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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.23 no.58 São Paulo  2023  Epub 08-Jul-2024

 

Artigo Original

POR PRÁTICAS ATIVISTAS DE CUIDADO: LÓGICAS DA REDUÇÃO DE DANOS NO BRASIL

Por prácticas de cuidado activistas: lógicas de reducción de daños en Brasil

Towards activist care practices: logic of harm reduction in Brazil

MORGANA MOURA1  , Concepção, Coleta de dados, Análise de dados, Elaboração do manuscrito, Revisões críticas de conteúdo intelectual importante, Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/0000-0001-9891-1301

DOLORES GALINDO2  , Concepção, Coleta de dados, Análise de dados, Elaboração do manuscrito, Revisões críticas de conteúdo intelectual importante, Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/0000-0003-2071-3967

RICARDO PIMENTEL MÉLLO3  , Concepção, Coleta de dados, Análise de dados, Elaboração do manuscrito, Revisões críticas de conteúdo intelectual importante, Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/0000-0002-9990-3837

1https://orcid.org/0000-0001-9891-1301 Doutora em Estudos de Cultura Contemporânea pela UFMT. Atua como psicóloga clínica, docente do ensino superior e assessora especial no Ministério Público de Mato Grosso, atuando no Núcleo de Qualidade de Vida do/a Trabalhador/a e na assessoria técnica à administração superior. E-mail: morganammoura@gmail.com

2https://orcid.org/0000-0003-2071-3967 Doutorado em Psicologia Social, Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande/PB. E-mail: dolorescristinagomesgalindo@gmail.com

3https://orcid.org/0000-0003-2071-3967 Doutorado em Psicologia Social, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza/CE. E-mail: ricardopmello@gmail.com


RESUMO

Este trabalho argumenta em favor de estratégias de Redução de Danos (RD) como práticas de cuidado ativista. Para isso, apresenta uma problematização teórica das estratégias de atenção em saúde acionadas pela política de RD, pontuando vetores de potência (mover a vida para a fluidez de invenções singulares) e de cristalização (amarrar a vida em tradições moralistas universais e submissas a modos capitalistas). Dois operadores guiam a problematização: (a) Ativismo, como posicionamento potencializador de devires de grupelhos (Guattari, 1985) e bandos (Hobsbawm, 2000); (b) Cuidado, como prática de estranhamento ante as normatizações em saúde. Para tal, este estudo se apoia nas contribuições da Filosofia da Diferença e advoga a produção de ativismo como cuidado e de um cuidado como ativismo, enquanto possibilidade de construir outras formas de corporeidade política em face das estratégias afeto-políticas de controle.

Palavras-chave: Políticas sobre drogas; Capturas; Ativismo

ABSTRACT

This work argues in favor of Harm Reduction (HR) strategies as activist care practices. To this end, it presents a theoretical problematization of health care strategies triggered by HR policy, highlighting vectors of potency (moving life towards the fluidity of singular inventions) and crystallization (binding life in universal moralist traditions and submissive to capitalist modes). Two operators guide the problematization: (a) Activism, as a positioning that enhances the becoming of groups (Guattari, 1985) and banditry (Eric Hobsbawm, 2000); (b) Care, as a practice of estrangement from health regulations. To this end, this study is based on the contributions of the Philosophy of Difference and advocates the production of activism as care and care as activism, as a possibility of constructing other forms of political corporeality in the face of affective-political strategies of control.

Keywords Drug politics; Catches; Activism

RESUMEN

Este trabajo argumenta a favor de las estrategias de Reducción de Daños (RD) como prácticas de atención activistas. Para ello, presenta una problematización teórica de las estrategias de atención de salud desencadenadas por la política de RD, destacando vectores de potencia (moviendo la vida hacia la fluidez de invenciones singulares) y de cristalización (atando la vida a tradiciones morales universales y sumisas a las costumbres capitalistas). Dos operadores guían la problematización: (a) el activismo, como posicionamiento que potencia el devenir de grupos (Guattari, 1985) y pandillas (Hobsbawm, 2000); (b) El cuidado, como práctica de alejamiento de las normas sanitarias. Para ello, este estudio se sustenta en los aportes de la Filosofía de la Diferencia y propugna la producción del activismo como cuidado y del cuidado como activismo, como posibilidad de construir otras formas de corporalidad política frente a las estrategias afectivo-políticas de control.

Palabras clave Política de drogas; Capturas; Activismo

INTRODUÇÃO

Este texto argumenta em favor de estratégias de Redução de Danos (RD) como práticas de cuidado ativista. Para isso, apresenta uma problematização teórica acerca das estratégias de atenção em saúde acionadas pela Política de RD, no Brasil, sinalizando a multiplicidade lógica da RD e, ao mesmo tempo, algumas limitações da sua “redução” a uma lógica preventivista, no campo da saúde. As “lógicas” se referem a modos de ordenação que coexistem, compondo controvérsias, múltiplos arranjos, tensionamentos e possibilidades de produção de cuidado (Méllo, 2018; Mol, 2008). São modos de operacionalizar conceitos, pensamentos, processos que produzem modos de viver ou modos de subjetivação, práticas e agenciamentos que coadunam com as racionalidades que as moldaram. Modos de ordenação diversos, os quais possibilitam operacionalizar múltiplas práticas (Spink, 2015), que coexistem em tensionamentos e controvérsias.

Para discutir diferentes lógicas, primeiramente foram tecidos apontamentos históricos sobre a prática de RD, com foco na sua sistematização como política pública de saúde, no Brasil, bem como nas desarticulações orquestradas nessa política, em um engenhoso desmonte de ações de cuidado e captura de práticas até então convergentes com a RD, em um desprezo arrogante por estas (Galindo, Moura, & Méllo, 2017; Méllo, Moura, & Galindo, 2018). Destaca-se aqui a lógica da RD como política de cuidado em saúde, identificando vetores de potência e cristalização, no processo de composição da política, além dos aparatos arranjados para seu desmonte. Em seguida, a segunda lógica reside na RD como política de cuidado, ou seja, a prática do estranhamento ante as normatizações da assistência em saúde (Méllo, 2018), tendo por foco a ruptura dos modelos que resumem cuidado como sinônimo de tratamento, enfatizando o cuidado como a arte de acompanhar alguém, em sua vida, para “... produzir potências, seja nas dores ou nos prazeres” (Méllo, 2018, p. 12). Em coexistência com as lógicas da atenção em saúde e da política de cuidado, focalizamos a RD, atendo-nos aos atravessamentos da axiomática do capital, em estratégias de hierarquização e de captura pelo Estado de movimentos que despontam como possibilidade de resistência em estratégias de militância (Deleuze, 1994).

Trata-se de assumirmos um projeto ético-estético-político, o qual se caracteriza por luta constante contra sucumbirmos ao capitalismo e consumismo, que construa inter-relações solidariamente cuidadoras de si e de outros. Assim, adotamos o termo “ativismo”, para designar “... ações politicamente orientadas” (Batista, 2012), desenvolvidas cotidianamente, em constante mutação. O ativismo, em RD, coloca a si a problemática da política em relação à análise social do desejo: o foco são as relações múltiplas que se fazem em conexões potencializadoras da transformação de modos de subjetivação. Seríamos como máquinas em guerra constante (Guattari, 2004), a produzir fluxos antifascistas e, por isso, sempre atentos aos dilemas sociais e políticos que se fazem singulares, no presente.

A argumentação pela RD como prática de cuidado ativista é apresentada como racionalidade capaz de possibilitar acionar estratégias de cuidado como ativismo e vice-versa, permitindo construir outras formas de corporeidade política diante das estratégias afeto-políticas de controle. A problematização construída neste trabalho apoia-se nas contribuições da Filosofia da Diferença, especialmente nos trabalhos de Deleuze e Guattari (Deleuze, 1994; Deleuze & Guattari, 2011a, 2011b; Guattari, 2001, 2012), os quais articularam reflexões teóricas, práticas clínicas e ativismos políticos. Nesse sentido, adotamos o termo “ativismo”, em vez do uso corrente da palavra “militante”.

REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DE ATENÇÃO EM SAÚDE

No que diz respeito às estratégias de atenção em saúde voltadas ao consumo de drogas, a RD emergiu na contramão das práticas de repressão tecidas por governos e sob a alcunha de “Segurança Pública”, compondo ações que buscam minimizar possíveis danos sociais e à saúde, quando ocorre consumo nocivo de drogas. Esse tópico versa, por um lado, sobre paradigmas que guiam essa perspectiva (trajetória histórica para a consolidação das políticas de RD como ações de atenção em saúde) e, por outro lado, se refere à ascensão das comunidades terapêuticas como espaços concentracionários que operam na contramão das perspectivas de cuidado acionadas pela RD.

A RD teve sua implementação em modelos internacionais e estratégias nacionais que culminaram com o estabelecimento de políticas públicas de saúde, no Brasil. Estas sofrem desmontes, orquestrados principalmente por meio do financiamento de modelos opostos à RD, nominados de “comunidades terapêuticas”, desencadeadoras de “... práticas de manipulação de corpos e mortificação da vida” (Galindo et al., 2017; Méllo et al., 2018; Méllo, 2021).

G. Alan Marlatt (1999) afirma que os primeiros relatos sobre estratégias de RD datam da década de 1920, na Inglaterra, com o Relatório de Rolleston, um compilado de recomendações oriundas do Ministério da Saúde inglês, orientando a prescrição de ópio a quem fazia uso compulsivo dessa droga e se encontrava em situação de risco, evidenciado na dificuldade de gestão e promoção da sua própria saúde. Dentre as recomendações, a prescrição seria utilizada no manejo da síndrome de abstinência, quando identificado que, após tentativas, a descontinuidade do uso não poderia se realizar com segurança. Também era prescrita, procurando uma gradativa diminuição do consumo (ou até mesmo sua eliminação), quando uma pessoa era avaliada como capaz de levar uma vida digna, ingerindo uma dose regular mínima da droga (Rosa, 2014).

O desenvolvimento da RD como política de atenção em saúde se efetivou na década de 1980, num movimento internacional em resposta à crise pandêmica de HIV/AIDS (Rosa, 2014). O crescente interesse de estratégias de RD levou à sua discussão, em conferências internacionais, sobretudo nos países europeus, mas, posteriormente, na década de 1990, se expandiu a outros países. Ações de RD em certos países, como Holanda, Reino Unido, Alemanha, Suíça, Canadá e Austrália, ampliaram as discussões sobre políticas públicas e serviram de parâmetro para articular possíveis estratégias de cuidado em saúde para quem faz uso recreativo ou compulsivo de drogas (Marlatt, 1999). Observa-se que as ações de RD construídas como políticas públicas se guiam pelo viés do “menor risco” à pessoa e pela crença de que todo cuidado em saúde deva ser feito em liberdade e fortalecendo a autonomia, em relação às suas escolhas na vida, de quem é acompanhado (Avarca, 2021).

Marlatt (1999) enfatiza que as ações e as políticas públicas que se orientam por essa perspectiva de cuidado não punitiva têm em comum cinco princípios básicos. O primeiro deles é a compreensão de que a RD é uma alternativa de saúde pública em relação aos modelos moralistas e criminalizadores, priorizando a autonomia das pessoas, incluindo-as nas decisões sobre seu próprio cuidado e tratamento. O segundo reconhece a abstinência como possível resultado de cuidado, mas também acolhe alternativas outras que permitam usos com redução de riscos e danos, considerando a relação que se estabelece com a substância. Como terceiro princípio, a RD promove acesso aos serviços de “baixa exigência” (Ministério da Saúde, 2012), pois não têm a abstinência como pré-requisito para acolher as pessoas nos serviços de saúde, e cuidadores podem ir ao encontro das pessoas “onde elas estão”, construindo junto com as pessoas a serem atendidas estratégias de cuidado gradativas, planejadas a partir de situações de vida específicas, reduzindo estigmas sociais e ampliando o olhar para as condições de alguma fragilidade. Isso nos leva ao quarto princípio, o qual associa a RD à participação ativa de quem é cuidado, levando em conta seus conhecimentos em relação aos usos de drogas como sendo saberes que facilitam as estratégias de cuidado e a abordagem das equipes de saúde, ou as formulações de políticas públicas específicas. Por fim, o quinto princípio: a proposta de RD baseia-se em certo “pragmatismo empático” (Carlini-Marlatt, Requião, & Stachon, 2003), ou ações práticas acessíveis à pessoa que está sendo cuidada, tendo em vista aspectos de segurança e risco, pesando as condições favoráveis e desfavoráveis do uso e determinantes sociais para o cuidado em saúde. Em oposição, temos o “idealismo moralista” (Carlini-Marlatt, Requião, & Stachon, 2003), sustentado em julgamentos preconceituosos sobre o uso de drogas e sobre as pessoas que as utilizam.

Tais princípios indicam que as estratégias de RD priorizam ações intersetoriais, buscando articulações em múltiplos níveis de atenção, com ênfase também na prevenção (Rosa, 2014). As ações de RD acontecem em várias direções e envolvem desde reexaminar os usos de drogas prejudiciais, junto com quem precisa de cuidados, até integrar movimentos de mudanças culturais, em âmbito político amplo (alteração nas legislações e nas políticas de drogas governamentais, por exemplo).

As primeiras ações de RD no Brasil, como política de Estado, tiveram início em 1989, em Santos (SP), tendo por foco o consumo injetável de cocaína (Rosa, 2014). Assim, as práticas de RD ocorriam como ações preventivas, com orientações sobre possibilidades de transmissão do vírus da AIDS. Nesse contato direto com as pessoas em cenas de uso, eram distribuídos preservativos e seringas descartáveis:

Em 1994, do total de casos de AIDS notificados, 21,4% tinham relação com o uso de drogas via venosa. Dez anos depois do início das ações, esse número diminuiu em 62%, de acordo com dados do boletim Epidemiológico de DST/AIDS 2005, demonstrando a eficácia desta política no campo da saúde pública. (Rosa, 2014, p. 21)

Rosa (2014) descreve que, em 1995, foi implantado em Salvador (BA) o primeiro programa de troca de seringas da América Latina e, no mesmo ano, o estado de São Paulo aprovou a primeira lei que regulamentou a troca de seringas como ação de saúde pública. Nessas primeiras ações, seguindo uma lógica médica sanitária, a RD relacionada ao uso de drogas centrava-se em algumas orientações, tais como: “usar faz mal, mas, se for usar, não se deve utilizar drogas injetáveis”; “se usar drogas injetáveis, não compartilhar seringas”. Posteriormente, essas experiências de ações na rua foram consolidando o cuidado em RD como estratégias de atenção em saúde, a fim de reduzir riscos e danos de natureza social, política, física e psíquica, sem condicionar isso à abstinência (Andrade, 2016).

Em 2002, com a publicação da Portaria Ministerial nº 816, que instituiu, no âmbito do Sistema Único de Saúde, o Programa Nacional de Atenção Comunitária Integrada a Usuários/as de Álcool e outras Drogas, as demandas das pessoas que utilizavam substâncias psicoativas lícitas ou ilícitas ganharam visibilidade, com a instituição de políticas públicas de saúde: foram criados 250 CAPS-ad (Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas), assim entendidos:

Dispositivo assistencial de comprovada resolubilidade, podendo abrigar em seus projetos terapêuticos práticas de cuidados que contemplem a flexibilidade e abrangência possíveis e necessárias a esta atenção específica, dentro de uma perspectiva estratégica de redução de Danos sociais e à saúde. (Ministério da Saúde, 2003, p. 25)

A partir de 2003, o Brasil ampliou a RD com a política de atenção em saúde e, em 2005, a RD tornou-se política oficial de governo, sustentada na Portaria nº 1.028/2005. Trilhando caminhos antiproibicionistas, especialmente no que se refere ao cuidado em saúde, as ações de RD estavam presentes, por exemplo, em programas nacionais de DST/AIDS, os quais, em 2004, passaram a ter coordenação de governos estaduais e municipais (Andrade, 2016). Já em 2005, com a mencionada Portaria nº 1.028, do Ministério da Saúde, a RD é definida como diretriz nacional. Mesmo assim, essa proposta era, majoritariamente, levada adiante por organizações não governamentais (ONG), já que os governos municipais e estaduais, em sua maioria, não adotavam a perspectiva de RD, o que, na análise de Andrade (2016), se tornou um dos empecilhos para que serviços abertos, como CAPS-ad, se efetivassem como dispositivos de RD. O que aconteceu e ainda acontece é que os serviços foram se efetivando, como dispositivos de RD, pelo esforço das equipes de saúde, que despertavam para isso em cursos de atualização profissional e implementavam ações de RD nas práticas cotidianas de cuidado efetivadas por elas (Moura, 2019).

Observou-se que, desde 2015, com alterações na gestão da Coordenação Nacional de Saúde Mental, se fragilizou a manutenção de uma perspectiva antimanicomial, na rede pública de saúde. Posteriormente, com o impeachment presidencial e a troca do governo nacional, intensificou-se o processo de desarticulação das políticas de atenção que se guiavam pela lógica de RD. O ápice dessa desarticulação deu-se no início de 2019, já no governo do Presidente Bolsonaro, com o Decreto nº 9.761, o qual substituiu as políticas de RD e a lógica de tratamento aberto pelo confinamento e abstinência, reafirmando uma lógica perversa que consagra o modelo bélico de guerra às pessoas que fazem uso de drogas e seu expurgo para estabelecimentos fechados, como as chamadas comunidades terapêuticas, pautadas pela lógica de “trabalho” e religiosidade (Moura, 2019). Cabe sinalizar que essas instituições, desde 2011, com a portaria de implantação da RAPS (Portaria nº 3.088/2011), já tinham legitimidade para disputar financiamento público da área da saúde, ao serem tipificadas como “serviços de caráter residencial transitório” pertencentes à RAPS. Com a fragilização da política de saúde mental e a intensificação do financiamento das comunidades terapêuticas, agora por meio da Secretaria Nacional de Política de Drogas, vinculada ao Ministério da Justiça, essas instituições proliferam em todo o território nacional, com respaldo de uma gestão no Ministério da Saúde que prioriza modelos de segregação.

Nesses espaços de confinamento, o trabalho obrigatório é descrito como “terapeuticamente relevante” e, com o amparo de certo discurso médico-psicológico, é apresentado como “laborterapia” ou “terapia ativa” (Galindo, Moura, & Méllo, 2017; Méllo, Moura, & Galindo, 2018). Entretanto, incide como uma estratégia disciplinar que busca, na mesma medida, ampliar as ações de doutrinamento e docilização do corpo. Também acionada como atividade obrigatória, a religiosidade é trabalhada como procedimento de vigilância e coação. Mesmo quando as comunidades terapêuticas dizem que não há obrigatoriedade em aceitar a religião dos responsáveis pela casa, estar ali já oferece uma associação/imposição de rotina (Galindo et al., 2017; Méllo et al., 2018). As comunidades terapêuticas tornaram-se equipamentos de investimento de recursos públicos e representam o ápice de políticas de segregação e mortificação social (Méllo et al., 2018).

Em 2019, a Lei nº 13.840 ampliou a internação compulsória como modelo de atenção, desconsiderando as produções científicas sobre a mensuração da efetividade da estratégia: “A principal preocupação é se a restrição da liberdade pessoal ... pode ser justificada ética e clinicamente” (Sheehan, 2009, p. 282, tradução nossa). Assim, entre 2017 e 2020, verifica-se um aumento de 65% no financiamento às comunidades terapêuticas, em processos feitos sem licitação, por meio de cadastro em edital (Conectas & Cebrap, 2021), quando, no mesmo período, os CAPS tiveram 11% de investimento (Ministério da Saúde, 2021). Dessa forma, de 2020 a 2021, os CAPS-ad habilitados no país passaram de 462 para 457, ao passo que as comunidades terapêuticas cadastradas no Ministério da Cidadania passaram a somar 481 instituições cadastradas (Ministério da Cidadania, 2022).

É necessário sinalizar que não há comprovação da eficácia das internações compulsórias, em especial em estudos sobre pessoas que fazem uso compulsivo de drogas; ao contrário, as consequências desse ato podem ser desastrosas:

No geral, as evidências não sugerem melhores resultados relacionados às abordagens de tratamento compulsório, com alguns estudos sugerindo possíveis Danos. Dado o potencial de violações dos direitos humanos em contextos de tratamento obrigatório, as modalidades de tratamento não obrigatório devem ser priorizadas pelos formuladores de políticas que buscam reduzir os Danos relacionados às drogas. (Werb et al., 2016, p. 02, tradução nossa)

Considerando a fragilidade dos modelos de “tratamento” compulsórios que se capilarizaram na rede de atenção em saúde, o tópico seguinte aborda a RD como proposta de cuidado integral.

REDUÇÃO DE DANOS COMO POLÍTICA DE CUIDADO ATIVISTA

Pressupondo a possibilidade de compor a RD não só como uma política de atenção em saúde, apresentaremos o uso do conceito de cuidado (Méllo, 2018) e a possibilidade de sua articulação com os serviços de atenção psicossocial, através da lógica territorial (Yasui & Lima, 2014). Méllo (2018) sinaliza que cuidado deve ser entendido como uma ética que norteia ações, tendo em vista modos de viver singulares, com o intuito de potencializar a fluidez da vida. Nessa proposição, cuidado escapa ao sinônimo de atenção em saúde, pois o que se propõe é a criação de linhas de ruptura ante processos que serializam as inter-relações (Sartre, 2002) entre as pessoas, ou seja, quando se equiparam as pessoas, padronizando-as e desprezando suas vidas singulares. Portanto, tal cuidado implica direcionamento ético, com alguns parâmetros. Primeiramente, a construção de cuidados múltiplos e singulares, reconhecendo que humanos e não humanos não são universais, homogêneos e estáveis, de maneira a incentivar a multiplicidade de agenciamentos entre eles e outros seres e materialidades (Méllo, 2018). Isso leva à compreensão de que a construção de cuidados também se norteia pela proposição de saberes produzidos em “encontros entre humanos e não humanos, nos quais se constroem acontecimentos que podemos caracterizar, quando os localizamos como histórias do presente, tendo como questão-guia não o singular pelo singular, mas o singular como diligente de multiplicidades” (Méllo, 2018, p. 121).

O cuidado, sob essa perspectiva, também evita fascismos cotidianos, pois, amparando-se em Foucault, Méllo (2018) descreve que as possibilidades de troca mútua ajudam a experimentar a vida sem a prevalência de relações autoritárias de poder, provocando ações de resistência criativa entre os pares. Consequentemente, cuidado evita posturas que desconsideram o saber do outro, impondo seu próprio saber. “Os fascistas se acham virtuosos porque querem que todos sejam iguais e impõem os seus critérios e modos de vida. São contrários às multiplicidades e à vida singular” (p. 125).

Utilizando cuidado como categoria de análise, Mol (2008) argumenta que há lógicas distintas na condução da atenção à saúde. Há ordenação de modos mercadológicos, nos quais as pessoas são acionadas como clientes a receberem atenção mercantilizada, regida pelo domínio biomédico materializado em contratos. Mas, em contrapartida, há outros modos que seguem uma “lógica do cuidado”, nos quais a atenção à saúde é regida pela dedicação de profissionais e técnicos que acolhem cada pessoa sob seus cuidados como sendo vidas singulares. A “lógica do cuidado” guia-se por práticas localizadas (Mol, 2008), que acionam ferramentas de diferenciação e especificidades como estratégias de saúde (Spink, 2015).

Considerando a atenção voltada às pessoas que fazem uso abusivo e/ou compulsivo de drogas, as premissas basilares que regem as ações de RD (Marlatt, 1999) nos direcionam a práticas que devem articular redução de riscos sociais e ampliação de prazeres, em uma ética do cuidado de si e de outros, em contraposição à gestão do outro pela imposição de padrões de prazer: “Esta ética... explicita o respeito pelo outro em seus modos de viver, porque importa-se com ele não para governá-lo, mas para favorecer a vida” (Méllo, 2018, p. 129).

Nessa perspectiva, importa para nós ativar o conceito de cuidado ativista como um “dispositivo”, ou seja, como rede de elementos composta por “... discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas”, “o dito e o não dito”, (Foucault, 1985, p. 244), compreendido como estratégia de atenção para a potencialização de vidas. Guiados pela abertura ao diferente e pela lógica de cuidado, o que propomos como cuidado ativista é a criação de linhas de rupturas, linhas de fugas ou experimentações de si, as quais, ao mesmo tempo, se constituem como modos de viver em modelos de resistência ético-políticas aos modelos autoritárias e neofacistas.

Referindo-nos ao trabalho de cuidado ativista em saúde, convém primeiro destacar que é relacional (Merhy, 2013) e se realiza no encontro entre trabalhadores/as de saúde (entre e interprofissões, disciplinas e setores das políticas sociais) e usuários/as dos serviços e/ou entre quem demanda cuidado, sejam indivíduos, sejam coletivos, nos territórios. São nesses encontros, que certa disputa é travada: “entre a realização da saúde como bem de mercado subordinado à acumulação do capital e um projeto de saúde concebido e operado como bem público e patrimônio coletivo e individual de uma sociedade” (Scarcelli & Junqueira, 2011, p. 346). Nesse sentido, produz-se acolhimento e se propõe a manutenção, a ampliação e a melhora das redes e dos laços de conexões vitais que os sujeitos estabelecem entre si, nos territórios vivos, singulares e múltiplos, onde os encontros acontecem.

A relação entre a construção do cuidado e o território, em seus múltiplos efeitos e polissemias (Scarcelli, 2016), aparece em documentos que expressam princípios e diretrizes de políticas de saúde. Está presente no planejamento das ações locais, na Atenção Básica e como assunto central para a atenção psicossocial, em documentos de referência da Reforma Psiquiátrica (Yasui & Lima, 2014). No campo da atenção psicossocial e nos documentos da Reforma Psiquiátrica, os CAPS são instituídos como serviços territoriais substitutivos aos hospitais psiquiátricos, tais como serviços diários de atenção à saúde, responsáveis pela organização da demanda da rede de cuidados em saúde mental, sob a coordenação do gestor local, segundo a lógica da dinâmica do território onde está localizado (Yasui & Lima, 2014). Esses autores afirmam que essa lógica territorial é a concepção central, norteadora das ações elaboradas e realizadas pelos serviços públicos de saúde, e o CAPS aparece como estratégia de organização da rede de cuidados, impulsionado pela parceria entre serviços de saúde e a comunidade, com seus recursos e potencialidades, assim como pelo reconhecimento de suas múltiplas lógicas e agenciamentos, a fim de operar cuidados em saúde mental.

A compreensão dessa organização territorial demonstra que nenhum serviço, isoladamente, poderá dedicar-se às urgências de cuidado das pessoas. Ao mesmo tempo, é necessário buscar redes de proteção ou “Redes Singulares Significativas” (Méllo, Lima, Barros, & Veras, no prelo)1 de cada pessoa acompanhada e cuidada, priorizando os serviços abertos. É importante estarmos atentos para que as ações de cuidado não sejam exclusivas e se esgotem ensimesmadas em equipamentos como o CAPS-ad (Santos & Yasui, 2016), de maneira que as estratégias de RD, por exemplo, terminem por ser capturadas e usadas para sustentar práticas avessas ao cuidado em liberdade. Assim, a RD deve produzir práticas de cuidado de si e de outros que busquem deslocar o sujeito do lugar exclusivo de doente, e produtor de mercadorias ou serviços, instaurando outros modos de subjetivação que não sejam de contínua homogeneidade. A RD provoca descontinuidades nos modos de viver que fabricam certa relação consigo e com os outros (humanos e não humanos), e que recusem modelos pré-fabricados que acabam por eternizar a produção de modos de viver que mantêm preconceitos. Produzir cuidado ativista, por meio da RD, é estar em campos de imprevisibilidades e de embates direcionados à defesa da vida; é, para Merhy (2013), o “trabalho vivo em ato”, o qual acontece em movimento, entre a captura dos saberes já dados e estruturados, pela organização material dos processos produtivos e pela existência de um “grau de liberdade” que os coletivos e trabalhadores criam/inventam para exercer o seu trabalho.

Em oposição ao cuidado ativista, a Guerra às Drogas e as capturas do Estado, docilizando corpos, propiciaram e propiciam o desmonte de serviços de atenção em dois movimentos estratégias para desarticular a rede de serviços e instituições que deveriam atuar conjuntamente e deslegitimando as práticas antimanicomiais das equipes, subvertendo-as ou capturando-as, para serem ferramentas bélicas de controle e mortificação, composição essa amarrada pelo nó da judicialização de um suposto cuidado limitado a atendimentos protocolares (Moura, 2019). O processo de desmonte advindo de movimentos neofacistas de precarização e deslegitimação induzem, na guerra de informações, a discursos que afirmam que os atuais serviços “não funcionam”, transferindo a responsabilidade dessa suposta falha aos servidores e à metodologia de atenção guiada pela RD. Devemos questionar esse discurso da “funcionalidade”, pela “lógica de cuidado”, permitindo ampliar o entendimento de que destruir práticas de atenção às pessoas que fazem uso de drogas é projeto das máquinas dos poderes de Estado, no Brasil. Devemos nos implicar em práticas ativistas libertárias, as quais provoquem desestabilizações, questionamentos aos padrões modulares da atenção (Méllo, 2018; Moura, 2019), capazes de instaurar máquinas desejantes de solidariedade e respeito à autonomia do outro. Isso é possível, se levarmos em conta, nesse embate de forças, as tramas da axiomática do capital, a ser abordada no tópico seguinte.

REDUÇÃO DE DANOS NAS TRAMAS DA AXIOMÁTICA DO CAPITAL

A RD comporta possibilidades de resistência como política de cuidado, porém, na medida em que tem visibilidade, vive o risco de desmonte e de capturas por forças reacionárias neofascistas, especialmente advindas de políticas proibicionistas aos usos de substâncias:

Em outras palavras no atual momento político brasileiro, mais do que em outros tempos, falar de usos... coloca-nos no campo da “tanatopolítica” (Foucault, 2004) ou seja, os que ousam questionar o proibicionismo se incluem entre os que começam a ser estigmatizados como “drogados” ou “defensores de viciados”, e caem no grupo de pessoas que o Estado pode condenar, por serem supérfluos, sem importância: o importante é defender que devemos ser produtivos, fazendo o PIB crescer, para perpetuar alguns endinheirados. (Méllo, 2020, p. 53)

Assim, o Estado refina suas estratégias neofascistas, apropriando-se de práticas e conceitos que antes combatia continuadamente; alterna confronto com cooptação. Entendemos que práticas de RD têm sido, progressivamente, capturadas pelo Estado, e pretendemos situar como opera esse “aparelho de captura”, disfarçado pelo viés de “atenção” e de “cuidado”: “... o Estado só pode reunir aquilo que isola por subordinação. Ao fazer isso, essa espécie de aparelho de captura sobrecodifica, territorializa, combate ou integra as potências nômades e seus fluxos” (Lemões, 2019, p. 194).

Bem sabemos que as ações de RD propiciam “uma subversão nas normas sanitárias, onde nós temos umas políticas de saúde verticalizada” (Andrade, 2016, p. 27), mas, capturadas pelo Estado, podem vir a se tornar políticas gerenciadoras de modos de viver, as quais funcionam por meio de tecnologias de poder, fundamentadas em dispositivos que governamentalizam a população, criando estratégias de governo para manutenção do controle da conduta das pessoas, em cadastros de recebimentos de insumos ou para acesso a serviços (Rodrigues, 2003; Rosa, 2014). Eis aqui a sociedade de controle se fazendo hodierna, cotidiana. Deleuze (1992) nos alertou para esses modos de viver humanos que podem nos enquadrar em um “processo disciplinar”, por algum ato que o Estado considere ilegal, o que exigiria que o acusado oferecesse, em troca, ficar “livre”, porém, submetido a um controle contínuo (Deleuze, 1992). A RD pode ganhar “roupagem segura” para perpetuar lógicas manicomiais. Este é o risco que a RD pode sofrer, advindo do movimento de captura do Estado orientado por forças “psi” e biomédicas, por exemplo, veiculadas na noção de “dependência química”, a qual atualiza modelos de normalização, mesmo em serviços em meio aberto e orientados pelas propostas de RD, como os CAPS. Dizer que alguém é “dependente químico” é condená-lo à anormalidade e inviabilizar estratégias de RD.

Para compreender melhor esse movimento de captura, é importante distinguir as noções de poder e potência. Deleuze (1994) ressalta que a potência emerge como força em dimensão capilarizada, micropolítica, com atuação rumo a práticas de criação e resistência: “A confusão entre poder e potência é arrasadora, porque o poder sempre separa as pessoas que lhe estão submissas, separa-as do que elas podem fazer” (p. 41). A potência guia-se por um movimento inventivo, manifestando-se pela capacidade de afetação (afetar e ser afetado/a). Não necessariamente há uma localização dessas forças, contudo, o Estado é efeito dessas relações: “O fato de se apropriar e exercer as disciplinas [e o controle] é que traz a impressão equivocada de que o poder está totalizado no Estado” (Hur, 2018, p. 32). Nesse arranjo de forças, tratamos do Estado como uma lógica de operacionalizar estratégias de poder e não somente como instância de gestão de políticas públicas e de modos de viver.

Deleuze e Guattari (2011a) apontam que há duas formas de operar as estratégias políticas: pelo Aparelho de Captura do Estado e pela Máquina de Guerra. São mecanismos que atuam concomitantemente, em um processo de produção, cooptação e resistência, como engrenagens de uma máquina incessante. A captura é um mecanismo complexo que implica aparatos estratégicos de domesticação de modos de viver, os quais se fazem em cada um de nós como potência de ação contra a insurgência; são aparatos estratégicos que têm o fim de domesticar-nos. Para Deleuze e Guattari (2011a, p. 12), o Estado age por captura soberana, de sorte a impedir as insurgências, ainda que não consiga total êxito. De outra parte, a Máquina de Guerra se faz em nós insurgentes, se faz como potência em ato criativo, para romper com modelos estruturantes e mortificantes; o “Aparelho de Captura” opera como uma garra que apanha a laço aquilo que de ela é capaz de apropriar-se, docilizando.

A tentativa de monopólio de exercício do poder, as estratégias hierarquizadas e os movimentos de domesticação são operações de captura do Estado que também operam nos sistemas de saúde. No movimento maquínico entre Aparelho de Captura e Máquina de Guerra, o poder se dá como relações de forças e não de formas centralizadas nas mãos de uma instituição ou de um governante. Nessa relação de forças, o poder só incide naquilo que resiste. Num Estado que tem como prioridade a abstinência, apoiando, com diversos incentivos, as entidades privadas manicomiais, o cuidado ativista em saúde opera como foco de resistência. Essa captura traça estratégias para vencer as resistências nômades, expressas em cuidado ativista, menos pela destruição e mais pelo enclausuramento de seus fluxos, a fim de que possam ser domesticados e operar a favor do Estado.

Na construção de estratégias de atenção e cuidado às pessoas que fazem uso nocivo de drogas, há de se considerar essa relação entre as estratégias de controle e captura e as possibilidades de rupturas e resistências. Outro aspecto a ser destacado é que, à proporção que se ampliam as estratégias de RD ativistas, também se combatem estratégias de “guerra às drogas”. Rodrigues (2003) avalia que, além de buscarmos modelos de atenção em saúde antimanicomiais, concomitantemente, é imperioso construir ações que primem por mudanças em legislações e costumes libertários, almejando, por exemplo, a descriminalização das pessoas que fazem uso de drogas hoje consideradas ilícitas. Caso contrário, “a possibilidade de que táticas de redução de Danos coexistam com medidas de Guerra às Drogas expõe a nu o fato de que, em seu conjunto, elas não ambicionam mais do que reformulações dentro do regime proibicionista” (Rodrigues, 2003, p. 268). Logo, essa dimensão, a qual denunciamos, de uma RD capturada biopolítica colonial-capitalística deve nos impelir ainda mais a levar em conta a necessidade de defesa de políticas de estratégias de RD como macro e micropolíticas, que incluem conquistas também no campo político-jurídico, como estratégias que priorizem e potencializem a vida dos chamados usuários, muitas vezes reduzidos ao estigma de viciados, drogados, dependentes químicos e fracassados.

No conjunto de técnicas de controle social, não existem apenas vetores coercitivos e punitivos. O investimento na saúde instaura outras modalidades de intervenção “positiva”, os quais impulsionam a população para o campo da normalidade, indicando-lhe modelos de vida que se coadunem com a docilização de seus corpos e vida. O Estado julga e mata legalmente, mas também permite que alguns vivam, desde que submetidos ao seu controle (biopolítica). Por meio do proibicionismo e Guerra às Drogas, o Estado cria o consumidor de drogas que tem interesse em tornar legais. É preciso afirmar que as estratégias de RD, ao se fazerem cuidado ativista, abrem brechas importantes no proibicionismo e no controle do Estado, abalando abordagens criminalizadoras e punitivas, de sorte a produzir ruído nas diretrizes da Guerra às Drogas. É esse cuidado que foge a padrões patologizantes que discutimos, no item seguinte.

CUIDADO COMO ATIVISMO E ATIVISMO COMO CUIDADO

Para sustentar a defesa da RD, é necessário compreendê-la também em sua dimensão de uso como estratégia de controle biopolítico por forças reacionárias. Ampliar ações de saúde pública não significa, de imediato, escapar de uma lógica de controle, mas construir formas de resistência. Assim, neste tópico, apresentamos o conceito de ativismo operando como possibilidade de resistência ante as capturas do Estado e de forças reacionárias neofascistas, concebendo a RD como podendo ser potencializada, ao se associar com a lógica de cuidado, assim como o cuidado pode ser potencializado, ao se vincular ao ativismo libertário oposto a práticas que efetivem ou sugiram algemas, cordas, laços, manicômios, eletrochoques, contenção química ou dogmas acadêmicos (médicos, jurídicos, psicológicos), os quais favoreçam a criminalização do diferente.

Assim, definimos ativismo como imanente à construção ininterrupta de modos de viver libertários. Aqui, a noção de ativismo pressupõe processos de resistência que se efetivam no cotidiano, em práticas micropolíticas ou tendo as instituições ou espaços públicos como possibilidade de criar contaminações onde o biopoder incide, lidando com modos de subjetivação conectados a devires e multiplicidades. Também, como afirmamos no início do texto, somos favoráveis a ativismos que se fazem por meio de grupelhos ou bandos, no sentido aproximado dos empregos que fazem Agamben (2002) e Hobsbawm (2000). Ambos são concordantes, quando apontam que “bandido” é palavra de origem italiana que significa “banido”, expulso, fora da lei. Nesse sentido, seriam pessoas que não estão dispostas “a aceitar o papel social dócil e passivo” (Hobsbawm, 2000, p. 59), mas que têm também, em suas ações, um tipo especial de protesto e rebelião, que têm consciência de que alguns são empobrecidos e impedidos de exercerem “direitos” e “desafiam estruturas oficiais de poder e da lei” (p. 230). Diferentemente de “bandidos criminosos”, são grupos que combatem por uma ética solidária do viver humano com dignidade, os quais vivem se rebelando contra injustiças, inclusive as perpetradas pelo Estado, com seus aparatos policiais e sistemas judiciários: “grupos pequenos de proscritos anônimos” (Hobsbawn, 2000, p. 230).

Somos todos grupelhos: a subjetividade é sempre de grupo; é sempre uma multiplicidade singular que fala e age, mesmo que seja numa pessoa só. O que define um grupelho não é ser pequeno ou uma parte, mas sim ser uma dimensão de toda experimentação social, sua singularidade, seu devir. É neste devir que a luta se generaliza. “Saúde infantil” do político, que se contrapõe à tendência a generalizar a luta em torno de uma representação totalizadora, sua “doença senil”. Desta perspectiva, tamanho não é documento, e um pequeno grupo também pode ser acometido de “doença senil”. (Guattari, 1985, p. 18)

Já indicamos que substituímos a palavra militante por ativismo, mesmo entendendo certos usos que se aproximam de posturas libertárias. Souza (1999) descreve que a palavra “militante” deriva do latim militare, lutar por algo, combater, para que um grupo ou um coletivo possa sair vitorioso. Desde a Idade Média, esse verbo passou a ser empregado na linguagem teológica, fazendo com que o adjetivo “militante” passasse a qualificar uma ação em favor da Igreja, remetendo à ideia de “combate a um inimigo”, com o objetivo de salvação. A partir do século XVII, o termo militante passou a ser usado para se referir aos soldados, militares que, em treinamento, construíam um processo de disciplinamento e obediência ao modelo hierárquico militar. Desse período, Souza (1999) atenta para o fato de que militar também se ligava aos processos de construir estratégias para obter sucesso em uma luta. Somente por volta do século XIX, a palavra militante se inscreveu no vocabulário político, passando a ser empregada para nomear aquele que milita numa organização partidária ou sindical, desencadeando ativismos para causas coletivas.

Os termos militância e ativismo são, por vezes, utilizados de forma massiva como sinônimos de ação coletiva de movimentos sociais. Em revisão sobre os usos desses termos, Sales, Fontes e Yasui (2018), mesmo considerando que ambos são da ordem do agir, intervir, sugerem que ativismo seja relacionado às estratégias de ocupação dos espaços públicos e à reinvenção dos repertórios de ação e protestos dos novos movimentos sociais. Ao distinguir os conceitos, eles enfatizam a necessidade de reconduzir a noção de militância à condição de problema e criar uma zona de visibilidade para os limites decorrentes das práticas militantes e, consequentemente, para as possibilidades de potencializar nossos modos de agir coletivamente.

Deleuze (1994) não emprega especificamente o termo ativismo, mas faz direcionamentos que vão além de uma atuação em coletivos políticos, os quais podem atrelar-se a um único modo de vida utópico; ao contrário, defende uma atuação que busque romper com modelos estruturados em definitivo, criando linhas de fuga, modos de escape para fora das estratégias de dominação que desejam impor um modelo de vida. O autor propõe que sejamos argutos, na busca por escapar de modelos de vida hegemônicos autocentrados, e abracemos a afirmação minoritária como potência de vida, de sorte a favorecer revoluções moleculares cotidianas, ou seja, “... inventar formas para dar ao desejo uma posição revolucionária, impedindo que este seja adestrado, capturado e controlado” (Maeso, 2020, p. 11).

A proposta de um ativismo libertário, tendo com fundamento a Filosofia da Diferença, significa nos orientarmos por certo paradigma ético-estético-político (Guattari, 2012). Ético, no sentido de acompanhar os movimentos coletivos do desejo, sinalizando as naturalizações que enrijecem nossos territórios de vida, possibilitando a emergência de devires, de mudanças. Estético, por ser guiado por movimentos de criação, de abertura para o diferente: criar é se diferenciar. Quanto à dimensão estética, ela se faz na composição/recomposição de universos de subjetivação ou modos de viver; por fim, o político deve nos impelir a colocar em xeque formas de controle, práticas que padronizam e rotulam, em oposição a práticas que potencializam e subvertem ordens cristalizadas de um poder que cerceia e limita.

Ampararmo-nos nesse posicionamento ético-político-político, para nortear um trabalho de cuidado ativista, já se configura como estratégia de resistência ativa, a qual se efetiva no cotidiano da prática profissional, por exemplo em RD, lidando com modos de subjetivação conectados a devires e multiplicidades. Precisamos nos dedicar ao movimento de construção de políticas públicas que não nos aprisionem em micropolíticas produtoras de identidades normativas coloniais-capitalísticas.

No que diz respeito à construção de estratégias de atenção voltadas às pessoas que fazem uso de drogas, em geral, propomos atrelá-las ao ativismo, para que se efetue como recurso de resistência, à noção de cuidado, traçando processos que se guiem pelo estranhamento, de maneira a não nos acomodarmos com o que normatiza e se torna padrão.

Nossa ação deve favorecer um cuidado ativista que afete aparatos e instituições que estagnaram em processos burocratizados e perderam a dimensão do cuidado, para se fixar em normativas protocolares e hierarquizadas. Devemos permanecer atentos sempre para que, nesses espaços, as nossas ações não se esvaiam capturadas pelo trampolim da vaidade e visibilidade de si mesmo reinando. Assim, parasitar as instituições, contaminá-las de dentro para fora é buscar utilizá-las como trampolim de visibilidade da luta contra neofascismos, criando contaminações que fazem eclodir modos de subjetivações minoritários. Nesse caso, podemos considerar que o ativismo age como o cupim, o qual, com suas fortes mandíbulas, em ação coletiva, como operários, espalha-se por dentro de madeiras e alvenarias, infestando estruturas, silenciosamente, mas de forma eficaz.

No ativismo em torno do tema drogas, devemos estar atentos aos processos históricos, políticos e sociais que ensejaram a construção de uma lógica proibicionista. Estar alheio a esse processo faz com que adotemos conceitos médicos e jurídicos, sem atentarmos para as possibilidades de serem utilizados como ferramentas de controle. Um ativista cuidador defende práticas, tais como as práticas de RD, sem desconsiderar que estas podem ser usadas como estratégias de controle pela axiomática do capital.

Um ativismo como cuidado, ou um cuidado ativista, significa criar práticas avessas às formas neofascistas, na atuação em espaços públicos, em instituições. Implica a construção de práticas de cuidado guiadas pelo paradigma ético-estético-político, o qual questiona aparatos de controle, práticas que padronizam e rotulam (incluindo aqui questionar os academicismos que nos orientam a um modelo hierárquico de saber).

CONSIDERAÇÕES A UM CUIDADO ATIVISTA EM REDUÇÃO DE DANOS

Neste texto, argumentamos a favor da RD como prática de cuidado. Para isso, problematizamos as estratégias de atenção em saúde acionadas por estratégias de RD voltadas à atenção de pessoas que fazem uso abusivo e/ou compulsivo de drogas, no Brasil.

Foram apresentados aspectos históricos da RD com foco em sua sistematização como política pública de saúde, bem como as desarticulações orquestradas por desmontes e capturas de práticas de cuidado. A RD como política de cuidado move-se entre uma lógica libertária que se contrapõe ao proibicionismo e às lógicas de captura, os quais se acentuaram, após mudanças nas políticas públicas sobre drogas, entre 2018 e 2019, requerendo um questionamento constante aos seus usos cotidianos.

Na identificação dos vetores que operam esse campo de forças que compõe a política de RD, dois operadores guiaram a problematização: ativismos, como posicionamentos para potencializar devires minoritários em processos de resistência efetivadas no cotidiano (Deleuze, 1994); cuidado, como prática de estranhamento diante das normatizações da assistência em saúde (Méllo, 2018), tendo por foco a ruptura dos modelos que resumem cuidado a tratamento protocolar. Assim, para compreender como se relacionam as múltiplas lógicas, foi necessário atentar para a RD enquanto capturada como ferramenta de controle biopolítico, em contraposição à RD como política de cuidado (Méllo 2018).

No que tange ao cuidado ativista como estratégia para lidar com o uso de drogas em geral, cabe ao cuidador estar atento às forças que operam construindo processos de exclusão, seja pela restrição no uso de certas substâncias, seja pela exclusão das pessoas que as usam. Uma atenção à espreita, principalmente cuidando de suas próprias condutas como cuidador, a fim de não se deixar sucumbir a tais forças. Uma atuação de cuidado ativista requer conhecimento e sustentação consistente de sua prática, mesmo que arranjos hierárquicos busquem deslegitimá-la. É atuar identificando quais processos de atenção à saúde potencializam a vida dos usuários dos serviços, e quais justificam estratégias de controle do Estado. É reivindicar o uso de práticas que têm por prioridade favorecer a autonomia e modos de vida singulares, evitando ações punitivas para comportamentos não consagrados pela maioria.

Ainda uma última palavra sobre o argumento da funcionalidade dos serviços de saúde. A questão central não é que os serviços não funcionam: ao contrário, vimos na pandemia de Covid o quanto o SUS funcionou, impedindo que a política de morte governamental fosse ainda maior. Todavia, a axiomática do Capital aciona justificativas sobre a funcionalidade dos serviços de saúde, para garantir a manutenção de outros espaços rentáveis à sua lógica privatista, como destinação de recursos públicos para instituições fora do sistema público de saúde, tais como as comunidades terapêuticas.

Quando o Estado afirma uma não funcionalidade da rede de saúde e assistência, ele o faz como uma estratégia de desmonte dessa rede. Esta resiste cotidianamente. através das práticas de cuidado ativista, que criam desvios e dobras ante os processos de desmantelamento, precarização e deslegitimação dos serviços públicos de saúde. A rede articula-se e sobrevive como “uma necessidade vital” (Deligny, 2015, p. 32), operando por linhas maleáveis. São as equipes da atenção que rearranjam criativamente estratégias de cuidado, procuram parcerias com outras instituições, incluindo as universidades e ONGs. Tais arranjos cotidianos na rede, descrita por Deligny (2015) como “rede aracniana”, se fazem como as tramas daquelas pessoas que criaram estratégias de sobrevivência, em face da imprevisibilidade da vida, com o foco, não no que falta, mas no que possibilita criar laços e teias.

Aquilo que possibilita a rede funcionar para potencializar vida são as brechas, as rupturas. Esse movimento de trama, que é construído nos serviços, opera por fluxos maleáveis. São práticas que detectam “... linhas de vida tênues, muitas vezes quase invisíveis, quase inaudíveis, mas que funcionam como germes de possíveis conexões, camufladas na profusão de condutas de evasão de vida” (Tedesco & Pecorato, 2016, p. 100). Isso pode ser visto até mesmo em espaços de clausura, quando profissionais de unidades de internação construíam estratégias clínicas com foco em atividades ligadas à arte (Moura, 2019). Pontuar esse aspecto não implica a defesa de uma instituição de internação e clausura, mas mostrar pontos de resistência, mesmo nesses locais (Méllo, 2018).

Produzir cuidado ativista em defesa de formas múltiplas de potencialização da vida vincula-se a um processo de abertura a encontros com o outro como alteridade, em campos de embates complexos e imprevisíveis. Assim, destacamos que as múltiplas lógicas de cuidado ensejam distintos modos de ordenar práticas de atenção em saúde (Mol, 2008). Nesse arranjo de controvérsias e posicionamentos antagônicos, reivindicamos a importância da produção de um ativismo como cuidado e cuidado como ativismo. Nele, os princípios norteadores da RD, quando não capturados como estratégia de controle, se concretizam em afirmação da vida.

Advogar ativismo como cuidado e cuidado como ativismo não se configura em propor um guia de atuação junto a pessoas que fazem uso de drogas, porém, em traçar ações potentes. E isso implica lidar com constantes mudanças políticas e sociais.

Financiamento

Não houve financiamento.

Consentimento de uso de imagem

Não se aplica.

Aprovação, ética e consentimento

Não se aplica.

1Redes Singulares Significativas” (Méllo, Lima, Barros, & Veras, no prelo)

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Recebido: 20 de Abril de 2022; Revisado: 29 de Agosto de 2022; Aceito: 25 de Janeiro de 2023

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