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versão impressa ISSN 1519-9479
Cogito vol.10 Salvador out. 2009
O riso: da loucura à clínica
The laughter: from madness to clinic.
Wagner de Angeli Ferraz*
RESUMO
Em diálogo com a filosofia, a literatura e a crítica literária, o texto busca analisar as relações entre a psicanálise e o humor. Para tanto, é feita a distinção entre o cômico, o chiste e o humor, tendo em vista os efeitos do riso sobre as subjetividades na clínica e no campo social. O humor provoca uma abertura na existência e produz novas formas de pensamento, possibilitando a constituição de subjetividades mais livres. O texto propõe, assim, que o humor (e o amor) permeie a clínica.
Palavras-chave: Humor; deslocamento; riso; clínica; subjetividades-libertárias.
ABSTRACT
In a dialogue with philosophy, literature and literary review, this article tries to analyse the relations between psychoanalysis and humour. In order to carry out this analisys a distinction among three concepts must be made: comic; jokes and humour. This distinction is based on laughter's effects on subjectiveness in social field, as well as in clinical field. Humour amplifies the existence and enables new ways of thinking, thus it makes possible libertarian subjectiveness. This article suggests that humour (and love) pervades clinical environment.
Key words: Humour; laughter; clinic; libertarian subjectiveness.
"Vivo em minha própria casa,
Jamais imitei alguém
E sempre rio do mestre
Que não ri de si também".1Inscrição sobre a minha porta
In A Gaia Ciência, Friedrich Wilhelm Nietzsche
O que é o humor? E por que o humor interessa à psicanálise, já que, ultimamente, tem sido tratado por esta sem muita seriedade? Seriedade, aqui, nada tem a ver com a sisudez de algumas perspectivas científicas, ou, melhor dito, o humor merece a seriedade da criança ao brincar. O humor é elemento fundamental na obra de Freud, não somente em importantes textos, como O chiste e suas relações com o inconsciente(1905) e O humor(1927), mas enquanto traço, força transversal inconsciente, que, se por um lado tem a ver com certa tradição judaica, por outro, revela algo sobre o estilo freudiano — relações entre a escrita e o modus vivendi. Entretanto, à medida que a psicanálise foi se institucionalizando, parece que, ao mesmo tempo, o humor foi se tornando uma espécie de "tema menor"2 na literatura psicanalítica. Esse "esquecimento" do humor, enquanto questão para a psicanálise, se assim podemos dizer, aponta para a complexidade do tema e dá pistas sobre o foco dos estudos e das práticas em psicanálise, atualmente. Mas psicanálise para quem? Que sujeito escutamos?
O fato de o humor estar, hoje, para a psicanálise como um tema menor merece reflexão não só pelas racionalizações que fundamentam certa "pedagogia" na transmissão da psicanálise — o que tem a ver com as práticas e a institucionalização —, mas, sobretudo, pelos efeitos do humor sobre o sujeito, portanto, sobre a clínica.
O humor, mais que subversivo, tem um efeito corrosivo que ameaça a estrutura das instituições e as práticas da mesma maneira que aterroriza o paranóico. Assim, há uma tendência à repetição dos discursos formais, que são discursos maiores dotados de um poder não raramente reconhecido pelo Estado. Em contrapartida, é bastante complexo pensar as ressonâncias do humor sobre a clínica, porque implica repensar a prática e um sujeito humoristicamente pós-moderno, que está submerso nos signos de uma "cultura da seriedade".
Dos gregos até hoje em dia muita gente se debruçou sobre o humor e a comicidade, tomando suas aproximações, que estão especialmente na rebeldia, na subversão corrosiva, mas também identificando as diferenças existentes. Foram os românticos, segundo Moneta Carignano e Garcia Menéndez (2007) que propuseram a idéia de uma nova sensibilidade em relação à arte clássica3 , colocando o humor como um tipo particular de comicidade que representaria o mundo moderno. Isso se funda no princípio da universalidade, onde o que está em jogo não é mais o indivíduo, mas a humanidade. Desta maneira, o humor seria o cômico da natureza humana. As autoras, baseadas em Richter (1982), dizem que "o humorista, em oposição ao cômico, não ri de alguém, mas manifesta um desprezo pelo mundo, onde se inclui a ridicularização de si mesmo" (MONETA CARIGNANO; GARCIA MENÉNDEZ, 2007, p.2), assim, o humor se diferencia sobretudo pela sua natureza subjetiva.
Para Henri Bergson, a comicidade está em toda forma de rigidez e o riso é seu castigo, o que designa uma função social do riso — a qual chama de gesto social, uma espécie de corretivo para os desviados e excêntricos —, mas também revela sua potência revolucionária. Diz ele: "Toda rigidez do caráter, do espírito, e mesmo do corpo, será então suspeita para a sociedade, por ser o possível sinal de uma atividade adormecida, que tende a afastar-se do centro gravitacional comum em torno do qual a sociedade gravita." (BERGSON, 2001, p. 14)
Bergson aponta a necessidade de constante vigilância que a sociedade exige do sujeito para evitar a distração, os desvios do espírito e do caráter, o que requer tensão e elasticidade. Estariam estas duas forças gravemente em falta, pergunta Bergson, ao observar as deformidades do espírito desde os mais variados graus de pobreza psicológica até as múltiplas aparições da loucura, bem como a miséria e os desvios de caráter.
Beatriz de Vasconcelos, em sua tese Só dói quando eu rio (2001), fez um belo estudo sobre o cômico, o chiste e o humor. Segundo ela, o cômico tem a ver com uma comparação de imagens, e uma sensação de superioridade. Já o chiste é um jogo de linguagem, por isso precisa de um terceiro que o compreenda. Contar o chiste obedece ao princípio do prazer — a lógica do inconsciente. A terceira pessoa do chiste é a sede do código, o simbólico. Mas o símbolo, a palavra, é a morte da coisa. O chiste privilegia o desejo, em detrimento do afeto. Entretanto, deseja-se porque se é afetado. Beatriz prossegue a análise, se o cômico diz respeito ao imaginário e o chiste ao simbólico, o humor é encontro/desencontro com o real — o não sentido.
O humor requer certa nobreza diante da morte. É desafiar a morte, sem denegá-la. O humor subverte a lógica da realidade, que se constrói a partir de verdades aparentemente estáveis, e admite, no máximo, verdades menores, transitórias, porque ao tempo em que possibilita um prazer diante dos riscos da existência, reconhece a fragilidade e o limite do humano. Segundo Pedro Murad4,
Se, por um lado, "o riso partilha, com entidades como o jogo, a arte, o inconsciente, etc., o espaço do indizível, do impensado, necessário para que o pensamento sério se desprenda de seus limites" (Alberti, 2002:11), por outro revela-se uma experiência de aniquilamento, de negação, ou seja, uma experiência de morte (MURAD, 2007, p.123).
A pobreza da realidade que o homem constrói, enquanto defesa da angústia do real, tende a enrijecer-se na repetição, que é objeto do riso, mas que pode ganhar diversas formas de adoecimento e antecipação dramática da morte. O grande desafio é fazer da morte uma festa5. Morre a tempo, eis o ensinamento de Zaratustra, que adverte: "aquele que nunca viveu a tempo, como há de morrer a tempo?" (NIETZSCHE, 1989).
Cada instante como produção artística, ou seja, aniquilando a si mesmo. "A arte é relação com a morte, porque é o extremo. Quem dispõe da morte, dispõe integralmente de si"6 (BLANCHOT, 1987). Kafka dizia: "escrever para poder morrer — morrer para poder escrever" (apud BLANCHOT, 1987). O preço da produção artística é a morte e, do mesmo modo, o preço da vida é a morte. Entre a loucura e a morte, a arte se interpõe como saída, linha de fuga consistente para construção de novos modos de estar-no-mundo. E o que tem a ver o humor com a arte?
O humor, assim como a arte, é a possibilidade de produzir novos sentidos a partir da experiência do sem-sentido do real. O humor não é uma propriedade, ninguém deveria se dizer humorista, e os que o fazem quase nunca o são, porque isso implicaria a promessa de um riso e de um prazer. O humor não advém da promessa, mas da surpresa. No instante da queda, surpreendido pelo estranhamento do real, em vez de resistir à queda, o humorista, como a criança, se faz queda e surpreende o próprio real, construindo uma nova realidade, mas desde já reconhecendo sua efemeridade.
O humor apazigua o estranhamento se tornando estranho a si mesmo, porque, ao contrário do paranóico que se sente perseguido pelo estrangeiro que o habita, o humor se faz estrangeiro em sua própria casa, e constrói, assim, uma nova morada, mas arma sua tenda ao relento, especialmente porque reconhece a força do chamado do deserto, que, mais que habitat, o habita.
Julia Kristeva diz que o "estrangeiro seria o filho de um pai cuja existência não deixa dúvida alguma, mas cuja presença não o detém", e prossegue:
O estrangeiro, portanto, é aquele que perdeu a mãe. Camus soube reconhecê-lo: o seu Estrangeiro revela-se na morte da mãe. Pouco se observou o quanto esse órfão frio, cuja indiferença pode voltar-se para o crime, é um fanático da ausência. Adepto da solidão, incluindo a que se sente no meio das multidões, ele é fiel a uma sombra: um segredo mágico, um ideal paterno, uma ambição inacessível. Mersault está morto para si mesmo, mas vive exaltado por uma embriaguez insípida que lhe serve de paixão: da mesma forma o seu pai, ao vomitar numa cerimônia de execução, compreende que a condenação à morte é a única coisa de verdadeiramente interessante que pode acontecer ao homem". (KRISTEVA, 1994, p.13)
O humor é o filho pródigo que já não ama nem odeia o pai, mas que cria outra ordem para se tornar um novo homem e, desta maneira, afirma a radical impossibilidade do sujeito estar inscrito completamente na lei. Curiosamente, o esquecimento do humor enquanto tema para a psicanálise está ligado a uma suposta fidelidade ao pai, o que torna central temas mais ordinários — transferência, identificação, objet petit, etc. Talvez isso seja uma traição à psicanálise em sua forma nascendi, que brota justamente a partir de uma certa marginalidade do pensamento, se não perdemos de vista o zeitgeist7 . Então, se é importante pensar o "ar do tempo" em que a psicanálise foi criada, parece lógico analisar que ares respiramos hoje — o que tende a resgatar o humor enquanto tema transversal da psicanálise na pós-modernidade. Para tanto, talvez seja necessária uma desterritorialização da psicanálise, ou das psicanálises, o que passa por reconhecer seus estrangeiros sem temer a perda de sua identidade e aponta para a construção de uma identidade mais veloz, populacional, em vez de enrijecer na "limpeza étnica" do pensamento que lhe é estranho.
O humor implica uma desterritorialização e uma territorialização, porque não teme o acidente, compreende que o acidente é próprio da existência. O sujeito, e porque não dizer o sujeito-paranóico, no instante do acidente, tenta se agarrar às suas verdades — espécie de bóias salva-vidas —, e por isso acaba se machucando na queda.
A criança tem muito a ensinar ao homem, especialmente a respeito da queda. Não é somente uma metáfora do poeta quando diz que ao fraquejar do adulto o socorro vem nas mãos da criança. Quando a criança começa a andar — um desequilíbrio estável8 — os pais morrem de medo. A criança não tem medo de cair9 porque ainda há pouco engatinhava, o chão é seu território. O homem aprendeu a andar e, do alto de seu aparente superior equilíbrio, teme cair, sobretudo cair em si — a consciência de sua fragilidade e finitude, de sua morte. Entretanto, é justamente nesta fragilidade que reside sua força. Se o homem é o único ser que tem consciência de sua morte, e pode pensar sobre ela, é também o único que pode rir da própria morte. Mais que um suposto poder do homem, isso revela a potência de criação do humano.
A paranóia necessita de um mestre, o detentor de um saber digno de confiança. Segundo François Roustang (apud DUTRA, 1996), a única forma de tratar o germe da paranóia é o riso, o riso de si. Mas para isso é preciso que o analista possa, antes de tudo, rir de si mesmo. Abdicar do poder em um exercício de deslocamento é condição para a constituição de um espaço de criação — um espaço transicional, transversal desde o princípio, o klinamem. A presença do humor na minha análise é marcante, e me parece menos da minha parte, talvez porque seja eu ainda muito paranóico. Donald Winnicott (1975) já dizia que a primeira função do analista é "ensinar o paciente a brincar".
Como fazer rir um paranóico é a questão que propõe Roustang, mas penso que é possível recolocá-la, na clínica, enquanto desafio: como criar condições para um adulto tornar-se criança?
Como pode o paranóico construir alianças, se o outro é sempre ameaçador? A constituição de subjetividades "libertárias" passa pela construção de alianças, práticas de amizade10. A verdadeira amizade não é a do conforto, mas a do desassossego. Não se trata da amizade no sentido cristão de amar meu semelhante. É, antes, amar o estranho, o estrangeiro, o dessemelhante que potencializa novas experimentações, descobertas sobre o mundo e, portanto, sobre si, fazendo vibrar experiências da ética e da estética dos cuidados de si, como diria Foucault.
Guimarães Rosa, em Tutaméia (1985), Aletria e Hermenêutica, diz que "Uma anedota é como um fósforo: riscado, deflagrada, foi-se a serventia. Mas sirva talvez ainda a outro emprego a já usada, qual mão de indução ou por exemplo instrumento de análise, nos tratos da poesia e da transcendência", e prossegue:
No terreno do humor, imenso em confins vários, pressentem-se mui hábeis pontos e caminhos. E que, na prática de arte, comicidade e humorismo atuem como catalisadores ou sensibilizantes ao alegórico espiritual e ao não-prosaico, é verdade que se confere de modo grande. Risada e meia? Acerte-se nisso em Chaplin e Cervantes. Não é o chiste rasa coisa ordinária; tanto seja porque escancha os planos da lógica, propondo-nos realidade superior e dimensões para mágicos novos sistemas de pensamento. (ROSA,1985, p. 7)
Essa abertura na existência que o humor provoca, permitindo o contato com novas formas de pensamento, flexibiliza e amplia a constituição de uma subjetividade mais fluida, ao mesmo tempo singular e coletiva, que permite o deslocamento das cadeias de significantes fálicos adoecedores na tríade do Édipo. O humor possibilita, como foi dito por Deleuze e Guattari no segundo capítulo do livro Kafka, por uma literatura menor, alargar o Édipo para o campo social, para o mundo.
Em resumo não é o Édipo que produz a neurose, é a neurose, isto é, o desejo já submetido e procurando submeter sua própria submissão, que produz um Édipo. Édipo, valor mercantil da neurose. [...] Desterritorializar Édipo no mundo, em vez de reterritorializar-se sobre Édipo e na família. Para isso, no entanto, seria preciso dilatar Édipo até o absurdo, até o cômico, escrever a Carta ao Pai. [...] "A revolta contra o pai é uma comédia, e não uma tragédia"11 (DELEUZE;GUATTARI, 1977, p.12)
Na clínica, da mesma maneira que no campo social, o humor produz efeitos de ampliação. Pode-se dizer que uma "boa interpretação" é a que escancha aberturas para novas formas de pensamento, que podem se desdobrar na construção de um novo modo de estar-no-mundo, e isso passa pela angústia... mas também pelo riso. A interpretação que fecha, oprime, encurrala, é devastadora em seus efeitos de significado, significação e afeto, e, certamente, diz respeito a verdades fálicas do próprio analista, ainda seduzido pelo mestre e sem o menor senso de humor.
Se a psicanálise é capaz de se pensar também de fora de si, e com isso abre em si mesma a possibilidade de novas conexões, quer dizer, se ela também se expande para o campo social e, assim, encontra zonas de vizinhança, pode, então, criar novos caminhos para entendimento do sujeito. Por que a psicanálise com sotaque francês ainda soa tão bem aos nossos ouvidos? Não seria, esse dado, um índice da colonização das nossas formas de pensar? No prefácio de As palavras e as coisas, Michel Foucault diz:
Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturba as familiaridades do pensamento — do nosso: daquele que tem nossa idade e geografia —, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensatas para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando, por muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e do Outro. (FOUCAULT, 1999, p. IX)
Que o humor tem a potência de provocar rupturas nos modos de pensar não há dúvida. A respeito da construção de uma "identidade brasileira" pós-colonial, tanto na experiência da Tropicália quanto no Modernismo, é marcante a presença rizomática do humor na constituição de uma identidade cultural. Gilberto Lago, em sua tese de doutorado diz:
Durante aqueles anos conflitivos, o discurso tropicalista, por meio do tropo da ironia e da intensão paródica, utiliza-se do travestismo, com seu potencial estético entre o grotesco e o caricato, para deixar deslocado o discurso androcêntrico, tanto do aparelho repressivo do Estado, quanto do aparelho ideológico cultural, ambos criadores de cânones simbólicos falogocêntricos na mentalidade de uma sociedade. Com seu potencial humorístico, o travestismo na Tropicália tem a função de deslocar a centralidade do significante fálico (que continua, no entanto, central como problemática) tanto do binômio homem-mulher, quanto de colonizador-colonizado. (LAGO, 2003, p. 78)
A tradição antropofágica que a Tropicália reinventa e que descentraliza o discurso colonizador, tendo o humor como ferramenta, aponta para a construção de uma identidade híbrida, mais autônoma, libertária. Mas que sujeito é esse? Ou como disse Barthes, de que plural é feito? Para pensar este sujeito parece mais interessante seguir pelas vias marginais que pela estrada real12. Trata-se de atentar aos temas menores na psicanálise, como é o caso do humor atualmente, e, a partir deles, descentrar os modos de pensar para repensar a prática clínica. Não se trata de um projeto de "psicanálise de exportação", a partir da negação, para afirmar um regionalismo ingênuo, mas de uma "devoração crítica", como disse Haroldo de Campos sobre a atitude antropofágica do "Manifesto" de 1928, quando cita a tese de Antônio Cândido: "criar um tipo ao mesmo tempo local e universal de expressão, reencontrando a influência européia por um mergulho no detalhe brasileiro" (CAMPOS, 1989).
A questão do humor na psicanálise hoje pode ser colocada em uma paráfrase do livro de Haroldo de Campos que resgata a obra de Gregório de Mattos, dito como O seqüestro do humor na psicanálise: o caso do riso13. E não se trata de centralizar o humor ou outros temas menores na psicanálise, tornando-os "maiores" — o que é uma armadilha —, mas de sair das vias formais para enveredar no trançado da complexidade do ser-no-mundo, assim, fazendo outro uso das palavras e dos conceitos, o que aponta para o nascimento da psicanálise, que foi gerada na interseção entre a ciência, a filosofia e a arte — o resgate do humor passa pelo resgate do processo primário freudiano, o inconsciente maquínico.
Em uma passagem de O Nome da Rosa, Guilherme, o abade enviado para investigar as mortes no mosteiro, após desfazer a trama, pergunta a Jorge, o bibliotecário, "Por que quiseste proteger este livro mais que muitos outros?", se referindo ao segundo livro da Poética14 de Aristóteles, ao que Jorge responde:
[...] este livro poderia ensinar que libertar-se do medo do diabo é sabedoria. [...] quantas mentes corrompidas como a tua tirariam o silogismo extremo, pelo qual o riso é a finalidade do homem! [...] O riso distrai, por alguns instantes, o aldeão do medo. Mas a lei é imposta pelo medo, cujo nome verdadeiro é temor a Deus. E deste livro poderia partir a fagulha luciferina que atearia no mundo inteiro um novo incêndio: e o riso seria designado como arte nova, desconhecida até de Prometeu, para anular o medo. [...] poderia nascer a nova e destrutiva aspiração a destruir a morte através da libertação do medo. (ECO, 2003, p. 455)
Se o inferno é o Outro, o riso pode libertar o homem do medo, que, em última instância, é sempre o medo da morte, e da loucura, o outro de si. No processo analítico, o grande Outro, construção do imaginário nas referências do simbólico, tende a diminuir, e se abre a possibilidade da criação, um novo modo de enfrentamento da angústia do real. Mas um modo mais alegre, um estilo singular de estar-no-mundo, é a possibilidade da arte de viver, a recriação de si e do mundo.
Em 1972, fazendo um balanço do movimento tropicalista, ainda no calor da hora, Caetano Veloso15 (SALOMÃO, 1977, p. 88) disse que a Tropicália tratava a tradição com amor e humor, fazendo referência ao poema de Oswald de Andrade (1971, p. 157). E me parecem, o amor e o humor, dois elementos fundamentais para a constituição de um dispositivo clínico capaz de produzir disruptores no campo da produção do desejo — devir, expressão, arte, multiplicidades, singularidades. Para além do sujeito conflitivo e da realidade estratificada e normatizada, a constituição de subjetividades libertárias, a construção de novos territórios existenciais.
Referências
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*Psicólogo, com estudos em psicanálise. Este texto é dedicado a Gilberto Pereira do Lago, amigo, carioca, botafoguense, psiquiatra, tropicalista, ou, como ele mesmo se dizia, ‘não exatamente um psicanalista'.
1 Recriação a partir da tradução de Paulo Cesar de Souza.
2 A expressão "tema menor", aqui, remete ao que Deleuze e Guattari (1977), no texto A literatura e a vida, definem por literatura menor: "vale dizer que o 'menor' não qualifica certa literatura, mas as condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que chamamos de grande (ou estabelecida)".
3De todo modo, é discutível o fato do romantismo ser colocado como marco divisório, em relação ao humor, através de uma oposição ao classicismo, basta lembrar Cervantes, bem como o sujeito moderno que também é anterior à própria modernidade. Mas essa discussão ganha outros rumos.
4Em outra passagem, Pedro diz que 'o riso é sempre uma reação frente a um tombo, a uma queda; revela uma corrupção congênita no risível, uma falha essencial, inerente à própria essência das coisas e dos homens'.
5Se outras formas de encarar a morte, hoje, nos parecem tão inaceitáveis, há algum tempo era bem diferente, aqui mesmo em Salvador. Segundo João José Reis, nas sociedades tradicionais "não havia separação entre a vida e a morte, o sagrado e o profano, entre a cidade dos vivos e a dos mortos". (REIS, 1991). A morte inspirava temor, mas cuidava-se bem dos mortos enterrando-os com seus ritos. Muito interessante este estudo que, tratando da cemiterada, revolta popular ocorrida em Salvador, na qual a população destruiu o cemitério do Campo Santo, oferece alguns clareamentos acerca da relação com a morte. As pessoas eram enterradas tradicionalmente nas igrejas, mas uma lei proibia tal costume e concedia o monopólio dos enterros em Salvador a uma companhia privada. Era a medicina promovendo a ‘higienização' da cidade.
6A respeito disso, no Diário, Kafka disse: "voltando para casa, disse a Max que no meu leito de morte, na condição de que os sofrimentos não sejam insuportáveis, eu estaria muito contente. Esqueci-me de acrescentar, e mais tarde omiti-o deliberadamente, que o que escrevi de melhor fundamenta-se nessa aptidão para poder morrer contente" (apud BLANCHOT, 1987)
7A psicanálise tem "um pé na senzala" — como se diz na Bahia —, o psicanalista nasceu meio-primo do charlatão, do feiticeiro, do pajé, aquele que habita as vizinhanças da aldeia (um entre-lugar aldeia-floresta), na borda do fora, e que povoa o imaginário com estrangeirismos.
8É uma cena linda a criança a dar seus primeiros passos. É uma dança, a dança do esquecimento.
9No judô a primeira coisa que se aprende é cair, por isso as crianças se saem tão bem. Já os adultos têm muitas dificuldades, porque é preciso ensiná-los o que esqueceram há tempos.
10Sobre a amizade, experiência cada vez mais rara hoje em dia, na ocasião da morte do Hélio Pellegrino, Fernando Sabino escreveu: "Com o Hélio, morreu a maior parte de mim, e seguramente a melhor. Sou um sobrevivente desta amizade". Perder um amigo é uma experiência que envolve muita dor, mas só a morte abre para um novo, ou, como disse o poetamigo Ivan Maia de Melo, é experiência de transmutação afetiva.
11A revolta contra o pai como uma comédia é uma citação de Gustave Janouch, Kafka m'a dit, Calmann-Lévy, pág. 538.
12No livro O seqüestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Mattos (1989), Haroldo de Campos fala do traçado evolutivo-não linear da ‘Dialética da Malandragem', de Oswald de Andrade, "fraturado e transtemporal, recuperado antes pelas vias marginais que pela estrada real", quando, a partir de então, o 'Boca do Inferno' passa a ter voz e vez.
13Parafraseando O seqüestro do barroco na formação literatura brasileira: o caso Gregório de Mattos. (CAMPOS, 1989).
14Segundo historiadores, há dúvidas se realmente Aristóteles chegou a escrever o segundo livro da Poética, que trataria do riso, e se o fez, ele teria sido perdido no incêndio da biblioteca de Alexandria, em 391 d.C., por obra dos cristãos. Sobre a biblioteca, o astrônomo Carl Sagan disse que, 'não fosse o incêndio, talvez o homem chegasse à lua no século XV'.
15Texto publicado pela primeira vez na revista Verbo Encantado, em março de 1972, posteriormente reunido na coletânea organizada por Waly Salomão (1977).