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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.23 no.58 São Paulo  2023  Epub 08-Jul-2024

 

Artigo Original

ESCOLARIZAÇÃO DE PIAUIENSES CEGOS: MEMÓRIAS SOCIAIS E LUTAS POR DIREITOS EDUCACIONAIS

Ensenãnza de ciegos en Piauí: memorias sociales y la lucha por los derechos educativos

Schooling of blind people in Piauí: social memories and struggles for educational rights

GEOVANE DE SOUSA OLIVEIRA FILHO1  , Concepção, Coleta de dados, Análise de dados, Elaboração do manuscrito, Revisões críticas de conteúdo intelectual importante, Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/0000-0001-5938-6487

FAUSTON NEGREIROS2  , Concepção, Coleta de dados, Análise de dados, Elaboração do manuscrito, Revisões críticas de conteúdo intelectual importante, Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/0000-0003-1116-6391

1https://orcid.org/0000-0001-5938-6487 Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) 2020-2021. Bolsista de Iniciação Científica pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) no segundo semestre do ano de 2018 e primeiro semestre do ano de 2019. E-mail: geovanefilho7@gmail.com

2https://orcid.org/0000-0003-1116-6391 Psicólogo, Mestre e Doutor em Educação. Pós-Doutor em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano pela USP. Professor Associado II da Universidade de Brasília/UNB. E-mail: fnegreiros@unb.br


RESUMO

A pesquisa teve como objetivo analisar a busca por direitos das pessoas cegas no sistema formal de ensino piauiense, bem como conhecer a partir das suas trajetórias escolares, os elementos influenciadores para a inserção no mundo do trabalho. Foi realizada através da metodologia da história oral, por meio de entrevistas sobre trajetórias de escolarização de 10 pessoas cegas que vivenciaram a Educação básica no estado do Piauí, no Brasil. As entrevistas foram analisadas sob a perspectiva crítica da Psicologia Escolar e por meio da Análise de Conteúdo. Os resultados revelam que houve necessidade de luta pela garantia de direitos, desde a negação de matrículas, até o processo de ensino-aprendizagem com práticas discriminatórias e excludentes. Tais dificuldades influenciaram seus projetos de vida após a educação básica. Verificou-se a necessidade do fortalecimento da identidade política dessas pessoas, bem como maior comunicação entre suas demandas educacionais, com o poder legislativo, e políticas públicas de inclusão escolar.

Palavras-chave: Pessoas cegas; Escolarização; Trajetórias de vida; Educação inclusiva; História oral

ABSTRACT

The research aimed to analyze the search for rights of blind people in the formal education system in Piauí, as well as to understand, based on their school trajectories, the influencing elements for their insertion in the world of work. It was carried out using oral history methodology, through interviews about the schooling trajectories of 10 blind people who experienced Basic Education in the state of Piauí, Brazil. The interviews were analyzed from the critical perspective of School Psychology and through Content Analysis. The results reveal that there was a need to fight in order to guarantee rights, from the denial of enrollment, to the teaching-learning process with discriminatory and exclusionary practices. Such difficulties influenced their life plans after Basic Education. There was a need to strengthen the political identity of these people, as well as greater communication between their educational demands with legislative power and public policies for school inclusion.

Keywords Blind people; Schooling; Life trajectories; Inclusive education; Oral history

RESUMEN

La investigación tuvo como objetivo analizar la búsqueda de derechos de las personas ciegas en el sistema educativo formal de Piauí, así como comprender, a partir de sus trayectorias escolares, los elementos influyentes para su inserción en el mundo del trabajo. Se realizó mediante la metodología de la historia oral, a través de entrevistas sobre las trayectorias escolares de 10 personas ciegas que vivieron la Educación Básica en el estado de Piauí, Brasil. Las entrevistas fueron analizadas desde la perspectiva crítica de la Psicología Escolar y mediante el Análisis de Contenido. Los resultados revelan que hubo necesidad de luchar para garantizar derechos, desde la negación de matrícula, hasta el proceso de enseñanza-aprendizaje con prácticas discriminatorias y excluyentes. Estas dificultades influyeron en sus planes de vida después de la Educación Básica. Era necesario fortalecer la identidad política de estas personas, así como una mayor comunicación entre sus demandas educativas con el poder legislativo y las políticas públicas de inclusión escolar.

Palabras clave Ciegos; Enseñanza; Trayectorias de vida; Educación inclusiva; Historia oral

INTRODUÇÃO

O movimento de luta pela educação inclusiva está em sintonia com a história de luta pela cidadania e consolidação dos direitos humanos, visto que a inclusão escolar partiu da mobilização histórica de luta das pessoas com deficiência, familiares, educadoras/es, e ativistas unidas pela causa do direito à educação de qualidade para todos, independentemente de suas condições. Ao refletir sobre a inclusão escolar de pessoas com deficiência, emergem-se discussões sobre estratégias de luta e mobilização política para viabilizar esse direito (Silva, 2021).

As Políticas de Inclusão no contexto da educação, foram marcadas por esse movimento de lutas e mobilização da sociedade civil com o Estado, pressionando organismos internacionais, sobretudo por volta dos anos 1990, com a finalidade a assegurar a todas as pessoas excluídas da educação, o direito à escolarização (Silveira, Silva, & Mafra, 2019).

Foram muitos anos de luta, partindo de um período de exclusão, passando pela segregação, pela integração, até chegar na perspectiva da inclusão. Entretanto, a inclusão ainda não está consolidada de fato, visto que somente pela legalidade não é garantida a aplicação prática do que determinam as normas. Embora tenham ocorrido avanço nas políticas brasileiras, há muito a ser superado, sobretudo na sua efetivação (Silva, 2021).

A educação regular comum ainda não é, na prática, verdadeiramente inclusiva. Boa parte das escolas brasileiras não estão preparadas para receber alunos com deficiência. A educação só poderá ser inclusiva de fato, quando as escolas estiverem preparadas para receber os alunos com deficiência sob a perspectiva da equidade, oferecendo um ensino que garanta a permanência de todos os alunos com qualidade (Silveira, Silva, & Mafra, 2019).

A educação inclusiva tem como intuito a disposição de condições materiais, instrumentais e funcionários qualificados e sensíveis para a recepção dos alunos que possuam demandas específicas, favorecendo assim uma equidade no acesso à educação por parte de todas as pessoas independente de suas limitações físicas, sensoriais ou psíquicas. Busca, portanto, possibilitar uma educação que favoreça o respeito às diferenças, crendo no potencial de aprendizagem apesar de dificuldades que possam surgir no processo. Em suma, é necessária uma constante reflexão pedagógica a fim de que não ocorram mecanismos de exclusão ao longo do processo de escolarização (Silva, Miranda, Friede, Dusek, & Avelar, 2018).

Visto a relevância e consequente necessidade de intervenção nesse contexto, a inclusão escolar tornou-se uma importante área de atuação profissional da Psicologia Escolar e Educacional, tanto no que diz respeito a demandas originadas pela luta por esse direito no ambiente, quanto pelos projetos que possuam como foco tal questão (Fonseca, Freitas, & Negreiros, 2018). O profissional da área em uma perspectiva crítica de atuação, deve adotar em sua práxis um posicionamento ético-político de indignação frente a situações de humilhação e de desrespeito aos direitos humanos no ambiente da escolarização (Souza, 2009).

Nesse sentido, a pedagogia histórico-crítica entende a escola, como espaço de luta da classe trabalhadora (Santos, 2018). Segundo essa perspectiva teórica, a educação necessita ter um compromisso de proporcionar aos educandos uma tomada de consciência com fim a uma transformação social (Saviani, 2008). A educação é uma forma de realizar a cidadania, favorecendo por meio dela a luta contra desigualdades e exclusão social, tendo além da preparação para o processo produtivo como um dos objetivos, o favorecimento de uma formação para o exercício de uma cidadania participativa, crítica e ética por parte do educando (Libâneo, Oliveira, & Thoschi, 2012).

O sistema social vigente possui contradições no que diz respeito a promover a inclusão, tornando muitas das vezes o conceito de inclusão uma prática muito mais legalista do que politizada, ou seja, admite-se o aluno com deficiência muito mais para evitar a punição estatal, do que pela intenção inclusiva (Angelucci & Lins, 2007; Macedo, Aimi, Tada, & Souza, 2014).

Esta realidade, é o que Bader Sawaia (2011) define como Inclusão Perversa, que é utilizado para designar essa característica da sociedade que utiliza da inclusão como mera aparência. No caso da escola, admitindo os alunos com deficiência na escola apenas para constar nas estatísticas das matrículas, sem dar as devidas condições necessárias para sua permanência e aproveitamento escolar com qualidade.

A compreensão da Psicologia Escolar Crítica sobre as pessoas com deficiência tem sua importância nesse contexto, sobretudo ao considerar tais indivíduos enquanto sujeitos sociais e históricos, em meio ao modelo capitalista de sociedade, que tem como característica ideológica a manutenção do status quo e a despolitização dos indivíduos. O estado nessa perspectiva neoliberal, age tornando-se um mero intervencionista, longe de atingir as bases da desigualdade, que são de raízes social e histórica. Limitam-se a apenas diminuir os impactos de tais problemáticas, sem considerar suas raízes para promover ações de emancipação dos sujeitos marginalizados, promovendo assim uma Inclusão Marginal ou Inclusão Precária (Patto, 2009).

A Psicologia Escolar e Educacional por muitos anos atendeu a lógica dominante de ajustamento de sujeitos, em uma compreensão individualizante, psicologizante e reducionista das queixas escolares. Entretanto, após uma autoavaliação crítica, práticas emergentes foram surgindo como resposta a atender as demandas em uma compreensão mais ampla e abrangente. Passa-se a partir de então, a considerar aspectos macro, tais como os aspectos sociais, históricos e econômicos nas queixas escolares. Amplia-se assim consideravelmente o campo de possibilidades de atuação profissional de psicólogos escolares e educacionais nesses espaços (Martinez, 2009).

Ganha-se cada vez mais destaque ao papel do psicólogo escolar e educacional como articulador político, no processo de criação e promoção de políticas públicas em Educação (Negreiros, Oliveira Filho, & Fonseca, 2020). Em se tratando de práticas emergentes em Psicologia Escolar e Educacional, Collares-da-Rocha & Oliveira (2020), enfatizam que o profissional de Psicologia Escolar e Educacional deve na sua atuação política favorecer ativamente a efetivação das políticas públicas de educação, com ações que vão para além do espaço escolar, promovendo ações que propiciem a defesa dos direitos humanos e a promoção da cidadania, sobretudo àqueles que mais precisam.

A escola é, pois, um local favorável para a promoção e construção da cidadania, e nesse contexto, o psicólogo escolar e educacional em uma perspectiva crítica de atuação, torna-se um importante agente de transformação social e de favorecimento da emancipação dos sujeitos, promovendo a defesa da efetivação da garantia de seus direitos, sobretudo os direitos educacionais (Patto, 1984, 1997).

A promulgação da Constituição Federal no ano de 1988, passou a ser um marco na luta pela garantia de direitos civis no Brasil. Nessa Carta Magna, no artigo 205, a educação é garantida enquanto direito dos cidadãos e dever do Estado, bem como a preparação para o mundo do trabalho, cabendo ao estado garantir políticas públicas necessárias para atingir tal objetivo. Nos artigos 206 e 208, é enaltecida a necessidade de garantir a igualdade de condições para que possa haver a permanência e o aproveitamento escolar com qualidade de todos os alunos, independentemente de suas condições físicas ou intelectuais, bem como o atendimento educacional especial às pessoas com deficiência para garantir tal objetivo (Constituição Federal, 1988).

Após a Constituição Federal de 1988, houveram outros marcos importantes no que diz respeito à deficiência no Brasil do ponto de vista legal. Destaca-se a emenda constitucional que fora incrementada a partir da Convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU): o Decreto Legislativo nº 186, de 09 de julho de 2008 que fora promulgado como Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Outro marco legislativo significativo no país nesse campo foi a Lei Brasileira de Inclusão: Lei nº 13.146/2015, de 6 de julho de 2015, que dentre as conquistas, instituiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Levando em consideração, pois, o direito à educação, e visto que a escola tem esse papel propedêutico, a fim de preparar os estudantes para além da escolaridade regular, ao se tratar de pessoas cegas que vivenciaram a escolarização no Piauí, emergem as seguintes questões: Quais são os aspectos influenciadores da escola para a vida social, após a Educação básica destes alunos? Quais as necessidades de luta que as pessoas cegas têm de enfrentar ao longo da escolarização?

Partindo dessas indagações, o presente estudo teve como finalidade analisar a relação existente entre a busca por direitos sociais pelas pessoas cegas e ampliação progressiva de inserção desse público no sistema formal de ensino piauiense, bem como conhecer a partir das trajetórias escolares desse público, os diferentes elementos contribuintes e aspectos influenciadores para a inserção do mundo do trabalho. A coleta de dados foi realizada por meio da metodologia da História Oral, e os dados analisados pela Psicologia Escolar Crítica, por meio das perspectivas calcadas no materialismo histórico-dialético que lhe embasam, como a Psicologia Histórico-Cultural e a Pedagogia Histórico-Crítica.

METODOLOGIA

O presente estudo foi realizado por meio da metodologia da história oral. Trata-se de um método multidisciplinar, que interaciona disciplinas das ciências humanas, tais como Psicologia, História e Ciência Política. É realizada por meio de sessões de entrevistas com pessoas que participaram ou vivenciaram, eventos e conjunturas específicos. Por meio das narrativas das trajetórias de vida dos participantes, é possível conhecer aspectos do passado de uma forma ampla, pois é contada a partir da percepção das próprias pessoas que vivenciaram os acontecimentos (Alberti, 2005; Ferreira & Amado, 2006).

Na História Oral, a memória social faz parte do processo de reelaborar as informações de acontecimentos já vividos por sujeitos e/ou grupos que vivenciaram conjunturas específicas (Bosi, 1993). De acordo com Paulo Silva (2010), a pesquisa que envolve as memórias sociais “permite que outros indivíduos e grupos tenham destaque, atualiza lutas reprimidas e valoriza culturas e identidades vistas como ‘inferiores’ ou ‘primitivas’, daí a sua importância para a cidadania” (p. 329).

É, pois, uma metodologia que consegue dar voz aos participantes pertencentes a populações historicamente excluídas, reconhecendo seus lugares de fala e proporcionando uma reflexão do passado que pode subsidiar ações concretas. Massoni (2017) chega a afirmar que o uso da História Oral no estudo das memórias sociais de grupos historicamente excluídos, vai além de um método, tornando-se um compromisso social do pesquisador com as lutas do público que pesquisou.

Tal metodologia é amplamente utilizada em estudos da Psicologia, com destaque aos trabalhos da psicóloga Eclea Bosi, considerada uma das maiores expoentes da metodologia no país. Barbosa & Souza (2009) evidenciam a importância de tal metodologia para a pesquisa contemporânea em Psicologia, apontando-a como método confiável e seguro, que possibilita um aprofundamento a partir do relato das próprias pessoas que vivenciaram os fenômenos investigados.

Partindo desses pressupostos, foram selecionadas 10 pessoas cegas que vivenciaram e escolarização no estado do Piauí, sendo seis do sexo feminino e quatro do sexo masculino, caracterizados com nomes fictícios no estudo, com a finalidade de preservar o anonimato. Para a narração dos depoimentos, foi utilizado um questionário sociodemográfico com a finalidade de conhecer aspectos específicos dos participantes, e posteriormente realizadas duas sessões de entrevistas (Alberti, 2005), apoiadas nos seguintes eixos temáticos: eixo I – vida escolar e conquista de direitos escolares; e eixo II – família, atividades extracurriculares e aspectos influenciadores para o mundo do trabalho.

Devido ao contexto pandêmico da Covid-19, as entrevistas foram realizadas virtualmente por meio do aplicativo Google Meet. As entrevistas virtuais foram realizadas com todos os cuidados necessários para garantir os cuidados éticos e o rigor metodológico da pesquisa (Santhiago & Magalhães, 2020). As entrevistas foram devidamente gravadas para posterior transcrição e análise dos depoimentos, que foi realizada por meio da Análise de Conteúdo, sob os pressupostos de Bardin (1977), e analisadas a partir da Psicologia Escolar Crítica, em seus fundamentos da Psicologia Histórico-Cultural e Pedagogia Histórico-Crítica.

A pesquisa foi devidamente registrada e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) com seres humanos, conforme a Resolução nº 510/16 do Conselho Nacional de Saúde, sob o número de CAAE nº 31152720.2.0000.5214, e o número do parecer: nº4.021.118. Sob ciência do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), todos os participantes desta pesquisa aceitaram participar, com o aceite devidamente registrado e contemplando todos os aspectos necessários de acessibilidade para pessoas cegas.

Todos os participantes da pesquisa foram pessoas cegas que vivenciaram integralmente a Educação básica no estado do Piauí. Assim, a fim de dar subsídios para conhecer melhor o perfil dos participantes, serão caracterizados na seção a seguir.

Participante A: Adriana, teresinense, 26 anos de idade, atualmente está cursando bacharelado em Serviço Social. Cega desde os 10 anos, como sequela de uma meningite. A sua escolarização teve início aos 03 anos de idade e encerrou aos 18 anos, entre os anos de 1998 a 2012 na cidade de Teresina, em escolas públicas.

Participante B: Bárbara, teresinense de 27 anos de idade, é licenciada em Biologia. Perdeu a visão aos 09 anos de idade devido agravamento de glaucoma. Natural do município de Teresina, cidade onde cresceu e estudou toda a Educação básica, ao qual iniciou com 06 anos de idade, e concluiu aos 21, entre 1999 a 2014. Seu processo de escolarização ocorreu em escolas públicas e privadas.

Participante C: Celeste é teresinense, e possui 18 anos de idade. Celeste é cega congênita, e até o ensino fundamental II sempre estudou em escola pública. Atualmente está cursando o 2º ano do Ensino Médio em escola privada. Iniciou os estudos aos 03 anos de idade, em 1997.

Participante D: Dalva é teresinense, bacharel em Serviço Social, possui 26 anos, e é cega congênita. Começou a estudar aos 07 anos de idade, no ano de 2005, e concluiu no ano de 2018 aos 23 anos, sempre estudou em escola pública.

Participante E: Edite é bacharel em Serviço Social. Natural do interior do estado do Maranhão. Aos 21 anos de idade, mudou-se para a capital do Piauí com a finalidade de estudar. Hoje Edite possui 50 anos de idade, estudou em escola pública até o ensino fundamental II, e no ensino médio foi bolsista de escola privada. Em Teresina, cidade que reside até hoje, ela iniciou sua Educação básica no ano de 1990, vindo a concluir no ano de 1998, com 29 anos de idade.

Participante F: Fernando é natural do município de União, tem 20 anos de idade, e é cego congênito. Sempre estudou em escola pública. Iniciou os estudos em 2005, com 05 anos de idade, e concluiu o ensino médio no ano de 2019, aos 19 anos, na cidade de Teresina.

Participante G: Gorete é cega congênita, natural da cidade de Paulistana do Piauí, tem 36 anos, e atualmente reside em Teresina. Gorete sempre estudou em escola pública até o 6º ano do Ensino Fundamental. Na sua cidade natal foi negada matrícula em todas as escolas. Iniciou sua Educação básica somente aos 13 anos de idade, no ano de 1998, com apoio de freiras que residiam na sua cidade que conseguiram vaga para ela em uma escola da capital. Ela concluiu o Ensino Médio aos 22 anos de idade, em 2007.

Participante H: Heitor tem 40 anos de idade, e é natural da cidade de Pedro II. Heitor nasceu com visão monocular, e entre os 15 anos até os 20 anos foi perdendo a visão do seu olho até ficar completamente cego. Ele iniciou a Educação básica aos 06 anos de idade, no ano de 1996 e encerrou aos 28 anos, em 2018. Em 1996 se afastou da escolarização após ficar cego, e só retornou em 2014 em Teresina. Toda sua escolarização ocorreu em escola pública.

Participante I: Irineu é licenciando em Pedagogia, tem 23 anos, e é cego congênito. Ele é teresinense, e iniciou sua escolarização aos 04 anos de idade, no ano de 2002 e encerrou aos 18, no ano de 2015. Estudou em escola pública até 6º ano do Ensino Fundamental.

Participante J: José tem 40 anos, e é natural da cidade de Caraúbas do Piauí. José ficou cego aos 09 anos de idade, em decorrência da queda de uma árvore. Atualmente ele reside em Teresina, cidade que vive desde os 17 anos, onde reiniciou o ensino formal aos 17 anos de idade em 1997. Na sua cidade natal, após ficar cego, não conseguiu matrícula nas escolas de sua cidade, o que o fez ficar 10 anos afastado da sala de aula. O que o motivou a ir morar em Teresina em 1997, foi buscar concluir sua Educação básica, o que ocorreu em 2006, aos seus 26 anos de idade, quando concluiu seu ensino médio.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Para uma melhor contextualização sobre os dados, estes foram apresentados em duas categorias de análise: Luta e conquista por direitos escolares, e a Influência e preparação educacional para a vida social após a Educação Básica.

Tais categorias de análise emergiram após identificar nos depoimentos dos participantes a necessidade de luta por direitos educacionais como algo em comum em seus processos de escolarização. Além disso, revelou também em comum, o papel da escola para a vida social após a Educação Básica, enquanto um local de preparação para o exercício da cidadania e transformação social.

LUTA E CONQUISTA POR DIREITOS ESCOLARES: DA MATRÍCULA AO PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM

Ainda que no Brasil o direito a escolarização seja universal, pessoas com deficiência ainda encontram barreiras e dificuldades para ingressar e manterem-se com qualidade no sistema de ensino regular (Borges, Silva, & Carvalho, 2018). A inserção no sistema de ensino regular do país, embora garantida enquanto direito, ainda não representa a qualidade da incorporação deste público no sistema de ensino básico (Amorim, Amorim Jr., Amorim, & Anjos, 2021). Nos depoimentos dos participantes é possível identificar dificuldades até mesmo com a matrícula, como explicitado a seguir.

Quando eu ia para escolas que eu não era aceita, eu não ia mais para aquela escola, eu procurava outra! Porque eu sempre aprendi que quando você não é aceita em um lugar, você tem o direito de brigar! Você tem duas escolhas, ou brigar para ficar lá, ou procurar outro lugar que você realmente vê que as pessoas são abertas a pelo menos procurar aprender com você. Então quando eu não era aceita em uma escola, eu nem procurava denunciar não! Eu já ia para outra, para ter o contato com pessoas, mais ou menos para me aceitar, entendeu? (Gorete)

Saviani (2008) compreende a escola enquanto uma reprodutora da sociedade, ao qual é possível constatar, ao depararmo-nos com o fato de viverem em uma sociedade hegemonicamente adaptada a pessoas videntes, o que promove obstáculos e dificuldades para pessoas cegas acessarem seus direitos básicos, o que é enaltecido nas lembranças da escolarização dos participantes do estudo, desde a matrícula até a inserção no processo de ensino-aprendizagem.

Esta desvantagem é manifestada na escola desde a forma que as pessoas cegas são tratadas ao pedir a inserção na instituição, até a didática com que vivenciam a sua escolarização. Nos depoimentos dos participantes é possível identificar comportamentos discriminatórios frente ao acesso dessas pessoas ao ambiente escolar.

No depoimento de José, é possível identificar sua consciência dos direitos à escolarização, o que foi importante para que pudesse reivindicar e conquistar sua matrícula na escola. Diferente por exemplo de Gorete, que frente à exclusão, buscava outras escolas para a matrícula.

Em 2001 eu fui me matricular em uma escola, e a diretora chegou a dizer que não podia me matricular porque não tinha aula para mim. Aí eu perguntei para ela: “Não tem não tem aula para mim por quê? Como assim? Não tem aula para mim como assim?”. Aí ela disse, “É porque você é cego, e aí a gente nunca teve aula para pessoa que não enxerga!”. Aí eu disse: “Nunca vai ter?”. Ela disse: “Olha, essa informação não posso lhe dar!”. “Vocês têm sim a oportunidade de ter aluno cego!”. “É uma obrigação, a LDB ela já abre essa iniciativa né, então vocês têm sim que me matricular, e até eu me responsabilizo por isso! Se não der certo eu saio, mas o certo é que eu tenho sim direito de você me matricular!”. Aí ela disse “Só fazer o seguinte, eu vou! Como você tá dizendo que se responsabiliza, eu vou lhe matricular sim, mas se você não der conta você vai sair do colégio!”. “Sem problema, saio sim! Mas nem vou precisar sair porque vai dar certo!”. E eu matriculei, e desenvolvi um trabalho muito bom na sala de aula nesse tempo. (José)

A Psicologia Histórico-Cultural entende que a pessoa cega tem as mesmas possibilidades de aprendizagem se comparadas à uma pessoa vidente, a diferença está apenas nas formas distintas de acesso ao mesmo conhecimento. O processo de ensino-aprendizagem das pessoas cegas acontece por meio dos sentidos remanescentes, com o uso de Sistema Braile e de materiais adaptados a depender de cada indivíduo. Entretanto, nem sempre esses direitos de acessibilidade são respeitados na íntegra, com a necessidade de Associações filantrópicas realizarem o que a escola deveria promover (Morais & Araújo, 2018; Vygotsky, 1997). Os profissionais da escola que trabalham com pessoas cegas precisam conhecer além das limitações, as potencialidades dessas pessoas. Além de conhecer as práticas pedagógicas específicas a tal população (Torres & Mendes, 2018).

Foi identificado por meio dos depoimentos o protagonismo da Associação de cegos do Piauí – ACEP, como uma importante instituição no apoio à escolarização deste público no sistema regular de ensino, bem como o apoio voluntário de colegas que se mobilizavam com a situação. No caso da ACEP, utilizavam recursos de audiodescrição, conversão dos textos para o Sistema Braile, recursos táteis, dentre outros meios de acessibilidade.

“Eu recebo do professor na aula [as atividades], e depois eu levo para a ACEP, onde transforma tudo em braile!” (Celeste).

Assistia muitas aulas gravadas! Muitos materiais meus, estudava muito por meio de gravação mesmo. ... E o sistema Braille em alto relevo os materiais era confeccionado com tinta, aquela como eu te falei na questão do barbante e cordão, era contornado para você poder entender o que era a figura geométrica e as coisas né. Então tinha de madeira o alfabeto também, para você poder entender! Até a dimensão do que era um prédio, como era uma maquete, globo terrestre... Tudo isso a gente tinha lá na Instituição [ACEP]. (Edite)

A Inclusão Escolar envolve a garantia de que todas as pessoas possam ter uma aprendizagem com qualidade na escola independente de suas condições. Há duas concepções que envolvem a Inclusão Escolar, a concepção da Educação Inclusiva e a concepção da Inclusão Total. A concepção da Educação Inclusiva defende que todas as pessoas tenham a garantia da escolarização em classes comuns, mas com a manutenção dos serviços de apoio complementares. Já na Inclusão Total, é defendido que todas as pessoas tenham sua escolarização apenas nas classes comuns, sem a necessidade de serviços de apoio (Mendes, 2006; Negreiros, 2021).

No caso dos participantes da pesquisa, é constatado que os serviços de apoio se fizeram condicionais no processo de escolarização de pessoas cegas no Estado, como exemplificados nos depoimentos de Celeste e Edite, que contam com os serviços de apoio para adaptação dos recursos escolares.

A adaptação para a gente, é muito difícil! É muito difícil uma escola ter adaptação! A própria escola do ensino regular, a gente acha alguns professores, alguns coordenadores que que querem ajudar, e vão aproveitar alguma situação da sala da AEE, que a sala de recursos que existem, que é para existir em todas as escolas. E essa adaptação a gente tem mais na associação dos cegos, que é no contraturno, que é onde vai passar o material para o Braille, que é onde os professores fazem algum material da matemática, da física, da química e por aí vai... (Heitor)

Bom... esse era o maior problema [adaptação de materiais escolares], porque não existia assim uma adaptação... Foi por isso que a nós tivemos nessa época que ir atrás dos nossos direitos! Mas funcionava assim, quando algum aluno da sala se disponibilizava para copiar para a gente as atividades, a gente tinha acesso a atividade que estava tendo ali na aula em tempo real! (Dalva)

A participante Celeste, por exemplo, recebia do professor na sala de aula regular, as atividades escritas a tinta, e depois levava para a Associação de cegos do Piauí – ACEP. Diferente por exemplo, da Dalva, que contava com a ajuda de uma colega de turma para copiar as atividades, para ter acesso. Dalva chega inclusive a afirmar que nunca houve adaptação dos materiais escolares por parte da própria escola. O participante Heitor chega a comentar sobre a sala de Atendimento Educacional Especializado – AEE, que deve existir em todas as escolas, mas que na prática acontecia esse acompanhamento especializado na ACEP, e não na escola em si.

A compreensão de que incluir o aluno na escola é meramente admitir sua matrícula, sem dar o devido acolhimento e condições necessárias para a efetivação de sua escolarização com qualidade, é uma compreensão que deve ser superada, visto que a inclusão se refere ao acolhimento das pessoas independentemente de suas condições, e deve acontecer no próprio ambiente escolar (Souza, Silva, França-Freitas, & Gatto, 2016). Além da exclusão em situações de matrícula e atividades dentro da sala de aula, foi revelada através das entrevistas, situações de exclusão também em atividades fora da sala de aula, como por exemplo: Educação Física, feiras de ciências, atividades culturais etc.

A gente ficava ali no cantinho esperando a aula acabar sabe? O que mais acontecia era isso mesmo. Falando assim de mim, com relação a Feira do Conhecimento, acho que eu participei de duas feiras do conhecimento, e a primeira só participei cantando uma música... acho que de Luiz Gonzaga! E a outra mesmo, só mesmo participando assistindo as palestras mesmo, mas participação de fato apresentar... Não! Nunca aconteceu não! Ah! Também teve uma vez que eu apresentei que eu li um pequeno texto também. Pronto! Foi só essas participações! ... Me sentia excluída, mas ao mesmo tempo aquela sensação de que eu poderia contribuir com alguma coisa de alguma forma, mas que por falta de profissionalismo por parte dos professores eu não estava participando de certas atividades. (Dalva)

Educação física eu nunca fiz na minha vida! Na escola eles não me colocavam não! Eu ficava lá só sentadinha esperando a aula acabar dos meninos... teve uma vez só que eu me lembre que lá nessa escola perto da ACEP, eles colocaram a gente para fazer educação física junto com os meninos bem pequenininhos, mas só foi uma vez, uma vez mesmo e eu nunca participei de nenhuma atividade de educação física. (Bárbara)

A partir dos depoimentos dos participantes, é possível perceber uma exclusão das atividades realizadas fora da sala de aula. Esse processo de exclusão era tão presente, que muitos deles se acostumaram com a ideia de não participar. Sawaia (2011) conceitua de Inclusão Perversa toda essa condição do sistema da sociedade capitalista, que utiliza da inserção de populações historicamente marginalizadas, como uma mera aparência, ou seja, inclui sem dar as devidas condições e o acolhimento necessário. A exclusão torna-se um processo naturalizado e desvela a fragilidade de sua efetivação nas relações sociais cotidianas do ambiente.

Os depoimentos revelaram essa realidade nas escolas piauienses, desde a realização de suas matrículas, até o processo de ensino-aprendizagem na sala de aula, o que necessitou de lutas por direitos escolares em muitas das situações. Corrobora com o que afirmam Borges, Silva e Carvalho (2018), que a efetivação da escolarização com qualidade para pessoas com deficiência na sociedade brasileira, é algo que na prática só é conquistada à custa de luta e conflitos sociais.

INFLUÊNCIA E PREPARAÇÃO EDUCACIONAL PARA A VIDA SOCIAL APÓS A EDUCAÇÃO BÁSICA

Nas trajetórias de vida dos participantes da pesquisa, foi possível constatar as situações de preconceito e violação de direitos no ambiente escolar, ao qual fez-se necessária a mobilização individual ou/e em grupo, para reivindicar a conquista de tais direitos.

No início foi bem complicado, porque eu não conhecia Associação dos Cegos, aí eu estava só! Ficava só como ouvinte nas escolas regulares mesmo! Aí no início, foi complicado! (Fernando)

Houve um momento que nós tivemos que correr atrás dos nossos direitos, porque já estava passando do limite! Nessa época, eu e outros alunos nos reunimos para ir atrás dos nossos direitos! Questão de tudo: de material, de mais acessibilidade por parte dos professores... aí tivemos que recorrer, porque já estava ficando uma situação bem desagradável! ... Não contamos com apoio de ninguém, somente eu e mais um grupo de amigos nos reunimos e fomos na fé (risos)! Não tinha nenhum grupo estudantil... Nada! (Dalva)

Frente às adversidades enfrentadas na escolarização, os participantes elencaram suas formas de enfrentamento, tais como a reivindicação da família na direção da escola, união entre colegas para reivindicação coletiva e apoio da Associação de cegos do estado do Piauí – ACEP, no contraturno.

Toda a dificuldade de alcance dos direitos básicos na escolarização gera nos indivíduos um incômodo que gera indignação suficiente a ponto de unir-se com outros indivíduos com objetivos em comum de luta por acesso a esses direitos. Esse fenômeno de politização e união em busca de objetivos em comum fortalece a luta individual, tornando a luta coletiva uma necessidade e fonte de conquistas (Tomizaki, Carvalho, & Silva, 2016).

No depoimento de Dalva, os alunos cegos se uniram em busca de reivindicar seus direitos, entretanto não contavam com uma organização para isso, o que poderia ter ajudado nessa questão. Já no depoimento de Fernando, é enaltecida a importância da ACEP, que como uma importante fonte de suporte educacional para as pessoas cegas piauienses ao longo do processo de Educação básica.

Um modelo de sociedade marcado hegemonicamente pela exclusão, apresenta suas características discriminatórias no ambiente escolar. O sistema da sociedade capitalista, tem o perfil ideológico de despolitizar as populações marginalizadas, negando seus direitos à cidadania e fazendo com que esperem do estado uma intervenção que na prática é apenas aparente e rasa, sem levar em consideração as raízes da problemática de ordem história e social (Patto, 2009).

Nos depoimentos dos participantes, demonstraram essas situações discriminatórias, em que muitas das vezes as famílias não sabiam como proceder frente ao desrespeito pelos direitos de escolarização de seus filhos, assim como os próprios alunos que buscavam se reunir para reivindicar, mas sem uma organização formal e subsídios. A escola assim, deixa de cumprir seu papel de emancipação dos sujeitos (Patto, 1984, 2008, 2009; Saviani, 2008).

Eu estava concluindo lá a alfabetização, e teve a colação de grau. E aí minha mãe não sabia que estava tendo os ensaios, e uma mãe de outra aluna falou para ela que estava tendo ensaios da colação de grau, Ela perguntou se eu ia participar, e a mãe disse que não estava sabendo: “Não, pois vai lá!”. Minha mãe foi, chegou lá, ela disse que queria que eu fizesse a colação de grau. E aí a professora disse que eu não ia fazer, e não tinha como eu fazer, e aí ela perguntou por quê: “É porque sua filha não enxerga direito, e aí vai ficar feio ela entre os outros meninos!”. “Como assim vai ficar feio? Fica feio o que? Você está com preconceito com a minha filha!”. E aí ela: “Não, mas ela não enxerga direito, não vai dar certo ela fazer a colação de grau junto com os outros!”. Enfim, eu sei que minha mãe brigou bastante lá, minha mãe não foi atrás de brigar em justiça essas coisas, mas brigou com ela mesmo na escola com a diretora, até que ela me colocou para participar da colação de grau. (Bárbara)

No depoimento de Bárbara é possível perceber a iniciativa da mãe em garantir que a filha pudesse ter o direito de participar da solenidade de formatura da alfabetização, um direito que seria negado caso não houvesse essa reivindicação. Vygotsky (1997) traz a compreensão que as pessoas cegas podem causar um estranhamento social, que é caracterizado por atitudes excludentes, como aconteceu nesse caso. A aluna cega não foi considerada uma aluna que poderia ter os mesmos direitos que as demais.

Pesquisas apontam que a luta por direitos dessa população perpassa a Educação Básica no estado, chegando inclusive ao Ensino Superior, desde o acesso que também passa por um processo excludente que desconsidera as necessidades específicas das pessoas cegas, bem como a falta de preparo de muitas instituições. Além disso, há adversidades no que diz respeito à disponibilidade de materiais adaptados e recursos tecnológicos, e da falta de acessibilidade do ambiente físico das instituições educacionais (Rodrigues, 2016; Selau & Damiani, 2016).

A compreensão preconceituosa de incapacidade e ineficácia das pessoas cegas no contexto escolar, chega a refletir em práticas discriminatórias na escolarização. Os depoimentos revelaram que o Ensino Superior se torna para essas pessoas uma esperança de serem agentes transformadores, a partir da realidade que vivenciaram, para proporcionar uma educação de qualidade e uma inclusão mais eficaz de pessoas com deficiência na sociedade que embora tenha assumido compromisso com a inclusão, ainda possui práticas excludentes no cotidiano, inclusive nos ambientes escolares.

Um destaque para a luta das pessoas com deficiência no Brasil, é a luta anticapacitista. Na compreensão capacitista, entende-se que as pessoas com deficiência possuem suas capacidades insuficientes ou reduzidas, sendo assim consideradas pessoas “menos capazes”. O movimento anticapacitista vem na contramão dessa compreensão preconceituosa e discriminatória (Marchesan & Carpenedo, 2021; Mello, 2016). No depoimento de Bárbara, por exemplo, percebe-se atitude capacistista ao ela ser privada de participar de uma solenidade de formatura ao qual todos os demais alunos participariam, simplesmente pelo fato de ela ser uma pessoa com deficiência.

A luta anticapacitista vem de encontro também às experiências dos demais participantes da pesquisa, como também no caso de Adriana que se envolveu nos movimentos sociais de pessoas com deficiência, que inclusive foi um fator que influenciou sua escolha profissional.

Como eu vinha da ACEP, eu sempre estive inserida nesses movimentos sociais de pessoas com deficiência. Participava dos eventos e tudo! Aí quando eu vi o curso de Serviço Social, foi o que mais me chamou a atenção, e agora eu vou me qualificar nessa área e continuar nessa área! (Adriana)

Percebe-se nos depoimentos citados, a relação direta da escolarização e das lutas enfrentadas ao longo do processo como fatores influenciadores da escolha profissional dos participantes. Vale destacar que a inserção no mundo do trabalho é um direito e uma forma de contribuir com uma transformação social da realidade (Angelucci & Oliveira, 2018). Nos depoimentos dos participantes desta pesquisa, é possível constatar a questão da influência da escolarização sobre seus projetos de vida pessoais, em especial dos projetos de vida relacionados à escolarização.

Diante das minhas experiências, dos meus conhecimentos, dos grupos sociais a qual estava inserido, das minhas dificuldades, das dificuldades de outras pessoas que eu vi enfrentar, das pessoas que eu procurei ajudar, das pessoas que me ajudaram, das dificuldades encontradas na sala de aula regular... Essa angústia, essa inquietação, tudo isso ela contribuiu para minha escolha profissional, para a carreira a qual eu almejo. Estou me formando em Pedagogia. Então, a minha escolha por Pedagogia tem muito disso! O resultado dessas experiências que eu tive, experiências negativas, mas positivas porque elas me levaram à tensão de querer mudar e transformar a educação, bem como a educação no que se deve a educação inclusiva. (Irineu)

Influenciou sim, pela questão da discriminação, porque eu não queria que os meus colegas passassem... e passavam né! Muitos deles passavam, às vezes eles confidenciavam para mim as mesmas situações de bullying, então eu dizia: “Não, eu quero estudar, quero me formar para ser uma assistente social, para lutar pela minha causa e pela minha casa que era a ACEP. Então eu pensava neles, eu pensava: “Eu vou poder viabilizar alguma coisa, fazer algum projeto de intervenção para que eles não sofram! Não passem o que eu passei!”. (Edite)

A escola nessa sociedade, deve ter o compromisso social de mediar a essas populações o conhecimento crítico, para que possam tornarem-se adultos críticos e capazes de transformar a realidade social (Saviani, 2008). Como explanado no extrato dos depoimentos, os participantes entendem essa sua inserção no mundo do trabalho a partir do engajamento de luta social, ao se deparar sobretudo na escolarização com o fenômeno da exclusão.

Assim como constataram Nascimento e Nascimento (2021), no contexto da região norte do Brasil, a centralidade das representações de pessoas cegas sobre seus projetos de vida está em ingressar no Ensino Superior, além de conquistar um emprego, o que torna a escolarização um passo fundamental para adquirir tais empreitadas, como ocorreu também no estado do Piauí.

Em um estudo feito no estado do Rio de Janeiro sobre trajetória escolar de pessoas cegas, por meio da metodologia da História Oral, Soares e Martinez (2019) também evidenciaram que há obstáculos e desafios a serem enfrentados na escolarização de pessoas com deficiência visual, e que falar sobre isso é importante para servir de exemplo e dar conhecimento sobre esta causa, estimulando também a luta por políticas públicas de inclusão e acessibilidade no ambiente escolar.

Nas memórias sociais dos participantes da pesquisa no contexto piauiense, evidenciou-se a influência direta da escolarização sobre os projetos de vida pessoais de participantes, em meio que suas trajetórias de escolarização – marcadas pela luta cotidiana pela educação, quer seja pela via de acesso direto ou indireto ao conhecimento historicamente produzido pela sociedade e sistematizado pela escola – serviram de norteador para a vida profissional, para seu engajamento social enquanto agentes transformadores da realidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo apontou que nas trajetórias de escolarização das pessoas cegas no estado do Piauí, houve a necessidade de luta pelos direitos à escolarização ao longo do processo educacional da Educação Básica. Tais dificuldades encontram-se desde o direito negado de realização de matrículas, quanto no processo de ensino-aprendizagem na sala de aula com práticas excludentes dos atores e atrizes sociais que compõem as instituições escolares.

Por meio do estudo, também emergiu a influência do processo de escolarização diante da preparação para a vida social posterior à Educação Básica. Tais lutas e dificuldades, serviram de motivação, inclusive de escolha profissional, para tornarem-se agentes transformadores da realidade social vigente, principalmente no que diz respeito aos direitos de inclusão social.

Com base nas análises dos resultados, verificou-se a necessidade de formação política das pessoas cegas do estado do Piauí, bem como de suas famílias, a respeito dos seus direitos ligados à escolarização e cidadania. Uma fonte de apoio que pode tornar a luta dessas pessoas coletiva é o engajamento e inserção em movimentos sociais que tenham suas causas na agenda política ou lema identitário.

Além disso, destaca-se a necessidade de um maior investimento coletivo de pessoas cegas do Piauí frente à sua identidade (de pessoa cega), para ampliação de conhecimentos e valorização das histórias de suas lutas nos territórios educacionais, a fim de produzir inspiração e auxílio para as presentes e futuras gerações de pessoas cegas. E, para isso, atuar enquanto cidadãos e cidadãs para desideologizar as compreensões limitadoras e incapacitistas presentes em sociedade, que reverberam em contextos educacionais e no mundo do trabalho.

Aponta-se também com a pesquisa, a necessidade de uma maior comunicação entre as demandas educacionais das pessoas cegas, o poder legislativo e as políticas públicas de inclusão escolar fomentadas no âmbito estadual e federal. Logo, a mobilização político-legislativa além de ser uma prática emergente da Psicologia Escolar e Educacional, também pode subsidiar pessoas cegas – enquanto cidadãs, e conhecedoras de seus direitos à educação – contribuindo com o poder legislativo na construção, avaliação e mediação de políticas públicas educacionais.

Por fim, quanto às futuras investigações, sugerem-se estudos voltados para as políticas públicas de educação inclusiva e sua efetivação no estado, a história e conhecimento de movimentos sociais de pessoas cegas no Piauí, e a intersecção entre direitos humanos e educação. De forma mais contínua, em estudos longitudinais, que possam acompanhar o cotidiano da vida escolar de estudantes, em sua busca por direito à educação e inclusão. Ademais, sugere-se estudos sobre o tema, com um número de participantes mais abrangente na região Nordeste, e com finalidade de conhecer melhor a luta e as necessidades das pessoas cegas na escolarização, bem como a influência dessa escolarização para as suas vidas posteriormente à experiência na educação básica.

Financiamento

Não houve financiamento.

Consentimento de uso de imagem

Não se aplica.

Aprovação, ética e consentimento

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Piauí, sob o número do parecer: 4.021.118.

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Recebido: 10 de Novembro de 2021; Revisado: 15 de Agosto de 2022; Aceito: 16 de Novembro de 2022

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