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Stylus (Rio de Janeiro)
versão impressa ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.24 Rio de Janeiro jun. 2012
TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS
O psicanalista, os limites da interpretabilidade e o passe
The psychoanalyst, the limits of interpretability, and the pass
Sonia Alberti*
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
RESUMO
Rastreamos a retomada feita por Lacan na última década de seu ensino, ao estudar um pequeno texto de Freud sobre a interpretação para verificar até que ponto a construção do inconsciente Real daquela década poderia ter alguma base nas observações do criador da psicanálise. Lastreia-se nossa visada na identificação nesse texto de Freud, da função do sonho que não é senão a de "evitar a perturbação do sono" e que esta representa o ganho de prazer, a Mehrlust (prazer a mais), o gozo, um despertar. Tal despertar é também examinado na relação com as três questões kantianas tratadas por Lacan (1972) em Televisão, que dizem respeito às possibilidades éticas do saber, fazer e esperar. Com base nisso, examinamos o passe e a possibilidade de aprender com a sua experiência.
Palavras-chave: Ética, interpretação, inconsciente Real, passe, sonho.
ABSTRACT
We track Lacan's reassessment of his teaching in the last decade, departing from a short text by Freud on the interpretation, in order to determine to what extent the construction of the unconscious Real from that decade could have some basis on the observations by the creator of psychoanalysis. In this text, our endeavor holds itself on the identification of the function of the dream, which is nothing but that of "avoiding sleep disturbance" and that it represents the gain of pleasure, a Mehrlust (a plus of pleasure), the jouissance, an awakening. Such an awakening is also examined in relation to the three Kantian questions developed by Lacan (1972) in Television, which relate to the ethical possibilities of knowing, doing, and hoping. From this, we examine the pass and the possibility to learn from it's experience.
Keywords: Ethics, interpretation, Real unconscious, pass, dream.
Com base em uma pergunta, Lacan retoma em Televisão as três questões kantianas que deram origem ao que se instituiu chamar de "período crítico" de Kant, ou seja, aquele em que o filósofo desenvolveu A crítica da razão pura (1781), A crítica da razão prática (1788) e A crítica da razão jurídica (1790). Chamar esse período de "crítico" já não é sem equívoco...
Escolhi introduzir o tema baseado nessa referência de Lacan, porque ela nos serve para retomar um pouco o que normalmente se discute sobre a psicanálise, na tensão do que nós, analistas e analisantes – porque sempre somos também analisantes na nossa relação com a psicanálise –, questionamos quanto ao que responde o psicanalista partindo de nossa experiência.
Já é superconhecida a fórmula segundo a qual é necessário um tempo – as entrevistas preliminares, ou, como Freud (1913/1999, p. 455) as chamava: o tratamento de ensaio – para que surja uma demanda de análise daquele que veio procurar um psicanalista em razão de seu mal-estar – outra expressão de Freud (1930/1969). Esse tempo é necessário porque a demanda de análise dependerá, para se fazer valer, do que responde o analista. Se aquele a quem o sujeito endereça suas queixas não responder do lugar de quem sabe, ou seja, se ele não se identificar com aquele que saberia qual a resposta para as queixas do sujeito e, ao contrário, se calar para poder fazer emergir o sujeito suposto saber que é o sujeito do inconsciente, visado na transferência, então sim, há uma chance de se poder apostar no surgimento de uma demanda de análise. Poderíamos já aqui retomar a fórmula de Lacan em A Terceira: uma análise é uma relação do analisante com o par analisante-analista, o par que surge com a transferência.
Aliás, Lacan já observou muito cedo em seu ensino que uma demanda de análise é a única demanda a que devemos, enquanto analistas, responder. De resto, via de regra, não respondemos a demandas. Então a primeira resposta de um analista é a não resposta e, se isso produz uma demanda de análise, ou seja, coloca em cena o sujeito suposto saber, então a segunda resposta de um analista é "deite-se: eu faço uma aposta na sua análise". Tal aposta não é da ordem do saber, pelo contrário.
Para introduzir essa diferença, inicio retomando uma observação de Lacan (1973-74), sobre o oculto.
Os limites da interpretabilidade
É possível em psicanálise estabelecer os limites da interpretabilidade. A dificuldade na interpretação desse pequeno texto foi encontrada até mesmo por Lacan, que a ele se referia na lição de 20 de novembro de 1973 de seu Seminário: Os limites da interpretabilidade (Freud, 1925/1999). Ele responde ao que poderia ser identificado como a errância de Freud. Lacan a nomeia: foi a tentativa de tornar o discurso psicanalítico adequado ao discurso científico.
Lacan (1973-74) observa que tal errância também impedia Freud de valer-se da matemática – o que não quer dizer que não fizesse matemática ao Imaginar o Real do Simbólico (sic). Freud só não pode valer-se da matemática porque, apesar de fazer matemática, não pode inscrevê-la na psicanálise, ou seja, dar um segundo passo. Se Freud imaginou o Real do Simbólico – o primeiro passo –, faltava o segundo passo, que é "ao que nos conduz considerar o inconsciente, de onde se trilha o linguístico" (idem, Lição de 13 de novembro de 1973). Foi por ter se dado conta de que há o Real no Simbólico, que nos abriu a via para uma nova passagem, pois se o inconsciente existe, conforme Freud o conceituou, então habitamos um outro espaço, já não mais o do more geometrico e sim aquele que se define pelo nó. A realidade psíquica é criada em função desse novo espaço.
Lacan então observa que no final da Interpretação dos sonhos, em função daquela sua errância, Freud (1900/1969) procura distinguir a realidade psíquica da realidade material, e vacila. É no texto de 1925/1999 que podemos rever a vacilação, pois esse texto testemunha que o primeiro passo efetivamente havia sido dado!
Retomemos o texto de Freud: Os limites da interpretabilidade, que não podem ser tratados de forma abstrata, mas em relação às Verhältnisse (Lacan traduz essa palavra como "as relações que se escrevem") sob as quais se interpreta um sonho, quais são?
Eles são dados pelo fato de o sonho ser produção inconsciente. Este, como desde sempre fora teorizado por Freud, funciona conforme o processo primário. Em função disso, é enganoso supor que sonhamos para tentar resolver as principais tarefas da vida ou para terminar de resolver os problemas que trabalhamos durante o dia. Tal visada útil é realizada somente pelo pré-consciente... de resto, "Somente uma única visada útil, uma função corresponde ao sonho: a de evitar a perturbação do sono", ratifica Freud (1925/1999, p. 562). Por esta razão, os sonhos que melhor realizam tal visada são aqueles dos quais nada se sabe dizer após o despertar. Em A Terceira, Lacan (1974) observa que, ao contrário de Freud, seus sonhos são feitos para despertar. São sonhos inúteis, então, porque não evitam a perturbação do sono, muito ao contrário... É em A Terceira também que Lacan introduz a interpretação em psicanálise via lalangue, que não tem qualquer sentido – é o sem sentido que acorda em função de sua estranheza.
Segundo Freud, se é tão frequente que nos lembramos de sonhos, às vezes por longos anos ou décadas, isso sempre significa que houve uma irrupção do inconsciente recalcado.1 Única razão que justificaria arriscarmos o fracasso da função do sonho: a de velar o sono. Mas se essa irrupção é o que dá ao sonho a sua significação para a psicopatologia (sic), ou seja, faz do sonho a via régia para o inconsciente recalcado, Freud observa que isso ainda não quer dizer que baseado nisso o sonho é todo passível de interpretação.
Na realidade, escreve, se logramos desfazer a deformação onírica, temos acesso não somente ao conteúdo recalcado inesperado, mas também "entreouvimos o pensamento pré-consciente nos estados em que verifica sua própria situação interna e que não foram conscientizados durante o dia" (FREUD, 1925/1999, p. 562). E com base nisso, no exercício da interpretação como parte do trabalho analítico, orientamos nosso interesse ora para o conteúdo pré-consciente do sonho, ora para a contribuição inconsciente à formação do sonho, e muitas vezes negligenciamos um elemento em prol do outro.
No item c) dessa pequena sequência de textos, A significação oculta do sonho, Freud (1925/1999a) cita um exemplo: a simbolização. Observa que a simbolização não é, de forma alguma, uma questão onírica, mas um tema do pensamento arcaico, de nossa "língua fundamental", como o expressara acertadamente o paranoico Schreber (sic). Ele acrescenta que o sonho não tem a exclusividade de ocultar de forma privilegiada conteúdos significativamente sexuais, estes também são ocultados nos mitos e nos rituais religiosos, por exemplo – temas, portanto, do pensamento arcaico que Freud aqui distingue claramente do inconsciente! Assim, observa Lacan em O Seminário, livro 21: Os não tolos erram, que aqui tomo como diretriz, "não há nada de comum entre o inconsciente e o oculto" (lição de 20 de novembro de 1973).
Freud continua: O sucesso da interpretação é totalmente dependente da tensão da resistência entre o eu desperto e o inconsciente recalcado. Em análise, por longo tempo trata-se de fortes resistências, eis porque só é possível traduzir e utilizar uma certa parte e, mesmo esta, de forma incompleta.
Com base no fato constatável de que os sonhos com sentidos mais permeáveis à interpretação são os sonhos infantis, Freud depreende "que o sonho é uma entidade psíquica interpretável de maneira geral, mas nem sempre a situação permite a interpretação" (FREUD, 1925/1999, p. 564) e que às vezes não dá para verificar se a interpretação inclui ou não pensamentos pré-conscientes que podem ter se expressado pelo mesmo sonho. Então o sentido demonstrado, corroborado, é aquele sustentado pelas associações do sonhador e da avaliação da situação; o que não implica que outro sentido deva ser sempre descartado. Ele continua possível, apesar de não demonstrado (unerwiesen); é preciso familiarizar-se com o fato de tal pluralidade (Vieldeutlichkeit) na interpretação dos sonhos. A pluralidade nem sempre deve ser tomada como responsável pela incompletude do trabalho da interpretação, pois essa responsabilidade pode advir igualmente dos próprios pensamentos oníricos latentes – ou seja, inconscientes. Quanto ao fato de ficarmos inseguros sobre se uma expressão que escutamos, uma informação que recebemos, deve ter esta ou aquela interpretação (Auslegung), sobre a possibilidade de além de seu sentido evidente ainda se indicar (andeuten) alguma outra coisa, isso também vivemos em vigília e, portanto, externamente à situação da interpretação do sonho.
Não é a primeira vez que Freud se utiliza do termo Auslegung para a interpretação, normalmente expressada pela palavra Deutung. Já na Interpretação dos sonhos se valera, algumas vezes, desse artifício. Em que ele nos serve senão a pluralizar a interpretação?
Se é verdade, como Freud estabelece em 1925/1999, que a análise de um sonho, orientada com base nas associações do sujeito em análise, pode privilegiar os pensamentos pré-conscientes que não foram conscientizados durante o dia, e se é verdade que a incompletude do trabalho da interpretação pode advir igualmente dos próprios pensamentos oníricos latentes – ou seja, inconscientes, então esse texto de Freud já leva em conta um inconsciente que não sabe – cuja falta de representabilidade é substituída, no material onírico, pelos pensamentos pré-conscientes –, pergunto: podemos associá-lo ao inconsciente Real? Este, por sua vez, não visa senão "evitar a perturbação do sono", mas com o ganho de prazer, a Mehrlust (prazer a mais), o gozo. Ele desperta! É o modelo do pesadelo tal como estudado em A interpretação dos sonhos... Eis onde, em Freud, já se pode identificar a disjunção entre inconsciente e interpretação, explicitada por Lacan em 1976: "Quando [...] o esp[aço] de um laps[o] já não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos certeza de estar no inconsciente" (LACAN, 1976/2001, p.567).
O sonho é ciframento, operação de ciframento feita para o gozo, para que nesse ciframento se ganhe essa coisa que é essencial do processo primário, a saber, o ganho de prazer. Eis onde Freud faz matemática e onde ele é lacaniano. Lá, onde o ciframento se basta, nada atrapalha a função do sonho: a de ser o guardião do sono. Se inicialmente o desejo é indestrutível, fundamentalmente porque ele é sempre o mesmo (LACAN, 1973-74, lição de 13 de novembro de 1973), e que é isso que resulta na estrutura – coisa que foi dada de cara pelo primeiro passo feito por Freud –, quando nos instrumentalizamos do inconsciente, o que temos? Os limites do ciframento possível, porque o sentido é sempre sexual e o sonho se depara com a inexistência da relação sexual, ele não dá conta do recado... os limites da interpretabilidade são assinalados pela chegada do sentido que não dá conta do recado. Para concluí-lo, Lacan (1973-74) dá o segundo passo: sublinha que a palavra "limite", aqui, é aquela que vale para a matemática, como em "limite de uma função, como limite de um número real" e que quer dizer, em matemática, "que independentemente do aumento da variável – ela pode aumentar o quanto quiser –, a função não passará de certos limites" (lição de 20 de novembro de 1973). Com efeito, em matemática, limite é o valor para onde vai uma assíntota, e uma função é assintótica quando gradativamente vai dependendo menos de sua variável: o sentido, no nosso caso. O sentido, que é sexual, fracassa porque sempre fracassa a Verhältnis (relação sexual) enquanto escrita, razão que impede seu ciframento – por isso acordamos.
Bem, em 1974 Lacan faz um chiste com isso quando, como vimos, observa que não sonha para dormir e sim para acordar. A meu ver é um chiste, porque, se por um lado, com isso critica um pouco o Freud burguês (LACAN, 1969-70/1991) mais afeito ao princípio do prazer do que ao seu, mais além, por outro lado visa, com essa observação, à sua releitura de Freud que desperta para a verdade da causa freudiana, sem dúvida. E é somente no âmago de sua Escola que procura renová-la, com o passe justamente, enquanto despertar.
O que posso saber e o passe
Em 1964/2001, Lacan fundou sua Escola. O Ato de fundação propõe uma Escola com três sessões: a da psicanálise pura, a da psicanálise aplicada e a das conexões da psicanálise. Com base em minha experiência, parece-me necessária a primeira para haver as outras duas, e é na primeira – a da psicanálise pura – que se criam possíveis respostas nas diferentes sessões da Escola. Conforme os textos estatutários da EPFCL,2 uma Escola, "no contexto das necessidades do nosso tempo", responde ao lugar do psicanalista, o que não é sem as respostas do psicanalista no tempo que é o nosso. Como não será possível desenvolver tudo isso nas três sessões da Escola, e como advogo que é a primeira sessão, a da psicanálise pura, a que além de sustentar-se, sustenta as outras duas sessões da Escola, trago apenas tentativas de desenvolver a primeira sessão da Escola.
Na sessão da psicanálise pura, a Escola não cansa de buscar respostas para o que é uma psicanálise. No aludido texto estatutário lê-se que nossa Escola visa: "1) sustentar ‘a experiência original' em que consiste uma psicanálise e permitir a formação dos analistas; 2) outorgar a garantia dessa formação pelo dispositivo do passe e pela habilitação dos analistas ‘que deram suas provas'; 3) sustentar ‘a ética da psicanálise, que é a práxis de sua teoria' (Jacques Lacan)", o que implica também poder avançar com a teoria a partir do que se deposita da experiência no tempo e no contexto que eventualmente coloca novas questões para a psicanálise.
O dispositivo do passe dá respostas cardinais à pergunta sobre o que responde o psicanalista advindo de sua própria análise, ou seja, é uma resposta, mais uma resposta, mais uma resposta, cada uma advinda daquelas testemunhadas, no dispositivo do passe, de cada passe.
O que posso saber sobre o que é o final da análise para além de minha própria experiência senão aquilo o que desse final se deposita de saber em minha Escola? O que posso saber? "Nada que não tenha a estrutura da linguagem." "Do que resulta que até onde irei nesse limite, é uma questão de lógica" (LACAN, 1973/1974, p. 58-59). Talvez a lógica possa nos servir de maneira diferente do que serve à ciência, pois para nós, o limite que a lógica impõe, ao contrário da ciência, abre para a singularidade de nosso campo que se ocupa com o que a ciência foraclui.
O que escapa a esse âmbito, e que os passes também testemunham, reforça hoje a sustentação da sessão da psicanálise pura numa direção que, levando em conta as necessidades de nosso tempo, já não é somente a da linguagem, mas a de lalangue. E que Pascale Leray, em Wunsch 10 (2010), identifica como "examinar o potencial do real no tempo do fim". E que leva "a uma relação nova com o inconsciente, com este real produzido pela experiência do passe".
Tal frase de Pascale Leray não deixa de identificar a relação nova com o inconsciente do final de uma análise com um inconsciente real produzido pela experiência do passe, um inconsciente Real então efeito do passe. Cabe a pergunta: esse passe de que fala Leray é o passe do final da análise ou é o passe da Escola, aquele que nomina o AE? Se for este último, então há algo de Real que o passe da Escola provoca para além do saber que se pode ter, na Escola, do que é um final de análise, e isso então não se pode saber na Escola porque não tem a estrutura da linguagem? – se é verdade que só é possível saber o que tem estrutura de linguagem...
Com base no que desenvolve Colette Soler (2011), Leray propõe que poderia ser algo que se exprime como afeto, e que ela associa com o afeto novo ao qual Lacan faz referência no prefácio de 1976/2001 (à versão inglesa do Seminário 11), o afeto da satisfação. Segundo Pascale Leray, essa satisfação diz respeito ao novo ser de desejo, o de analista, e ela marca a separação de outras satisfações tidas durante os muitos anos de fala no dispositivo analítico.
Então, no âmbito da psicanálise pura, a resposta do psicanalista é o novo ser de desejo, o de analista? Correlato a um afeto de satisfação? Mas o afeto já não havia sido identificado, desde sempre, em psicanálise, como o que pode ser independente da estrutura significante? Então a resposta de Lacan (1973/1974), em Televisão, O que posso saber? "Nada que não tenha a estrutura da linguagem", leva a uma nova questão:
No nível da psicanálise pura – a primeira sessão da Escola –, a resposta que se descortina é: só posso saber o que tem a estrutura da linguagem, mesmo no campo do que se deposita da experiência do passe. É, aliás, o nome da revista que Lacan fundou um ano depois de ter proposto o passe em sua Escola: "Scilicet: você pode saber", você, que não é psicanalista.
Mas não posso saber o que dessa mesma experiência não tem essa estrutura! Para entrevê-lo, é necessário o psicanalista, o Analista da Escola que, na primeira versão da Proposição de 9 de outubro de 1967, Lacan situou em S() – justamente o lugar em que falta o significante. E isso porque, como Lacan também já observava em Televisão, o discurso do psicanalista "não admite a questão do que se pode saber", "porque ele parte por supor o saber como sujeito do inconsciente". Não é o que se poderá saber, o saber já está lá, apenas inacessível à consciência, e o que se pode saber já se coloca, de saída, como impossível de saber porque o próprio saber é o sujeito do inconsciente, é suposto.
Bem, desde Freud, no seu início, já sabemos que esse sujeito do inconsciente tem um umbigo... Foram necessários muitos anos, décadas de psicanálise para perceber que esse umbigo dá entrada num outro campo, muito maior do que aquele do saber, o campo do não saber, o qual, portanto, não é possível atingir pelo saber, o campo que Lacan diz, quando postula o campo lacaniano em 1969-70/1991, como sendo tão grande, que ele não teria nem mesmo tempo para construir suas bases, como também se lê na Carta que funda a IF-EPFCL: "... se há algo a ser feito na análise é a instituição desse outro campo energético, que necessitaria outras estruturas que não as da física, que é o campo do gozo. No que diz respeito ao campo do gozo – é pena, jamais será chamado de campo lacaniano, pois certamente não vou ter tempo sequer para esboçar as suas bases, mas almejei isto –, há algumas observações a fazer".
Em Televisão, Lacan identifica o sujeito inconsciente como o que engata (embraye) sobre o corpo que, no contexto, ele associa com o Real (1973/1974, p. 60). No ano seguinte, em A Terceira, Lacan articulará o corpo como o Imaginário e, na interseção com o Real, indicará o gozo do Outro.
Se a ciência se inscreve no lugar do gozo do Outro (SOLER, 2006), a ciência não está do lado do simbólico, mas do lado da letra, onde o simbólico é "real-lizado" (Ibid.). Eis porque Lacan nos diz nesse texto que a ciência é a única aproximação possível que nós podemos verdadeiramente ter do real da vida, como também ressalta Colette Soler em seu Seminário de Leitura (Ibid.)
Poderíamos então responder a esse "Que posso saber?" que do ponto de vista do psicanalista, do ponto de vista do que a Escola pode saber da passagem do psicanalisante a psicanalista, ou seja, do passe, e que é da ordem do não-saber, seria possível situá-lo a partir de um real-izado, do campo matêmico, composto de letras?
O que posso fazer? O que posso fazer diante disso? Diante da impossibilidade de identificar a estrutura, por que o não-saber é fora da estrutura? E aqui acho muito interessante a resposta que Lacan dá em Televisão: Não posso fazer nada que não diga respeito à ética, que é sempre relativa a um discurso! No discurso psicanalítico, a ética é a do bem dizer, relativa a esse discurso! É por isso que não se pode ler os matemas de Lacan fora do discurso psicanalítico, único campo em que eles bem dizem, com as letras, o transmissível em psicanálise. Mas o não saber não é transmissível, ele reinstaura o buraco (de estrutura)... e é da ordem do dito. Sustentá-lo é função da Escola como já dito, e que nossos textos estatutários retomam de Lacan: sustentar "a ética da psicanálise que é a práxis de sua teoria". Eis porque a forma de tratar as letras não é a mesma que na ciência. É porque há algo que posso fazer diante do fato de que há o campo do não saber que eu, como psicanalista, ponho em relevo como campo lacaniano, o campo do gozo, e tento escrevê-lo como sintoma, "isso que vem do real via ciência" (SOLER, 2009, p. 149).
Somos todos homens e mulheres de nosso tempo, e este é efeito da ciência. O sintoma não é senão consequência disso: Colette Soler o relembra do dito de Lacan em Roma: "creio que o gadget é, na realidade, um sintoma", não objetos a e sim, sintomas, os gadgets-efeitos do encontro da ciência testemunham que o que vem do real em nosso campo é efeito da ciência. O que não quer dizer que posso fazer ciência, mesmo se o sujeito da psicanálise é o mesmo que o sujeito da ciência, como ensinou Lacan, mas quer dizer, por exemplo, que talvez, o que posso fazer diante do não saber que o campo lacaniano descortina é servir-me das letras.
Daí a importância hoje, em nossa Escola, para trabalhar a relação entre letra, escrita e lalangue. Se os efeitos de lalangue ultrapassam tudo que o sujeito pode apreender ( SOLER, 2009), já que os efeitos de lalangue não são da ordem do que posso saber, "o inconsciente lalangue faz obstáculo a que se identifique o sintoma de outra forma que não a hipotética" (Ibid., p. 121), e o que é da ordem de uma hipótese, para nós, psicanalistas, é somente um instrumento com o qual posso fazer avançar nossa relação com a causa freudiana.
Daí que também O que me é permitido esperar? só pode ser isso: avançar no trilhamento (frayage) disso, com meus pares, em minha Escola. Na articulação com as duas outras sessões da Escola, isso que me é permitido esperar se sustenta na questão "O que posso fazer, baseada no discurso do psicanalista no contexto do nosso tempo"? Nesse discurso, não há respostas standard, mas a possibilidade de aprender cada vez com a experiência!
Referências bibliográficas
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Endereço para correspondência
Sonia Alberti
E-mail: sonialberti@gmail.com
Recebido em: 06/02/2012
Aprovado em: 08/03/2012
Notas
* Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Psicanálise e Procientista da UERJ. Pesquisadora do CNPq. Analista Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano/ Fórum Rio de Janeiro.
1 Freud completa, "no eu". Mas ao lê-lo, é preciso lembrar que esse texto é de 1925, portanto, escrito na segunda tópica que explicita que a maior parte do eu é inconsciente.
2 Carta da IF-EPFCL.<http://www.champlacanien.net/public/4/ifCharte.php?language=4&menu=1>.