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Stylus (Rio de Janeiro)
versão impressa ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.24 Rio de Janeiro jun. 2012
ENSAIOS
Licença poética na lógica da interpretação: "psicanarte"
Poetic license in the logic of interpretation: psychoart
Silvia Helena Facó Amoedo*
Universidade Federal do Ceará – UFC
RESUMO
O que é uma interpretação? A arte e suas manifestações são as entrelinhas do saber psicanalítico, o dizer que permite alcançar o real a que a interpretação do analista visa. A palavra é a matéria-prima tanto do poeta quanto do psicanalista, e quando utilizada com licença poética, lhes permite uma subversão da linguagem e uma consequente subversão do sentido da palavra em seu estado de dicionário. A palavra precede o sujeito: antes de nascer, ele é marcado pela palavra – palavra sedenta, vinda do Outro. Na impossibilidade de saciar a sede do Outro, o sujeito faz dela a fonte e a sede do objeto causa do desejo. É desse lugar que o sujeito escreve sua história e situa seu próprio desejo. O sujeito em análise é o escritor de sua própria história. Dessa forma, é o sujeito quem detém, com seus ditos, o texto a ser lido e interpretado pelo analista. O que pode o analista em relação ao texto do sujeito em análise?
Palavras-chave: Psicanálise, arte, licença poética, interpretação.
ABSTRACT
What is an interpretation? Art and its manifestations are the in between lines of psychoanalytic knowledge, the saying that allows to achieve the real aimed by the analyst's interpretation. The word serves as raw material for both the poet and the psychoanalyst, and whenever used with poetic license, it permits them a subversion of language and a consequent subversion of the word meaning in its dictionary condition. The word precedes the subject: before birth, it is marked by the word – the thirsty word which comes from the Other. Failing to quench the thirst of the Other, the subject makes it the source and the object's thirst cause of desire. It is about this place that the subject writes his/her own history. Thus, it is the subject who owns, with his/her sayings, the text to be read and interpreted by the analyst. What can the analyst do in relation to the text of the subject in analysis?
Keywords: Psychoanalysis, arts, poetic license, interpretation.
Os fatos são sonoros, mas entre os fatos há um sussurro.
É o sussurro o que me impressiona. (Clarice Lispector)
A arte e suas manifestações são as entrelinhas do saber psicanalítico, o dizer – significação de ex-sistência – que permite alcançar o real a que a interpretação do analista visa. Para Lacan (1965, p. 200), "a única vantagem que o psicanalista tem o direito de tirar de sua posição, sendo-lhe esta reconhecida como tal, é de se lembrar, com Freud, que em sua matéria o artista sempre o precede". O artista desbrava o caminho, revela, conforme Lacan (Ibid., p. 200), "saber sem mim aquilo que ensino".
Entre a psicanálise e a arte há uma intrínseca relação, que denomino de "psicanarte". A psicanálise se articula com a arte nas múltiplas expressões desta: escultura, literatura, música, pintura, teatro, poesia... No final de sua obra, Lacan afirma: "a poesia é efeito de sentido, mas também efeito de furo [...] somente a poesia permite a interpretação".1 A palavra é a matéria-prima tanto do poeta quanto do psicanalista, e quando utilizada com licença poética, lhes permite uma subversão da linguagem e uma consequente subversão do sentido da palavra em seu estado de dicionário.
Fragmentos de Procura da Poesia,2 de Drummond (1992, p. 95), desbravam caminhos para a interpretação:
[...] Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. [...] Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra e seu poder de silêncio. Não forces o poema a desprender-se do limbo. [...].
A licença poética, tanto na interpretação como na poesia, subverte as palavras com metáforas e outras figuras de linguagem, produzindo efeitos de furo no significante e, em consequência, novas significações.
Palavra, na poesia e na análise, é feita do mesmo barro e esculpida com a mesma ferramenta: a escuta. Precede o sujeito: antes de nascer, ele é marcado pela palavra – palavra sedenta, vinda do Outro. Na impossibilidade de saciar a sede do Outro, o sujeito faz dela a fonte e a sede do objeto causa do desejo. O Outro é designado por Lacan (1958, p. 696) como "o próprio lugar evocado pelo recurso à palavra [...] quer o sujeito o ouça ou não com seu ouvido, é porque é ali que o sujeito, por uma anterioridade lógica, a qualquer despertar do significado, encontra seu lugar significante". É desse lugar que o sujeito escreve sua história e situa seu próprio desejo, para aquém e para além da palavra contida na demanda.
É no desejo do Outro que a experiência do desejo é apreendida. A fantasia é uma resposta que o sujeito dá para a pergunta enigmática: "que quer o Outro de mim?" – interrogação fundamental, que aponta a sujeição originária do sujeito ao Outro. A fantasia se constrói e se fixa no ponto denominado "lembrança encobridora", isto é, no momento em que a cadeia da memória para, tal como se "uma sequência cinematográfica que se desenvolvesse rapidamente fosse parar de repente num ponto, imobilizando todos os personagens" (LACAN, 1956/1957, p. 121). Essa instantaneidade, ou redução da cena plena, é articulada, segundo Lacan (Ibid., p. 121), "de sujeito a sujeito, ao que se imobiliza na fantasia, a qual fica carregada de todos os valores eróticos incluídos naquilo que ela exprimiu e de que ela é testemunha e o suporte, o último suporte restante". Ou seja, o sujeito evanescente constata: "já não sei mais a diferença de ti, de mim, da coisa perguntada, do silêncio da coisa irrespondida" (http://www.avozdapoesia.com.br/ceciliameireles).
Para Freud (1905/1906, p. 321-327), a finalidade do drama consiste em despertar "terror e piedade", em produzir uma "purgação dos afetos", abrir fontes de prazer ou gozo em nossa vida afetiva. Ser espectador participante do jogo dramático é, para o adulto, equivalente ao brincar, para a criança. Nas brincadeiras, as crianças repetem o que lhes causou impacto na realidade.
Desbravando caminhos, Antonio Quinet (http://pt-br.facebook.com/teatroepsicanalise) traz para a cena a psicanálise: "O teatro operistérico [...] Esse vínculo tem afetos e estratégias próprias para provocar o desejo e a produção de saber no espectador. Sob os holofotes: a histeria como obra de arte". Diante de um espetáculo, o espectador pode agir, sentir ou aventurar-se sem enfrentar as dores e os sofrimentos do outro que atua no palco. Trata-se de "modelar o gozo" por meio da fantasia.
A experiência de análise visa ao atravessamento da fantasia fundamental que, segundo Freud (1937), em Construções em Análise, é equivalente ao trabalho de um arqueólogo. Este, em sua reconstituição das ruínas de uma civilização antiga, preenche as lacunas abertas pela perda de algumas peças. No sujeito, o que se perdeu em sua constituição equivale a essas peças faltantes, que insistem em se manifestar na fantasia fundamental, como é denominada por Lacan. O atravessamento da fantasia é imprescindível à experiência de análise, porque é a fantasia que suporta os sintomas e os distintos efeitos decorrentes do próprio processo analítico.
Desde os primórdios da psicanálise, Freud (1900) trata da questão da interpretação. Em seu artigo O método de interpretação dos sonhos: análise de um sonho modelo, ele aplica aos sonhos o método de interpretação que fora elaborado para os sintomas, visto que os sonhos realmente têm um sentido. Na época, para Freud, sua tarefa estava cumprida no momento em que ele informava ao paciente o sentido oculto dos seus sintomas. No entanto, Freud não se considerava responsável por ele aceitar ou não a solução, embora disso dependesse o sucesso da interpretação. Com Lacan, o sucesso da interpretação não coincide com a aceitação por parte do sujeito; ao contrário, como observa Soler (1991, p. 80), "quando o sujeito se reconhece no que vocês lhe dizem, podem estar seguros que isto não é uma interpretação". E o que é uma interpretação?
No texto Sobre a psicoterapia, Freud (1905) recorre às formulas de Leonardo da Vinci, relacionadas às artes – per via di porre e per via di levare –para pontuar a antítese entre a técnica sugestiva e a analítica. A técnica sugestiva, assim como a pintura, deposita cores sobre a tela incolor; já a técnica analítica, assim como a escultura, retira, esculpe o material, sem introduzir nada de novo.
E quanto aos escritores? Para Freud, os escritores são aliados valiosos. Freud considera o brincar uma atividade afim da criação literária. A criança cria um mundo próprio, onde obtém prazer e que distingue perfeitamente da realidade. Assim como a criança, o escritor também cria um mundo de fantasia, nele investindo uma grande quantidade de emoção; e, ao mesmo tempo, mantém uma separação nítida entre esse mundo e a realidade.
Freud afirma que,por meio da arte, torna-se possível uma reconciliação entre o princípio do prazer e o da realidade. O artista se afasta da realidade por não concordar com a renúncia à satisfação pulsional e, dessa forma, "concede a seus desejos eróticos e ambiciosos completa liberdade na vida de fantasia" (FREUD, 1911, p. 284). A obra de arte, valorizada pelos homens como reflexo precioso da realidade, é o caminho de volta que o artista faz – da fantasia para a realidade –, sem seguir o longo caminho sinuoso de efetuar alterações reais no mundo externo. Da mesma forma, "a psicanálise pode mudar tudo para o sujeito sem mudar nada na realidade. A vida que o analisando teve não se refaz. Ao contrário, o que se modifica é a maneira como ele se situa nela e o sentido que lhe dá" (SOLER, 1991, p. 56). No fundo, como diz Lispector (1977) em entrevista concedida na TV Cultura a Júlio Lerner, "a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro [...]".
O relato de um devaneio não causa prazer ao interlocutor; ao contrário, tomar conhecimento das fantasias, causa repulsa, ou é indiferente, ao interlocutor. Já as obras literárias são fontes de grande prazer, no entanto, segundo Lacan, "o que a psicanálise chama de prazer, é padecer, sofrer o menos possível".3
A verdadeira ars poetica, segundo Freud, está na técnica de superar esse sentimento de repulsa. Ou seja, pela estética é possível ao escritor suavizar os devaneios por meio de alterações e disfarces, oferecendo prazer na apresentação de suas fantasias.
A arte do analista em interpretar, para Lacan (1953, p. 253), "deve consistir em suspender as certezas do sujeito, até que se consumam suas últimas miragens". De que forma a interpretação pode suspender as certezas do sujeito? A interpretação visa equivocar o saber oriundo da certeza da fantasia para fazer emergir algo a partir do abandono do saber, fazer emergir o deserto da palavra – a sede do Outro.
O sujeito em análise é o escritor de sua própria história, escrita com a impossibilidade de saber sobre a verdade, que fixa o sujeito em seu ponto de sofrimento. Dessa forma, é o sujeito quem detém, com seus ditos, o texto a ser lido e interpretado pelo analista.
O significante representa o sujeito para outro significante, "só que o sujeito que ele representa não é unívoco. Está representado, é claro, mas também não está representado. Nesse nível, alguma coisa fica oculta em relação a esse mesmo significante" (LACAN, 1969/1970, p. 83). O que pode o analista em relação ao texto do sujeito em análise? O analista intervém no texto do sujeito, pelos meios de interpretação – com pontuação, enigma, equívoco, escansão, corte, silêncio –, para atingir o sujeito representado em sua equivocidade e, assim, provocar o esvaziamento do texto cifrado pelo gozo e chegar a uma a-história feita de palavras desabitadas, palavras vazias de mestria. Assim como em A hora da estrela (LISPECTOR, 1977, p. 23), para tornar o livro do analisante um livro feito sem palavras, uma fotografia muda, um silêncio, enfim uma pergunta..., a qual relançará o sujeito a novas significações, significações de ex-sistência, que lhe possibilitem obter uma modificação em sua relação com a fantasia... que atinjam o dizer sem, no entanto, se satisfazerem com nenhum saber.
Tal como a poesia, a interpretação deve tocar o intangível, o "sussurro sem som em que a gente se lembra do que nunca soube" (ROSA, 1956, p. 411), tal como a alíngua – dito singular que não se aprende, mas se apreende por meio da língua materna, dito que escapa à comunicação. Não é "esse o mínimo da intervenção interpretativa"? (LACAN, 1972, p. 495). A linguagem é o que o discurso científico elabora para dar conta do que Lacan chama de alíngua: "a linguagem é uma elucubração de saber sobre lalangue, enquanto o inconsciente é um saber-fazer sobre lalangue", diz Lacan (1972/1973, p. 188).
Um sujeito em análise observa que esta atravessa três tempos, tais quais os três momentos culminantes da vida humana descritos pelas deusas do Destino, as Parcas: o momento de tecer o fio, o momento do caminho e o momento de cortar o fio da análise. A interpretação deve incidir no texto do analisante, fazer soar os inconfessos silêncios, deve atravessar á/vida o instante incomensurável do tempo; deve, enfim, romper o cerco das gaiolas... cortar o fio que fixa o sujeito.
Referências bibliográficas
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Endereço para correspondência
Silvia Helena Facó Amoedo
E-mail: silviafacoamoedo@gmail.com
Recebido em 07/02/2012
Aprovado em 08/03/2012
Notas
* Psicanalista, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Fórum Natal.
1 L'insu-que-sait de l'une-bévue s'aile à mourre, Seminário de 17 de maio de 1977. <www.campopsicanalitico.com.br>, p. 1.
2 "Procura da poesia" é um dos textos de abertura do livro "A rosa do povo", que reúne poemas escritos entre 1943 e 1945.
3 L'insu-que-sait de l'une-bévue s'aile à mourre, Seminário de 17 de maio de 1977. <www.campopsicanalitico.com.br>, p. 1.