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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.22 no.54 São Paulo maio/ago. 2022

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Deslocamentos contemporâneos: reflexões sobre sujeito, cultura e política

 

Contemporary displacements: reflections on subject, culture and politics

 

Desplazamentos contemporáneos: reflexiones sobre sujeto, cultura y política

 

 

Mônica Medeiros Kother MacedoI; Raíssa Ramos da RosaII; Mariana Machado FelinIII

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul. monicakothermacedo@gmail.com
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul. raissa.r.rosa@gmail.com
IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul. mariana_felin@hotmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo teórico explora a temática das diásporas contemporâneas identificando e examinando elementos, de diferentes áreas do conhecimento, que permitem desvelar facetas de indiferença e de cruel patologização impostas aos migrantes e refugiados. Enfatiza- -se a desconsideração do impacto e da violência oriundos de fatores sociais, políticos e econômicos na produção da precarização e vulnerabilidade da população de migrantes e refugiados. A complexidade inerente às diásporas é explorada mediante a leitura psicanalítica referente aos impasses alteritários. Afirma-se a urgência da promoção de práticas de verdadeira amabilidade em relação ao estrangeiro, recuperando-se, portanto, a dupla dimensão da definição de outro, ou seja, outro como aquele que não é o Eu, mas outro que compartilha com o Eu da categoria de semelhante. Na condição de reconhecimento alteritário, podem se dar condições simétricas de convívio, contemplando, no reconhecimento de diferenças, a radical exclusão de violentas práticas de dessubjetivação.

Palavras-chave: Psicanálise; Política; Violência; Migração; Refúgio.


ABSTRACT

This theoretical article explores the theme of contemporary diasporas, identifying and examining elements from different areas of knowledge, which allow us to reveal facets of indifference and cruel pathologization imposed on migrants and refugees. It emphasizes the disregard of the impact and violence arising from social, political and economic factors in the production of precariousness and vulnerability of the migrant and refugee population. The inherent complexity of diasporas is explored through a psychoanalytic reading referring to alteritarian impasses. The urgency of promoting practices of true kindness towards the foreigner is affirmed, thus recovering the double dimension of the definition of the other, that is, the other as the one who is not the Self, but another who shares with the Self the category of similar. In the condition of alteritarian recognition, symmetrical conditions of existence can occur, contemplating, in the recognition of differences, the radical exclusion of violent practices of desubjectivation.

Keywords: Psychoanalysis; Politics; Violence; Migration; Refuge.


RESUMEN

Este artículo teórico explora la temática de las diásporas contemporáneas identificando y examinando elementos, de distintas áreas del conocimiento, que permiten revelar facetas de indiferencia y la cruel patologización impuestas a migrantes y refugiados. Se resalta la actitud de desconocer el impacto y la violencia que surgen de los factores sociales, políticos y económicos en la producción de la precariedad y vulnerabilidad de la población de migrantes y refugiados. La complexidad inherente de las diásporas se explora a través de la lectura psicoanalítica que se refiere a los impasses en el campo de la alteridad. Se afirma la urgencia de promover prácticas de verdadera bondad hacia el extranjero, recuperando así la doble dimensión de la definición del otro, es decir, otro como el que no es el Yo, pero otro que comparte con el Yo de la categoría de semejante. En la condición de reconocimiento alteritário pueden darse las condiciones de simetría en la vida, contemplando, en el reconocimiento de las diferencias, la exclusión radical de prácticas violentas de desubjetivación.

Palabras-clave: Psicoanálisis; Política; Violencia; Migración; Refugio.


 

 

 

"É inerente ao poder o impulso para o uno. Nenhuma amabilidade irradia dele que se dirija ao múltiplo, ao plural, ao vário, ao marginal ou àquilo que se desvia do rumo." (Byung-Chul Han, 2017, p. 119)

 

Introdução

Os deslocamentos humanos se fazem presentes ao longo da História, ocorrendo devido a fatores econômicos, questões políticas como guerras e conflitos, mudanças e desastres climáticos ou, ainda, devido a problemas sociais, fatores esses que demonstram a complexidade das diásporas (United Nations High Commissioner for Refugees [UNHCR], 2019). Tais deslocamentos, especialmente a partir do século XXI, vêm chamando a atenção pela sua especificidade e exigem, em função da complexidade desta temática, que diferentes áreas do conhecimento se debrucem sobre o tema e produzam reflexões a partir de múltiplas perspectivas (UNHCR, 2019; Vasconcelos & Botega, 2015). Cristina Santinho (2013), antropóloga portuguesa, ao abordar a temática das diásporas contemporâneas, enfatiza a presença de singulares matizes que impõem uma reflexão fundamental:

Existem razões históricas mais ou menos recentes-muro entre os Estados Unidos e o México, territórios ocupados na Palestina, em Espanha separação de Ceuta e Melila relativamente a Marrocos, para nomear alguns casos mais recentes e mediáticos - que contribuíram para uma alteração radical nos conceitos usados nas políticas de fronteira. Estas alterações estão também ancoradas em profundas mudanças econômicas e políticas, nomeadamente na Europa, que, dispensando o recurso a trabalhadores imigrantes, viu generalizar-se o uso de expressões como "invasão de imigrantes", em particular por parte da imprensa sensacionalista. (Santinho, 2013, p. 10)

Neste sentido, é importante reconhecer as características singulares que se apresentam no encontro com o estrangeiro na contemporaneidade. Trata-se, muitas vezes, de deslocamentos forçados relacionados às precárias condições de vida do sujeito, fazendo com que sua busca por um novo território não possa ser simplesmente atribuída a seu desejo de deslocar-se. Buscamos, portanto, explorar, neste artigo teórico, as faces da violência com que se deparam sujeitos que são semelhantes considerando-se o fato de serem humanos, mas vistos como estranhos e tomados como alvo de expressiva hostilidade, quando consideradas suas nacionalidades. O difícil processo de acolhida a que se veem submetidos parece, por vezes, desconsiderar a gravidade de suas condições de vida, uma vez que os deslocamentos empreendidos, na contemporaneidade, ocorrem não por escolha própria ou desejo efetivo de conhecer outro país. Trata-se de deslocamentos fomentados pela busca de sobrevivência mediante a fuga de um cotidiano marcado por precariedades que se desdobram em extrema miséria, riscos reais à vida e total ausência de perspectiva de futuro. Os deslocamentos são, portanto, gerados, praticamente em sua totalidade, pela guerra, pela precarização crescente das condições de vida, pelo exercício cruel de poder, pelo exercício constante e devastador da condição de oposição a regimes totalitários, dentre outras formas de violência impostas a esses sujeitos. É nessa direção que a resistência e a hostilidade com que são recebidos dificultam as condições de inscrevê-los no laço social e ficam, muitas vezes, disfarçadas nas práticas de assistencialismo ofertadas (Macedo & Kupermann, 2020).

A dramaticidade envolvida em tais deslocamentos denuncia, portanto, a urgência em incluir, na reflexão sobre promoção, o envolvimento determinante de condições econômicas, sociais, políticas ou, ainda, fenômenos de ordem natural, fatores que acabam por agravar condições já existentes de precarização e vulnerabilidade destas populações. Dados da United Nations High Commissioner for Refugees (UNHCR), revelados pelo Relatório Global Trends (UNHCR, 2019), mostram que, ao final de 2018, o número de pessoas em situação de refúgio em todo o mundo atingiu quase 70,8 milhões. Tal somatória indica que, a cada minuto, 25 pessoas foram deslocadas à força no mundo.

Gonçalo Matias (2014) desenvolve importantes argumentos no intuito de problematizar a forma como vem sendo gerida, em nível mundial, a temática das migrações. Para o advogado português, "o direito internacional não tem cuidado do fenómeno migratório como porventura deveria, tendo em conta o seu carácter essencialmente global e transfronteiriço" (p. 15). Tal consideração encontra, também, sintonia com a ponderação de Laura Sartoretto (2018), que, apoiada no léxico jurídico, destaca a existência de "uma ordem global na qual o direito internacional é normatizado e aplicado sem que haja uma adequação às assimetrias existentes entre os Estados que compõem a comunidade internacional" (p. 25).

Em relação ao Brasil, O "Relatório Anual 2019 - Imigração e Refúgio do Brasil" (Cavalcanti, Oliveira, & Macedo, 2019), elaborado pelo Observatório das Migrações Internacionais, aponta para a expressiva entrada de imigrantes, refugiados e solicitantes de refúgio no país entre os anos de 2010 e 2018, principalmente de pessoas de origem haitiana e venezuelana. Dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) indicam que, no ano de 2018, houve o maior número de solicitantes de refúgio dos últimos tempos, totalizando 80 mil somente neste ano (ACNUR, 2019). Destas, aproximadamente 60 mil solicitações advieram de venezuelanos e 7 mil de haitianos. O estado brasileiro com maior número de solicitações em 2018 foi Roraima, com o contingente de 50.770 pedidos. Se comparado com o ano anterior, 2017, no Estado de Roraima houve um aumento superior a 300% de pedidos de refúgio. Tais dados corroboram estudos que vêm identificando a intensificação da migração Sul-Sul, ou seja, deslocamentos cada vez mais expressivos de pessoas entre e em direção aos países da América Latina e do Caribe. Além disso, pesquisadores da UNICAMP têm constatado que, em relação ao Brasil, ocorre importante interiorização das migrações internacionais (Baeninger et al., 2018).

A chegada de haitianos ao Brasil denunciou o despreparo da política migratória brasileira para o recebimento de estrangeiros, bem como evidenciou a necessidade de reflexão sobre as formas de acolhimento a esta população. Em 2011, o Banco Mundial estimou que 10% da população haitiana já estava em deslocamento como forma de fugir da miséria e da desordem social. Dados do Sistema de Tráfego Internacional (STI) apontam para a entrada de 85.079 haitianos no território brasileiro entre os anos de 2010 e 2015 (Baeninger & Peres, 2017). Em território nacional, tanto o estabelecimento do acordo de residência viabilizado pelo Mercosul quanto o visto humanitário aos haitianos possibilitaram visibilidade à mobilidade interna da migração internacional (Baeninger et al., 2018). Mais recentemente, outro país, agora da América Latina, a Venezuela, vem chamando a atenção mundial pelo contingente populacional que está em deslocamento migratório. Nesse sentido, houve um aumento significativo de solicitações de reconhecimento da condição de refugiados no Brasil apenas no ano de 2017, constituindo, assim, mais da metade anual dos pedidos de refúgio (ACNUR, 2018).

Tais dados quantitativos retratam a gravidade dessa situação, mas, acima de tudo, não devem impedir a reflexão sobre o fato de que a situação de migração ou refúgio se refere a pessoas, muitas delas obrigadas a se deslocar sob precárias condições e intenso sofrimento considerando-se os drásticos fatores de pobreza, risco e vulnerabilidade que as rodeiam em seus países de origem. Assim, este estudo teórico tem como intuito identificar e problematizar as faces da violência referente às diásporas contemporâneas, a qual assume as nefastas formas da indiferença e da patologização referentes aos sujeitos dos deslocamentos. Nesta leitura, apresenta-se uma reflexão teórica sobre os complexos fatores que compõem um cenário hostil em relação aos estrangeiros, desvelando-se o exercício político de poder que busca encobrir a força de fatores sociais, políticos e econômicos na produção da condição de vulnerabilidade e marginalização. Destarte, não somente se busca desenvolver uma reflexão que abarque os impasses nas possibilidades de acolhimento efetivo da população estrangeira nos países de destino, mas também se dá um passo atrás a fim de incluir na problematização o que, em primeiro lugar, produz a necessidade de o sujeito abandonar seu país de origem.

 

Singulares travessias e seus impasses

Refletir sobre a temática das diásporas não pode prescindir da ênfase ao fato de que os deslocamentos têm sérias consequências na vida de milhares de pessoas. É, portanto, urgente reconhecer a amplitude que adquire o fenômeno dos deslocamentos contemporâneos, uma vez que se faz evidente, em seus desdobramentos, a necessária criação de políticas públicas efetivas para atender as demandas dessa população. O risco presente é de que o acolhimento ofertado pelos países de destino seja ineficiente, desde seu planejamento, se o estrangeiro é visto sob a ótica da hostilidade e da indiferença. Deisy Ventura (2016) aborda este risco ao referir que algumas fantasias, como a de que o estrangeiro "carrega doenças", justifiquem medidas de restrição à migração e, também, de violação dos direitos humanos. A autora alerta para o perigo das autoridades aplicarem restrições ilegais em relação à mobilidade dos estrangeiros e defende que

a dicotomia que caracteriza a interface entre a migração internacional e a saúde - com a representação, por um lado, de migrantes como uma ameaça à saúde e, por outro, o reconhecimento da vulnerabilidade da saúde de migrantes que são frequentemente expostos a difíceis condições de trabalho com acesso limitado aos direitos e políticas para inclusão - precisa ser urgentemente superada. (Ventura, 2016, p. 70)

Nessa perspectiva, é relevante que se empreendam constantes esforços no intuito de ampliar estudos e reflexões consistentes acerca da singularidade dos deslocamentos humanos contemporâneos que possam reverter em contribuição de políticas públicas de gestão dessas temáticas. Tais estudos e reflexões não podem se furtar de abordar a evidente ambivalência e, por vezes, expressa resistência nas práticas de acolhida ao estrangeiro. Trata-se da vida de milhares de pessoas, frente às quais é fundamental reconhecer que as condições de acolhimento em território estrangeiro podem vir a inaugurar novas modalidades de laços sociais ou a reproduzir, cruelmente, as dramáticas condições que motivaram os deslocamentos empreendidos.

Diversas áreas do conhecimento têm se ocupado da problematização de elementos relativos às diásporas contemporâneas. Neste artigo, a complexidade inerente ao fenômeno levou à apresentação de diferentes reflexões a respeito dos deslocamentos atuais. Entende-se que, mesmo havendo diferentes perspectivas epistemológicas, a reflexão sobre as diásporas não prescinde do reconhecimento de tratar-se de importante impasse no campo alteritário.

Busca-se destacar, neste tópico, a potência dos aportes da Psicanálise na leitura sobre o sujeito na interface com a cultura, enfatizando elementos que permitem identificar e destacar nuances singulares de um fenômeno que é, paradoxalmente, coletivo e singular. Sigmund Freud, em seu texto de 1921, aponta que "a psicologia individual, nesse sentido ampliado, mas inteiramente justificável das palavras, é, ao mesmo tempo, também psicologia social" (Freud, 1921/1996, p. 77). Tal consideração se faz evidente na obra de Freud, principalmente em seus textos mais diretamente relacionados a explorar as conflitivas e dinâmicas relativas à cultura, contribuições fundamentais que instrumentalizam a leitura acurada acerca da complexidade de eventos em determinado contexto histórico que correm o risco de ficarem marginalizados ou escamoteados. Ao propor a existência de um aparato psíquico, descrito como um aparelho de captura e metabolização de intensidades, Freud reconhecia e afirmava a existência de inegável e decisiva relação entre o funcionamento intrapsíquico e o contexto intersubjetivo.

Experiências decorrentes da Primeira Guerra Mundial incrementaram os aportes freudianos a respeito das relações humanas, na medida em que se evidenciaram, no campo do real, práticas que deram inegável testemunho da extensão da destrutividade humana. Nesse contexto histórico, há uma ampliação teórica importante na visão de sujeito proposta pela Psicanálise. A proposição de um dualismo pulsional, que explicita a oposição entre investimentos de Eros (pulsão de vida) e Thanatos (pulsão de morte), afirma a existência de poderosas forças tanto no campo amoroso, como no campo da destrutividade. A proposição freudiana, explicitada no texto de 1920, intitulado Além do princípio do prazer (Freud, 1920/2010a), surge como efeito imediato às reflexões decorrentes do período pós-guerra. Não se trata de mera coincidência o fato de que a temática das diásporas humanas, mais especificamente o tema do refúgio, se encontre diretamente ligada ao fenômeno da guerra. Nessa direção, Sartoretto (2018) alerta para o fato de que "o final da Segunda Guerra Mundial apontou novamente para a questão dos refugiados. Se a Primeira Guerra Mundial havia produzido cerca de quatro milhões de refugiados, a Segunda Guerra gerou 40 milhões" (p. 51).

O livre deslocamento das pessoas, na ocasião da Primeira Guerra Mundial, sofreu importantes restrições e testemunhou ao mundo a faceta de crueldade do humano, fazendo com que predominasse o que Freud (1914/1974) denomina como "a desilusão da guerra" (p. 311). Um dos fatores elencados pelo autor refere-se exatamente ao direito de ir e vir e ao convívio entre pessoas de diferentes nacionalidades: "Poder-se-ia supor, porém que as próprias grandes nações adquiriram tanta compreensão do que possuíam em comum, e tanta tolerância quanto a suas divergências, que 'estrangeiro' e 'inimigo' já não podiam fundir-se, como na Antiguidade Clássica, num único conceito" (Freud, 1974, p. 313).

No decorrer do período entre Guerras, no qual houve um aumento dos movimentos totalitaristas que culminaram na eclosão da Segunda Guerra Mundial, Freud amplia suas considerações sobre impasses no campo intersubjetivo. A escrita do célebre e atual texto de 1930, Mal-estar na civilização (Freud, 1930/2010b) dá novo testemunho da pertinência da acuidade de suas percepções. No texto, Freud explora o que define como sendo três fontes de sofrimento que ameaçam o sujeito por diferentes vias, quais sejam, o próprio corpo, o mundo externo e as relações humanas, considerando esta última a fonte mais dolorosamente experimentada pelo sujeito.

A definição freudiana de mal-estar no processo civilizatório alude à sua constatação de que, para viver em sociedade, o sujeito deve renunciar a uma parcela de prazer que é obtido por meio da satisfação de impulsos tanto amorosos, como destrutivos. No entanto, Freud (2010b) afirma que esta renúncia nunca é completa, visto que a destrutividade é inerente ao humano, e sua força é intensa, tendo, por essas razões, a potência de causar fortes perturbações nos relacionamentos. Dessa forma, ao enfatizar a relevância da destrutividade humana, Freud desfaz uma visão ingênua sobre o sujeito e coloca a destrutividade (manifestada como violência auto e/ou hetero dirigida) como uma constante ameaça de desintegração não apenas para o próprio sujeito, mas também para a sociedade.

Assim, por meio das expressões próprias à pulsão de morte, elementos de destrutividade encontram expressão nos destinos do próprio sujeito e, também, irrompem fomentando práticas de violência e crueldade no campo social. No texto de 1921, Psicologia de grupo e a análise do ego (Freud, 1996), Freud já alertava que um grupo, uma sociedade sob vigência de sua força disruptiva, poderia eleger um alvo externo e estrangeiro com o intuito de forçar uma coesão entre iguais. O estranho, o diferente, o não-eu poderia, assim, ser tomado como inimigo sem maiores custos ao eu. O conceito freudiano de narcisismo das pequenas diferenças (Freud, 2010b) ilustrava esta dinâmica no cenário histórico do final dos anos vinte e segue sendo um recurso de leitura das múltiplas faces da violência contemporânea.

 

Ferenczi e o trabalho de ampliação da noção de trauma em psicanálise

O legado freudiano que amplia a abordagem da complexa relação do sujeito com o outro, principalmente ao explorar o viés de destrutividade e violência, ou seja, seus desdobramentos tanáticos na cultura, também marca importante presença nos aportes valiosos de Sándor Ferenczi. Desde o início de sua atuação profissional como médico neurologista e, posteriormente, como médico do front do exército húngaro durante a Primeira Grande Guerra, temas relativos ao campo social, ao preconceito, à violência contra os vulneráveis se fizeram presentes nos estudos e escritos deste psicanalista húngaro contemporâneo a Freud. Suas contribuições, embasadas em uma leitura crítica da clínica psicanalítica de seu tempo, sustentadas na consideração aos fatores sociais e culturais, podem e devem ser, cada vez mais, aproximadas ao campo social contemporâneo e consideradas como recursos para o entendimento acerca do mal-estar provocado pelas transformações culturais e políticas (Gondar, 2012).

O campo de estudo relativo ao trauma foi um vetor fundamental na obra de Ferenczi. A partir de proposições que se fazem presentes na obra freudiana, extrai duas concepções centrais relativas ao trauma e passa, a partir delas, a apresentar suas contribuições originais, propondo tanto inovações teóricas como técnicas na escuta e na intervenção clínica desta temática.

Em relação à primeira, ou seja, a leitura freudiana sobre o que denominara como teoria da sedução, Ferenczi recupera a ideia inicial posteriormente, abandonada de Freud sobre a realidade de um acontecimento traumático na etiologia do padecimento psíquico. Ferenczi afasta-se, portanto, da concepção de trauma que se dá na estreita ligação ao conceito de fantasia, direcionando seu trabalho clínico ao resgate do que foi efetivamente vivido pelo sujeito. Nessa dimensão, o trauma alude ao excesso e à violência do vivido no campo intersubjetivo. Assim, a concepção ferencziana de trauma considera que "na origem do acontecimento traumático encontra-se um agente externo provocador" (Kupermann, 2019, p. 57), e que a experiência traumática só ganhará este significado a posteriori. Ferenczi (1933/1992a) afirma o real da experiência traumática, enfatizando o papel do outro na centralidade da definição de trauma.

A segunda concepção freudiana a respeito do trauma, retomada por Ferenczi, diz respeito ao caráter excessivo do evento, cuja intensidade não é capaz de ser simbolizada pelo aparelho psíquico, resultando em um "choque traumatizante" (Kupermann, 2019, p. 57). Assim, para Ferenczi, o aparelho psíquico é impelido a descarregar a energia que fica em excesso a partir de tentativas que ganham um caráter destrutivo ou mortífero (Kupermann, 2019). Pode-se afirmar, portanto, que, na obra de Sándor Ferenczi, os elementos que aludem à concepção de trauma recuperam a condição da experiência efetivamente vivenciada pelo sujeito somada à impossibilidade de encontrar, no campo intersubjetivo, vias de facilitação e tramitação do excesso experienciado. É neste segundo ponto que se situa importante contribuição ferencziana à leitura sobre o trauma em Psicanálise.

Na obra de Ferenczi, evidencia-se, portanto, importante diferença entre a etiologia traumática relativa à fantasia e àquela que alude ao real vivido no campo intersubjetivo com desdobramentos a posteriori. A partir de sua concepção de trauma, pode-se considerar, como inovação teórica, a proposição da existência de um segundo e efetivo tempo de instauração do trauma que inclui a ação de outro. Segundo Ferenczi, portanto, o trauma não se dá na experiência primária de uma vivência, mas, sim, em um segundo momento no qual não há validação, por parte de outro, em relação ao sofrimento do sujeito frente a uma experiência de excesso (Ferenczi, 1931/1992b). Dessa forma, Ferenczi ressalta que o verdadeiro caráter traumático de uma experiência se dá neste segundo tempo, ou seja, quando o sujeito, ao buscar ajuda em alguém de sua confiança, não tem reconhecida sua condição de ser e, assim, sofre o descrédito do outro em relação à percepção do sofrimento que foi por ele vivenciado (Gondar, 2012).

O não reconhecimento do vivenciado, neste segundo tempo, é cunhado por Ferenczi sob o termo desmentido. Como explicita Gondar (2017), nesta situação, "são os afetos de um sujeito, o seu sofrimento e ele próprio enquanto sujeito que está sendo desmentido" (p. 91). Entende-se, assim, a efetiva violência e destrutividade do trauma proposto por Ferenczi por meio do conceito de desmentido.

Daniel Kupermann (2017), ao abordar o tema do traumático, destaca o fato de que "é por meio das contribuições ferenczianas que a comunidade psicanalítica é convidada a relançar a função da alteridade nesse contexto, atribuindo um novo estatuto às situações de violência promovidas no campo social" (p. 48). O autor propõe, ainda, um desdobramento sequencial na concepção ferencziana de trauma. Para o autor, o trauma se daria a partir de três tempos, denominados por ele como tempo do indizível, tempo do testemunho e tempo do desmentido (Kupermann, 2019).

No primeiro tempo, tempo do indizível, a partir do excesso que ingressa no aparelho psíquico e frente à ausência de recursos de metabolização e simbolização do experienciado, persiste aquilo que ainda não encontrou palavras para ser representado. Na tentativa de encontrar vias que possibilitem a simbolização do que irrompeu no aparelho psíquico sob forma de angústia, aquele que sofreu o excesso busca ajuda de outro. O autor denomina o segundo tempo como tempo do testemunho, no qual ocorre o endereçamento da dor ao outro, a alguém disponível a escutá-lo, trata-se agora "de um apelo ao reconhecimento da própria dor, de uma tentativa de testemunhar perante a presença sensível do outro o ultraje sofrido" (Kupermann, 2019, p. 58). Tal disponibilidade e sensibilidade do outro são fundamentais na concepção ferencziana do trauma, pois é justamente o fracasso da acolhida às demandas do tempo do testemunho que caracteriza a vivência como traumática, inaugurando o tempo do desmentido (Kupermann, 2019).

 

A patologização como via de silenciamento do sujeito

Constata-se, assim, que a riqueza da contribuição ferencziana sobre o trauma permite a ampliação de leitura a respeito das relações intersubjetivas que se estabelecem, também, como decorrentes de tensões sociais, políticas e econômicas. Nesse leque, pode-se incluir as complexas demandas relativas às populações migrantes e de refugiados. Na esteira das reflexões sobre as tensões do campo social, Felícia Knobloch (2015) problematiza as formas de acolhimento à população migrante. A autora alerta para o perigo de, ao buscar legitimar o possível sofrimento psíquico do sujeito migrante, adotar-se a via da patologização da diferença como única forma possível de reconhecimento. Nessa direção, denuncia a tentativa de inserir a experiência migratória em uma categoria diagnóstica. No início dos anos 2000, o psiquiatra espanhol Joseba Achotegui descreveu a categoria nosográfica que denominou Síndrome do Imigrante com Estresse Crônico e Múltiplo. A Síndrome de Ulisses, como é mais conhecida, diz respeito ao adoecimento de migrantes em decorrência da experiência de deslocamento. Achotegui (2009) descreve doze aspectos do que denomina de "luto migratório", sendo a síndrome em questão caracterizada pelo luto patológico, quando não há possibilidade de elaboração das perdas envolvidas no processo de deslocamento.

Os aspectos descritos pelo autor chamam a atenção por desconsiderarem o impacto, sobre o sujeito, das questões políticas e das precárias condições de acolhida no país de destino. Nas palavras de Achotegui (2009, p. 164), "quando uma pessoa emigra, já está condicionada pelo que viveu na infância e, logicamente, terá dificuldades para se adaptar plenamente à nova situação". Na sequência de seu texto, passa a descrever a "regressão psicológica" que observa em migrantes, os quais tendem a se sentir confusos e inseguros e, assim, adotam condutas de dependência e atitudes infantis. Cabe, então, o questionamento: são os migrantes dependentes e condicionados invariavelmente pelas experiências da infância ou são as brutais condições de deslocamento e acolhida fatores impactantes de precariedade, de dessubjetivação e de exclusão? Não se trata de desconsiderar a importância da história na constituição psíquica, mas, sim, de denunciar este viés previamente concebido, ou seja, pré-conceituoso que, assim, deixa fora da discussão importantes elementos políticos e econômicos promotores de intenso sofrimento, centralizando no sujeito a "produção" de patologias. Neste sentido, Macedo e Kupermann (2020), ao problematizarem a patologização da experiência migratória, apontam justamente para o fato de que "uma das 'estratégias' dessubjetivantes corresponde à transformação do sofrimento social em patologia clínica" (p.105).

Achotegui (2009) segue, em seu artigo, uma cuidadosa descrição do que considera como fatores estressores, os quais, em graus elevados, levariam ao desenvolvimento da Síndrome de Ulisses: separação forçada dos entes queridos, sentimento de desesperança pelo projeto fracassado, luta pela sobrevivência, medo, terror das viagens e ameaças (máfias, prisão, expulsão). Na sequência, há a descrição dos sintomas que levam ao diagnóstico de tal síndrome: sintomas depressivos (tristeza e choro), sintomas ansiosos (tensão, insônia, irritabilidade, pensamentos recorrentes) e somatizações (fadiga, moléstias, enxaqueca). A partir dessa vasta descrição sintomatológica, percebe-se, como apontado por Knobloch (2015), a "inevitabilidade" do migrante adoecer psiquicamente e necessitar de ajuda especializada. O entendimento da experiência de deslocamento a partir da Síndrome de Ulisses situa o migrante como ser vulnerável que desenvolverá sintomas específicos como consequência de seu deslocamento e que deve ser, então, medicado. A imposição do saber psiquiátrico, como uma verdade prévia sobre o sujeito, exclui a consideração à subjetividade do campo do cuidado. Nessa lógica, o que fica privilegiado é o sintoma, e não a dimensão alteritária; muito menos, ainda, é considerada a singularidade de sua experiência, já definida previamente como patológica. Para Santinho (2013),

as políticas de fronteira no Espaço Schengen tendem, cada vez mais, a ser ditadas pelo medo e pelo controle direcionado para aqueles que aparentemente não lhe pertencem, os quais, segundo alguns, representam uma ameaça, constituindo este um dos sentimentos mais generalizados nos discursos da maioria dos partidos de direita nos vários países da União Europeia. (p. 14)

Pode-se encontrar, nas considerações de Santinho (2013), a ilustração do cruel impacto da destrutividade concebida por Freud e do desmentido proposto por Ferenczi nas ações empreendidas no campo social e político. Ao transformar o estrangeiro em ameaça, não se reconhece a necessidade de pensar a importante parcela de responsabilidade política e econômica na produção de sua precariedade e vulnerabilidade. Como consequência da violenta indiferença frente ao estrangeiro e

ao erguerem-se barreiras jurídicas no espaço onde antes existiam fronteiras físicas, os estados europeus acabam por contribuir para a proliferação de redes de traficantes ("economias paralelas" que exploram a fragilidade alheia), cada vez mais numerosas e poderosas nas fronteiras terrestres e marítimas da Europa. (Santinho, 2013, p. 14)

A dinâmica da violência frente ao estrangeiro se atualiza no desmentido da força dos fatores externos implicados na produção de dessubjetivação. Assim, uma leitura patologizante fomenta a culpa e a responsabilidade do próprio sujeito em relação às suas parcas condições de imaginar um futuro.

Ademais, nessa direção, a atribuição de patologia ao migrante ou refugiado é uma forma de encobrir a força de fatores sociais, políticos e econômicos na produção do sofrimento dessas pessoas. É evidente a urgência não apenas de desnaturalizar os conceitos que medicalizam o sofrimento social, bem como a "repolitização de suas vítimas, reconhecendo-as como sujeitos ativos" (Pussetti, 2017, p. 263). Ainda, sobre a Síndrome de Ulisses, Pussetti (2017) assinala o fato de que essa categoria diagnóstica foi proposta em concomitância com o endurecimento das políticas migratórias europeias.

Dessa maneira, um discurso (e um discurso patologizante) sobre o migrante ou refugiado é produzido a priori, antes mesmo de escutá-lo. Torna-se evidente que essa atitude implica o não reconhecimento da singularidade da experiência subjetiva, sendo a impossibilidade em reconhecer o estranho que o outro é uma prática da ordem da indiferença e do desmentido ferencziano. Nessa operação, predomina o descrédito ao que foi experienciado pelo sujeito e ao seu testemunho sobre o ocorrido. Assim, políticas públicas que se proponham a acolher o sujeito das diásporas, pensadas na lógica da Síndrome de Ulisses, acabam por produzir violência ao invés de acolhimento à diferença que o outro representa. Ao desmentir a diferença do outro, a atribuição diagnóstica prévia e a decorrente medicalização tornam-se dispositivos potencialmente traumáticos.

Para Joel Birman (2014), a psiquiatrização do espaço social se dá mediante a busca de regular o mal-estar social pelo uso de substâncias psicofarmacológicas, gerando, assim, um contexto que tende ao apagamento e ao silenciamento do sujeito. Nessa direção, ocorre a cruel condição na qual, desconsiderando-se o impacto das forças econômicas e políticas que precarizam e marginalizam aquele que não está inscrito no mercado de consumo e poder, acaba-se por impor "a efetiva implicação dos pobres na responsabilização de sua própria miséria" (p. 75). É no registro da culpa e da vergonha, ou seja, da responsabilização moral imposta ao sujeito que, segundo o autor, vai se promovendo a assunção de uma condição e de uma posição social depreciadas diante de si mesmo e do outro, engendrando impactantes formas de mal-estar psíquico. Mediante esta modalidade de produção do mal-estar, fomenta-se um perigoso elo entre política e medicalização, uma vez que, em seus efeitos, pode-se constatar que

a violência passa a ser vista como uma técnica, livre de emoções e puramente racional e instrumental para a consecução dos ideais da modernidade. Uma violência dominada e liberada para a realização não de determinados fins, mas como meio de fomentar uma engenharia social e produzir uma ordem no espaço urbano. (D'Elia, 2014, p. 136)

Ao ampliar as formas utilizadas na produção de uma ordem no espaço urbano, identifica-se, novamente, o exercício de poder na imposição de uma "ordem global" que regula as possibilidades e as impossibilidades de sujeitos provenientes de determinadas nacionalidades adentrarem ou não em certos países. Igiaba Scego (2019), aponta que, mediante essas condições, "você está à mercê de um destino nefasto que condena pela geografia e não por algo que você fez ... se você nasceu do lado errado do planeta, nada será concedido" (p. 124). Ao sustentar sua proposição, a jornalista e escritora italiana de origem somali desenvolve uma análise assertiva mediante a ilustração de desiguais condições de deslocamento ilustradas na referência ao sistema de classificação de passaportes no Passport Index1. Tal classificação é decorrente da análise de possibilidades de circulação pelo mundo de acordo com a nacionalidade dos passaportes. Assim, quanto mais um passaporte abre portas ao redor da Terra, ou seja, permite a entrada em diversos países sem a necessidade de visto ou então a sua obtenção é simplificada, mais poderoso e desejável ele se torna, adquirindo posições mais elevadas na lista desenvolvida pelo site. Os países mais bem posicionados desta listagem, denominada de "Global Passport Power Rank 2021"2, são Alemanha, Finlândia, Espanha e Suíça, enquanto, entre os últimos países da lista, constam Afeganistão, Iraque, Síria e Somália. Nesse sentido, a partir dos dados obtidos na referida plataforma, se reflete sobre as suas possibilidades, enquanto cidadã italiana, de circular entre países, em comparação com as possibilidades que teria se tivesse apenas a documentação do país de seus pais e irmãos, a Somália. A autora chega à triste conclusão de que, com um passaporte somali, conseguiria entrar em apenas 32 países sem visto ou mediante simples obtenção de visto na chegada ao país; entretanto, com o passaporte italiano, lhe é permitido entrar com facilidade em 133 países. Logo, é inegável que "o novo apartheid depende da cor dos passaportes e não da pele" (Scego, 2019, p.126). Desse modo, desvela-se uma cruel demarcação de fronteiras, tangíveis e intangíveis, entre os países que são preteridos na circulação mundial e aqueles que oferecem condições privilegiadas de mobilidade para sua população.

As reflexões de Scego (2019) encontram eco na constatação de que a contemporânea forma de produção de precarização social induz à precarização psíquica sendo que, em ambos os cenários, poucos ou inexistentes recursos de enfrentamento à desigualdade imposta são ofertados à população. A busca pelos imperativos da medicalização e a crescente criminalização da população vulnerável dão testemunho atroz desses efeitos via dissimulação de práticas e políticas públicas, aparentemente, destinadas a atender a demanda daquele que se encontra em condição de vulnerabilidade. Na modalidade de práticas, restrita a atender as condições mínimas de sobrevivência autoconservativa dos sujeitos, instaura-se a condição de vítima. Assim, cerceada sua condição de narrar a violência experienciada e de revoltar-se com a precarização de sua existência, deve o sujeito, passivamente e acima de tudo, ser grato pela atenção a ele dispensada. Encontra-se ressonância de tal condição na precisa abordagem que Birman (2020a) faz da situação social brasileira na ocorrência da pandemia do coronavírus. Para o autor, frente à impossibilidade de "contar com instâncias de proteção pública que sejam confiáveis", o sujeito se inscreve no registro do desalento. Mais do que no desamparo, o caráter extremo do desalento encarcera o sujeito no predomínio da sensação de ser entregue ao acaso e ao indeterminado, ao arbitrário na existência, em que tudo de pior pode lhe acontecer.

 

A indiferença e a produção de lugares marginais

O tema das diásporas contemporâneas precisa da contribuição advinda de diferentes áreas do saber a fim de lançar luz sobre a complexidade de fatores nele implicada. O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han aborda, em suas obras, temáticas significativas sobre o mundo contemporâneo e a produção das relações no cenário neoliberal.

Em seu livro sobre o poder, Han (2017) dedica especial atenção ao que nomeia como ética do poder. Para o autor, "ao poder, enquanto tal, falta a abertura à alteridade. Propende à repetição de si mesmo e do mesmo" (Han, 2017, p. 110). Tais considerações são amplamente abordadas na referência do autor à ideia da repetição do si mesmo e do mesmo, que sustentam sua proposição da existência de um "inferno dos idênticos" (Han, 2018). O autor desenvolve uma reflexão consistente sobre o cruel exercício de poder na constante dessubjetivação do outro, possibilitando uma aproximação ao pensamento de Ferenczi sobre o desmentido ao evidenciar que o alvo do inferno dos idênticos é exatamente excluir o reconhecimento da existência do outro e de sua singularidade. Logo, o desmentido é uma ação violenta sobre a diferença que a existência do semelhante apresenta (Moraes & Macedo, 2011).

Ao indagar sobre o ponto comum dos discursos políticos de extrema-direita no contexto internacional, Birman (2020b) aponta "o combate cerrado contra os refugiados oriundos da Ásia, do Oriente Médio, da África e da América Latina, identificados todos com a nova representação da barbárie" (p. 16). Os lugares buscados por essas pessoas referem-se àqueles nos quais se concentra a riqueza mundial. Acabam por deparar-se, nos dramáticos deslocamentos empreendidos, com práticas racistas, xenofóbicas e excludentes. Constata-se, nessa dinâmica, a afirmativa de Edgar Morin (2020) sobre o fato de que "na verdade, o dogma neoliberal agrava terrivelmente as desigualdades sociais e dá um poder gigantesco às potências financeiras" (p. 37).

A escritora e jornalista Patrícia Campos Mello (2019) lança luz sobre essa questão a partir da denúncia do uso político envolvendo a figura do estrangeiro. O contemporâneo e crescente fenômeno da desinformação e da propagação de notícias falsas tem atingido, também, aqueles que chegam ao Brasil na condição de migrantes ou de refugiados. Sobre a sua experiência em Roraima, estado brasileiro que tem recebido inúmeros venezuelanos, Mello (2019) observa que "havia uma tendência de usarem os refugiados como bode expiatório para todas as deficiências de serviços públicos já existentes no Estado, muitas vezes disseminando inverdades pelas redes sociais" (p. 21). Uma das inverdades que foi amplamente veiculada pela mídia referia-se a uma brasileira grávida que, supostamente, teria sido expulsa de uma maternidade em função de mulheres venezuelanas estarem lotando o sistema de saúde. Tal ocorrência foi desmentida a partir de uma investigação mais acurada. Entretanto, mesmo após o esclarecimento dos fatos, a notícia já havia cumprido sua função: forjar a figura do estrangeiro como inimigo. O migrante passa a ser o responsável por problemas sociais já existentes e, consequentemente, a solução passa a ser a eliminação daquele que se acredita ser a causa de todos os impasses da sociedade. O fenômeno de demonizar o estrangeiro é um recurso há muito utilizado por políticos. A novidade consiste nos sofisticados e eficientes mecanismos que têm sido desenvolvidos para a criação de fortes narrativas de ódio ao migrante/refugiado. Dessa forma, a jornalista desvela uma intrincada dinâmica envolvendo tecnologias de ponta e inteligências artificiais, além do uso de dados pessoais, cujo objetivo se define em desenvolver mensagens "sob medida" para grupos propensos a se mobilizarem com tais conteúdos, o que torna a estratégia bastante eficaz. Assim, além de fazer prevalecer determinadas visões de mundo e de ideais políticos, nesse jogo de poder, dá-se a marginalização das populações de migrantes e de refugiados, cujas presenças são usadas em manobras políticas escusas (Mello, 2019).

Nessa discussão, também se faz necessário mencionar o papel da mídia, que, muitas vezes, convoca as pessoas a assumirem posições polarizadas sobre uma temática muito mais complexa do que o transmitido (Mello, 2019). Ao enfatizar os desafios que o Brasil vem enfrentando no acolhimento de populações migrantes e refugiadas, acaba por reforçar uma leitura simplista do fenômeno do deslocamento, desconsiderando as graves condições implicadas nos deslocamentos e na condição de estrangeiridade. Questões políticas, econômicas, sociais e culturais ficam escamoteadas por trás de uma cortina de fumaça que esconde a questão central: por que o mundo tem produzido este impactante contingente de pessoas que são, forçosamente, obrigadas a se deslocar?

No intuito de refletir sobre possibilidades ao devir, encontra-se em Han (2017) a retomada da contribuição de Nietzsche sobre a possibilidade de o poder também aliar-se à justiça a fim de não se esgotar na negativa da exploração ou da opressão (p. 119). Porém, cabe considerar que "o poder só pode olhar até mais além, visando o longe e as coisas que habitam esse longe, se for comovido por alguma coisa que não é poder e que não gira em torno do 'si mesmo'" (Han, 2017, p. 119). Daí a imperiosa necessidade da justiça e da promoção de um olhar "amplo, longo e amável ... pode localizar sem produzir lugares marginais" (p. 120), exatamente por diferenciar-se, como qualidade extrínseca ao poder, pelo exercício de amabilidade que contempla (Han, 2017).

 

Considerações finais

O texto freudiano de 1930, escrito não por acaso no intervalo entre duas guerras mundiais, já atribuía a terceira e mais impactante fonte de sofrimento psíquico aos relacionamentos humanos. A abertura ao outro, a atribuição de valor à alteridade não se dá sem dificuldades. O estudo das populações migrantes e de refugiados tem tornado dramaticamente atual essa afirmativa freudiana, promovendo a reflexão sobre impactantes desigualdades instaladas no cenário mundial.

A questão da abertura ao outro abarca situações que vão desde o um a um, ou seja, nas possibilidades de trocas entre o estrangeiro e o autóctone, passando pelas condições de acolhimento relativas às políticas públicas, até à elasticidade ou ao enrijecimento das fronteiras conforme diferentes nacionalidades. As circunstâncias produtoras de sujeitos que necessitam deixar o seu país ferem, de forma determinante, o direito fundamental de ir e vir, uma vez que o imperativo de ir alude à imperiosa necessidade de sobreviver, tornando compulsório o deslocamento.

É, na expectativa de que possam advir transformações ancoradas na denúncia das facetas diversas e dissimuladas que a violência e a crueldade frente ao estrangeiro podem adquirir, que se insere este artigo. A Psicanálise, com seus aportes sobre a complexidade do humano, no desvelamento da destrutividade e dos impasses no campo intersubjetivo, permite acreditar e apostar que, da resistência ao exercício de poder que dessubjetiva o outro e no enfrentamento à violência do desmentido, podem advir recursos e criações decorrentes da potente força de Eros. Cabe destacar o alerta de Freud (1974) em seu texto sobre a desilusão provocada com a guerra:

Já dissemos a nós mesmos, sem dúvida, que as guerras jamais podem cessar enquanto as nações viverem sob condições tão amplamente diferentes, enquanto o valor da vida individual for tão diversamente apreciado entre elas, e enquanto as animosidades que as dividirem representarem forças motrizes tão poderosas na mente. (p. 312)

Ademais, é importante ressaltar que a afirmativa jurídica, no sentido de que "migrar é um direito humano" (Pereira, 2019, p. 24), amparada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, contrasta, muitas vezes, com a ausência efetiva de uma experiência de acolhimento e genuína consideração ao migrante ou refugiado. Na esperança de que a justiça seja exercida na promoção de práticas de verdadeira amabilidade em relação ao estrangeiro, recupera-se a dupla dimensão presente na definição de outro, ou seja, outro como aquele que não é o Eu, bem como de um outro que compartilha com o Eu da categoria de semelhante. Nesse compartilhamento entre o Eu e o outro, podem ser inauguradas condições simétricas de convívio que contemplem o reconhecimento de diferenças e, portanto, viabilizem modalidades de convívio que não promovam práticas de dessubjetivação do outro. As narrativas de estrangeiros, sujeitos das diásporas, dão um dramático testemunho do impacto psíquico imposto a esses indivíduos não apenas quando seu direito de se deslocar é restrito, mas também quando são, violentamente, silenciados a respeito de fatores políticos e econômicos que forçam seus deslocamentos e reproduzem, de forma dissimulada, experiências de cerceamento e precarização em sua condição de ser.

 

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Recebido em: 19/02/2020
Aprovado em: 29/03/2021

 

 

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