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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito vol.2  Salvador  2000

 

TEMAS LIVRES

Algumas considerações sobre psicanálise e educação*

 

Terezinha de Jesus Duarte Guimarães**


RESUMO

O presente trabalho inaugura um caminhar trazendo esboços de referenciais analíticos. Tendo como fundo o “Bolero” de Ravel, a autora faz reflexões sobre o tema Psicanálise e Educação através de alguns questionamentos: Seria possível uma educação analítica? Pode-se aplicar o saber Psicanalítico à Educação? Nossas crianças aprendem a aprender?

Unitermos: Psicanálise, Educação, aprendizagem, brincar, desejo.



Ao ouvir o “Bolero” de Ravel1 nos deparamos com repetições a cerca de um mesmo tema, como se as variações rítmicas através do som fossem trazidas pelo vento num crescendo... Num crescendo, não apenas no acompanhamento, mas no tema, tomando proporções à medida em que se aproximam de nós... Numa relação na qual devemos manter o ritmo ajustado a um certo espaço apropriado. Se nos adiantarmos, corremos o risco de perder a harmonia. Este é o grande desafio desta canção e da Educação.

Cada instrumento na sua especificidade e integração contribui para esta composição. Não é só a melodia que é importante. Se cada instrumento for tocado com entusiasmo, não dará para perceber as diferenças instrumentais. A não observação do ritmo e sua graduação destoa e produz o desafinar, a desarmonia.

Tenho neste momento a intuição e o prazer de escutar este bolero interpretado por uma grande sinfônica. Nesta Orquestra da Vida não quero fazer apologia do saber, da Educação, Mas sinalizar que cada instrumento tem um fim específico se visar a melodia Educar.

Na partitura estão inscritas as filosofias, as marcas, os referenciais onde o aprender a aprender constitui mais que um desafio, uma postura de vida, dando ênfase ao prazer e ao bem querer.

Nossas crianças brasileiras, baianas, aprendem a aprender?

Nossa orquestra nacional está nesse compasso?

“Pacote afeta a qualidade do Ensino Básico no país. O governo federal anunciou que não vai aumentar no ano que vem a previsão de gasto mínimo anual com cada aluno no ensino fundamental. Essa decisão descumpre a lei que criou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundet) e prejudica professores e alunos, principalmente o Nordeste” 2

Se esta orquestra tem como prioridade preservar a infância, deve apresentar-se ao público infantil atenta ao seu desejo, onde o brincar é tocar a vida no que ela tem de singular.

Foi o brincar que tocou o início e conduziu à origem da Técnica da Psicanálise de Crianças.

Melanie Klein percebia através da relação com seu filho Erich que desde o princípio a criança exprimia suas ansiedades e fantasias essencialmente ao brincar e, quando interpretava para ele o seu significado, surgia materialadicional em sua brincadeira.

Não podemos deixar de estabelecer uma relação entre o caso Erich e do pequeno Hans, cuja análise, a primeira psicanálise de uma criança pequena, foi retratada por Freud.

Portanto, sendo o brincar o fio condutor e, segundo Ricardo Rodulfo, não há nenhuma atividade significativa no desenvolvimento da simbolização da criança que não passe pelo brincar. Não é uma catarse, entre outras, não é uma atividade a mais, não é um divertimento, nem se limita a uma descarga fantasmática compensatória ou a uma atividade regulada pelas defesas, como tampouco pode-se reduzi-la a uma formação inconsciente. Não há nada de significativo na estruturação de uma criança que não passe por ali, é o melhor fio para não se perder.

Cada vez que queremos avaliar o desenvolvimento simbólico de uma criança, nada existe que possa fornecer indicações mais claras do que o estado de suas possibilidades quanto ao brincar.

Não há nenhuma perturbação severa ou significativa na infância que não se espelhe de alguma maneira no brincar.

Nossas crianças brincam?

Além do brincar, a descoberta da sexualidade infantil levou a questão da educação ao primeiro plano no interesse de Freud. Tal descoberta é paralela à revelação dos primeiros anos de vida no desenvolvimento do indivíduo e na etiologia das neuroses.

Desde os primeiros acordes a sinfonia já se faz presente... é preciso respeitar o ritmo, saber ouvir, compreender o se criança.

“Saber o que se está fazendo quando se educa, já que não se faz o que se quer em totalidade”. Eis a esperança que Freud suscitou. Há um maestro, um ritmo a seguir, uma partitura a ser vista.

Educar é respeitar o ritmo da criança, o desejo deste ser em desenvolvimento... É permitir que os acordes deslizem nos ditos da musicalidade.

Nossa estrutura de ensino no Brasil exerce essa “praxis”? O que não pode ser dito, também não pode ser pensado conscientemente.

A censura exercida sobre a palavra, o ocultamento da verdade, a mentira por omissão, através de livros, textos, métodos e posturas alienantes diante deste ser que cresce, constituiu um desafinar, um desestruturar onde a perda da harmonia concede lugar a repressão, à perda de identidade ...

Temos uma identidade educacional no Brasil?

... E a sinfonia se esvai dando asas a burocracia dos conteúdos programáticos, sem melodia, rijos, destoados de uma realidade psíquica infantil. Sem nada a ver com nosso registro, nosso contexto Brasil.

O respeito do maestro pelo desejo, pela verdade, liberdade de expressão e realidade deste ser infante, é o princípio desta canção que num crescendo lembra o despertar da vida, o início da evolução do vir a ser.

Nossa transmissão deverá propagar-se através do lúdico, procurando resgatar a criança contida dentro de nós para conquistar a criança que ocupará o espaço nesta melodia, tema central desta sinfonia. É um espaço cívico, criativo, neste vasto campo denominado Brasil.

Que a escuta deste bolero através desta orquestra da vida, seja motivo de prazer e bem querer. Resplandecendo em cada criança o desejo mais do que tocar o aprender, continuar aprendendo. Não tendo compromisso com o sucesso, mas com o progresso, tendo como essência o despertar da capacidade de ser feliz. Podendo esta criança confrontar-se com ensaios e frustrações... Reconhecendo desde o início, no erro, uma ponte que pode ser ultrapassada indo de encontro ao ser.

Nesta orquestra, quando interpretamos esse bolero para o público infantil, não podemos abdicar do papel extremamente importante desempenhado pela escola e pelo estudo que são desde o início libidinalmente determinados para cada indivíduo, uma vez que, pelos seus requisitos, a escola “obriga” a criança a sublimar as suas energias libidinais instintivas. A sublimação da atividade genital, acima de tudo tem uma parcela decisiva no aprendizado de várias matérias.

Ao iniciar a escola, a criança ultrapassa o ambiente que constituía a base de suas fixações e formações de complexos, enfrentando novos objetos e atividades, devendo então testar neles a mobilidade da sua libido. Também não podemos esquecer da importância das funções paterna, materna e de educadores, pois sem estas, a harmonia do todo fica comprometida. Sem as quais nossas crianças estarão sob pena de não ser classificadas na sinfonia maior do Vestibular da Vida.

Mas a orquestra continua a tocar... E o bolero de Ravel continua a soar..., como um sopro.... Num crescendo, num ritmo próprio... sem perder o compasso... no espaço deste ser de escuta, nos dirigimos para os bastidores desta grande melodia num segundo tempo:

Como Psicanalista me coloco no plano da Escuta... propiciando um espaço para que o ser seja ouvido... Na escola ou no consultório. Estar onde a criança me coloca e escutá-la no lugar que ela ocupa.

Que lugar esta criança ocupa na família, na Escola, em nossa Nação?

Quando a criança é trazida ao consultório e, na maioria das vezes, apresentando uma queixa escolar, percebo que esta música eu já ouvi muitas vezes, em outras ocasiões até na instituição onde trabalho. E constato que esta experiência de escola, de sala de aula, acrescenta uma nova dimensão à sua vida, que nunca mais será a mesma. Pois grande parte do sistema de ensino, desde a pré-escola, prevalecem sobre as necessidades da criança, gerando tensões, distorções e desvios comportamentais.

Somos uma nação de crianças abandonadas? Que nação é essa que tem medo da sua Infância?

E a criança sofre e, em alguns casos, adoece ou padece dos ditos distúrbios de aprendizagem! Sem falar nos distúrbios sociais.

Não apenas a Criança, mas a Escola também entra em conflito entre atender os interesses da criança e o da burocracia escolar. As “grades” curriculares lembram muitas vezes verdadeiras cadeias... fechadas.

E, assim como o primeiro ano de vida, a pré-escola da Criança é fundamental para este ser. As primeiras experiências de aprendizagem na escola são decisivas na formação da visão que a criança tem de si mesma e dos outros como parte da sociedade.

Assim como a imagem da mãe, o que mais influencia nessas experiências primordiais na futura carreira acadêmica da criança é o encontro com a sua professora. É através dela que a criança se encontra com o sistema educacional.

A maneira como a aprendizagem da leitura for experienciada pela criança, determinará o modo como ela perceberá a aprendizagem em geral; o modo como ela passará a perceber-se a si mesma como um aprendiz e mesmo como uma pessoa. Tudo isso dependerá em certa medida do seu potencial natural, da sua história familiar e escolar. Isso tudo inclui o fato de quão bem se desenvolveu sua capacidade de compreensão, usar e desfrutar da linguagem num contexto desejável de desenvolvimento gradativo de todas as suas habilidades específicas ( percepção visual, tátil, etc...) desenvolvidas por conteúdos significativos.

Entretanto, a criança sabe também que essas habilidades em si e por si mesmas têm pouco ou nenhum mérito e ela não se interessará pela aprendizagem dessas habilidades, caso a impressão que receba não seja significativa.

Esta é a razão por que tudo depende do momento onde se situa a criança, sua concepção, e do lugar que ela ocupa na Escola, na sala de aula e na família. E o que ela representa para esse contexto na família, escola e sociedade.

O quê significa educar?... Que tipo de educação prevalece em nosso sistema educacional?

Significa que a criança deve estar ciente de que o domínio das habilidades não é senão um meio para alcançar uma meta e que a única coisa importante é que ela deve tornar-se alfabetizada em seu sentido pleno; isto é, a partir deste momento ela desfrutará não só da literatura e da escrita, mas do momento único de ser criança, participando ativamente desta etapa de vida, podendo expressar não apenas o conteúdo formal, mas seus verdadeiros sentimentos de alegria, tristeza e raiva, muitas vezes reprimidos por falta de espaço nos métodos de ensino que não estão em concordância com a realidade psíquica e social da criança.

Uma Educação que reflete uma aprendizagem muitas vezes voltada para o sucesso, onde o erro é visto como uma ameaça e os processos internos e inconscientes nem sequer são levados em conta, em função de um padrão comum onde a individualidade sofre e pede passagem...

Diante do que observo na Escola e nas casuísticas que enfrento, alguns questionamentos são relevantes, me impulsionando a refletir e a pesquisar tendo como pano de fundo o som deste bolero para me inspirar...

Será possível uma Educação Analítica no sentido de que teria um objetivo profilático em relação à criança? Extraindo assim uma lição da Psicanálise no que concerne ao valor patogênico da repressão das pulsões geradoras de recalque?

Pode-se conceber uma Pedagogia Analítica? Nossa estrutura social e política comportaria esta abordagem em Pedagogia?

Pode haver uma aplicação da Psicanálise à Pedagogia? À Educação?

A questão da Educação na obra de Freud deve ser abordada através de outra, mais global, que é a das relações entre o indivíduo e o que Freud chamou de “Civilização”.

Cronologicamente é a esta que dirige suas primeiras críticas, imputando-lhe grande parte da responsabilidade pela gênese das neuroses. Freud inova quando, ao contrário dos seus contemporâneos, dirige suas críticas à moral sexual civilizada e não aos ritmos de vida impostos pela Civilização Industrial. Isto foi o que o conduziu a abordar o problema da Educação. Com efeito, se a responsabilidade pelas neuroses cabe à atitude moral diante da sexualidade, a educação que veicula essa moral se torna um agente direto da propagação da neurose, e a Reforma dessa Educação constituiria assim a via mais curta para a transformação.

A profilaxia das neuroses está, segundo Freud, nas mãos do Educador, que pode ser influenciado pela Psicanálise, dando um novo rumo aos processos de aprendizagem, onde os atos falhos, os erros e lapsos de linguagem tem um significado, um dito revelador e facilitador quando decifrados em tempo.

Se o objetivo da Educação é garantir um desenvolvimento satisfatório ao indivíduo sob o ponto de vista pessoal e no quadro da coletividade social, os dados da psicanálise podem mostrar-se úteis. Graças a eles o Educador poderá antes de mais nada reconciliar-se com a infância, particularmente com suas manifestações perversas.

Com efeito, a psicanálise mostra a grandiosa contribuição à formação do caráter dada pelas pulsões perversas e não sociais da criança. Se estas não forem submetidas ao recalque e desviadas do seu fim primitivo podem surgir desvios comportamentais e outros problemas. Não sendo pela coerção que se pode atingir esta sublimação.

A Educação deveria evitar o sufocamento dessas pulsões e estimular os processos através dos quais essas energias tomam rumos mais sadios.

Tudo o que o educador e pedagogo pode aprender pela Análise é saber por limites a sua ação – um saber que não corresponde à Ciência e sim à Arte, a esta Canção.

A questão exposta por Freud, ao nível da Civilização, a de conciliar as exigências egoístas do indivíduo com as da renúncia imposta por aquela, é a mesma que a Educação tem que resolver:

Conciliar o desenvolvimento da criança em direção à Civilização, com a manutenção de sua capacidade de ser feliz.

Creio ser este o início e o fim de uma Educação na qual este trabalho inaugura um caminhar, esboços de referenciais analíticos, para uma pesquisa em Educação e Psicanálise tendo como pano de fundo esta canção, cujo bolero através de repetições acerca de um mesmo tema, me permitiu recordar, repetir e elaborar este trabalho.


BIBLIOGRAFIA

FREUD, S. - E. S. B.- Ed. Imago.         [ Links ]

MILLOT, C. - Freud Antipedagogo - Jorge Zahar Editor        [ Links ]

RODULFO, R.- O brincar e o significante – Ed. Artes Médicas        [ Links ]

BETTELHEIM, B. e Zelan, K. - Psicanálise da Alfabetização - Ed. Artes Médicas         [ Links ]

Jornal A tarde – 1ª página do dia 01/11/98         [ Links ]

Notas
* Trabalho apresentado na X Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia, “Psicanálise e Criação” 1998
** Psicóloga, Psicanalista
1 ’Bolero’ de Ravel – Orquestra Sinfônica de Londres
2 Jornal “A Tarde” de 01/11/1998

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