobre racialização e racismo precisam ser tratados com grande atenção pelo campo psi.

 

ALGUMAS ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE PODER, LINGUAGEM E SUBJETIVIDADES

A linguagem nos atravessa, constrói normas, subjetividades, formas de agir no mundo, sofrimentos, violências. A diversas formas de construirmos o mundo no qual vivemos podem ampliar as desigualdades, mas também podem abrir flancos para pequenas mudanças. Amparadas em diálogo com autoras que já foram citadas (Costa, 1995; Davis, 2016; González, 2018; Kilomba, 2019; Rivera Cusicanqui, 2010), e, particularmente no diálogo com Judith Butler (1997), em seu livro Linguagem, poder e identidade, e com Alexandro de Jesus (2019), em seu livro Corupira. Mau encontro, tradução e dívida colonial20, questionamos: somos feridas pela linguagem? A linguagem pode nos ferir se não formos, em algum sentido, seres linguísticos? Seres que necessitam da linguagem para existir? E mais: como a linguagem pode ser apropriada colonialmente, em uma lógica de colonizador versus colonizado(a), na qual significantes são apropriados e expropriados, de forma tal que se esvaziam, e usurpam toda uma ancestralidade?

Com estas indagações, retomamos o argumento central desse artigo que era o de trazer algumas relações entre poder, desigualdades e linguagem. Através das duas histórias, de Duda e de Maria e Bia, lidas e re-lidas, com lentes analíticas que cruzam gênero com raça e classe, e outras desigualdades, e somente esse caleidoscópio pode ser uma metáfora compatível com a necessidade de não cair nas ciladas discursivas que montamos de posições binárias que produzem exclusões. O ato de simbolização se desarma quando percebe que não pode manter a unidade que produz.

Assim, ser mulher ou não, negra ou não, indígena ou não, jovem ou não, pobre ou não e as várias identidades que o nome confere, tornam-se vazias e este insight sobre sua vacuidade produz uma posição crítica sobre os efeitos naturalizantes desse processo de nomear (Butler, 2000). Essas possíveis ciladas discursivas sobre as quais falamos e nas quais deslizamos, também são operadores políticos de poder, desigualdades e subjetividades, porque trazem noções caras aos debates teóricos feministas. Além disso, demonstram bem como os operadores linguísticos atuam em relação com formações de poder e desigualdades de gênero, classe e raça, resvalando em práticas subjetivas marcadas por sofrimentos e violências, para os corpos nomeados como negros, indígenas, ou qualquer outro fora da norma; e trazendo privilégios para os corpos brancos, em especial os brancos cisheteronormativos, de classe alta, e nomeados como homens.

Ainda sobre essas ciladas, que demonstram operações políticas de poder, podemos trazer que são elas: (a) noções de público-privado, na medida em que se publicizam questões que estariam delegadas ao âmbito do privado, esfumaçando essa falsa dicotomia congelante; (b) noções de igualdade-diferença, que demarcam o desafio de discussão sobre cristalização de identidades e hibridez, assim como sobre posições mais fluídas de sujeitos(as) e subjetivações; (c) reflexões sobre sexo-gênero, sobre poder desfazer a compreensão naturalizante de que sexo é biológico e gênero é construído a partir do sexo binário; e (d) reflexões sobre racismo e racialização, e de como estes significantes atravessam com anterioridade todos os demais evocados acima, humanizando ou desumanizando pessoas subjetivamente.

Haraway (1991), em seu manifesto ciborgue vai além, propondo que as binaridades desses pares acima trazidos não são mais que ficções discursivas. Afinal, onde estariam demarcados os limites entre cada par, senão numa produção discursiva que revela posições de poder, marcadas por regimes de poder-saber - essas que podemos observar através da visão relacional entre raça, etnia, classe, gênero, território, sexualidade, geração? Estes limites discursivos são um pouco do que pretendemos tensionar abrindo mais frestas iluminadas, do que propondo respostas, e acreditando na potência da reflexão sobre estes elementos como caminhos possíveis na busca por menos desigualdades e mais possibilidades de existências.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 28/04/2020
Aprovado em: 14/08/2020

 

 

1 Um debate que está longe de se findar, traz a tensão entre os termos decolonial e descolonial. No centro das críticas, aponta-se a necessidade de coalisão entre os questionamentos decoloniais e pós-coloniais, tendo em vista que ambos se opõem ao colonialismo. Entendendo que esta perspectiva se coaduna mais à própria perspectiva pós-estrutural, que tem sua episteme fundante tensionada em termos de uma literatura do norte do globo, e de países colonizadores, embora esta mesma tenha se reinventado a partir também da relação com as epistemes feministas, é que fazemos a escolha pelo termo descolonial neste artigo.
2 Este texto é fruto de reflexões da apresentação da 1ª autora em mesa redonda da Jornada Psicanálise, Gênero e Identidade(s), organizada pelo Círculo Psicanalítico de Pernambuco, no segundo semestre de 2017. Após repercussão dessa apresentação o texto foi remodelado e teve a contribuição da 2ª autora no tocante ao debate sobre aborto. Agradecemos as contribuições da comunidade psicanalítica do Recife, em particular a Isabela Cribari pelo convite, aos demais componentes da mesa redonda, o Prof Dr. Érico Andrade e os psicanalistas Ana Elizabeth Cavalcanti e Antonio Ricardo Rodrigues da Silva. Agradecemos ainda às valiosas contribuições do grupo A coletiva/Labeshu/UFPE, principalmente nos nomes de Marisa Dantas e Adriana Cavalcanti.
3 Este texto vai trazer o pensamento de muitos autores e autoras, alguns brevemente, outro de maneira mais detalhada. Entendemos as perdas e ganhos desta escolha, e justificamos que a mesma se dá em função da busca analítica em fazer operar e dialogar correntes distintas feministas pós estruturais (que se coaduna com os estudos linguísticos e discursivos), feminista negra (que discute sobre a importância de evidenciar as violências epistêmicas, e os abusos do racismo estrutural, sofridas pelas populações negras e as mulheres negras em particular), e o feminsmos descolonial (que trata da ferida colonial e da dívida colonial) em sua relação com pensadores do campo da linguística (Beaugrande, 1997) e da filosofia da linguagem (Wittgenstein, 1991), unindo-os à reflexão sobre as interfaces entre linguagem e subjetividades (Butler, 1997; Costa, 1995; Ranciére, 2016 ).
4 O projeto de pesquisa-intervenção feminista As Rodadas (2016), ligado ao grupo A coletiva/LABESHU/UFPE, buscava criar espaços de diálogos, através de rodas de debate aberto que se utilizava de elementos arte terapêuticos e de metodologias participativas, sobre temas da agenda de lutas feministas. O primeiro destes foi sobre Aborto; o segundo tratou do tema das violências e aconteceu durante a ocupação das universidades públicas. Nos mesmos contava-se sempre com a participação de pessoas do movimento feminista de base, pessoas da academia e alguma artista/intervencionista. A equipe era composta pela profª Dra Karla Galvao Adrião, a publicitária Marisa Dantas, e as estudantes de doutorado em psicologia Daniele Rabello, graduação em Pedagogia Adriana Cavalcanti e de design Letícia Tomás.
5 O debate desta seção relaciona-se diretamente com a introdução da tese da primeira autora (Adrião, 2008).
6 Atividades que são vivenciadas rotineiramente e, por este motivo, são tomadas pelos indivíduos como dadas a priori ou naturalizadas como verdades absolutas. Ao serem observadas com mais detalhe, entretanto, seu conteúdo sócio-cultural é desvelado e é iniciada a jornada de 'reconhecimento' dos processos pelos quais os fatos sociais são construídos e tornados cotidianos (Searle, 1995).
7 Este termo é cunhado por Michel Foucault (1994) ao discutir sobre a constituição dos sujeitos no mundo. Segundo o autor os indivíduos são atravessados por leis e pelo poder de forma tal que não têm a possibilidade de serem completamente livres em suas decisões, já que as mesmas prescindem de decisões sociais. Os sujeitos são, portanto, 'assujeitados' em seu processo de constituição.
8 O debate sobre a relação entre sexo e gênero é ponto de partida de vários debates feministas, teóricos, metodológicos e ativistas. De uma forma geral, a diferença sexual, conceito que demarcou as lutas feministas e que acionou a percepção de que existem desigualdades específicas sofridas pelas mulheres, pelo fato de serem denominadas como tal, se baseou no sexo corpóreo, e separava nitidamente opressor e oprimido. O gênero começa a ser utilizado em meados do século XX, e traz uma virada para o debate, e, por tratar a questão enquanto conceito, sofre ele mesmo de várias formas de conceitualização. Aqui tomamos o mesmo enquanto categoria analítica que traz o poder para o centro, na discussão das desigualdades como relacionais (Butler, 1997; Scott, 1999; Strathern, 1988). Nestes termos, em última análise, também entre as próprias mulheres existem desigualdades, sobretudo, quando consideramos as intersecccionalidades de raça, etnia e classe (principalmente), mas também de sexualidade, geração, dentre outras.
9 Utilizamos o termo a partir da noção de campo bourdieusiano (Adrião, 2008).
10 Recebemos o relato por vias que não nos permitiriam identificar as pessoas envolvidas no mesmo. Soubemos, ao recebê-lo, que nomes foram alterados, permanecendo, entretanto, todos os demais elementos 'reais'.
11 No Brasil, a prática do aborto é considerada crime, como consta nos artigos 124 a 127 do Código Penal (CP) de 1940. No entanto, em duas situações, não é passível de penalização: quando a gravidez representa risco de morte para a mulher e quando a gravidez é resultado de violência sexual, artigo 128. Contudo, somente em 1989, foi implementado, na cidade de São Paulo, o primeiro serviço de aborto legal para os casos previstos por lei (Scavone, 2004). Em abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu autorizar as mulheres que assim o desejassem a interromper a gravidez em casos de fetos anencéfalos, sem que a prática configurasse aborto criminoso. Fonte: www.coad.jusbrasil.com.br
12 Cytotec é o nome comercial do misoprostol, análogo sintético da prostaglandina E1, aprovado para uso no Brasil para o tratamento de úlceras gastroduodenais, e usado como abortivo de forma clandestina por diversas mulheres, de diversas realidades sócio-econômicas (Barbosa & Arilha, 1993, p. 409).
13 O aborto clandestino e realizado de forma insegura é uma das principais causas de mortalidade materna, no Brasil. Um estudo realizado em Minas Gerais, apontou que as mortes decorrentes de aborto ainda são subnotificadas no Sistema de Informação de Mortalidade, que considera apenas a análise da causa dos óbitos (Martins et al., 2017).
14 Em 2018, Ingriane Barbosa Carvalho de Oliveira, 31 anos, negra, pobre morreu por infecção generalizada após ter realizado um aborto inseguro. Moradora da localidade Pedro do Rio, zonha rural de Petropólis, Rio de Janeiro, Ingriane inseriu um talo de mamona no útero para interromper uma gestação de aproximidamente 4 meses. Apesar dos sintomas de mal-estar, não buscou logo os serviços de saúde. Mãe de três filhos, não contava com o apoio dos pais das crianças, ainda estava se organizando depois de viver um relacionamento difícil com o pai de dois filhos e tinha um emprego recente, segundo familiares. Fonte: https://catarinas.info/a-morte-evitavel-de-ingriane-e-lembrada-em-audiencia-publica-sobre-aborto/
15 Aqui gostaríamos de apontar que entendemos a ficção binária de separar público e privado (Haraway, 1991), mas que trazemos esta falsa dicotomia em função de sua necessidade analítica, de compreensão de como as questões reprodutivas parecem ser da ordem do privado mas extrapolam, e de como as políticas públicas deveriam ser da ordem do espaço público, também extrapolando este.
16 O Brasil vive, até os dias atuais, em torno de um mito: o da democracia racial. Vários(as) autores(as) mostram como esta criação buscou mesticizar a população brasileira, ainda no período do Brasil colônia, estendendo-se em ações governamentais, de apoio a migração de europeus para o Brasil. Além disso, o mito esconde a violência que as mulheres negras viviam, ao terem que submeter-se aos desejos sexuais dos senhores brancos, sob a ideia de romantizaçao da tentativa de embranquecimento da raça (Nascimento, 2017).
17 Vale ressaltar que existe uma produção crescente, principalmente na Psicologia Social brasileira, que utiliza gênero como uma categoria de análise (Mayorga, 2014; Medrado & Lyra, 2008, Toneli, Adrião, & Perucchi, 2013, dentre outros).
18 O construcionismo crítico tem por objetivo refletir sobre as construções sociais a partir de uma epistemologia e de uma metodologia com criticidade quanto ao que é produzido como "construção social", de forma que não reitere uma 'naturalização dos fatos sociais' (Castañon, 2004).
19 De acordo com relatos de conversa informal com uma de suas idealizadoras, a psicóloga e doutorando Maria Conceição Costa.
20 O autor vai discutir como a linguagem do colonizador traz o nome com letra maiúscula e como a linguagem dos povos indígenas colonizados passam a ter sua língua como apelido, repetição sem poder de designação própria, espelho reflexo do pensamento e do olhar do colonizador. O termo corupira, uma força que era respeitada de diversas maneiras pelos indígenas, é traduzida, reinterpretada e recontada pelos colonizadores como meias palavras que retiram a autonomia, a memória e as possibilidades de construção própria, atuando de forma etnocêntrica e instituindo uma violência epistêmica sem precedentes. Sobre esse mau encontro e de como estas traduções foram sendo constituídas ao longo de três períodos da história brasileira é que trata este brilhante livro.

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