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Cógito
versão impressa ISSN 1519-9479
Cogito vol.14 Salvador nov. 2013
O segredo dos seus olhos: uma narrativa em caleidoscópio
Le secret de ses yeux: un récit en kaléidoscope
Vera Dantas de Souza Motta*
Universidade do Estado da Bahia - UNEB
RESUMO
Trata-se de isolar, na narrativa fílmica "O segredo dos seus olhos", de Campanella, as duas histórias aí contidas, a exemplo do que se passa no conto clássico (Piglia). Aproxima-se a estrutura do filme à mise en abîme (Gide) e à lógica do suspense das narrativas freudianas (Santos) para, num segundo momento, apontar a estrutura do caleidoscópio e do duplo, como nas narrativas de Borges. Por fim, examina-se com Lacan a modalidade aristotélica da necessidade para localizar o ponto de suspensão a que todo amor se prende.
Palavras-chave: Psicanálise; cinema; Campanella; Mise en abîme; Narrativas de suspense; Caleidoscópio; Duplo.
RÉSUMÉ
Il s'agit de isoler, dans le récit filmique "Le secret de ses yeux" par Campanella, les deux histoires contenues, selon ce qui se passe dans le conte classique (Piglia). On approche la structure du film à la mise en abîme (Gide) et à la logique du suspense du récit de Freud (Santos) pour, dans un second moment, souligner la structure du kaléidoscope et du double, comme dans les récits de Borges. Enfin, on examine avec Lacan le mode aristotélicien de la nécessité pour fixer le point de suspension à quoi tout l'amour se tient.
Mots-clés: Psychanalyse; cinéma; Campanella; Mise en abîme; Récits du suspense; Kaléidoscope; Double.
O primeiro recorte que fazemos a propósito de O segredo dos seus olhos, de Juan José Campanella (2009), diz respeito às duas histórias contidas no filme: a primeira, nos anos 1974-1975, período em que o protagonista Benjamin Espósito é nomeado pela procuradoria criminal para investigar o “caso Morales” – modo como se referem os envolvidos na investigação do caso de estupro e morte de Liliana Colloto, acontecido no dia 21 de junho de 1974 –, e uma segunda, vinte e cinco anos após, ou seja, 2000, quando, já aposentado, ele decide começar a escrever um romance. Estas duas histórias são contadas simultaneamente, em planos sucessivos, entremeando-se de tal modo que o espectador só tem poucas pistas para se situar, como o vestuário ou a aparência dos personagens que se mantêm numa e noutra história.
A reconstituição dos fatos ligados ao crime da jovem é o pretexto para o protagonista recompor sua própria narrativa, que envolve a procuradora do seu departamento, de quem se enamorara no passado e a quem jamais pôde declarar o seu afeto. O escrito é o móvel de sua ação, e por essa razão Benjamin passa longas noites atormentado em busca do fio da palavra que o reconduzirá à história rememorada, para encontrar-se com o silêncio e o vazio das folhas de papel.
Lembremos a propósito Ricardo Piglia (2004a), ao apontar como uma das teses sobre o conto o fato de sempre contar duas histórias. Para ele, o conto clássico narra em primeiro plano a história 1 e constrói em segredo a história 2. A arte do contista, assinala, consiste em saber cifrar a história 2 nos interstícios da história 1. Um relato visível esconde um relato secreto, narrado de um modo elíptico e fragmentário. Cada uma das duas histórias é contada de modo distinto, com dois sistemas diferentes de causalidade. Os mesmos acontecimentos entram simultaneamente em duas lógicas narrativas antagônicas. Os pontos de interseção são o fundamento da construção.
Sem querer transpor o gênero literário do conto diretamente para a obra cinematográfica, mas aproximando um e outra em sua composição, O segredo dos seus olhos (CAMPANELLA, 2009) conta duas histórias, uma visível, outra secreta, e esta última tem, como características fundamentais, a elipse e a fragmentação.
Recortemos um trecho do diálogo quando da visita que o nosso protagonista, agora aposentado, faz à sua antiga chefe, Irene Menendez-Hastings, ao confessar-lhe seu desejo de escrever um romance: “Mas, por onde começo?” A resposta que se segue é a esperada: “Do começo”. Isso dá partida à segunda história, aquela não contada, e sobre a qual o protagonista irá se desdobrar, a tentar encontrar o fio que unirá, ao final, as duas histórias. Assim, o romance se inicia.
Lacan (2009, p.109), em sua aula de 12 de maio de 1971, no seminário intitulado De um discurso que não fosse semblante, ao retomar suas considerações sobre o conto de Edgar Allan Poe, A carta roubada, assinala algo que nos remete ao filme em tela. Trata-se da aproximação que faz entre a psicanálise e a crítica literária, na medida em que é pelo fracasso que a psicanálise pode abordar a literatura, dando como exemplo o ensaio psicobiográfico de Marie Bonaparte sobre o conto de Poe. Afirma, nesta oportunidade, que a tarefa do psicanalista é pôr o saber em xeque, o que não significa fracasso do saber, aproximando esta expressão de outra que aqui nos interessa: a figura en abyme.
Certas estruturas narrativas em que se emprega o expediente de introduzir uma história dentro de outra história, numa sucessão quase infinita, levaram André Gide (2005) a designá-las mises en abyme.1 A mise en abîme é uma estrutura sem fim, tal como a divisamos no Livro das Mil e Uma Noites (2005), em que uma segunda história contida na primeira deve, por sua vez, conter outra “em abismo”, e daí por diante, até o infinito. A mise en abîme de Gide é uma metáfora produtiva para a obra poética, que também ela parece desconhecer o fim.
A estrutura do filme O segredo dos seus olhos (CAMPANELLA, 2009) é um exemplo de estrutura mise en abîme, na medida em que a narrativa principal contém outra narrativa, desdobrando-se numa forma infinitizada de tal modo que não se poderia facilmente identificar onde termina uma e onde começa a outra. Exemplo disso é a cena em que Benjamin vê alguém lhe perguntando se ele é Espósito, verdadeiro flashforward da cena de assassinato de Sandoval, que se dará em seguida. Em que narrativa esta cena se situa? Na narrativa oficial, digamos assim, primeira, ou na narrativa romanesca? Trabalho para detetive, nosso próximo ponto a abordar.
Em “O suspense nos romances de Freud”, Roberto Corrêa dos Santos (1999) verifica o modo freudiano de expor sua casuística, assinalando que a narrativa não apenas constitui e organiza os objetos de que vem tratar, como também se torna processo integrante da própria construção da teoria e do método psicanalíticos. Aponta para a lógica do suspense de que se vale Freud para narrar os casos clínicos, empregando estratégias e linguagem próprias da literatura policial. As histórias clínicas, segundo ele, referem-se a enigmas a serem decifrados pelo acompanhamento das pistas que, articuladas, poderão fornecer esboços de respostas.
Este é o regime narrativo aplicado a O segredo dos seus olhos (CAMPANELLA, 2009): por trás de uma história de assassinato, desvenda-se outra história que se mantém em estado de suspensão, mais que propriamente em suspense, e que se relaciona a Benjamin e Irene, uma história de amor. Neste sentido, pode-se apontar, na construção das narrativas presentes no filme, um regime de coautoria entre Benjamin e Espósito, ou seja, entre o narrador-autor e o personagem, propriamente.
Voltemos ao seminário De um discurso que não fosse semblante, à aula de 10 de março de 1971, em que Lacan se pergunta, a propósito do conto de Edgar Allan Poe, A carta roubada: “O narrador da história é aquele que a escreve?” (LACAN, 2009, p.87). A resposta a esta questão será dada adiante, na aula de 17 de março, quando retoma a pergunta e esclarece que o narrador – no caso do conto, o detetive Dupin – é “a mais perfeita castração” (p.98), e é, como todos os demais personagens do conto, enganado, e nada sabe disso.
Nosso Dupin do filme outro não é senão Pablo Sandoval, assistente de Espósito na investigação do caso Morales. A análise que Sandoval procede com relação às cartas é rigorosa: 12 cartas, 31 folhas, 5 empregos, nenhum dado relevante, à exceção de vários nomes referidos, à guisa de comparação: Oleniak, Anido, Messias, Manfredini, Babastro, Sanchez, todos nomes de jogadores do Racing Club, time de futebol argentino, como um dos seus colegas frequentadores do bar facilmente identifica. Guiado pela frase “Não se pode mudar de paixão”, Sandoval segue com Espósito ao estádio de futebol, onde acontece uma das cenas mais apropriadas do thriller a que assistimos, com a prisão final de Gómez.
Piglia (2004b), em outro dos seus artigos, “Os sujeitos trágicos”, aproxima a literatura e a psicanálise, defendendo que uma das formas de pensar a relação entre a psicanálise e a literatura é o gênero policial, o grande gênero moderno inventado por Poe, em 1843. A relação entre a lei e a verdade é constitutiva do gênero policial: cabe ao detetive, no gênero policial, estabelecer a relação entre a lei e a verdade.
Segundo Piglia (2004b), o detetive não pertence a nenhuma instituição, não faz parte nem do mundo do crime nem do mundo da lei. Por não pertencer a nenhum desses mundos, ele pode interpretar e falar de uma história que não a dele, ocupar-se de um crime e de uma verdade da qual está apartado, mas na qual se acha estranhamente implicado. Isso é o que aproxima o gênero policial da psicanálise. O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta aparece na superfície. Sandoval, com seu regime de gozo no álcool, exclui-se do lado da lei, sem pertencer, necessariamente, ao crime, e é através dele que o desfecho parcial da história se faz.
Ao analisar contos de Jorge Luis Borges, Piglia (2004c, p.103) assinala sua estrutura de oráculo: há alguém que está ali para receber um relato, mas até o final não compreende que aquela história é a sua e que ela define seu destino. Aponta a estrutura de caleidoscópio e de fundo duplo na narrativa de Borges, tal como podemos identificar, de certa forma, na obra cinematográfica em questão. Benjamin Espósito é um duplo: de um lado, que chamamos, para fins de economia, de Benjamin, ocupa-se em escrever um romance, olhando para o passado. De outro, é Espósito, antevendo o futuro e ocupando-se em desvendar um crime, paradoxalmente móvel do romance a ser escrito.
Tal como Piglia (2004c) aponta na obra de Borges, quem sonha foi sonhado, e o sujeito que narra é também o sujeito narrado, de tal modo que se duplica a estrutura, própria da arte de narrar. O estranhamento, intrínseco à estrutura do conto, pode também ser apontado no filme. Irene vai até a casa de Benjamin, termina de ler o romance, vê a anotação que ele fizera antes, durante o sono, e lê: TEMO. Pergunta o que ele teme. Há uma conversa entre os dois sobre a natureza da verossimilhança no romance, e Irene destaca uma cena da estação como inverossímil, estranhando-a. Benjamin retruca, perguntando-lhe se ela não se recorda do que houve. Irene, por sua vez, devolve-lhe com uma reprimenda: por que ele não a levou, naquela ocasião? A frase que se destaca é: “Como se faz para viver uma vida vazia cheia de nada?” Aí está a função da narrativa: dar sentido à ausência de sentido da vida.
Para dar desfecho ao romance, Benjamin com seu duplo Espósito procuram pistas de Morales e de Gómez, o que os leva até uma região rural da Argentina, onde vive o viúvo. Lá, encontra Morales, que lhe pede para esquecer-se do caso e guardar apenas as lembranças, retomando a mesma expressão dita antes: “Uma lembrança é diferente de uma lembrança de lembrança”. A insistência de Benjamin Espósito em dar desfecho ao caso, agora transformado em questão subjetiva, o conduz ao desfecho da narrativa, que será, por sua vez, resolução de sua própria questão.
Desse modo, ao retornar ao sítio, surpreende Morales dirigindo-se a uma construção próxima da casa, segue-o e vê, num cárcere privado, Gómez, envelhecido e decrépito. O pedido suplicante do encarcerado – para que o carcereiro lhe dirija a palavra – é deslocado para a narrativa outra que se estabelece, com relação à qual Benjamin Espósito finalmente se depara: falar, ou seja, narrar.
O enigma proposto no início da narrativa fílmica, finalmente, se esclarece. A anotação ‘TEMO’, que deu oportunidade para tantas divagações, permite ver que este significante faz irrupção no inconsciente através do sonho: trata-se, em realidade, da frase jamais dita por Benjamin e sempre recalcada, TE (A) MO, em que a elipse do (A), em conformidade com o real da máquina que opera o nosso protagonista – uma Olivetti antiga, cujo caractere ‘a” não funciona – produz efeito de significado na cadeia significante.
Na aula de 26 de junho de 1973, a última do seu seminário 20, Lacan (1985) volta a examinar as categorias aristotélicas visitadas em aulas anteriores, abordando-as de modo próprio, e reescrevendo-as sob as seguintes modalidades: a contingência, sob a fórmula “para de não se escrever”; o necessário, “não para de se escrever” e o impossível, “não para de não se escrever”. Interessa-nos recortar desta aula a passagem em que o autor salienta a operação de transformação da contingência em necessidade, ou seja, do “para de não se escrever” para o “não para de se escrever”. Na primeira delas, a contingência, Lacan localiza “[...] o encontro, no parceiro, dos sintomas, dos afetos, de tudo que em cada um marca o traço do seu exílio, não como sujeito, mas como falante, do seu exílio da relação sexual” (p.198).
O deslocamento da negação que se opera, do “para de não se escrever” para o “não para de se escrever”, portanto, da contingência à necessidade, leva Lacan (1985) a localizar aí o ponto de suspensão a que todo amor se agarra. O amor, por subsistir apenas pela contingência, tende a efetuar a modulação para o terreno da necessidade, e este é o seu destino, o seu drama.
Este é o drama de Benjamin Espósito, em sua relação de impossibilidade com a mulher. Por não poder alcançá-la, Benjamin debruça-se sobre a tarefa de escrever, continuamente, realizando o destino dos amantes.
Referências
CAMPANELLA, Juan José. O segredo dos seus olhos. Europa Filmes, 2009. 126min., son. Cor. [ Links ]
GIDE apud COHN. “Métalepse et mise en abyme”. Intervenção feita pela autora no colóquio “La Métalepse, aujourd’hui”. Disponível em: www.vox-poetica.org/t/metalepse.htm. Acesso em 29.ago.2005. [ Links ]
LACAN, Jacques. O seminário livro 20: mais, ainda (1972-1973). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Versão brasileira de M. D. Magno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. [ Links ]
_____. Seminário livro 18: de um discurso que não fosse semblante (1971). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. [ Links ]
Livro das Mil e Uma Noites, volume I, ramo sírio/Anônimo. Tradução do árabe de Mamede Mustafa Jarouche. São Paulo: Globo, 2005. [ Links ]
PIGLIA, Ricardo (2004a). Teses sobre o conto. In: _____. Formas breves. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2004a, p. 87-94. [ Links ]
_____ (2004b). Os sujeitos trágicos (literatura e psicanálise). In: _____. Formas breves, op. cit., p. 49-59. [ Links ]
_____ (2004c). Novas teses sobre o conto. In: _____. Formas breves, op. cit., p. 95-114. [ Links ]
SANTOS, Roberto Corrêa dos. O suspense nos romances de Freud. In: _____. Modos de saber, modos de adoecer; o corpo, a arte, o estilo, a história, a vida, o exterior. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999, p.101-113. [ Links ]
Recebido em 31/08/2013
Aceito em 02/09/2013
*Psicóloga. Psicanalista. Licenciada em Letras e Bacharelado em Psicologia pela UFBA. Professora Titular da Universidade do Estado da Bahia- UNEB. Professora do Mestrado em Estudo de Linguagens (PPGEL/UNEB). Endereço eletrônico: veramotta@atarde.com.br
1 A mise en abîme evoca uma estrutura muito utilizada na literatura e na pintura, cujo exemplo clássico em Gide é o do brasão, que contém, no seu interior, outro, e assim sucessivamente, numa sequência infinita. GIDE apud COHN. "Métalepse et mise en abyme". Intervenção feita pela autora no colóquio "La Métalepse, aujourd'hui". Disponível www.vox-poetica.org/t/metalepse.htm. Acesso em 29.ago.2005.