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Cógito
versão impressa ISSN 1519-9479
Cogito v.3 Salvador 2001
FUNÇÃO PATERNA
A função paterna e a cultura1
Dalva de Andrade Monteiro2
Círculo Psicanalítico da Bahia
RESUMO
No seu processo de estruturação, o ser humano passa de objeto a sujeito quando vivencia o seu complexo de Édipo, na relação triangular fundamental ao psiquismo individual. Concomitante a essa experiência, o mesmo ser humano está sendo iniciado para se apossar de uma herança cultural que o incorpora, o integra e o legitima como mais um participante e construtor da história do homo sapiens sapiens.
Palavras-chave: Função paterna e cultura, Psicanálise e cultura.
A função paterna é objeto de estudo e articulação da Psicanálise a partir da contribuição lacaniana, embora Freud já tivesse feito menção dela quando fala do complexo de Édipo. É uma operação que introduz um terceiro que desestabiliza um idílio dual, fazendo surgir a falta, o desejo e um sujeito, onde antes havia a completude total e um objeto.
A cultura que surge, cria e mantém sociedades e civilizações, é estudada pelas ciências sociais. A Sociologia e a Antropologia se debruçam sobre as relações humanas e sociais historicamente contextualizadas e as dissecam nos seus aspectos econômicos, das crenças, dos comportamentos, dos costumes, etc.
Sob o ponto de vista da Psicanálise, a função paterna – enquanto ação, utilidade, posição e papel – possibilita o surgir do desejo, que por sua vez funda o sujeito. Sob o ponto de vista da Antropologia, a cultura – enquanto um complexo de padrões, de comportamento, de crenças, das instituições, dos hábitos e costumes, de valores materiais e espirituais – é responsável pela existência das sociedades e da civilização. Assim sendo, é possível se articular, que a função paterna está para a ontogênese, assim como a cultura está para a filogênese.
A função paterna não é um ato ou um papel atrelado ao desempenho de um indivíduo biologicamente macho. Também não é um acontecimento limitado ao tempo e às vicissitudes da família nuclear. Ainda que se realize na relação triangular mãe – filho – pai, a função paterna já se delineia nos binômios mãe – pai e mãe – filho. É um processo dinâmico que antecede e acompanha o sujeito por ela estruturado. A construção e a emergência da função paterna, seja ela competente, ou não, ocorrem no emaranhado das tramas do romance familiar que contribui com os elementos que povoam o imaginário e o simbólico de cada sujeito.
Enquanto os antropologistas defendem que a vida em sociedade, a cultura e a civilização são inatos ao homem sapiens, os freudianos advogam que a civilização é uma violência ao homem que prefere o eterno prazer, buscando a satisfação constante de seus desejos. Para suportar o abandono desse universo paradisíaco, o homem se aferra a sua fantasia. A construção inconsciente que substitui o reprimido, é um reduto que não se submete ao princípio de realidade e que funciona como motor da formação dos sintomas e da sublimação. Logo, a fantasia tanto pode causar inibições e paralisação, quanto pode motivar e contribuir para o desenvolvimento humano.
Conectando o indivíduo à civilização, Freud fala sobre as disposições constitucionais que seriam efeitos secundários de experiências vividas pelos ancestrais no partir da primeira guerra mundial defendem a idéia de uma filogênese cultural hereditária. Embora ele não explique como seria essa transmissão – como por exemplo o sentimento de culpa universal que surgiu com o assassinato do pai da horda primitiva –, dá a entender que o que foi emocionalmente marcante não se restringiria ao tempo e ao sujeito em questão. Essas afirmações parecem ser a leitura psicanalítica dos arquétipos e do inconsciente coletivo junguianos.
A culturalização, segundo Freud, educa, molda, enquadra e controla o ego que aprende a postergar o prazer em nome do princípio da realidade. Apesar de todo sacrifício, o adiamento não garante que o resultado seja satisfatório. No caso do neurótico, seu sofrimento é tanto mais intenso quanto a força da culturalização que age sobre ele.
Para ilustrar, ele usa um exemplo criado por sua imaginação. Duas meninas, que moravam na mesma casa, brincavam diariamente, inclusive de jogos sexuais. Uma era filha do proprietário e a outra era filha do empregado da casa. Esta, embora tivesse cinco ou seis anos de idade, já tinha observado e sabia muito sobre a sexualidade adulta e por isso desempenhava o papel de sedutora daquela. Anos depois, separadas, continuavam a alimentar os impulsos sexuais da adolescência através da masturbação. A filha do zelador cresce, se casa, tem um filho e segue a carreira artística. Já a filha do burguês cresceu com uma idéia de que havia feito algo de errado. Tempos depois, ela abandona a prática masturbatória, mas terá por toda sua vida um sentimento de opressão. Quanto à vida sexual, se afastará dela com aversão, afundando numa neurose que a incapacitará para o casamento e para a vida social.
Explicando sua parábola, Freud diz que a pequena burguesa se submeteu às exigências da educação, com ideal de pureza feminina e a abstinência que são incompatíveis com o desejo sexual. Os valores morais mais elevados e o desenvolvimento intelectual do ego conflituaram com as manifestações da sexualidade, inclusive, rejeitando as suas experiências sexuais infantis.
A ambivalência típica das relações humanas também se manifesta contra as ações da função paterna e da cultura. A interdição paterna tanto gera segurança quanto sentimentos hostis. E da mesma forma que a cultura é preservada porque a civilização é competente em proteger o homem contra a natureza e regulamentar os relacionamentos humanos, ela também estressa, gera desigualdades, conflitos, frustra e desaponta. Freud defende que todo homem é virtualmente inimigo da civilização porque faz cada um carregar o fardo de sacrifício de se viver a vida comunitária, na construção do bem comum.
Enquanto os antropologistas defendem que o homem é um ser social que criou as sociedades, motivados pelo instinto de preservação, associado às exigências de um córtex cerebral diferenciado e ávido para evoluir, Freud é cáustico em sua crítica às produções humanas. Ele rotula uma das mais caras manifestações da cultura em qualquer sociedade, de patológica. Diagnostica a religião como a neurose obsessiva da humanidade.
Os ritos religiosos diminuiriam o excesso e manteriam um certo quantum de sensações culposas. Continuando, escreve que a civilização obedece a um impulso erótico interno que levaria os seres humanos a se unirem num grupo estreitamente ligado: ela só poderia alcançar seu objetivo através de crescente fortalecimento do sentimento de culpa. Para ele, o homem adoeceu na sua ontogênese e na sua filogênese ao abrir mão dos seus desejos.
Assim como a cultura organiza os homens em sociedades e em civilizações, sendo responsável pela emergência e manutenção delas, a função paterna exerce o mesmo papel com o objeto que deve se tornar sujeito. Do mesmo modo como a cultura motiva o surgimento de novas e perpetua suas várias manifestações (ritos, cerimônias, iniciações, etc...), a função paterna determina no sujeito as suas ações e reações e como viver a própria vida. A incompetência da função paterna gera estruturas marginais e marginalizadas na sociedade. E a incompetência da manutenção de uma cultura faz desaparecer sociedades e até civilizações.
As culturas estão em constante evolução, tal qual os organismos vivos e podem determinar sociedades castradoras, permissivas ou ambíguas. Cada sujeito terá a sua experiência individual dos males e dos benefícios, a depender de sua relação com a função paterna. As mudanças dos costumes e dos valores interferem na construção do imaginário, do simbólico e até nos sintomas e nas formas de adoecer. Há muito se sabe que as histerias destes dias não são tão exuberantes quanto à estudada por Freud. [O corpo, Descartes e Freire].
Quando criança e no desenvolvimento da própria ontogênese o homo sapiens vive o seu romance particular, elaborado-o nos antigos e atuais contos infantis, ainda que estes sejam cada vez mais mágicos e influenciados pela tecnologia e a informática desenvolvida nesta civilização. Quando se torna adulto, ele atualiza suas experiências nos mitos, na religião, nas lendas, no folclore, nas artes, nas conquistas e outras atividades de “gente grande”.
Desde a infância ele é conduzido para a socialização, a estar envolvido com as relações humanas. As leis, os valores, as religiões e as instituições priorizam o coletivo, relativizando o individual. A tendência das sociedades ocidentais mais desenvolvidas, na qual o bem comum é um patrimônio, a ser conquistado e preservado, é garantir as condições básicas de sobrevivência, ampliando os direitos sociais e diminuindo as injustiças, as insatisfações e as tensões geradas no processo de reprodução econômica.
Como catalisador do processo de conexão, do indivíduo ao coletivo, ou do sujeito a sua sociedade, está a função paterna que é a representação da cultura na qual o indivíduo deverá ser inserido, e que traz a lei onde se lê a interdição. A cultura é o código do coletivo e a função paterna é quem introjeta a cultura no indivíduo. A cultura fornece a baliza para controle dos homens e para que ela mesma se mantenha. A função paterna determina o enquadramento do homem para que a cultura se reproduza.
Iniciar um indivíduo numa cultura é educar, moldar, controlar, limitar e ao mesmo tempo municiar o sujeito de valores, costumes e uma história que o individualiza e o articula ao coletivo. História, que lhe dá segurança e sensação de eternidade, porque o que lhe precedeu vai continuar após sua existência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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MORIM, Edgar. O Enigma do Homem, Rio de Janeiro, Editor Zahar, 1975. [ Links ]
1 Trabalho apresentado na XII Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia, novembro/2000.
2 Médica Homeopata. Membro associado do Círculo Psicanalítico da Bahia.