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Cógito
versão impressa ISSN 1519-9479
Cogito vol.2 Salvador 2000
TOXICOMANIA E CRIAÇÃO
Expressão e criação na clínica da toxicomania
Luiz Alberto Tavares*
RESUMO
O texto aborda, a partir da demanda do usuário de drogas que busca tratamento numa insituição especializada, os impasses do analista no manejo dessa clínica. Propõe então dispositivos institucionais que, pelo viés da expressão e criação articulados ao saber psicanalítico, favorecem a entrada e manutenção desses pacientes em tratamento.
Unitermos:
Toxicomania, Tratamento institucional do toxicômano, Psicanálise e instituição.
Em nossa prática clínica, percebemos que existem manifestações, e comportamentos, que se apresentam como assintomáticos. O que emerge não é um sintoma no sentido clássico do termo, mas um fazer, que tem para o sujeito uma série de funções. É nessa perspectiva que encontramos a toxicomania, tomada como uma solução para alguns sujeitos, tal como Freud descreve no Mal Estar na Civilização.
Diz Freud: “Na impossibilidade da fuga na doença nervosa o sujeito escolhe a droga como uma solução para o seu mal estar”. Freud situa essa prática como uma solução e não como um sintoma. Continua: “Quando o sujeito não pode encontrar um sintoma satisfatório para ele passa a escolher a via da consolação pela intoxicação crônica”.
Para situar a posição do toxicômano, tomemos o sintoma na condição de ser duplamente determinado: pelo inconsciente, naquilo que o sujeito tem de singular e, pelo discurso, que tem a ver com o estado de distribuição do prazer e do gozo no discurso do momento.
Os psicanalistas têm se interrogado sobre o modo da produção sintomática hoje. Surgimento de uma nova ética? Uma nova subjetividade? O sofrimento do sujeito e sua queixa mudaram?
Nesse final de século, postula-se que o sujeito não mais sucumbe sob os significantes ideais mas sim a uma tirania por deslocamento, aquela que se empregam a produzir. São assim comandados pela excitação do mercado de gozo dos tempos atuais e não mais pelos ideais.
No particular do caso a caso constatamos que, na medida em que um nome, uma inscrição não pôde ser estabelecida pelo sujeito, isso terá consequências diretas sobre a forma que toma o sintoma. É o próprio sujeito que passa a administrar o seu gozo, estabilizado num determinado tipo de comportamento. Nesse sentido, o discurso da ciência adquire uma função especial quando passa a assegurar uma nomeação possível: ser toxicômano, ser viciado, ou dependente químico, mais modernamente falando.
A experiência clínica institucional com os usuários de drogas e seus familiares suscita, entre os clínicos, uma série de problemas teóricos e práticos. As respostas são múltiplas entre os que tratam desse fenômeno, impondo a necessidade de se vislumbrar dispositivos novos, para dar conta da especificidade dessamanifestação e dos impasses que se anunciam na demanda de tratamento.
Ao recebermos um paciente na instituição especializada, estamos sempre a nos interrogar que demanda ele nos faz. A demanda se articula à necessidade e ao desejo, aparecendo desde o primeiro momento, para cada sujeito, vinculada à sua entrada no campo da linguagem e à falta do Outro. Sabemos que, na origem de toda demanda, o que aparece é a falta-a-ser. Toda demanda é, assim, demanda de ser e demanda de amor. Lacan nos propõe uma definição do amor: dar o que não se tem.
Mas, o que pede um sujeito quando procura o analista? Quando busca ajuda, o faz movido por um sofrimento, um sintoma que lhe faz enigma e do qual ele quer se livrar. Sente-se impotente para resolver as situações e demanda um sentido para o que lhe acontece. Se ele não tem respostas, supõe encontrá-las naquele a quem dirige sua demanda. Na medida em que o analista não responde à demanda de amor, mantém-se o lugar do enigma, levando o sujeito a interrogar-se sobre o seu desejo e, conseqüentemente, à produção de um saber.
Na clínica cotidiana existem solicitações que estão referidas ou apontadas no plano da necessidade. Enquanto terapeutas, estamos advertidos da inexistência de demandas puras, e pouco ou nada podemos fazer com elas. Seu destino é outro: médicos, trabalhadores sociais, educadores, etc.
Quando falamos de demanda, esta deve ser referida à um sujeito dividido, sujeito em falta, efeito da cadeia significante, proveniente do Outro, igualmente em falta. Para o toxicômano, a droga vem obturar esse efeito de divisão. Ele nos chega pleno de sentido. A droga é uma resposta para o seu mal-estar, ao tempo em que o sujeito se exila como sujeito da palavra.
A transferência estabelecida a partir de uma demanda de tratamento produz um vínculo que se dirige do amor ao saber. No caso do toxicômano, vemos uma posição invertida: o saber está do seu lado, o saber da droga e o gozo desse saber. Ele sabe qual a melhor solução para seu caso: medicamentos, desintoxicação, internamento, etc. Responder à demanda com algo, não importa o que seja, oblitera o caminho da emergência do desejo.
Muitas práticas terapêuticas destinadas a usuários de drogas tomam o produto como “causa”, um mal exterior a ser abolido, ou então, trabalham numa perspectiva em que as noções de pecado, no modelo religioso, ou de desvio social, nos modelos mais comportamentalistas, norteiam a posição da instituição ou dotomado não como um dispositivo propriamente analítico, mas que vislumbrasse a entrada ou manutenção do paciente em análise.
Esse espaço é sustentado por diversas actividades, nomeadas como oficinas, onde interessa menos o produto final, e mais o que é possível, para cada paciente, durante um dado percurso, resgatar uma fala que lhe permita deslizar sob o efeito do significante. As oficinas de música, teatro, artes plásticas, vídeo etc., constituem-se um espaço terceiro na relação dual que se estabelece entre o sujeito e a droga, favorecendo o deslocamento desse sujeito em relação ao produto de consumo.
Não se trata, aqui, de um espaço que teria como função tamponar o vazio da droga, ou mesmo ocupar o sujeito com atividades num intervalo de tempo, mas fazê-lo suportar o mal-estar na civilização que o tóxico tenta suprimir. A aposta é, justamente, buscar apontar o vazio, o que pode emergir entre o sujeito e a droga, aí onde a palavra encontra-se adormecida.
Pensamos que a música, o teatro, a pintura, o filme oferecem recursos que permitem a subjetividade aflorar na dimensão da obra, tanto no que ela provoca quando o sujeito se percebe diante dela, quanto na criação em si, possibilidade de abertura que se reinventa de forma permanente.
Lacan refere no Seminário da Ética, ao citar o exemplo do oleiro, como a criação, a obra dão forma ao vazio. São um modo de fazer existir o vazio, ao tempo em que o contorna.
Ao longo do trabalho, nesses espaços de expressão e criação, será possível escutar num “fazer” alguma palavra, alguma escolha que possibilite um enlaçamento no discurso do sujeito, fazendo com que ele possa se mover num trabalho subjetivo. Não se trata aqui da produção no sentido coletivo, efeito do trabalho grupal, mas do que cada um possa produzir singularmente, sustentando-se as diferenças apagadas pelos efeitos imaginários do produto.
Esse espaço terceiro institucional vislumbra o resgate do simbólico, ao tempo em que instaura uma lei. Não se trata apenas da lei da não violência ou da interdição do produto, que fomentariam o sujeito a resgatar um certo gozo perdido, mas uma lei que aponte um desejo possível. A perspectiva da convivência entre os participantes, em atividades num espaço sem drogas, visa promover, pelo viés da criação, os laços sociais rompidos pela identificação brutal com o produto.
A inserção do paciente nessas atividades é objeto da indicação de um terapeuta, responsável pelo seu acompanhamento, a quem cabe avaliar o impacto e os efeitos dessa intervenção. Nesse sentido, deve ser tomado como efeito a resposta particular de cada paciente a cada encaminhamento feito. É pelo viés da instalação da transferência, vínculo terapêutico essencial na clínica psicanalítica, que o manejo se dá no acompanhamento ambulatorial.
Importa ao terapeuta resgatar o que é falado pelo paciente sobre o seu percurso na atividade, ainda que esta tenha um caráter transitório.
Assim, o “jogar damas”, sempre repetido por um paciente na oficina de jogos; o texto tecido e posto em ato no teatro; o ritmo ou a letra criada na oficina de expressão musical; a “escolha”de um filme a ser visto ou o efeito de arrebatamento provocado num certo paciente, inseridos no contexto institucional, têm importância na medida em que possam ser reenviados às sessões individuais e tomados por um analista na instituição, e como um pré-texto, possibilitem a irrupção de um outro desejo e um saber possível, que não aquele aprisionado pelo efeito encobridor da droga.
BIBLIOGRAFIA
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TARRAB, M. “Uma experiência vazia”. Em: O brilho da in Felicidade. Rio de Janeiro, Kalimeros, 1998. [ Links ]
TAVARES, L.A. “Espaço de Convivência: uma estratégia possível”. Em: Cadernos do Cetad, vol.1. Salvador, Ed. Ufba, 1998. [ Links ]
Nota
* Psiquiatra, psicanalista. Terapeuta do CETAD (Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas).