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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.23 no.58 São Paulo  2023  Epub 08-Jul-2024

 

Artigo Original

O “GABINETE DO ÓDIO” EM FOCO: GOVERNO BOLSONARO SOB UMA ÓTICA PSICOSSOCIAL

La “oficina del odio” en foco: el gobierno de bolsonaro desde una perspectiva psicosocial

The “hate office” in focus: bolsonaro government from a psychosocial perspective

ANTONIO EUZÉBIOS FILHO1  , Concepção, Coleta de dados, Análise de dados, Elaboração do manuscrito, Revisões críticas de conteúdo intelectual importante, Aprovação fnal do manuscrito
http://orcid.org/0000-0002-5276-3697

GABRIEL SIQUEIRA2  , Coleta de dados, Análise de dados, Elaboração do manuscrito, Aprovação fnal do manuscrito
http://orcid.org/0000-0003-4107-3276

1https://orcid.org/0000-0002-5276-3697 Mestrado (2007) e Doutorado (2010) pelo Programa de pós-graduação em Psicologia da PUC-Campinas. Professor assistente doutor do Instituto de Psicologia da USP e do Programa de pós-graduação em Psicologia Social - Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Social e do trabalho. E-mail: antonioeuzebios@usp.br

2https://orcid.org/0000-0003-4107-3276 Mestre em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo, atualmente é doutorando em Psicologia Social no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (2021 – 2025), Departamento de Psicologia Social e do Trabalho. E-mail: gabrielcs@usp.br


RESUMO

O “gabinete do ódio” ficou conhecido pela divulgação de notícias falsas, produzidas por assessores e apoiadores do governo Jair Bolsonaro, eleito presidente da república do Brasil em 2018. Procuramos demonstrar, sob uma ótica psicossocial, modalidades discursivas usadas pelo “gabinete do ódio” para construir a imagem dos inimigos eleitos pelo governo, a saber: aqueles considerados “comunistas”, defensores dos Direitos Humanos entre outros. Argumentamos que ataques aos adversários políticos do governo Bolsonaro têm duplo objetivo: valorizar a imagem do presidente e desqualificar a imagem dos opositores. A revisão narrativa de publicações de redes Bolsonaristas e veículos midiáticos de grande circulação indica que a desqualificação dos adversários, baseada em narrativas falsas, vem sendo pautada na propagação de medo e ódio contra os opositores, resultando em ações violentas contra os mesmos. Finalmente, apontamos tarefas psicossociais que podem auxiliar na superação da polarização e na decodificação das relações de poder referentes ao fenômeno em questão.

Palavras-chave: Inimigo Político; Polarização; Política; Psicologia Social; Redes Sociais

RESUMEN

La “oficina del odio” se hizo conocida por la difusión de noticias falsas, producidas por asesores y partidarios del gobierno de Jair Bolsonaro, electo presidente de la República de Brasil en 2018. Buscamos demostrar, desde una perspectiva psicosocial, las modalidades discursivas utilizadas por la “oficina del odio” para construir la imagen de los enemigos del gobierno, a saber: aquellos considerados “comunistas”, defensores de los derechos humanos, entre otros. Sostenemos que los ataques a los opositores políticos del gobierno de Bolsonaro tienen un doble objetivo: mejorar la imagen del presidente y descalificar la imagen de sus oponentes. La revisión narrativa de las publicaciones de redes y medio de los partidarios del Presidente indica que la descalificación de opositores, basada en narrativas falsas, se ha basado en la propagación del miedo y el odio contra los opositores, derivando en acciones violentas en su contra. Finalmente, señalamos tareas psicosociales que pueden ayudar a superar la polarización y decodificar las relaciones de poder relacionadas con el fenómeno en cuestión.

Palabras clave Enemigo Político; Polarización; Política; Psicosocial; Redes Sociales

ABSTRACT

The “hate office” became known for the dissemination of fake news, produced by advisors and supporters of Jair Bolsonaro’s government, elected president of the Republic of Brazil in 2018. We sought to demonstrate, from a psychosocial perspective, discursive modalities used by the “hate office” to build the image of enemies chosen by the government, namely: those considered “communists”, defenders of Human Rights, among others. We argue that attacks on political opponents of the Bolsonaro government have a double objective: to enhance the president’s image and to disqualify his opponents’ image. The narrative review of publications from the president’s supporters networks and mass media outlets indicates that the disqualification of opponents, based on false narratives, has been based on the propagation of fear and hatred against opponents, resulting in violent actions against them. Finally, we highlight psychosocial tasks that can help in overcoming polarization and decoding power relations related to the phenomenon in question.

Keywords Polarization; Political Enemy; Politics; Psychosocial; Social Media

INTRODUÇÃO

O “gabinete do ódio”, como vem sendo amplamente divulgado pela mídia, ficou conhecido pelos conteúdos produzidos por assessores e apoiadores do governo Jair Bolsonaro, eleito Presidente da República do Brasil em 2018. Trata-se de uma estrutura de comunicação complexa, tecida entre perfis falsos e verdadeiros nas redes sociais, que envolve a estrutura do Planalto, assessores especiais bem remunerados com o dinheiro público, militantes e apoiadores, além dos filhos do Presidente, atualmente parlamentares (Said, 2020; Salviano, Zanchetta, Ferreira, & Dutra, 2020). São vários os desdobramentos relacionados a esta rede de comunicação, como, por exemplo, o envolvimento de empresas de marketing digital e o uso fraudulento de nomes e CPF de idosos para registrar chips de telefone celular e garantir disparo de milhares de mensagens em favor de determinados políticos (Rodrigues & Mello, 2018), geralmente ligados à campanha Bolsonarista.

Ideologicamente, o grupo bolsonarista foi orientado em vida por Olavo de Carvalho (até seu falecimento em janeiro de 2022), um astrólogo, jornalista, escritor e autodenominado influenciador digital, que influenciava dos Estados Unidos a cúpula do governo federal, representada principalmente pelos filhos do Presidente (Oyama, 2020; Said, 2020).

A ‘Tese Olavista’ sustenta que aquilo que ele chamava de “comunismo” quer retomar o poder (ou em alguns países, como a Venezuela e China, quer se perpetuar no poder) não necessariamente por guerras e revoluções violentas, mas por uma hegemonia cultural – termo este que Olavo atribuía ao pensamento do marxista italiano Gramsci, que se tornou um dos principais alvos da desqualificação marxista pelos extremistas de direita no Brasil atual (Oyama, 2020; Weber, 2018).

Na visão do então ‘guru’ do ‘clã Bolsonaro’, o “comunismo” espalhou suas pautas econômicas e de costumes pelas escolas e universidades, pelas instituições sociais e culturais, internamente nos aparelhos do Estado (democrático de direito, por suposto) e ainda em organismos multilaterais, como a ONU (Oyama, 2020). Todos esses personagens e outros que constroem uma narrativa em torno dos direitos humanos, foram denominados “globalistas”, uma espécie de sinônimo para “comunistas” (Weber, 2018). A tática de Carvalho foi dar o troco na mesma moeda e não apenas isso: segundo Thaís Oyama (2020), ele defendia abertamente que o adversário fosse atacado e desqualificado – o que pode ser identificado em seus textos e vídeos na internet e nos seus canais oficiais, dedicados a criar um arsenal midiático de desqualificações aos que elegeu como adversários. No Brasil, o melhor exemplo prático de aplicação desse método de desqualificação é o “gabinete do ódio” e todo o movimento social e parlamentar que ele representa.

O grupo de comunicação especial que responde diretamente ao Presidente, que ganhou a denominação de “gabinete do ódio” na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das fake news (notícias falsas), vem sendo investigado pelo Superior Tribunal Federal (STF), que se tornou mais um dos alvos dos referidos ataques (Said, 2020). Embora o termo fake news não contemple a totalidade dos “diversos fenômenos que compõem o sistema de desinformação” (Arndt, Trindade, Alves, & Miguel, 2021, p. 611), a popularização do termo nos últimos anos tende a relacioná-lo com toda uma gama de fenômenos que produz informação falsa ou com intenção de causar danos. Considerando-se que no Brasil, mais de 82% dos domicílios têm acesso à internet (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2021), a manipulação de fake news tem se mostrado uma estratégia de baixo custo e com amplo potencial de cobertura e instantaneidade para o “gabinete”.

Analisaremos, neste texto, sob uma ótica psicossocial, modalidades discursivas que o “gabinete do ódio” vem utilizando para construir a imagem dos inimigos eleitos pelo governo, a saber: aqueles considerados “comunistas”, os movimentos LGBTI+, defensores dos direitos humanos, e todos aqueles que, conjunturalmente, se colocaram contra as ações e propostas do governo, incluindo até membros da direita tradicional, alocados em partidos como DEM e PSDB.

Conceitualmente, tomamos como referência central o pensamento de Ignacio Martín-Baró (1998; 1975/2000), que embora tenha sido assassinado pela ditadura de El Salvador em novembro de 1989, foi um jesuíta e psicólogo social cujo pensamento continua atual. Em seu tempo, procurou refletir sobre temas como: os traumas oriundos da guerra civil, dispositivos psicossociais e modalidades discursivas presentes em um cenário de polarização política, autoritarismo e construção da imagem do inimigo, estilos de liderança da extrema direita, entre outros, demonstrando toda sua atualidade. Na abordagem de Martín-Baró (1983), o termo “psicossocial” reivindica para a Psicologia uma perspectiva dialética na compreensão do vínculo constitutivo entre subjetividade e objetividade. O autor considera que a dimensão psicossocial remete ao entrecruzamento entre consciência e ideologia, sendo um caminho de acesso para compreensão de processos grupais e as estruturas da sociedade (Martín-Baró, 1983), como é o caso da conformação de processos comunicacionais aqui tratados. Note-se que o autor considera ideologia o falseamento da realidade, afirmando que o papel do psicólogo é atuar para desideologização das relações de poder (Martín-Baró, 1997).

Ainda com base em reflexões de Martín-Baró (1998, 2000), procuramos compreender algumas modalidades discursivas que o “gabinete do ódio” emprega e que foram apontadas pelo autor desde o cenário de polarização em El Salvador, ainda na década de 1980. São elas: (a) mentira institucionalizada para conformação da imagem do inimigo, com disseminação em massa de mensagens, imagens e símbolos difamatórios associados ao adversário político; (b) elevado teor afetivo das defesas e ataques contra o inimigo, conformando um grupo homogêneo na luta do bem contra o mau; (c) disseminação de preconceito para naturalizar a opressão e o uso da violência contra o inimigo coisificado; (d) a vigilância sobre o que é considerado erro ou desvio, promovendo aprendizagem aversiva; (e) o medo pelo diferente, tão distante e estereotipado, podendo gerar uma reação violenta contra o “subversivo” (Martín-Baró, 1982, 2000). Para o presente estudo, consideramos modalidades discursivas as estratégias de discurso associadas ao gabinete do ódio e que produzem efeitos práticos, como a propagação do medo e ódio contra opositores do governo, que tendem a resultar em ações violentas contra os mesmos.

Após apresentação dos métodos utilizados na próxima seção, iniciamos nossa reflexão buscando entender a partir de Martín-Baró – em diálogo com outros autores da psicologia social e sociologia política – algumas características do estilo Bolsonaro de governar. Elas dizem muito da conjuntura na atualidade e do perfil da liderança e do governo federal eleito em 2018. Por fim, analisaremos alguns exemplos práticos de como o governo Bolsonaro e seus apoiadores desferem ataques políticos, visando desqualificar e violentar seus inimigos.

MÉTODO

Realizamos uma revisão narrativa de publicações em redes sociais disparadas pela rede bolsonarista e de notícias veiculadas por mídias de grande circulação, para responder à seguinte pergunta: que modalidades discursivas são utilizadas pelo “gabinete do ódio” para construir a imagem dos inimigos eleitos pelo governo? A finalidade de uma revisão narrativa é responder a uma questão ampla dentro de um tema, com um enquadramento específico de fontes bibliográficas (Galvão & Ricarte, 2019). No caso da presente revisão, parte da originalidade da proposta consiste no escopo das fontes analisadas: publicações disseminadas pelo gabinete do ódio.

Selecionamos publicações entre as mais acessadas e comentadas relacionadas ao governo Bolsonaro, ou vindas diretamente do núcleo central do governo, que foram divulgadas desde o período eleitoral de 2018 até março de 2022. Logo, três critérios principais direcionaram nossa revisão: (a) a publicação deve ser originada por canais associados ao “gabinete do ódio”; (b) a publicação que tenha gerado engajamento significativo entre internautas (acima de 10.000 interações e comentários); (c) a publicação diz respeito a um inimigo eleito publicamente pelo governo ou enaltece membro do governo.

Doze publicações atenderam ao conjunto de critérios supracitados (Tabela 1). As plataformas de divulgação que permitiram o alto número de interações dos itens selecionados foram Facebook, Whatsapp, Twitter e Instagram. O número de interação de cada publicação oscilou entre 10.000 e mais de 400.000 – consideramos interação os compartilhamentos, likes e comentários de internautas. Na seção cinco deste estudo (Como o “gabinete do ódio” constrói a imagem do inimigo), apresentamos cada uma das publicações selecionadas, organizadas em modalidades discursivas, resultantes de um processo teórico-interpretativo. Cada publicação recebeu um código (F1 a F12) para fins de organização do texto (Tabela 1).

Tabela 1 Publicações associadas ao gabinete do ódio 

item descrição mídia interação (mais de) data
F1 Jair Bolsonaro se diz “terrivelmente cristão” e justifica a indicação de um ministro evangélico para o STF: https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1134626765547147264 twitter 61.300+ 29/05/2019
F2 Eduardo Bolsonaro afirma que cristãos não votam no Lula: https://twitter.com/BolsonaroSP/status/1512503795145707525 twitter 39.400+ 08/04/2022
F3 Flávio Bolsonaro publicou que restabelecimento da saúde de Bolsonaro é um sinal de Deus que o bem vencerá o mal: https://twitter.com/FlavioBolsonaro/status/1037915560863051776 twitter 51.100+ 07/09/2018
F4 Carlos Bolsonaro publica foto junto a Jair em culto religioso: https://twitter.com/CarlosBolsonaro/status/1371170753035517953 twitter 41.600+ 14/03/2021
F5 Dória em fotomontagem pichando o símbolo do comunismo: https://politica.estadao.com.br/blogs/estadao-verifica/montagem-de-doria-pichando-simbolo-do-comunismo-viraliza-no-facebook/ facebook 10.000+ 12/04/2020
F6 Haddad é acusado, em notícia falsa, de ter criado um “kit gay” para crianças de 6 anos: https://exame.com/brasil/as-10-noticias-falsas-mais-compartilhadas-no-primeiro-turno/ facebook 400.000+ 13/9/2019
F7 Abraham Weintraub insiste que há produção de drogas ilícitas na rede federal de ensino superior: https://exame.com/brasil/fala-de-weintraub-sobre-maconha-em-universidades-rende-multa-de-r-50-mil/ twitter 29.500+ 22/11/2019
F8 “Antivacinas BR 2021” - grupo de whatsapp bolsonarista que reunia mais de 10 mil pessoas: https://www.revistaapalavrasolta.com/post/dez-dias-infiltrado-em-grupos-bolsonaristas-um-ensaio-dialógico-ou-uma-reportagem-à-paisana whatsapp 10.000+ 22/02/2021
F9 Marielle Franco em notícia falsa do site Ceticismo Político sugerindo sua ligação com o crime organizado: https://vejario.abril.com.br/cidade/investigacao-descobre-fontes-de-fake-news-sobre-marielle-franco/ facebook 360.000+ 23/03/2018
F10 Arthur Moledo do Val acusa padre Júlio Lancelotti de explorar pessoas em condição de miséria para se promover na mídia: https://www.instagram.com/p/CFH2VKXhHzX/?utm_source=ig_web_copy_link instagram 40.200+ 14/09/2020
F11 Jean Wyllys em foto montagem em que teria aceito convite de Haddad para ser ministro da educação: https://exame.com/brasil/as-10-noticias-falsas-mais-compartilhadas-no-primeiro-turno/ facebook 238.300+ 25/9/2018
F12 Eduardo Bolsonaro compartilha montagem em que Greta Tumberg (16 anos) se alimenta indiferente a crianças desnutridas: https://twitter.com/BolsonaroSP/status/1177039211121303552 twitter 15.300+ 25/09/2019

Utilizando a técnica de análise de conteúdo de dados qualitativos (Campos, 2004), debruçamo-nos sobre a análise do material produzido pelo gabinete do ódio e identificamos 3 modalidades discursivas.

Tais modalidades emergiram de conjunções de interdependência entre o objetivo da investigação, das teorias referenciadas e de teorias próprias dos investigadores (Campos, 2004), estas amparadas tanto no conteúdo manifesto das publicações quanto na reflexão contextual das estratégias do gabinete do ódio. Abaixo a descrição de cada modalidade discursiva:

  • Luta do bem contra o mal: estão aqui reunidas narrativas com forte teor afetivo, que incitam admiração e respeito ao grupo endógeno e, por outro lado, medo e ódio contra o grupo exógeno. Tendem a valorizar a imagem do Presidente, associando-o a instituições como a religião cristã, a nação e a família tradicional. Fomenta o contraste entre grupo endógeno e exógeno, estimulando a criação de um imaginário coletivo para conformação de um grupo homogêneo, o Presidente, seus aliados e apoiadores, alimentando um cenário de polarização social.

  • Ataque aos adversários: reúne narrativas que buscam transformar opositores em inimigos por meio de difamação e desqualificação direta. Utilizando o medo pelo diferente para intensificar estereótipos e preconceitos, procura-se desumanizar adversários, transformando-os em ameaças, objetos que devem ser excluídos do convívio, odiados e combatidos antes que venham a destruir instituições privilegiadas pelo gabinete, como determinadas noções de família tradicional, pátria e cristandade. Dentre os inimigos escolhidos pelo governo constam militantes de esquerda (sem dúvida o alvo principal, incluindo aí professores, artistas, sindicalistas, funcionários de ONGs), defensores dos direitos humanos, figuras de direita que ameaçam eleitoralmente o governo e as organizações consideradas como parte da “grande mídia”. Foram também consideradas – ou mencionadas – algumas das cruzadas difamatórias mais conhecidas do bolsonarismo: tendo como alvos os casos mais patentes, como os ex-Presidentes Lula e Dilma e a vereadora carioca assassinada, Marielle Franco.

  • Mentira institucionalizada no contexto da pandemia: engloba narrativas propagadas pelo próprio Estado contra instituições científicas, de ensino e de saúde e seus representantes, bem como contra medidas de combate à pandemia contrárias aos interesses do governo. Por exemplo, oposição ao uso de vacinas e outros métodos cientificamente comprovados de combate à pandemia, como o distanciamento físico.

ESTILO BOLSONARO DE GOVERNAR: TRANSFORMAR OPOSIÇÃO EM INIMIGO

A liderança social e política sempre foi um tema para as Ciências Sociais em geral e para a Psicologia Social. Não é nosso propósito apresentar o estado da arte nesses campos, o que desviaria do nosso objeto de estudo. Por outro lado, indicamos aqui contribuições, em diálogo com o campo da Psicologia Social, para compreensão do estilo de governar do atual Presidente da República do Brasil.

Começamos pela tese clássica de Wilhelm Reich (1933/2001), quando afirmou que um sistema social demanda, para sua sobrevivência, de um caráter condizente com seus princípios morais e que seja capaz de absorver as relações sociais de produção e reprodução da vida material. Seguindo essa definição, podemos afirmar que o caráter do atual Presidente da República (seu modo de ser, agir e pensar) revela diferentes facetas do modus operandi do capitalismo, que em momentos de crise social e econômica, lançou e continua a lançar mão de práticas autoritárias.

A gestão do autoritarismo vista por Reich (1933/2001) e por Martín-Baró (1975/2000), em tempos históricos distintos, tem como foco a dimensão psicossocial de um fenômeno que continua exigindo esforços de compreensão teórica, especialmente, após as eleições de Donald Trump nos EUA e de Jair Bolsonaro no Brasil, das respostas migratórias na América e na Europa, do crescimento de partidos e organizações neonazistas no velho continente, entre outros fenômenos que ocorrem a partir de um elemento fundante: o crescimento exponencial do fosso entre ricos e pobres, acompanhado por uma profunda crise de representatividade política (Euzébios, 2019).

Os exemplos analisados por Reich (1933/2001) e por Martín-Baró (1982, 2000) sobre distintas expressões de processos ditatoriais, foram protagonizados por setores conservadores em agudas crises políticas e econômicas e retrataram reações extremadas pautadas pelo medo e pelo ódio contra aqueles que fogem das normas, com forte apelo moral e conservador ligado aos interesses particulares do grupo homogêneo que está no poder, que busca obter popularidade reforçando estereótipos e o senso comum para impor seu ponto de vista. Já foi suficientemente analisado como isso ocorre ao longo da história, sendo o nazismo alemão uma profunda expressão do ‘populismo de direita’ (Machado Rodriguês, 2018). É nesse contexto histórico que Theodor W. Adorno e seus colaboradores caracterizam a personalidade autoritária a partir de traços como: rígida adesão ao convencional, submissão acrítica a um ideal ou líder, agressividade dirigida contra o outro, visão binária da sociedade (bem x mal/ fraco x forte), entre outros (Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson, & Sanford, 1950).

Mais de setenta anos após a publicação de Personalidade autoritária (Adorno et al., 1950), podemos atribuir características semelhantes às descritas nesse clássico estudo ao analisar o estilo de liderança de líderes conservadores como Donald Trump e Jair Bolsonaro (Maitino, 2018). No caso de Bolsonaro e sua equipe, tal modo de operar apresenta elementos característicos do populismo que, como apontado por Domenico Uhng Hur (2021), é uma lógica que envolve a conformação de um grupo inimigo, a manipulação de afetos do grupo endógeno, sobretudo, a incitação de afetos destrutivos contra inimigos, e a produção de uma configuração imaginária comum (canalização de aspirações coletivas, criação de estereótipos do grupo exógeno). Outro aspecto frequente do populismo é a busca por uma transcendência, sem necessariamente detalhar o que deve ser superado, como será superado e qual será a situação futura, ou seja, articula uma “retórica de transformação fictícia” (Hur, 2021, p. 98).

Estruturalmente, convém observar que Bolsonaro, como um seguidor do convencionalismo liberal, não foge ao estilo de liderança prescrito pelo neoliberalismo. O atual Presidente do Brasil não é necessariamente aquele líder dotado de características pessoais socialmente desejáveis (habilidades comunicativas, capacidade de unificação de pautas, poder de persuasão etc.), no entanto, ele se propõe a seguir fielmente os anseios do mercado. Como adiantou Miguel Urbán-Crespo (2014), Bolsonaro é um daqueles líderes que pratica um paradoxal nacionalismo privatizador. Bastando apenas observar a obsessão do governo pelas reformas neoliberais e pelas privatizações de empresas estatais (Oyama, 2020). Trata-se de um dito nacionalista convicto da abertura do mercado, de modo que outro paradoxo desta nova safra de nacionalismo é sua característica globalizante (ainda que sejam críticos do “globalismo”). A relação de adoração e subserviência do governo de Jair Bolsonaro com Trump é um exemplo contundente.

Trata-se de uma combinação entre liberalismo e conservadorismo, o que ficou evidente com o slogan da aliança bolsonarista “conservador nos costumes e liberal na economia”, exemplificando o que Urbán-Crespo (2014) descreveu como sendo um fenômeno crescente na Europa, EUA e América Latina, também retratado na marca da gestão Bolsonaro: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

Uma particularidade chama a atenção no estilo Bolsonaro de liderar: a forma como o presidente atual se dirige aos adversários está associada às características da sua forma de exercer a liderança. Os inimigos podem ser classificados em: (a) aqueles que vão contra a perspectiva ultraliberal (Paulani, 2019); (b) aqueles que representam – inclusive em seus corpos – a diversidade étnica, sexual, social; (c) os ativistas que defendem os consensos modernos em relação aos direitos humanos. Todos são taxados pelo governo (inclusive por meio de órgãos oficiais como o Itamaraty) de “comunistas” (Oyama, 2020; Weber, 2018).

Bolsonaro construiu sua liderança na conformação do que vem sendo denominado de “Bolsonarismo” (Oyama, 2020). A relação do líder com sua base social, neste caso, é daquele tipo de liderança messiânica (Freud, 1921/2011). Assim, o salvacionista não por acaso estabelece uma relação orgânica com o neopentecostalismo da prosperidade que se manifesta em diferentes igrejas, como a Universal do Reino de Deus. São conglomerados capitalistas (Nascimento, 2020) que fundamentalmente reproduzem nos seus fiéis padrões de comportamento liberal, como apontado no já clássico estudo de Pedrinho Arcides Guareschi (1995) sobre as representações sociais do bem e do mal entre neopentecostais.

Assim como o neopentecostalismo da prosperidade, Jair Bolsonaro e seus seguidores acreditam que a salvação, se vier, virá pelo mercado, e o Estado de bem-estar social aparece como um entrave. Ora, se todos são iguais perante Deus e o mercado, as pautas identitárias perdem legitimidade uma vez que rompem com a meritocracia liberal. O programa do neopentecostalismo se materializa, por exemplo, no ministério dos direitos humanos, de educação e cultura – todos apontados por Olavo de Carvalho como estratégicos no retruque da “guerra cultural”. Cargos e slogans unem o fundamentalismo evangélico e outros setores conservadores, como os militares, ao governo Jair Bolsonaro, sempre orientados pelo liberalismo econômico.

O estilo Bolsonaro de governar reúne todas as características que Martín-Baró (1982) pontuou como típicas de uma liderança de extrema-direita: autoritarismo declarado; oposição aparente ao sistema; um estilo machista dominante, personificado na figura de um chefe que tudo decide e comanda, repetindo inúmeras vezes, quando pressionado a tomar uma decisão, que “quem manda sou eu”. Esse é o populismo de direita à la Bolsonaro.

O MEDO COMO COMBUSTÍVEL DA LIDERANÇA E DO GOVERNO DE JAIR BOLSONARO

Um dos elementos que marcam o populismo tanto de direita como de esquerda, também apontado por Martín-Baró (1983), refere-se à construção da imagem do inimigo baseada em estereótipos, constituídos por esquemas simplistas. Um ótimo exemplo é a imagem que se faz do “comunista” (ou muitas vezes do “fascista”) na atualidade. Os pontos críticos aos “comunistas” e opositores estão relacionados à “destruição da família e da nação” (Maitino, 2018; Moraes, 2019; Oyama, 2020), sendo a principal ferramenta para construção da imagem do inimigo o “gabinete do ódio”. A “rede bolsonarista”, por exemplo, vem sendo investigada pela justiça federal por fazer apologia à ditadura militar (Said, 2020).

Do ponto de vista psicossocial, podemos afirmar que o instrumento de gestão e fortalecimento da base bolsonarista é o medo. O medo contra a ameaça externa do “comunismo” que promove reação daqueles que defendem o governo e suas ideias. Pode-se dizer que se trata de um medo político (Martín-Baró, 1975/2000).

Para Martín-Baró (2000), o medo político deve ser analisado de forma ampla, para além de um afeto produzido na esfera das relações interpessoais de grupo isolado das estruturas da sociedade, e que são alimentadas nos processos de socialização, como a família, escola e igreja. Nesta concepção, o medo atua para reduzir ou elevar os níveis de participação política, seja como resposta à repressão ou pela reação, contribuindo seja para o isolamento e/ou desconfiança nas relações interpessoais, seja para o fortalecimento de grupos endógenos. O medo político pode também gerar ataques violentos a quem (de fato ou supostamente) fere e/ou ameaça um determinado grupo.

A resposta dos bolsonaristas a uma situação de ameaça não parece ser de recrudescimento, mas de ataque. Como dito, o medo político também pode causar reação, retrucando o medo com ódio, violência física e/ou simbólica – acirrando processos psicossociais como a humilhação social (Gonçalves, 1998) e sofrimento ético-político (Sawaia, 1999). O medo dos bolsonaristas parece ser daqueles que se materializa com o isolamento de quem pensa diferente, com a desqualificação do adversário e outras estratégias de aniquilação da diversidade que só crescem em um cenário de polarização.

A experiência dos governos federais petistas parece ter sido rememorada pelos grupos que se formavam no campo da direita e extrema direita como uma verdadeira ameaça à honra. Viveram os anos finais do governo Lula, mas especialmente do governo Dilma, sob uma intensa carga emocional. A polarização entre petistas e antipetistas, como caracterizaram Tatagiba e Galvão (2019), se consolidou sob forte teor emocional no Brasil pós 2013.

A memória traumática desse período político certamente foi alimentada por uma grave crise econômica e de representatividade política. Mas foram as pautas de setores da direita tradicional e da extrema direita, segundo Tatagiba e Galvão (2019) e Antonio Euzébios (2019), que canalizaram o medo da “crise fiscal”, do “comunismo”, da “ditadura gay” e dos avanços (ainda que tímidos) das políticas redistributivas e voltadas para as minorias, com uma narrativa de que o “Brasil vai virar uma Venezuela” (Weber, 2018). O medo tomou então o lugar da esperança e foi transformado em um programa eleitoral reativo, fundado no combate ao inimigo: o ‘antipetismo’ (Tatagiba & Galvão, 2019)

No cenário que se instalou, especialmente, após as manifestações de junho de 2013 e do processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff (Euzébios, 2019; Tatagiba & Galvão, 2019), foi sendo cada vez mais utilizado um dos métodos de desqualificação do adversário apontado por Martín-Baró: o terrorismo político.

O bolsonarismo fez reviver o “terror comunista” do contexto da ditadura militar na América Latina nas décadas de 1960, 1970 e 1980, mas sem a mesma base material, pois no período atual o comunismo não polariza mais a geopolítica mundial. Segundo Martín-Baró (2000), são consequências do terrorismo político (p. 266): “(a) estreiteza e rigidez na elaboração da imagem do inimigo ou do outro; (b) fragilização da autonomia pessoal e da autoconfiança nas relações macro e micropolíticas; (c) polarização social pautada pelo medo político”.

Quanto mais o cenário sociopolítico é marcado pela polarização social, mais os adversários querem tornar o outro em inimigo. Martín-Baró (2000) observa que, em contexto de acirramento da luta de classes, aprofunda-se a mentira institucionalizada – muito próximo ao que hoje se convencionou chamar de fake news.

O uso de estereótipos é eficaz para a construção da mentira institucionalizada contra o outro (o inimigo). Fundada em preconceitos, a visão simplificada que um estereótipo oferece pode atuar em dois sentidos: para fortalecer laços do grupo endógeno, mas também para identificar aqueles que vão contra esse mesmo grupo. As características particulares do outro passam a ser universalizadas, ignorando as particularidades e processos envolvidos na conformação de diferentes identidades políticas (Martín-Baró, 2000).

A polarização social não se resume ao terrorismo político, mas o segundo se alimenta do primeiro e vice e versa. O terrorismo político passa por um processo de desumanização do adversário, que é fomentado nos processos de difamação institucional, como é o caso do uso de ferramentas como as redes sociais para se posicionar violentamente contra o outro – grandes exemplos são os perfis do Twitter de Trump e de Bolsonaro e seus filhos (Maitino, 2018).

Desumanizar atua no sentido de eliminar – e não conviver – com seu adversário político e pode ser visto como uma forma de se adaptar a uma situação que envolve forte carga afetiva e que extrapola a capacidade representacional de indivíduos e sujeitos. Segundo Martín-Baró (2000), é possível que a banalização das violências contra o adversário se manifeste como um recurso psicológico de adaptação, voltado para lidar com um cenário insuportável social e politicamente para o grupo endógeno que se sente ameaçado. Nesta esteira, a cristalização das relações sociais torna-se uma consequência e se traduz, como uma das consequências, na rigidez do sistema de mando (Martín-Baró, 2000).

COMO O “GABINETE DO ÓDIO” CONSTRÓI A IMAGEM DO INIMIGO

Através das três modalidades discursivas que emergiram da análise de publicações do gabinete do ódio, discutimos nesta seção como ocorre a construção da imagem dos inimigos eleitos pelo governo. A criação de narrativas baseadas na propagação de medo e ódio contra tais inimigos, em contraste com narrativas de valorização da imagem do presidente, visa estabelecer antagonismo entre aqueles que estão do lado do presidente e seus opositores. À luz das publicações selecionadas (F1 a F12, conforme Tabela 1) ilustramos como tais modalidades operam como instrumento de gestão do gabinete, forjando ficções baseadas em medo político que atendem a seus interesses. São elas: (a) luta do bem contra o mal; (b) ataque aos adversários; (c) mentira institucionalizada no contexto da pandemia.

LUTA DO “BEM” CONTRA O “MAL”

A imagem do “mal” não existe sem a imagem do “bem”. É pela oposição que se alicerça a imagem do próprio Presidente Bolsonaro. São muitas as frases bíblicas associadas a imagens de Jair Bolsonaro que circulam pelas redes sociais. Como exemplo, a conta Twitter do presidente divulga um vídeo de 2019 no qual Bolsonaro se diz “terrivelmente cristão” e justifica a indicação de um ministro evangélico para o STF com base em preceitos religiosos, o vídeo já tem mais 61.000 interações e ultrapassou 1 milhão de visualizações (F1). As contas Twitter dos filhos do presidente, Eduardo, Flávio e Carlos (F2, F3, F4), são inflamadas com a mesma narrativa, promovem a imagem de um homem incorruptível, pronto para enfrentar o maior desafio do país: a luta contra a corrupção e o “comunismo”. Ora o estado de saúde de Bolsonaro é associado a um sinal divino (F3), ora Bolsonaro aparece com um dos filhos num culto religioso cristão (F4), investe-se em narrativas diretamente associadas à noção de família tradicional e de moral cristã conservadora.

“Além da resistência articulada de políticos e de parte da mídia, setores do próprio governo jogam contra a atual administração” (Costa, 2020, p. 1), afirma um dos tantos blogueiros de orientação bolsonarista. O artigo de origem é intitulado “O Presidente Bolsonaro governa contra tudo e contra todos” (Costa, 2020). A liderança de Bolsonaro não existe sem construir a imagem do inimigo.

Frases como “vamos salvar o Brasil” junto a imagens triunfantes de Bolsonaro em cima de um cavalo, por exemplo, são facilmente encontradas em um clique na internet. É a representação do Messias, a figura do “bem” na terra, que defenderá valores e princípios associados a instituições conservadoras (neopentecostais e vertentes cristãs conservadoras, noção de família tradicional, forças armadas) contra inimigos convenientemente eleitos: militantes de esquerda, supostos comunistas, defensores de direitos humanos (discutido no próximo tópico). Nesse antagonismo ampliado, alimentado por estereótipos e preconceitos, é reforçada a imagem de um campo de disputas, pois, quem não está a favor do presidente é um alvo em potencial, num processo de expiação que personifica os problemas do país por meio de narrativas fictícias que forjam lutas entre dois pólos: o “nós”, o presidente e seus apoiadores, e os “outros”, todos que se colocam conjunturalmente contra suas ações e propostas.

ATAQUE AOS ADVERSÁRIOS

A seguir, apontamos alguns episódios em que a “rede bolsonarista” fez uso de fake news para atacar seus inimigos, de modo a associar este último a ideias e símbolos falsos ou superdimensionados. O maior exemplo é a associação da imagem do “comunismo” com o Partido dos Trabalhadores (PT), especialmente de Lula e Dilma, alvos principais de Bolsonaro (Maitino, 2018) e de outras figuras públicas marcadamente liberais. O caso mais dissonante é o de João Dória (PSDB), governador do Estado de São Paulo eleito em 2018.

Dória foi acusado de “comunista” porque atuou para o fechamento de comércio e outros estabelecimentos durante momentos de pico da pandemia da Covid-19. Para provar que João Dória é comunista, ele aparece em imagens próximo a figuras como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, também tido como “comunista”. E para comprovar a ditadura do comunismo no Estado de São Paulo, circulavam-se fotos em grupos de WhatsApp com imagens de cidades vazias, atrelando o fato aos decretos do governador que resultaram no fechamento de comércios e serviços, como dito. É assim que o empresário João Dória, uma das figuras mais explicitamente liberais na conjuntura brasileira nos últimos anos, torna-se “comunista” e contra o livre mercado. Nada de racional aqui. Logo, viralizou uma montagem na qual Dória, supostamente, pichava o símbolo do comunismo. Essa postagem atingiu mais de 10.000 compartilhamentos no Facebook em 24 horas (F5) e, obviamente, em curto prazo, foi comprovada mais uma montagem de fake news (Monnerat, 2020).

Outros atores que também se tornaram centro de difamações pela rede bolsonarista e pelo “gabinete do ódio” são os professores. É publicamente conhecida a acusação de que estes disseminam “kit gay” pelas escolas, apoiados – é claro – pelos governos petistas (Weber, 2018). Em 2018, circulou no Facebook uma montagem em que Haddad é acusado de ter criado um “kit gay” para crianças de 6 anos (F6; Cerioni). Nesta esteira de acusações infundadas, circulou pelas próprias mãos do ex-ministro da Educação, em 2018, um vídeo de uma festa regada a drogas ilícitas que teria ocorrido em uma universidade pública. Esse vídeo seria uma prova de que, como disse o ex-ministro Weintraub, havia laboratórios na rede federal de ensino superior que produziam drogas para venda e consumo nas universidades e que há “plantações de maconha” nestas mesmas instituições (Rodrigues, 2019). Uma publicação de Weintraub no Twitter a esse respeito, obteve mais de 29.500 interações (F7).

Outro inimigo eleito por Jair Bolsonaro é o que ele chama de “grande mídia”, especialmente a Rede Globo de Televisão, Folha de São Paulo e outros grandes veículos considerados “esquerdistas”. Assim como os jornalistas alvos dos ataques, pode-se observar em outras situações que os ataques do presidente através de seus canais oficiais de comunicação vêm acompanhados de uma ação aparentemente coordenada de ameaças pessoais contra os inimigos do presidente e de seu círculo pessoal (Benício, 2020). Tais ataques, com forte teor emocional, são geralmente desferidos pelas redes sociais por apoiadores de Jair Bolsonaro por meio de perfis falsos ou reais – é o “gabinete do ódio” estendido.

Os ataques mais violentos, porém, se dirigem aos ativistas que carregam pautas da diversidade e de defesa dos direitos humanos. O caso mais marcante é o da vereadora assassinada Marielle Franco (PSOL/RJ), que sofreu uma série de ofensas mesmo após sua morte e inúmeras ameaças de Bolsonaristas (Tajra & Preite, 2018). Não se tem claro na justiça quem foram os mandantes do crime. Teria a rede bolsonarista ligação com isso?

Imagens de Marielle associadas a frases do tipo “bandido bom é bandido morto” são facilmente encontradas na internet. Também são facilmente encontradas imagens ofensivas à imagem da vereadora assassinada, protagonizadas por bolsonaristas, como o ex-aliado e ex-governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel, afastado do cargo por corrupção. Poucos dias após o falecimento de Marielle, uma notícia falsa alegava envolvimento da parlamentar com o crime organizado (F9). O link que trazia essa informação pelo site ‘Ceticismo Político’ foi compartilhado mais de 360.000 vezes somente no Facebook (Tajra & Preite, 2018).

O padre católico Júlio Lancelotti, conhecido pela defesa dos direitos da população em situação de rua na cidade de São Paulo, é outro que vem sendo constantemente atacado pela rede bolsonarista e figuras públicas do campo da extrema-direita brasileira. Vejam um trecho do que postou nas redes sociais um deputado estadual (São Paulo) da base bolsonarista, reproduzido pela reportagem do canal Ponte Jornalismo (Stabile, 2020): “Até quando esse cafetão da miséria vai achar que é dono da verdade enquanto milhares de brasileiros sofrem com a Cracolândia?” (p. 4). Em poucos dias, essa postagem na conta pessoal de Instagram do parlamentar Arthur Moledo do Val obteve mais de 40.210 compartilhamentos (F10).

Também são conhecidos os ataques a figuras de esquerda como o ex-deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), homossexual assumido e reconhecido ativista das causas LGBTI+, que deixou o país alegando sofrer ameaças de morte. Como exemplo desses incontáveis ataques, em 2018, foi divulgada uma fotomontagem em que Jean Wyllys teria aceitado convite de Haddad para ser ministro da educação em uma eventual vitória petista, a imagem adulterada obteve mais de 238.300 compartilhamentos no Facebook (F11).

Um dos grandes responsáveis pela desqualificação dos adversários do governo é o senador Eduardo Bolsonaro, filho do Presidente da República, que já compartilhou notícias falsas, dentre outras, contra a ativista pelo meio ambiente Greta Tumberg (F12). Em uma fotomontagem Greta aparece se alimentando, em um farto banquete, alheia aos olhos famintos de crianças desnutridas da África. Somente na conta Twitter de Eduardo, a montagem recebeu mais de 15.300 interações (F12).

A “luta do bem contra o mal” enseja a personificação do mal, ou seja, é parte da estratégia discursiva do gabinete do ódio insuflar em seus apoiadores, ou potenciais apoiadores, desconfiança, aversão, medo e ódio contra adversários. No entrecruzamento entre ideologia e consciência, característico de fenômenos psicossociais (Martin-Baró, 1983), as figuras eleitas para representar o mal são convenientemente culpabilizadas por toda sorte de mazelas que afeta, ou pode afetar, o país: é o terrorismo político em prática. Tal estratégia, operando na dimensão dos afetos, fortalece as relações com a base de apoiadores, alimentando um imaginário coletivo, ao mesmo tempo que visa a expansão da base, pois qualquer crise pode ser personificada em um novo inimigo a partir da criação de uma ficção nos moldes do populismo de direita à la Bolsonaro.

MENTIRA INSTITUCIONALIZADA NO CONTEXTO DA PANDEMIA

Publicações e vídeos apelativos também são facilmente encontrados, com trilhas sonoras alarmantes ao fundo, informando a população sobre a “verdade em relação ao vírus chinês”, aos “perigos de mutação” decorrentes da vacinação contra a Covid-19 e outras óbvias fake news (Faria, 2020). Segundo Flávio Morgado e Eduardo Reis Mello (2021), o grupo de WhatsApp bolsonarista denominado “Antivacinas BR 2021”, por exemplo, reúne mais de 10 mil pessoas (F8). Em estudo sobre o fenômeno da desinformação na pandemia de Covid-19, Arnt et al. (2021) analisaram 21 conteúdos falsos que circularam em 2020. As pesquisadoras revelam que tais conteúdos se destinavam à produção de descrédito de instituições científicas e de saúde e de medidas de combate à pandemia, incluindo a vacina, ao passo que promoviam o uso do medicamento hidroxicloroquina (sem comprovação de eficácia no tratamento da doença). As autoras constatam ainda que havia “contínua convergência entre os discursos do presidente Jair Bolsonaro e os discursos que compuseram os conteúdos falsos analisados” (p. 612), argumentando que os discursos de Bolsonaro tendem a alimentar a polarização político-ideológica.

Nesse sentido, Domenico Uhng Hur, José Manuel Sabucedo e Mónica Alzate (2021) postulam que a opção de Bolsonaro por ignorar protocolos científicos de combate à pandemia adotados pela maior parte dos Estados-nação, como o distanciamento físico, são práticas necropolíticas. Os pesquisadores constatam que o discurso do presidente refletia a lógica neoliberal durante o cenário pandêmico: exortava que trabalhadores pobres retornassem ao trabalho a despeito dos riscos de serem aniquilados, “em prol da reprodução do capital” (p. 561).

No governo Bolsonaro, como disse Oyama (2020) em outras palavras, é ataque contra defesa. Há uma preocupação constante em elevar o tom contra o adversário e à oposição, até mesmo quando se trata de política externa, como revelam os ataques à China e a outros países tachados como “comunistas” (Hur, Sabucedo, & Alzate, 2021; Weber, 2018). O presidente e seus apoiadores, por meio do “gabinete do ódio” e de outros canais, não perdem a oportunidade de desqualificar o adversário, como ensinou Olavo de Carvalho (Oyama, 2020).

O cenário pandêmico intensificou desigualdades sociais, agravando situações de vulnerabilidade, de insegurança e de medo generalizado em relação ao futuro próximo. Esse período caótico foi propício à criação de novas ficções pelo gabinete do ódio, que se aproveita de fragilidades no tecido social, como a prolongada exposição da população ao estresse oriundo da pandemia, para dar continuidade às tentativas de manipulação da opinião pública, com o “ocultamento sistemático da realidade” (Martín-Baró, 2000, p. 132) através da construção de narrativas próprias. Assim, testemunhamos a criação de um número expressivo de novos inimigos do governo, embasada em negacionismo científico, e medidas populistas utilizadas como instrumentos de gestão para mascarar, como cortinas de fumaça, o aniquilamento de uma parcela da população em benefício do capital.

Poderíamos citar tantos outros exemplos, como os ataques aos imigrantes venezuelanos, que vieram para o Brasil roubar emprego e invadir propriedades, contra as ONGs ligadas ao meio ambiente, que sugam dinheiro público, dentre tantas difamações públicas (Goldstein, 2020). Outra característica da rede bolsonarista reside na sua capacidade de produzir teorias da conspiração: “os comunistas dominarão o mundo” e como já dito, “todos estão contra Bolsonaro”, entre tantas já reafirmadas neste texto.

Dentre as personagens do “gabinete do ódio”, destacam-se também os denominados blogueiros bolsonaristas, ou influenciadores digitais, como o comentarista Rodrigo Constantino, o blogueiro Allan dos Santos e o jornal onlineBrasil Sem Medo’. Muitos deles investigados pela CPI das fake news, alguns por organizarem atos antidemocráticos que pediam o fechamento do STF e o retorno à ditadura militar. Foram acusados de incentivarem atos semelhantes no Brasil à invasão ao Capitólio nos EUA, quando da derrota eleitoral de Donald Trump (2020). Uma decorrência prática desse apoio é um questionamento ácido ao sistema eleitoral e o pedido de retorno do voto impresso (Rudnitzki & Scofield, 2021).

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A “TAREFA PSICOSSOCIAL” NO COMBATE AO AUTORITARISMO E À FALSA POLARIZAÇÃO

Estudos clássicos da Psicologia social latino-americana, produzidos há pelo menos 30 anos, em nada ficaram ultrapassados quando olhamos para a conjuntura brasileira na atualidade e para o estilo de liderança de Jair Bolsonaro. Uma das modalidades discursivas mais marcantes da atuação do presidente da república e de seus aliados é o ataque aos adversários, buscando caracterizá-los como inimigos. Esses ataques partem especialmente do que ficou conhecido como “gabinete do ódio”, com o objetivo de (a) produzir fake news difamatórias ou que supervalorizem a figura do presidente; (b) localizar esses ataques em uma luta do bem contra o mal, associando essa luta a aspectos morais e afetivos; (c) manter a base bolsonarista alerta e pronta para o ataque, sempre instigada pelo medo e pelo ódio contra o adversário.

Enquanto a rede bolsonarista ataca violentamente seus adversários e se envolve com pautas pouco relevantes para a superação das mazelas sociais no Brasil – como foi o caso dos esforços para legalização do uso e venda de armas de fogo em meio à pandemia – o país alcança a marca de mais de 14 milhões de desempregados, vem desfigurando as políticas sociais nas áreas da Saúde, Educação, Assistência Social e Cultural e foi assolado pelo vírus Covid-19 – com mais de 665 mil mortes notificadas no país (até maio de 2022), Bolsonaro tem sido considerado um dos líderes mais incompetentes no combate à pandemia por organizações internacionais (Hur et al., 2021). Então, o que fazer?

Seria muita pretensão responder a essa questão em poucas linhas, sem uma reflexão profunda e coletiva. Podemos, no entanto, mencionar alguns pontos que, embora longe de se transformarem em uma receita de combate ao autoritarismo, apontam direções para análise crítica do momento político atual. Novamente recorremos à Martín-Baró (2000), quando o autor buscou refletir sobre o que chamou de tarefa psicossocial ante uma situação de guerra civil.

A tarefa psicossocial reside, para Martín-Baró, em alguns princípios, a saber: (a) reeducar pela razão e não pela força; (b) despolarizar contribuindo para superação de imagens estereotipadas; (c) desmilitarizar as relações sociais, fortemente marcadas pelo controle e pelo castigo; (d) descolonizar o pensamento mimetizado do imperialismo do grande capital; (e) por fim, como tratou na sua obra O Papel do Psicólogo, desideologizar, isto é, decodificar relações de poder e lógicas individualistas, apontando para uma direção: o que denominou de prática de classe (Martín-Baró, 1997).

Não será um líder que nos salvará – embora uma liderança possa ser útil e importante – mas um coletivo que tome o destino pelas próprias mãos e indique um horizonte ético-político da libertação, por meio do combate a tudo que produz injustiça estrutural.

Financiamento

Não houve fnanciamento

Consentimento de uso de imagem

Não se aplica.

Aprovação, ética e consentimento

Não se aplica.

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Recebido: 03 de Dezembro de 2021; Revisado: 19 de Maio de 2022; Aceito: 19 de Maio de 2023

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