INTRODUÇÃO
A Psicologia Política das Migrações tem se construído como campo interdisciplinar a partir de múltiplas questões contemporâneas associadas a processos multiculturais, a migrações forçadas seja por guerras e conflitos civis, seja por fenômenos climáticos entre outros motivos (Silva, 2012, 2015). Há uma preocupação em entender elementos de sofrimento psíquico e relacionados a processos de aculturação. Contudo, quase não há estudos que busquem tratar os elementos psicopolíticos de migrações ocorridas no passado em registros documentais. Fazê-lo é desafiador, revelador.
A partir do que Maritza Montero (1999) e Martín-Baró (2013) propõem como método para a Psicologia Política, nos perguntamos como é possível entender as relações de poder que determinam elementos subjetivos e objetivos em fenômenos políticos a partir da análise de registros institucionais referentes a disputas judiciais? Para tanto, é necessária uma abordagem interdisciplinar no estilo que a Psicologia Política nos permite.
É no encontro entre História, Direito, Política e Psicologia Social que vemos emergir o que chamamos aqui de Psicologia Política das Migrações e que nos orientará no estudo de documentos passados, apontando desdobramentos presentes no que concerne à infância de imigrantes no Brasil. Assim, este estudo busca conhecer como famílias imigrantes interagiram com o poder judiciário para solucionar seus problemas e quais demandas foram levadas à Justiça. Pretendemos, por meio da leitura dos processos, compreender os desafios enfrentados pelas famílias e crianças na nova sociedade.
A literatura sobre Psicologia Política tem crescido exponencialmente nesta última década do século XXI. Mas os estudos sobre migrações ainda carecem de maior aprofundamento, sobretudo quando observamos a emergência de várias crises migratórias ocasionadas por crises ambientais ou por conflitos armados de que o Haiti e a Ucrânia são exemplos mais recentes. As correlações entre diferentes tipos de problemas fazem da migração um tema complexo que atrela o poder à sistemas institucionais, a relações internacionais, a crises humanitárias e termina por alterar subjetividades e modos de se inserir no mundo (Coenders & Scheepers, 2003; Silva & Souza, 2015; Weiner, 2020).
Pensar migrações por meio da psicologia política é retomar, em certa medida sua origem, visto que textos clássicos do campo tem sua origem no direito como podemos ver nas obras clássicas de Emile Boutmy (1901, 1902), Alberto de Carvalho (1908), Victor de Brito (1908), Ricardo Salas Edwards, (1914) e outros. Como bem destacam autoras como Spadoni (2009), Spadoni e cols. (2012) e Freitas (2018), pensar as relações entre direito, legislação e poder perpassam pela discussão dos sentidos da cidadania e permitem ampliar o que fazer da Psicologia Política, campo dedicado ao estudo do poder. Os fenômenos migratórios se inserem nesse dinâmica de poder onde o outro minorizado é capturado por instrumentos do poder como a normas, regulamentos e legislações que nomeia sujeitos a contragosto deles próprios.
Nesse sentido, Lila Spadoni (2009, p. 221) destaca que
O indivíduo, em suas relações políticas, assume o papel de cidadão que é imbuído de uma rede de direitos e deveres. Essa rede é comunicada e oficializada através da escrita das leis. Em alguns casos específicos, as normas ditadas pelas leis se contrapõem as normas sociais de determinados grupos. Por isso o direito é provavelmente uma via privilegiada de acesso à investigação desse sujeito cidadão que se mostra enquanto ator, enquanto pensador e enquanto representação pensada. Alguns aspectos do Direito podem esclarecer temas importantes da psicologia política tais como influências normativas intergrupais, quando as relações envolvidas são marcadas pelo poder político. Reciprocamente, a psicologia aplicada pode auxiliar o Direito em sua tarefa normativa, constituindo um campo de trabalho e de estudo. Nesse caso a aplicação da psicologia ao Direito visaria os processos envolvidos na normatização estatal das condutas individuais.
Pelo exposto, este trabalho sobre infância e migração no Brasil nos remete a um estudo psico-político-histórico (Falk, 1985) que nos permite refletir sobre as formas de subordinação e exploração presentes no modo como migrantes e imigrantes são tratados e como seus direitos são garantidos ou vilipendiados. Como destaca Elliot Hansen Weiner em seu estudo “A Psicologia Política das Atitudes Imigratórias: Uma Estrutura de Sensibilidade à Ameaça Composta” (2020) não podemos perder de vista que
Em um contexto global, a politica de migração provavelmente será uma importante fonte de conflitos políticos nas próximas décadas. O número total de imigrantes aumentou globalmente para mais de 272 milhões (OIM, 2020). Embora os imigrantes representem apenas 3,5% da população mundial, a migração global está aumentando e este é um grande motor da mudança demográfica em nível de país (OIM, 2020). A dinâmica global da migração coloca a política de imigração no centro da agenda nacional e internacional, intensificando assim o conflito político entre o nativismo e o globalismo. Portanto, é extremamente importante obter uma compreensão empírica cada vez mais matizada dos fatores que moldam as atitudes imigratórias. (Weiber, 2020, pp. 3-4)
Estudar esses arquivos nos permite entender como desdobramentos presentes no campo migratório se sustentam em eventos do passado. Em que medida práticas passadas são mantidas e aperfeiçãodas como instrumentos de dominação-exploração (Safiotti, 1987) ou de libertação (Martin-Baró, 2013).
O período do estudo abarca os anos de 1927 a 1932. O levantamento foi realizado no Arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo e foram estudados 818 processos que tiveram início no mês de janeiro de cada ano, sendo que nestes autos se encontram diversas questões como pedidos de autorização de trabalho, de internação, de apreensão, inquéritos policiais, tutelas etc. Para conhecer com maior riqueza de detalhes as situações que envolviam famílias de imigrantes e suas crianças, selecionamos dez processos para análise em profundidade.
Orfandade, problemas de saúde como a tuberculose, o descontentamento dos pais com o comportamento da criança são alguns elementos justificam pedidos para a internação das crianças em asilos. Inquéritos, por sua vez, são realizados a partir de denúncias de furtos ou brigas.
É frequente encontrar exames de virgindade realizados a pedido do juizado para atestar o “bom comportamento de meninas”. Muitas meninas são encaminhadas de casa em casa para serem tuteladas e diversos são os relatos de maus tratos. Os processos de menores possuem um caráter elitista e discriminações de gênero, geração, raça e classe social são reveladas tanto pelos agentes de Estado como pelas partes dos processos. Por outro lado, a população busca conseguir educação e alguma assistência social por meio do judiciário.
Destarte, esse conjunto de processos revela elementos significativo do lugar atribuído à imigrantes na nascente república brasileira. É revelador como a atribuição de papeis a diferentes categorias de sexo e raça determinam a possibilidade de se construir sujeitos autônomos quando se está marcado pelo estigma de estrangeiro.
Ao estudarmos processos judiciais, cujo discurso não é neutro, abrimos espaço para entender as relações entre sujeitos, sociedade e estado por meio de suas instituições em ação, o que revela quais são os elementos de uma ação pública (Lascoumes & Le Galès, 2012; Silva 2018a, 2018b) que se dá na interseção da infância e da migração: nesse encontro são produzidas políticas públicas que atuam como determinantes sociais e políticos que permeiam a cultura nacional e os sentidos do que significa ser migrante no Brasil desse período. Isso nos possibilita analisar elementos da vida das pessoas comuns e pequenos acontecimentos que constituem os processos históricos e sociais. Os depoimentos de réus, as falas de partes e testemunhas e a manifestação dos operadores do direito estão impregnados pelas experiências cotidianas (Heller, 2001).
Essas narrativas determinam os modos de inserção na sociedade e revelam como a dimensão tutelada do sujeito limita “o direito a ter direito”, invisibilizando as agruras na vida dos ‘não nacionais’, em um país construído por imigrantes. Tudo isso é filtrado pela ação poder judiciário que difunde a ordem sociopolítica materializada em leis e instituições. Apesar do sistema de opressão que se constrói, a análise atenta desse material revela a capacidade de resistência dos setores populares, pois eles se reapropriam da linguagem jurídica para defender seus interesses, revelando a sua potência de redefinir-se, reinscrever-se socialmente, bem como a complexidade subjacente ao litígio e às dinâmicas do poder intrínsecas a disputas e conflitos.
INFÂNCIA, MIGRAÇÃO E JUDICIÁRIO
Um número expressivo de processos de menores que tramitaram na primeira Vara Privativa de Menores em São Paulo tratava de assuntos relativos aos filhos de imigrantes. No seu esforço para se adaptar na nova sociedade, as famílias recorriam ao judiciário para buscar uma situação melhor para as crianças, pedindo uma oportunidade de trabalho, vagas em escolas e atendimento médico. As duras condições de subsistência e a impossibilidade de ter as crianças consigo no local de trabalho justificaram vários dos pedidos de internação realizados ao juiz de menores.
A discussão sobre a legislação referente à infância e a criação das primeiras instituições de caráter judicial voltadas para esse grupo, no Brasil, acompanhou a entrada dos imigrantes e a abolição da escravatura. No Estado de São Paulo, desde a Proclamação da República, em 1889, esse tema era debatido pelo poder legislativo, estimulado pelos receios que cercavam a entrada das famílias de imigrantes oriundas de diversos países do mundo, especialmente da Europa. Tais receios envolviam o medo de que as ideias socialistas influenciassem o projeto de nação das elites republicanas. (Pirotta & Broggi, 2016)
No início do século XX, a presença de crianças nas ruas das cidades pedindo esmolas, fazendo arruaças e ameaçando a propriedade justificava a construção de políticas normatizadoras e intervencionistas voltadas para as crianças em ‘estado de abandono’. A rua era um importante espaço social nos bairros paulistanos e abrigava o lazer, a brincadeira das crianças, as conversas entre vizinhos, jogos como a bocha e a malha, brigas, entre outros. A rua também era o espaço do comportamento visto como imoral e do crime. Assim, esse o ambiente ruas vai se tornando ameaçador e sendo percebido como perigoso no desenvolvimento da cidade (Moura, 1999).
Estudando a trajetória do abandono de crianças, Maria Luiza Marcílio (2007) observa que a pobreza e a marginalidade que marcam a sociedade no início do século XX influenciam as situações em que as crianças se encontravam e estão na origem do abandono. A autora identifica três fases distintas da assistência à infância no Brasil: a fase caritativa, que se estende até o século XIX, orientada pelo sentimento de fraternidade, de cunho paternalista e de inspiração religiosa, quando surge a Roda dos Expostos; a fase filantrópica, que se estende até a década de 1960, período de intensas transformações sociais em que surge a questão do menor; e o Estado do bem-estar social, quando a criança torna-se partícipe da cidadania. Irene Rizzini (2008) também comenta que a questão da pobreza na formação das cidades brasileiras estava na base de políticas destinadas ao controle da população, incluindo-se as crianças e os adolescentes.
De acordo com Eliane Bernal, havia uma utopia de cidade que influenciava o tratamento dado às crianças:
Num processo que veio se delineando, desde o início do século XX, a cidade de São Paulo viveu uma campanha de saneamento em que se baseou na utopia de uma cidade progressista, limpa e sem miséria. A nova visão urbanística redefiniu o espaço público, tendo as ruas como via de circulação e não mais de socialização. Estabeleceu-se uma política de repressão à vadiagem nas ruas, juntamente com uma intervenção direta da polícia no controle social. (Bernal, 2004, p. 24)
Além da missão de vigilância, os juristas acreditavam que a educação e a disciplinarização das crianças seriam fortes antídotos contra os “efeitos perniciosos dos germens criminosos trazidos hereditariamente pelos indivíduos”. Acreditava-se que a perversão moral daria seus primeiros sinais na puberdade e, caso não fosse diagnosticada e corrigida, ocasionaria efeitos alarmantes sobre a ordem social (Pirotta & Broggi, 2016). O positivismo operava com a ideia da herança genética e do determinismo social, buscando desenvolver tecnologias de controle social para tentar solucionar o problema das “perversões morais”. A teoria da eugenia e a criminologia científica exerciam forte influência no cenário legislativo em São Paulo da época. A Nova Escola Penal defendia que o objeto do direito deveria ser o criminoso, considerado como um indivíduo anormal que recebia a carga da transmissão hereditária, e não mais o crime. Desse modo, o Estado teria a missão de vigiar as crianças, sobretudo aquelas das camadas mais empobrecidas da população, para que não desenvolvessem um caráter anormal ou imoral, visando a defesa da sociedade e o futuro da nação.
Em 1902, foi criada a primeira instituição pública para a assistência à infância paulistana, que foi chamado de Instituto Disciplinar do Belenzinho (Lei Estadual nº 844/1902). O reformatório deveria formar o caráter das crianças mais amoldáveis por intermédio do estímulo e exemplo, agindo para modificar as que fossem congenitamente refratárias. Sérgio C. Fonseca (2008), estudando a questão da regeneração pelo trabalho no Instituto Disciplinar, observa que havia uma crença no trabalho como meio de correção do caráter dos menores, contaminado pelo ambiente das ruas. O projeto do Instituto Disciplinar incorporava as teorias científicas da época, mas sua implantação não atingiu os objetivos propostos. A instituição constituiu-se como um espaço de discriminação e punição, reproduzindo a violência e a exclusão existentes na sociedade (Pirotta & Broggi, 2016).
Havia controvérsias no debate entre os juristas do início do século XX para a criação de leis voltadas para a infância. A necessidade de prover assistência pública às crianças se contrapunha ao modelo liberal adotado pelo direito brasileiro após a Independência. Havia uma concepção corrente de que o Estado não deveria criar escolas de preservação a fim de prevenir a criminalidade infantil, pois esta seria uma questão de ordem privada e assumir esse papel ‘equivaleria a praticar o socialismo’. Predominava a ideia de que caberia ao Estado apenas a atribuição de punir os infratores da ordem.
A influência da obra de Lombroso1 na criminologia brasileira, que veio a ser chamada de Nova Escola Penal, levou um grupo de juristas a defender que o objeto do direito deveria ser o criminoso, considerado como um indivíduo anormal, e não mais o crime - conforme defendia a Escola Clássica -justificando a ampliação das funções do Estado em relação à infância. No decorrer dos anos seguintes, diversas novas leis voltadas para as questões ligadas à infância, como o trabalho infantil, a delinquência e a família, entre outras, foram debatidas e promulgadas pelo governo federal e pelo Estado de São Paulo. Em 1923, no Rio de Janeiro, foi criado o Juizado de Menores e José Cândido de Albuquerque Mello Matos assume o cargo de primeiro Juiz de Menores da América Latina. Em São Paulo, em 1924, foi criada a primeira Vara Privativa de Menores pela Lei nº estadual 2.059/1924) Em 1927, o primeiro Código de Menores brasileiro é promulgado para organizar e harmonizar a legislação esparsa preexistente (Decreto nº 17.943/1927) Além de tratar das leis e definições sobre os menores, o código criou o abrigo de menores e definiu regras processuais a serem seguidas nos processos de menores.
O artigo 1º do Capítulo I do Código de Menores de 1927, define o objeto e a razão de ser da legislação. Em seu texto, encontra-se a seguinte explicação:
Capitulo I - Do Objecto e Fim Da Lei
Art. 1º O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18 annos de idade, será submettido pela autoridade competente às medidas de assistência eprotecção contidas neste Codigo. (Decreto nº 17.943/1927)
O conceito jurídico de abandono é definido mais adiante, no artigo 26 do Código de Menores, abrangendo os menores de 18 anos que não tenham habitação certa, nem meios de subsistência, por serem seus pais falecidos, desaparecidos ou desconhecidos; que se encontrem eventualmente sem habitação certa, nem meios de subsistência, devido à indigência, enfermidade, ausência ou prisão dos pais; que vivam em companhia de pai, mãe ou pessoa que se entregue à prática de atos contrários à moral e aos bons costumes; que se encontrem em estado habitual de vadiagem, mendicidade ou libertinagem; que frequentem lugares de jogo ou de moralidade duvidosa ou andem na companhia de gente viciosa ou de má vida; vítimas de crueldade e de maus tratos (Decreto nº 17.943/1927)
O termo ‘menor’, definido pela lei, referia-se a crianças e adolescentes com idade inferior a 18 anos delinquentes ou em situação de abandono. Tal nomenclatura consolida o estigma em relação às crianças provenientes das camadas populares e a ação estatal se voltava para aqueles que não estavam sob a autoridade de seus pais ou tutores. Estudando as origens do uso do termo ‘menor’ pelo direito brasileiro, Fernando Torres Londoño afirma que
No fim do século XIX, olhando para seu próprio país, os juristas brasileiros descobrem o ‘menor’ nas crianças e adolescentes pobres da cidade, que por não estarem sob autoridade dos seus pais e tutores são chamadas pelos juristas de abandonadas. Eram, pois, menores abandonados as crianças que povoavam as ruas do centro das cidades, os mercados, as praças e que por incorrer em delitos frequentavam o xadrez e a cadeia, neste caso passando a serem chamadas de menores criminosos. (Londoño, 1996, pp. 134-5)
Esse termo cristalizou a distinção entre as crianças que não possuíam uma situação familiar e social em acordo com o modelo idealizado e as crianças que viviam sob os cuidados das famílias mais abastadas. Tal forma de classificar as crianças foi abolida pelo direito brasileiro na década de 90, com o surgimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Pirotta & Pirotta, 1999). Apesar disso, percebe-se que o significado do termo ‘menor’ ainda habita o imaginário social em relação às crianças das camadas excluídas da sociedade brasileira.
O presente estudo objetivou conhecer como famílias imigrantes interagiram com o poder judiciário para solucionar seus problemas. Pretende-se, por meio da análise documental, encontrar elementos que auxiliem na compreensão dos desafios enfrentados na nova sociedade e nas formas como as crianças e suas famílias eram tratadas pelas instituições judiciárias na busca de condições para uma vida melhor.
ASPECTOS METODOLÓGICOS
Como pesquisadores buscamos uma posição hermenêutica, científica, que esteja comprometida com a mudança e a transformação social de que Martín-Baró falava e que parte de um olhar interdisciplinar de sujeitos e objetos, historicamente datado e comprometido com processos científicos que quem investiga necessita saber-se parte ativa (Martin-Baró, 2013, Montero, 1999, 2015; Silva, Mello-Théry, & Romero, 2018). Assim, a pesquisa debruçou-se sobre os primeiros cinco anos de funcionamento da Vara Privativa de Menores de São Paulo, na vigência do Código Mello Matos. O período compreende os anos de 1927, com a promulgação do Código Mello Matos, até 1932. O levantamento dos autos de processos foi realizado no Arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo, formado por processos findos que tramitaram no Poder Judiciário Estadual Paulista. Não obstante o estado de conservação dos documentos ser insuficiente e o acesso aos autos apresentar algumas dificuldades, já que o acervo documental está depositado fora do Arquivo e necessita da intermediação de um funcionário do tribunal para ser manuseado, encontra-se uma riqueza de informações sobre variados temas. Os autos estão separados em caixas e, após a solicitação, são disponibilizados para a consulta por um determinado tempo.
Durante os anos do estudo, tramitaram em torno de 15.000 processos na Vara de Menores, com a entrada de aproximadamente 3.000 processos por ano. Diante do alto volume processual encontrado, optou-se por estudar todos os processos que tiveram seu início no mês de janeiro de cada ano. No total, foram levantados 818 autos de processos em 21 caixas. A fim de conhecer com maior riqueza de detalhes as situações que envolviam famílias de imigrantes, no presente trabalho, foram analisados dez processos de menores em que havia clara alusão às famílias imigrantes. Os dez processos foram selecionados em função da descrição de fatos e elementos relacionados ao cotidiano da época, riqueza de detalhes, duração e por deixar entrever situações enfrentadas pelas famílias de imigrantes na sua relação com a nova sociedade escolhida para viver. Essas famílias eram de origem italiana, espanhola, lituana, alemã, estoniana e húngara, o que permite entrever a diversidade cultural e linguística presentes no cotidiano da cidade de São Paulo.
A utilização de processos judiciais como fonte historiográfica nos possibilita recuperar elementos da vida das pessoas comuns e pequenos fatos sociais que, de outro modo, não se revelariam e que, em seu conjunto, contribuem para o conhecimento de processos históricos e sociais. Uma característica fundamental da pesquisa com autos de processos é o fato de que o pesquisador lida com a palavra escrita e a construção do discurso jurídico não é neutra, refletindo interesses de determinados grupos sociais. As motivações íntimas dos sujeitos - sejam eles as partes, as testemunhas ou os membros do poder judiciário - não estão explicitadas nas narrativas encontradas nos processos. Nelas, deparamo-nos com o pensamento e a ideologia de uma época. Essa narrativa é filtrada pelo poder judiciário, que “difunde uma série de representações e imagens amparadas por uma ordenação sociopolítica impressa em leis e instituições” (Oliveira & Silva, 2005, p. 249).
No entanto, mais do que apenas repetir tais representações e imagens, os setores populares se reapropriam da linguagem jurídica para obter suas pretensões. Frente às particularidades do trabalho com processos judiciais, Alessandra de A. Rinaldi (2015) propõe que sejam abordados como uma compilação de diferentes versões sobre um fato em que não é possível encontrar uma ‘verdade’ única e, sim, diversas versões construídas no entrecruzamento do discurso dos agentes autorizados do poder público e a dos litigantes no processo.
O PROCESSO DE MENORES: PROCEDIMENTOS E PERSONAGENS
O processo de menores inicia-se, frequentemente, com o pedido realizado por um adulto sobre uma situação envolvendo um menor de 18 anos. Esse pedido é anotado pelo escrivão do cartório e está localizado logo na primeira folha do processo. Não se encontrava a participação do advogado das partes na grande maioria dos autos estudados. Por sua vez, um curador de menores participava do processo para defender os interesses dos menores. O curador de menores se manifestava no processo aconselhando o juiz, cujas colocações frequentemente eram acatadas. A curadoria de menores, na maior parte do período investigado, foi exercida pela mesma pessoa. Por sua vez, diversos juízes atuaram nos processos, o que pode ser explicado pela evolução na carreira ou por substituições em função de férias e licenças. Os processos possuíam duração muito variada, podendo terminar pelo não comparecimento das partes logo no início do processo ou caso os envolvidos não fossem encontrados no endereço apresentado na denúncia. Algumas ações judiciais duraram vários anos, terminando somente quando o menor obteve a sua maioridade. Ocorreu que o menor tivesse várias passagens pelo processo, em função de fugas do Instituto Disciplinar ou de inadaptação à vida com os tutores. O juiz decidia por meio de despachos e não são encontradas sentenças nos processos de menores. Geralmente, o processo termina com o seu arquivamento.
A Vara Privativa de Menores possuía um médico no seu quadro de servidores, que auxilia o juiz por meio da realização de prova pericial, através de exame, vistoria ou avaliação, embasada no conhecimento científico disponível na época. O médico da Vara de Menores tinha como principal função atestar a idade, fazer o exame de virgindade e avaliar o “grau de perversão” dos menores. Em determinadas situações, como no caso de agressões ou acidentes, é realizado um exame de corpo de delito pela perícia médica. Sindicâncias são realizadas, a pedido do juiz, quando um funcionário da Vara é designado para verificar a situação social dos envolvidos e atestar a sua idoneidade moral. A sindicância é realizada por meio de visitas à residência das partes, além de conversas com vizinhos e familiares. Também são ouvidas testemunhas, por determinação do juiz. Em seu depoimento, as testemunhas confirmam ou não os fatos e relatam como é a vida dos envolvidos e de seus familiares.
UM RETRATO DA INFÂNCIA NA NOVA SOCIEDADE POR MEIO DOS PROCESSOS JUDICIAIS DA 1a VARA DE MENORES DO ESTADO DE SÃO PAULO
F.S., pai de uma menina de 40 dias de idade procura o juizado para pedir a internação de sua filha no Asilo dos Expostos, explicando que sua esposa faleceu e que ele se acha impossibilitado de procurar emprego com uma criança tão pequena. De nacionalidade Iugoslava, o requerente declara que veio para o Brasil primeiro e, depois, chamou sua esposa. Ao dar à luz, a mulher veio a falecer, deixando a criança órfã. É realizada uma sindicância para verificar a real situação econômica do pai, na qual se verifica que ele não possui residência fixa e que está à procura de emprego. O pedido é atendido. Depois de um ano, F.S. volta a procurar o juízo e pede a devolução da criança, alegando que se casara novamente e estava empregado. Nova sindicância é realizada e os vizinhos afirmam tratar-se de pessoa honesta e trabalhadora. O casamento é comprovado através de certidão e, assessorado pelo curador de menores, o juiz devolve a criança ao pai.
É comum encontrar informações sobre o falecimento do pai ou da mãe das crianças, por vezes dos dois. Esse motivo induz o cônjuge sobrevivente ou algum outro parente a pedir ao judiciário a internação da criança órfã, sob a alegação de falta de meios para cuidar da criança ou de falta de lugar e de quem cuide da criança durante o turno de trabalho. Muitas vezes, os imigrantes não têm outros laços familiares que os apoiem em momentos como esses. Após conseguir alguma melhoria de vida, encontram-se pedidos de devolução da criança, mas nem sempre a família consegue se reunir novamente, pois a internação só é feita mediante a declaração do estado de abandono da criança, a qual é definitiva.
Problemas de saúde, como a tuberculose, também justificam pedidos para que o juiz interne as crianças. H.M., italiana, mãe de três crianças com 8, 6 e 4 anos de idade, pede a internação de seus filhos alegando que está enferma e não dispõe de recursos para a sua manutenção. Um amigo da família escreve uma carta ao juiz onde esclarece que H.M. vive em situação de miséria e que as crianças são órfãs de pai, pedindo a internação para “dar um futuro melhor” às crianças. É feito um pedido de sindicância e a comissária expõe que, tendo falecido o marido há dois meses, a mulher ficou com quatro filhos e sem recurso algum. H.M. quer entregar à justiça as três crianças mais velhas e está com o menor que ainda necessita de cuidados maternos. Sem recursos para sustentar a família, ela mora com a irmã, que é casada e tem filhos, não possuindo condições de auxiliá-la. A comissária observa que H.M. é honesta e, mesmo doente, está empregada em uma fábrica de tecidos. Os menores são encaminhados para o Abrigo de Menores em outubro de 1929. Passados dois meses, a comissária volta a investigar as condições de H.M. e conclui que ela não se encontra em condições de reaver as crianças. Sugere que as crianças sejam entregues em tutela, provisoriamente, para a tia. O termo de tutela chega a ser assinado, mas a mãe volta aos autos para reclamar que seus filhos estão vivendo de caridade na casa dos parentes. A curadoria se manifesta no sentido de que as crianças têm parentes em condições de sustentá-las e que o juizado não tem vagas onde colocar os menores. O juiz aceita a posição da curadoria e pede o arquivamento do processo. No entanto, a mãe insiste no pedido, justificando que está muito doente e fraca, temendo que as crianças morram de fome. Uma nova sindicância é realizada e constata que a situação de saúde de H.M. é agravada ao iniciar um trabalho, o que a faz mudar constantemente de emprego. Na sua última colocação, conseguiu apenas custear os seus remédios e, vendo que a situação piora, pede que os filhos sejam internados para não permanecerem sozinhos. A curadoria requer que as crianças sejam declaradas em estado de abandono. H.M. é procurada na Santa Casa, mas não é encontrada e descobre-se que ela está morando com outro marido em condições paupérrimas. Chamada novamente para depor, informa morar em um cortiço e volta a explicar seus problemas, mas não aceita que as crianças sejam declaradas em abandono. Diante disso, são chamadas três pessoas que residem com ela para depor. Todas confirmam que se trata de uma mulher honesta que vive em completa miséria desde a morte de seu marido. O processo se encerra com a devolução das crianças, que estavam no abrigo, devido à recusa de H.M. em aceitar a declaração de estado de abandono das crianças.
A pobreza associada à doença da mãe, a orfandade e as precárias condições de trabalho deixam as crianças desamparadas. Por outro lado, a mulher parece entender que o Estado deve dar assistência para seus filhos, insistindo em procurar o juízo para pedir a internação das crianças. Somente diante da perspectiva da declaração de estado de abandono, ela aceita ter as crianças de volta. A mãe se recusa a entregar definitivamente os filhos para a gestão do Estado. As crianças, por sua vez, não têm nenhuma voz ativa diante da situação.
A justiça é procurada por A., tutor da jovem lituana E. Ele alega que E. entrega, contra a sua vontade, todo o valor recebido pelo seu trabalho à sua mãe, viúva, que está casada em segundas núpcias. Segundo o requerente, a mãe da menor se comporta mal e, mesmo sendo viúva, teve mais um filho com um ‘desocupado’. Ela usa os valores que recebia da filha para sustentar o segundo marido, deixando seus outros filhos desamparados. A menor E. recusou-se a entregar o valor integral recebido pelo seu trabalho para a sua mãe e o valor excedente estava sendo depositado em uma caderneta de poupança. A. queixa-se de que a mulher queria levar E. de sua casa à força e que foi surpreendido com uma intimação da polícia para dar explicações sobre o pagamento dos ordenados da menor. O tutor alega que ela é tratada como pessoa da família, aprendendo a ler e escrever e que se sente na obrigação moral de defendê-la da exploração e corrupção. Feita a sindicância, verifica-se que a mãe de E. teve cinco filhos, mantendo em sua guarda apenas dois menores e que possui um companheiro desocupado. Foi verificado também que ela teve um filho ilegítimo com este homem. Em seguida é feita a sindicância na casa de A., onde a menor E. reside. A comissária avalia que ela vive em condições decentes e confirma que existe uma caderneta de poupança aberta para a menor, onde são feitos os depósitos. Intimada a comparecer em juízo, a mãe de E. apresenta a certidão de óbito do primeiro marido, onde consta que ele era lituano, branco, lavrador e que faleceu com 48 anos vítima de escorbuto. Com o primeiro marido, ela teve cinco filhos. Agora está vivendo com o outro companheiro, de nome J., com quem teve um filho. Ele faz cabides em casa e os vende pelas ruas. Depois de ser convocado por diversas vezes para comparecer em juízo, J. declara que tem intenção de tirar E. da casa onde está para lhe ensinar costura e outras prendas domésticas. Além disso, quer que ela estude o catecismo e faça a primeira comunhão na igreja do seu bairro. Chamada a depor, a menor E. afirma que sua mãe só foi procurá-la pedindo dinheiro depois de um ano em que trabalhava na casa de A. Alega que não quer visitar sua mãe em função do mau comportamento dela. Afirma fazer companhia para a esposa de A., onde aprendeu a ler, costurar e fazer as quatro operações matemáticas. Declara que não quer sair da casa de A.
Inconformada, a mãe declara que ouviu da parte da mulher de A. que ele havia tentado bolinar ou ‘fazer mal’ a sua filha. Ela pede ao juízo que a menor seja submetida a exame médico para constatar se ela foi deflorada e, em seguida, lhe seja devolvida. O exame é realizado, verificando-se que a menor está ‘intacta’. Submetida ao exame de verificação de idade, é constatado que E. aparenta ter 14 anos de idade. A esposa do tutor, então, é chamada a depor. Ela declara, em juízo, que as acusações da mãe da menor são mentirosas e que seu marido seria incapaz de praticar tais atos. Caso isso viesse a acontecer, ela seria a primeira a não querer a menor em sua casa, mas sua intenção é somente proteger e cuidar dela.
Frente aos fatos levantados, é declarado o estado de abandono da menor, que passa para a guarda de A. mediante soldada. A. assina um termo de entrega e responsabilidade, comprometendo-se pela educação, moral, saúde e vestuário de sua tutelada, além de dar-lhe uma soldada de 45 mil réis mensais e mais 10 mil em mãos. Cinco anos depois, a menina comparece em juízo, declarando que é bem tratada na casa de A. e que não viu mais sua mãe. Quando E. faz 21 anos, A. solicita que o juiz legalize a sua situação no país, porque ela não possui nenhum documento que confirme sua nacionalidade, idade, filiação e permanência no Brasil. O juízo providencia a documentação de E. e o processo termina.
Os elementos encontrados permitem observar a dupla exploração do trabalho infantil, na medida em tanto os tutores quanto os parentes se aproveitam da renda produzida pelas crianças. Revela também como as representações de gênero são (re)apropriadas na discussão processual, onde se negociam valores morais. Embora E. tenha pouca voz no processo judicial, seu desejo acaba sendo atendido.
Os padrões morais da época podem ser entrevistos nas ações judiciais que envolvem discussão sobre a conduta feminina, como no processo de M.K., uma alemã que foge com três filhas com destino a Santos, provavelmente buscando voltar para seu país de origem. Seu marido J.K. procura o juizado para pedir a apreensão de suas três filhas, sentindo-se violado em seus direitos paternos pela fuga da mulher a quem atribui péssimas qualidades. O requerente descreve sua família nos seguintes termos: a mulher, M.K., tem 27 anos de idade, é branca, de estatura robusta, cabelo basto e comprido de cor louro escuro. Porta brincos grandes e largos de ouro em foram de anel. Possui uma marca picada, isto é, uma tatuagem, em um dos antebraços com a forma de um coração de que saem chamas. No coração estão inscritas as letras M.K. e J.K. Fala pouco o português. A filha mais velha tem 14 anos, é gorda, robusta, meio baixa, de cor branca, cabelos cortados à la garçone de cor loura e fala português. A outra filha tem 13 anos, é meio gorda, branca, cabelos cortados à la garçone de cor loura e fala português. A mais moça tem 11 anos, branca, magrinha, de rosto pálido, possui cabelos compridos com duas tranças de cor loura e fala português. Acrescenta que, caso elas não sejam encontradas em Santos, teriam se dirigido para o Rio de Janeiro.
Feita a sindicância, o comissário informa que o casal vivia separado e que havia suspeita de que o requerente não procedia bem. As meninas viviam com a mãe e, sem o consentimento do marido, a M.K. desapareceu, levando as filhas consigo. O curador é de parecer que o requerente não “prosou” suas qualidades de pai na reclamação, nem que era homem honesto e idôneo para ter suas filhas de volta. Não tendo sido localizado o paradeiro de M.K. o processo é arquivado.
Uma outra situação em que as questões de gênero ficam realçadas é o processo da menor E.N. A delegacia de polícia encaminha a adolescente, com 16 ou 17 anos, procedente da Estônia, que não tem pais nem parentes e vive a perambular pelas ruas da capital, em companhia de pessoas que poderão a perverter. A delegacia já a havia empregado em cinco das melhores casas da cidade, mas ela não quer trabalhar. Anda a pedir dinheiro pelas ruas da cidade, sendo de se prever sua queda fatal caso não seja internada a tempo em um asilo.
E.N. declara que é órfã de mãe e que seu pai está na Europa. Em São Paulo, tem uma tia que é arrumadeira em um hotel. Declara, também, que nunca foi vítima de nenhum desrespeito. A menor é internada no abrigo provisório e é solicitada a sindicância. A comissária informa que a tia de E.N. não possui uma vida regular e que trabalha numa casa de tolerância. Declarado o estado de abandono, E.N. é entregue à tutela. Poucos dias depois, a menina é devolvida com a justificativa de que apresenta mau comportamento. Ela é novamente internada e em seguida entregue a outro tutor. Mais uma vez, E.N. foge e é apreendida na rua, com acusação de ter subtraído roupas da casa do último tutor. E.N. é submetida ao exame de virgindade e volta a ser internada. Após três meses, a curadoria requer que E.N. seja entregue a uma terceira tutora, onde será observada para verificar se é má ou não. Alguns dias depois, E.N. volta a fugir e suspeita-se que ela estivesse falando com um rapaz sem a autorização dos tutores. Recolhida novamente ao abrigo, E.N. declara que está procurando seu pai adotivo, que reside em Presidente Prudente. O juiz solicita que a menor seja novamente submetida ao exame de virgindade e o médico constata sinais de defloramento. A partir daí, o juiz solicita que a menor seja examinada pelos peritos da polícia. O exame de corpo de delito conclui que E.N. foi ofendida em sua virgindade há mais de um ano, por uma pessoa conhecida com a qual teve relações sexuais. E.N. alega que, em 1925, foi deflorada por D.W. nas proximidades da avenida Angélica. O sedutor prometeu garantir seu futuro, mas não fez promessa alguma de casamento. Além desse sedutor, declara ter tido relações sexuais com outro homem. O juiz de menores oficia o juiz da Comarca de Presidente Prudente buscando informações do suposto pai adotivo de E.N. Em resposta ao ofício, é informado que P.M. reside na cidade há alguns anos, vivendo de seu ofício de pintor. Alega que não é parente da menor - abandonada pela família - e que um irmão dela trabalha em sua companhia. Diz, também, que está disposto a tê-la em sua casa caso seja necessário. E.N. é, então, encaminhada para a cidade de Presidente Prudente. Aproximadamente um ano depois, em 1929, E.N. é acusada de ser autora de um furto. Ela declara que foi entregue ao pai adotivo em Presidente Prudente, onde residiu por oito meses. Tendo sido maltratada por ele, foi para a casa de Dona M.G., onde esteve por apenas 15 dias. Em presença do juiz daquela comarca, foi indagada se gostaria de voltar a São Paulo e recebeu licença para embarcar para a capital, além do valor em dinheiro para a passagem. Chegando a São Paulo, ficou residindo na casa de uma protetora, localizada no Parque Jabaquara. Nega ter praticado algum furto. É realizada uma sindicância que averigua a história da menor, obtendo a informação de que o dinheiro para a passagem foi dado pelo Dr. G., com quem foi morar depois de sair da casa do seu pai adotivo. Não foi possível averiguar nada sobre o furto atribuído a E.N. A menor, então, é internada no Asilo Bom Pastor. Na data em que E.N. completaria 21 anos, o juizado solicita informações sobre o procedimento da menor no asilo. E.N. declara que foi entregue à senhora A.G., de onde saiu fugida devido a maus conselhos recebidos. Afirma que está arrependida desse ato e que pretende, ainda hoje, pedir desculpas à senhora A.G. e pedir para voltar a morar na sua casa, desejando trabalhar e viver honestamente. A diretora do Asilo Bom Pastor declara que não mais receberá E.N., em função de que ela completou 21 anos de idade. Consultado o curador de menores, este é de parecer que E.N. deve ser declarada maior para todos os atos da vida civil e que ela seja entregue no endereço de dona A.G. O juiz despacha de acordo com o parecer do curador e E.N. é posta em liberdade.
O discurso dos agentes do Estado e participantes dos dois processos citados acima revela uma sociedade marcada pela assimetria de gênero. A vida honesta da mulher é uma questão debatida nos autos de menores, nas sindicâncias e nos depoimentos das testemunhas. No caso de M.K., a própria reclamação inicial levada ao judiciário baseia-se no comportamento da mulher que fugiu com as filhas. Apesar do preconceito e do moralismo em relação à conduta feminina, é mais comum encontrar a omissão do Estado do que uma ação direta contra as mulheres. No entanto, tratando-se das adolescentes sob a responsabilidade do Estado, a preocupação com a moralidade é maior, o que pode ser percebido através da solicitação do exame de verificação de virgindade, por diversas vezes requeridos nos autos de E.N.
É comum encontrar pedidos de internação baseados no descontentamento com o comportamento da criança. Esse tipo de pedido se justifica com base no comportamento irregular dos menores e encontram-se relatos de que a criança não obedece aos pais, anda em más companhias, possui comportamentos que irão prejudicar seu futuro, passa o dia todo na rua, possui comportamento libidinoso, entre outros.
Tal é o caso de A.G., apresentado a seguir. O juiz de direito da vara de Santos pede a internação de um menor, com 12 anos de idade, devido ao seu ‘comportamento irregular’. Consta na petição que A.G. é órfão de mãe e de origem italiana. A primeira testemunha relata que o menor tem um péssimo comportamento, passando o dia todo na rua e se dependurando sobre os automóveis. “Esse comportamento fatalmente lhe prejudicará o futuro”, diz a testemunha. Acrescenta, ainda, que o menor dirige palavras injuriosas para aqueles que lhe estão próximos e que, com sua correção no Instituto Disciplinar, poderá tornar-se útil para a sociedade. A segunda testemunha afirma que o menor possui um comportamento irregular, não obedece às pessoas mais velhas e possui o hábito de ficar fora de casa por horas e horas consecutivas. Além disso, tem o vício do fumo e do roubo, já tendo desviado quantias de seu pai. O pai alega que está descontente com seu filho por ele andar com más companhias, desobedecendo-o e dirigindo injúrias a sua pessoa. Precisando trabalhar o dia todo e por não possuir recursos para colocar o filho em uma instituição educativa, pede a sua internação no Instituto Disciplinar. O curador dá um parecer favorável à internação. O juiz oficia o Instituto Disciplinar, mas é informado que não há vagas disponíveis e o processo é arquivado.
Observa-se, em demandas levadas ao judiciário como no caso A.G., que a população e as famílias buscavam se apropriar das categorias do discurso jurídico a fim de solucionar suas demandas, acionando o imaginário sobre a infância presente nos discursos oficiais. Apesar do caráter elitista presente nos processos de menores, a população tenta obter educação e alguma assistência para as crianças por meio do judiciário. Os relatos sobre as necessidades das crianças eram redigidos pelos funcionários do cartório e pode-se supor que essa narrativa fosse traduzida para uma linguagem jurídica. Ainda assim, percebe-se que a população tinha conhecimento das leis de menores e as mobilizavam em seu favor.
Encontrado no Viaduto do Chá a implorar a caridade pública, A.R. é encaminhado ao juízo de menores pelo delegado de capturas. O menor possui 15 anos de idade, é natural da Estônia, sabe ler e escrever e reside na Estação de Pilar. Declara que seus pais estão na Europa e que veio para o Brasil com uma família que mora em uma fazenda. Não possui nenhum parente na cidade de São Paulo e não se exprime bem em português. O menor é internado no Instituto Disciplinar.
O curador é de opinião que o menor A.R. seja declarado em estado de abandono. O juiz concorda e determina que ele fique internado até a nomeação de um tutor. No entanto, por falta de um tutor interessado, é decidido que o menor deve permanecer no instituto até os 18 anos e o processo é arquivado. Aproximadamente dois anos depois, J.H. procura o juizado e informa que é tio do menor A.R. Informa que A.R. nasceu na Estônia em novembro de 1911. Seu pai é falecido e sua mãe reside na Europa. Declara que, em 1925, A.R. veio junto para o Brasil acompanhado por ele. Diz, também, que só ficou sabendo do destino de A.R. agora e que assim que ele desapareceu, procurou-o por toda a parte. Estando de partida para o interior do estado de São Paulo, com o objetivo de trabalhar em uma fazenda, solicita que o menor lhe seja entregue. O curador interino considera que a petição não é de interesse do menor, pois no Instituto Disciplinar sua educação será completada, regenerando-se do vício de esmolar. O juiz solicita que sejam tomadas as declarações do menor e que ele seja submetido ao exame de idade. Inquirido, A.R. diz que está recolhido ao Instituto Disciplinar há dois anos e quatro meses, por ter sido apreendido pela política quando andava esmolando pelas ruas da Capital. Agora, aos 18 anos de idade, pensa diferente e deseja trabalhar para ganhar a vida honestamente. O tio, que está residindo em uma fazenda no interior, assina o termo de responsabilidade e o menor é posto em liberdade. O processo é arquivado.
Após um ano, A.R. comparece em juízo solicitando a retirada dos valores depositados em caderneta de poupança, pois pretende embarcar para a Estônia onde sua mãe reside. O pedido é deferido e os valores são entregues para A.R.
O caso de A.R. ilustra que muitas das demandas recebidas pelo judiciário não se referem a furtos, brigas ou delinquência. Nas ações judiciais motivadas por esse tipo de situação, os autos de inquérito se iniciam por iniciativa da polícia e não da família ou de algum adulto e o menor é encaminhado para a Vara de Menores após a realização de um inquérito policial. São realizadas sindicâncias para conhecer a situação da família e a idoneidade dos pais. Se for verificado o abandono ou a existência de ‘formas de perversão moral’, o menor é internado no Instituto Disciplinar por ordem do juiz e, se a família tiver os meios de educar e zelar pela moral do menor, ele é devolvido para os pais.
O processo de M.C. é um exemplo de auto de inquérito. Ele se inicia com a autuação da polícia e com uma carta da Delegacia de Furtos que informa que M.C. furtou móveis e vasos de jardim. Na autuação, a vítima diz que roubaram alguns móveis e vasos da varanda de sua casa. Um dos empregados da casa perseguiu o menor, mas não conseguiu capturá-lo. Houve, depois, uma segunda tentativa de furto. O empregado da casa descobriu a residência do menor, onde ele foi visto pintando uma cadeira. Consta na autuação que o menor compareceu na delegacia e declarou ter 12 anos. Ele conta que roubou uma cadeira de ferro na Rua Angélica e, depois de pintá-la, a vendeu para um morador da Barra Funda. Confessa que também furtou dois vasos da mesma casa, os quais foram vendidos. Relata que foi ajudado em todos os furtos por seu primo, de 15 anos de idade, aluno da escola de aprendizes marinheiros. O delegado toma declarações de uma italiana que comprou o vaso do menor. Ela conta que o menino bateu em sua porta com a finalidade de oferecer o vaso e, sem saber que se tratava de objeto de furto, comprou-o. O mesmo ocorreu com o comprador da cadeira. Os objetos são entregues na delegacia devolvidos para o proprietário. O menor é apresentado ao juizado.
Os pais do menor M.C. são intimados pelo juiz. É realizada uma sindicância para averiguar os meios de vida dos pais do menor, sua idoneidade e se eles podem dar uma educação conveniente ao filho. A comissária verifica que M.C. trabalhava em um açougue, vivia com a mãe e seis irmãos em uma vila operária e que são muito pobres. Por tratar-se de um furto de pequenas peças e como o menor está trabalhando, o curador pede pelo arquivamento e o processo termina sem maiores consequências.
Outro exemplo de auto de inquérito se refere a uma briga entre húngaros e italianos. O inquérito da 8ª Delegacia de Polícia do Brás informa que A. foi ferido por um objeto perfurante, apresentando uma lesão que ocasionou hemorragia. No dia seguinte, após se recuperar do ferimento, A. declara que estava no bilhar da Rua Padre Adelino quando foi avisado que havia um conflito entre húngaros e italianos e que seu compadre D. estava envolvido. A. foi até o local do conflito, mas não percebeu nada anormal. Dirigiu-se, em seguida, à casa do seu compadre onde descobriu que houve uma discussão porque os húngaros passaram a mão na coxa de uma das irmãs de D. Os húngaros estavam embriagados e a discussão logo se encerrou. Ao retirar-se da casa de D., A. foi cercado e recebeu socos de três húngaros. A. acredita que foi esfaqueado por um húngaro chamado G.W.
Em seguida, os três húngaros S.P., G.W. e F.J., foram intimados pelo delegado e prestaram declarações. O primeiro a dar depoimento foi S.P. Ele possuía 17 anos de idade, era solteiro, tinha baixa instrução e era operário. Alega que estava com os amigos quando foram ofendidos pelos italianos e que fugiu no começo da confusão. Ele diz que não se lembrava se G.W. portava uma faca e confirmava estar embriagado. G.W. também depõe e declara que tem 18 anos de idade, é solteiro e é lavrador. Declara que estava na casa de S.P. com outro amigo e que todos estavam embriagados. Ao lado da casa do amigo, existia um botequim e alguns italianos saíram desse botequim e passaram a ofendê-los. Ele teria levado vários socos e perdido o chapéu. F.J. declara que possui 16 anos de idade, é solteiro, tem baixa instrução e é pintor. Afirma que saiu da casa do seu patrício às 19 horas, em companhia de dois amigos. Foi agredido pelos italianos com um tapa na cabeça. Caiu no chão e, depois, fugiu. Alega não conhecer nenhum dos italianos. Não sabe se a acusação contra G.W. é verdadeira, pois fugiu e estava embriagado. Também não se lembrava se G.W. portava alguma arma.
Uma das testemunhas afirmou que viu G.W. passar com uma faca nas mãos e, depois, soube que ele feriu A. Outra testemunha, que aparentemente era casado em segundas núpcias com a mãe de D., declarou que estava em casa quando ouviu uma discussão. Ao chegar no quintal da vila, viu D. discutindo com os húngaros e entrou na questão para acalmar os ânimos e acompanhar D. para dentro da casa. Conversou com D., dizendo que, com os húngaros embriagados, não valia a pena brigar. Depois de algum tempo, soube que A. tinha sido ferido ao sair da casa de D. Não sabe informar por que a briga começou, mas acredita que os húngaros, estando embriagados, ‘mexeram’ com a irmã de D.
Após ouvir os acusados, D. é chamado para depor na delegacia. Possuía 20 anos de idade, era casado, sabia ler e escrever e trabalhava no comércio. Declarou que estava no seu local de trabalho, quando ouviu sua irmã discutir com três húngaros no quintal. Saiu do armazém e foi ver o que estava acontecendo. Ficou sabendo, por sua irmã, que os húngaros lhe faltaram com o respeito e começou uma discussão. Familiares apartaram a briga e o convenceram a entrar em casa para se acalmar. Passado algum tempo, A. apareceu em sua casa para saber do acontecido. Ao sair da sua casa, A. foi atacado pelas costas, caiu ferido e os húngaros fugiram D. e outros homens saíram em perseguição dos agressores e encontraram G.W. escondido em um quintal da vila, portando uma bainha de faca. Os autos foram encaminhados para o juizado pela polícia. O juizado faz várias tentativas de encontrar os húngaros, mas não tem êxito e o processo é arquivado.
Em outro processo envolvendo conflitos e brigas, L.G. sofreu ferimentos leves ocasionados por objeto cortante e foi encaminhada para a delegacia. Trata-se, aqui, de uma menina com 12 anos de idade, espanhola, empregada doméstica, vivendo na Rua Santa Rosa. A acusada de praticar a agressão é A., uma menina com oito anos de idade. A vítima declara que assistia uma briga entre A. e outra menina, quando a primeira partiu para cima dela e a feriu com uma faca de mesa. Os autos são encaminhados para o juizado. O juiz solicita que se indicie A. e que seus pais sejam intimados para comparecer em juízo. A mãe de A. presta declarações e informa que o seu marido se encontra na Europa. Informa ser doméstica, filha de italianos, analfabeta e ter 38 anos de idade. Alega que o ocorrido foi ocasional, pois A. estava cortando pão com uma faca, quando a outra menina tentou retirar uma vassoura pertencente a ela, sem pedir licença. Informa também que se mudou daquela casa. É expedido um mandato para que a mãe assine um termo de responsabilidade sobre a filha, mas ela não comparece no dia determinado e o processo é arquivado. Dois anos depois do ocorrido, a mãe solicita a certidão de nascimento da filha que havia ficado anexada ao processo. O documento é entregue a ela e não há outras consequências.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Respaldadas pelos paradigmas científicos da época, as elites políticas do período elaboraram um modelo de assistência orientado para a moralização e para o controle social da infância. Apesar disso, observa-se que a população tinha conhecimento das leis de menores e acionavam o imaginário sobre a infância presente nos discursos oficiais para solucionar suas demandas.
A maior parte da discussão jurídica volta-se para o problema do abandono de menores. Os altos níveis de pobreza e de exclusão atingiam a infância em cheio e, diferentemente do esperado pelos legisladores, o judiciário era acionado para resolver as dificuldades advindas da indigência. Nota-se que não havia um assistente social na equipe da Vara de Menores e uma enorme demanda social não solucionada que chega até o judiciário. A primeira escola de assistência social surgiria, em São Paulo, somente no ano de 1936 (Betetto, 2010). No entanto, a legislação voltava-se para a análise individualizada do caráter dos menores com a finalidade de prevenir perversões morais e a criminalidade. Esta contradição não encontra saída nos processos, que muitas vezes são conduzidos de forma improvisada e sem muita objetividade.
Os autos de processos revelam uma multiplicidade de detalhes sobre o modo de vida em São Paulo, no primeiro terço do século XX. Vestuário, condições de moradia, postos de trabalho disponíveis são alguns dos elementos encontrados na leitura dos processos. Brigas entre jovens de nacionalidades distintas, como descrito no processo dos húngaros S.P., G.W. e F.J., indicia a ocupação dos espaços, os costumes e a convivência entre os imigrantes na cidade. Os inquéritos policiais retratavam furtos de pouco valor, como peças de mobiliário e outros pequenos objetos, os quais eram vendidos em bairros adjacentes ocupados por imigrantes. A descrição desses episódios possibilita imaginar como a cidade foi se estruturando frente à chegada de contingentes de operários de diversas origens.
A alta incidência das doenças infecciosas e suas consequências para as famílias, assim como o retorno dos imigrantes aos países de origem, marcavam a situação de vida das crianças. Apesar das estreitas alternativas que as crianças e os adolescentes dispunham, entre as linhas dos processos judiciais, observa-se que novos caminhos vão sendo traçados com a matéria da esperança e da coragem de cada uma dessas pessoas.
Nosso esforço para conhecer como famílias imigrantes interagiram com o poder judiciário para solucionar seus problemas no levou a ponderar sobre essas relações dispares de poder e sobre a tutela constante da infância e de grupos minoritários e vulnerabilizados pelo sistema. Essa é uma condição constante de pessoas migrantes, fragilizadas por parecerem não pertencerem a lugar algum aos olhos de quem as vê com preconceito e as estigmatizam por meio de imaginários que não condizem com a realidade. A contribuição que a Psicologia Política pode aportar aos processos migratórios é imensa, mas ainda há muito para se estudar quando o tema se correlaciona com a história dos processos migratórios e a infância, como é o caso desse manuscrito.
A situação de vulnerabilidade apresentada nos registros apenas reforça a necessidade novos estudos que nos permitam entender como essas relações de poder aprofundam a alienação, falta de poder e desesperança aprendida (Macassi, 1988). De momento, assinalamos a urgência de estudos interdisciplinares que permitam aprendermos mais com a história das relações de poder que conformam os modos de socialização na atualidade, sobretudo em tempos de aprofundamento de perspectivas conservadoras de ser e estar no mundo e que, no mais das vezes atenta aos direitos humanos de pessoas vulneráveis (González-Suarez, 2012; Silva, 2020).