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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito vol.2  Salvador  2000

 

TEMAS LIVRES

“O que há de psicanalítico em um acompanhamento vocacional”

 

Rosana Velloso*

Círculo Psicanalítico da Bahia


RESUMO

O texto pretende situar o fenômeno da adolescência na Psicanálise para a partir daí introduzir a questão do momento de escolha profissional do jovem e propor uma modalidade clínica de acompanhamento vocacional, articulando os campos da Psicologia e da Psicanálise.

Unitermos: Adolescência, Psicanálise, Constituição do sujeito, Função Paterna, escolha Vocacional, Acompanhamento Vocacional Clínico



Falar de Acompanhamento Vocacional nos faz pensar, inevitavelmente, na adolescência, embora na nossa prática clínica, adultos, até mesmo de meia idade, nos procurem com essa demanda. Como bem escreveu o psicanalista Calligaris (1998): “O aumento da expectativa de vida propõe uma segunda adolescência, após a dita vida ativa. Em um passado recente a vida terminava mais ou menos quando acabava a tarefa de educar os filhos. Hoje, a 3ª idade, obriga de novo a escolher, a renovar o contrato de nossa cultura, inventando um outro possível. A aposentadoria (do trabalho e dos deveres parentais), longa demais para ser um tempo de garagem na frente do cemitério, nos confronta com uma nova adolescência”.

O termo “adolescer” tem sua origem no latim e significa “crescer”. Mas o fenômeno “adolescência”, como percurso dramático, cheio de atribulações e conflitos, que inicia-se na puberdade e vai até a fase adulta, não é universal. Segundo a antropóloga Margareth Mead, a adolescência é um fenômeno que não era visto fora da civilização ocidental, onde a transição da infância ao jovem adulto se dava de forma gradual e facilitada por práticas societárias encontradas nas sociedades tradicionais. O historiador Philipe Ariés, por sua vez, acrescenta que, mesmo na civilização ocidental, a adolescência só é verificável, a partir do período dito da modernidade. (Ruffino, 1993).

Como entender isso? A hipótese discutida pelo psicanalista Rodolfo Ruffino (1993) é de que o fenômeno adolescência “surge em suplência a elementos outrora presentes nas sociedades tradicionais e que se tornaram obsoletos, em sua eficácia, com a modernidade” (p. 39). Esses elementos institucionalizados – os rituais de passagem, os cerimoniais – funcionariam como dispositivos da ordem simbólica, sendo eficazes na constituição para o sujeito de sua subjetividade adulta.

Nas sociedades modernas e abertas como a nossa, ainda que persistam certos ritos referentes à passagem para a idade adulta (ex.: baile de debutantes), esses não têm a força e caráter normativo que possuem nas sociedades tradicionais. Assim, na ausência dessa eficácia simbólica mediadora, o apelo corporal e social que vem desde o campo do Outro, atinge o jovem sob a forma do não-simbolizado, sob a forma do real, e então, desamparado, só pode questionar: “O que quer o Outro de mim?”. Sem respostas, só lhe resta adolescer.

Em sua obra, Freud não definiu o termo adolescência, referindo-se somente à puberdade. Há indícios de que o termo tenha surgido na psicanálise através de Ernest Jones, em 1923. Jones e outros psicanalistas (como Anna Freud, por exemplo) referiam-se à adolescência como sendo uma etapa cronológica produzida a partir da evolução dos estágios pulsionais e que culminaria com a conquista do primado da genitalidade que assegurava um final feliz e harmônico para as pulsões (Buri,1997).

A psicanálise freud-lacaniana, “faz uma ruptura nesse conceito de adolescência harmônica trazida pela Psicologia do Ego” (Curi,1997, p. 14), e, desnaturalizando o conceito, destaca a importância de se pensar a adolescência como ‘trabalho psíquico’ que provoca um efeito no sujeito e não como etapa evolutiva.

Nos interessa, então, esse ‘tempo de trabalho’, tempo de reatualização do edípico, que envolve modificações subjetivas e a admissão e elaboração de perdas significativas (o estatuto da criança, o corpo infantil, a perda dos pais imaginários da infância, a perda de certas modalidades de relação com o outro).

Na tentativa de entender esse momento, somos levados, ainda que de forma breve, ao modo como o sujeito foi constituído: Mesmo antes de nascer, a criança já tem um lugar previsto para ela na vida fantasmática dos pais. Estes escolhem seu nome, fantasiam expectativas. Quando a criança nasce, a mãe a alimenta, lhe recobre de cuidados e lhe dá significantes, palavras. Nesse momento, a mãe encarna esse lugar do Outro, da cultura, da linguagem. Como a mãe não é completa, o filho é convocado a preencher o lugar dessa falta. Mas para que ele se localize como sujeito é fundamental a entrada do pai – O pai, enquanto função e representante da lei, entra através do discurso materno, como aquele que vai fazer o corte e possibilitar que a criança saia desse circuito mãe – filho, permitindo a abertura para o desejo. Pois, a castração simbólica, paradoxalmente, ao mesmo tempo que interdita, limita o gozo (“Você Não Pode Tudo”), abre possibilidades (“Não Pode Tudo, Mas Pode Muito”), constituindo-o como ser barrado, e, portanto, de desejo.

Na adolescência, a partir do convite do Outro para ocupar agora um outro lugar, o jovem se vê diante do momento da Escolha Vocacional, tendo que inventar a própria vida, projetar-se no futuro. Diante de um universo de possíveis, terá que optar.

Nos dias atuais, a questão parece complicar-se ainda mais, pois, seduzido pela mídia que veicula os ideais desse Outro Pós-Moderno – o mercado – o jovem se vê exigido ao imperativo que indica a completude. A Folha de São Paulo, do dia 17/10/98, no caderno sobre “Cotidiano”, publica que, durante um debate na Conferência Mundial sobre Ensino Superior da UNESCO, que reuniu 180 países em Paris, o pesquisador alemão Ulrich Teichler, concluiu: “Não adianta ser apenas um bom estudante”... “o universitário tem que virar um especialista e também um generalista, além de adquirir habilidades sociais e de comunicação”... “A mensagem é: faça de tudo”. Na Folha do dia 24/01/99, o consultor Simon Franco, ressalta que “há dez anos, na hora de escolher um rumo na carreira, os jovens precisavam optar por seguir uma área ou outra, como administração ou engenharia”. “Agora é diferente”, diz o consultor. O “ou” foi substituído pelo “e”. “O ideal é fazer uma soma de conhecimentos”....

Mas será que é possível ser esse indivíduo onipotente, completo, que tudo pode? Como diz Roland Chemama, psicanalista francês, “o homem para quem tudo é possível, acaba sem desejo e sem escolha”. Assim, se faz necessário o apelo ao Nome-do-Pai, o que possibilitará lidar melhor com a onipotência, com limites, com satisfações possíveis. Como diz Lacan, no Seminário 17 (O Avesso da Psicanálise), não há causa do desejo que não seja produto da operação de castração.

Citamos o caso de “J”, 17 anos: “Não consigo me definir profissionalmente”... “ Não consigo discriminar, selecionar, eliminar”... “Tudo parece atraente”.

Ou ainda o caso de “L”, 19 anos: “Desde o ano passado, eu tô com essa dúvida do que vou fazer no vestibular”... “Fiz vestibular no ano passado para Direito e Administração. Perdi. Coloquei essas duas opções sem certeza... Escolhi Direito porque meu pai, meu tio e meu avô são advogados e eu via um caminho mais fácil para o sucesso... Administração não foi bem uma escolha, foi como um refúgio, uma fuga... O pessoal fala que quem faz Administração é porque não sabe o que quer... porque envolve humanas e exatas... acho que eu perdi o vestibular porque eu estava perdido... me perguntavam o que eu ia fazer e eu não sabia o que responder ... Na verdade, não tem nenhuma profissão que me desperte a atenção”.

Podemos citar o caso de “B”, 19 anos, cursando Administração de Empresas, mas insatisfeita com o curso escolhido. Diz: “ Meus pais queriam que eu fosse administradora mas eu não estou feliz com o que estou fazendo... Queria mesmo fazer Veterinária, mas todos diziam que eu não teria sucesso, não seria reconhecida, não teria dinheiro”... Dizem que Administração está com tudo, mas eu gosto é de bichos, campo, fazenda...”.

Uma outra jovem de 21 anos que, repetidas vezes, perdera o vestibular para Medicina, embora fosse ótima aluna, o que surpreendia a todos. Durante o processo de Acompanhamento Vocacional levanta a idéia de que perdera os vestibulares porque não se esforçara o suficiente e não se esforçara porque não era o que queria. Refere, então, o desejo de fazer Biologia, mas justifica não ter sido essa a sua escolha por não ser uma “profissão de prestígio”. Ao final do nosso trabalho, está decidida a fazer o que gosta e compreende que quem faz a profissão é o profissional e não o contrário. Recentemente, através de sua irmã, que também veio ao consultório para fazer um Acompanhamento Vocacional, ficamos sabendo que a mesma está fazendo o curso de Biologia, estagiando na área de biologia marinha e está muito bem.

Um jovem de 20 anos, cursando Odontologia, diz: “Sempre pensei fazer vestibular para Direito, acabei fazendo Odontologia e agora acho que quero Jornalismo”.

Citamos ainda o caso de “F”, 22 anos, cursando Medicina: “Acho que daria uma boa advogada ... mas o que o que gosto mesmo é de pintar quadros ... Psicologia também é legal ... e turismo me fascina”.

Essas falas surgem no cotidiano de nossa clínica. Pode-se ver o drama desses jovens diante da escolha de um caminho. Escolher, implica em renúncia, topar perder a ilusão da completude. Mas é também vínculo, ganho. E é dentro dessa dialética que o jovem terá que optar, se posicionando em relação à função fálica e à castração.

A abordagem clínica do nosso trabalho de Acompanhamento Vocacional está atenta a estas questões e visa à criação de um espaço onde o jovem possa ser escutado em sua singularidade, questionado, informado, a fim de que consiga formular o seu próprio desejo.

Como Édipo, na tragédia de Sófocles, o jovem chega ao consultório como que para consultar o Oráculo, esse Outro que decifraria o enigma do seu ser e do seu futuro (Gurfinkel,1991), mas, como ressalta muito bem Lacan, no Seminário da ‘Transferência’, à diferença do herói grego, cujo destino está nas mãos dos deuses, o herói aqui tem que enfrentar não a fúria dos deuses, mas as vacilações do seu próprio desejo.

Dentro dessa abordagem, o trabalho de Acompanhamento Vocacional fica em uma linha divisória entre o trabalho do psicólogo e do psicanalista. A partir de uma escuta clínica e sem perder de vista o referencial psicanalítico, lançamos mão de alguns recursos da psicologia, como as técnicas projetivas, adotando uma maior plasticidade técnica e agimos de forma mais participativa, em um trabalho dinâmico e instigante. Não ancoramos o nosso trabalho em instrumentos estatísticos ou de medidas de aptidões, como faz a Orientação Vocacional que segue o modelo psicométrico. Por conta disso até desconstruímos esse conceito de sua significação tradicional corrente, e construímos um novo conceito para torná-lo pensável no âmbito da psicanálise. Daí a chamarmos nosso trabalho de ‘Acompanhamento Vocacional’, ao invés de, ‘Orientação Vocacional’, o que reflete uma outra atitude, pois, contrariamente, a “orientar”, “guiar”, preferimos “acompanhar”, “estar ao lado”, “testemunhar” e implicar o sujeito no seu saber e na sua escolha, conferindo ao trabalho uma dimensão ética.

Frente a esta demanda pontual de saber, não recuamos. Porém, não é uma tarefa fácil. Na verdade, é mesmo um desafio. O desafio de sustentar um lugar, articulando dois campos de saber distintos: a Psicologia e a Psicanálise.

Para finalizar, gostaria de citar Nasio (1993): “Discordo profundamente do preconceito que encerra o analista na alternativa grosseira de ser puramente analista, ou não ser nada. Essa é uma visão dogmática e artificial da função analítica. Creio, ao contrário, que a ação analítica reúne diversas posturas possíveis do clínico, todas elas legítimas, dentre as quais a postura estritamente analítica, a de representar – como nos mostrou Lacan – o objeto a. Mas essa postura, que aliás, é rara, evidentemente não é única”.

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Nota
* Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico da Bahia

 

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