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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.28 Rio de Janeiro jun. 2014

 

TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS

 

Desejo e Repetição

 

Desire and repetition

 

 

Dominique Fingermann*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano Brasil - Fórum São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Desejo e repetição são dois conceitos da Psicanálise que remetem à sua experiência própria e procedem da estrutura do sujeito tal como esta se desdobra na experiência da transferência. O presente trabalho se propõe desenvolver a articulação dos dois conceitos em três tempos: 1) Como a questão da repetição se apresentou na clínica do desejo tanto para Freud, quanto para Lacan?; 2) Como Lacan retomou a articulação topológica dos dois: o desejo como efeito da repetição e a repetição como efeito do dizer, ou seja, a repetição do traço unário como efeito do Um-Dizer e causa do sentido do desejo, Um de sentido; 3) Por fim, convidamos na dança do Encore Marguerite Duras, que pelo afeto de sua "prática da letra" (LACAN, 1965, p. 200) disparou meu interesse pelo enodamento do acontecimento, da repetição e do desejo.

Palavras-chave: Desejo, Repetição, Dizer, Marguerite Duras.


ABSTRACT

Desire and repetition are two concepts from Psychoanalysis which allude to the subject's own experience and come from his/her structure as much as this structure unfolds itself in the experience of transference. The work sets to develop the articulation of both concepts in three lines: 1) How has the question of repetition presented itself in the clinic of desire both for Freud and Lacan?; 2) How has Lacan returned to the topologic articulation of both (…): desire as an effect of repetition and repetition as an effect of the saying, that is, repetition of the unary trait as an effect of the One-Saying and cause of the meaning of desire; One of meaning; 3) Finally, we invited in the Encore Marguerite Duras dance, which for the affection of "practice of the letter" (LACAN, 1965, p.200) has triggered my interest in the enoding of happening, repetition, and desire.

Keywords: Desire, Repetition, Saying, Marguerite Duras.


 

 

O convite para participar das primeiras Jornadas Conjuntas da América Latina Sul da IF-EPFCL "Posições do ser no desejo", me permitiu desenvolver e compartilhar esta questão tão delicada, que é a relação do desejo com a repetição.

Cada vez que dizia que estava trabalhando esta questão, respondiam um pouco constrangidos: "É mesmo? Que problema difícil!", ou então precisavam: "Mas não seria melhor dizer repetição ou desejo?".

Estava traduzindo e trabalhando em meu seminário o curso de Colette Soler sobre a repetição (SOLER, 2010/2013), e parecia evidente a articulação da repetição com o desejo, tema do encontro "Os paradoxos do desejo":1 a ponto de chegar à conclusão de que o paradoxo do desejo (entre menos e mais-gozar) era a repetição! Logo almejei precipitar a articulação do Dizer com o désir [desejo], e conectar o Dizer-do-Um com o desejo via a repetição "comemoração do gozo perdido!" (LACAN, 1969-70/1992, p. 73).

Por ora trilharei um caminho mais lento de demonstração, desde o início da questão, e em três tempos:

1. Como a questão da repetição se apresentou na clínica do desejo tanto para Freud, quanto para Lacan;

2. Como Lacan retomou a articulação topológica dos dois: o desejo como efeito da repetição e a repetição como efeito do dizer, ou seja, a repetição do traço unário como efeito do Um-Dizer e causa do sentido do desejo, Um de sentido. Traço unário, Um-Dizer, e Um de sentido: três formas do Um para não dizer, talvez, três posições do ser...

Talvez possamos emprestar d'alíngua francesa uma palavra única para condensar a dança dos três tempos do Um: Dizer – Repetição – Desejo: ENCORE!

3. Por fim, não posso deixar de convidar para essa dança do encore ninguém menos do que Marguerite Duras, que pelo afeto de sua "prática da letra" (LACAN, 1965/2003, p. 200) disparou meu interesse pelo enodamento do acontecimento, da repetição e do desejo.

1. Como a questão da repetição se apresentou na clínica do desejo tanto para Freud, quanto para Lacan?

Desejo e repetição são dois conceitos da Psicanálise que remetem à sua experiência própria e procedem da estrutura do sujeito tal como esta se desdobra na experiência da transferência.

Desejo e repetição são dois conceitos forjados por Lacan na sua operação de releitura de Freud, que, obviamente, já tinha destacado essas duas dimensões da estrutura humana que fazem parte do alicerce dos operadores clínicos da Psicanálise, mas ele não tinha estabelecido rigorosamente os seus limites conceituais.

Vale observar que, tanto um quanto o outro começaram a sua "práxis da teoria" desenvolvendo a questão/dimensão do desejo, e que ambos tiveram que produzir um salto na metade de seu caminho para enfocar a pulsão de morte, como princípio além do princípio de prazer no caso de Freud, e, no caso de Lacan, para demonstrar que se o desejo orienta a neurose e a estrutura, o que orienta a Psicanálise é o real. Foi a elaboração do fenômeno clínico da repetição que ocasionou tanto a virada freudiana de 1920 quanto a virada lacaniana de 1964.

Tendo a pensar que esses giros na teoria têm a ver com a apreensão progressiva dos giros necessários numa análise, viradas que podemos chamar "momentos de passe" (FINGERMANN, 2007): quando o movimento do desejo topa com a repetição, e quando o final de análise se produz ao reconhecer o sintoma como a solução do singular e do laço possível.

Vejamos como Lacan menciona essa virada na obra freudiana no Seminário 17, no capítulo "Saber, meio de gozo" (capítulo crucial para o desenvolvimento dos dez próximos anos de seu ensino):

Aquilo que Freud – ao seguir o fio, o veio de sua experiência – foi levado a formular em um tempo segundo de sua enunciação, tem até mais importância, pois afinal, nada parecia obrigá-lo a isso no primeiro tempo, o da articulação do inconsciente. O inconsciente permite situar o desejo, eis o sentido do primeiro passo de Freud, já inteiramente não apenas implicado, mas propriamente articulado e desenvolvido na Traumdeutung. Isto para ele já está dado quando, em um segundo tempo, aberto por Além do princípio de prazer, afirma que devemos levar em consideração essa função que se chama como? – A repetição (LACAN, 1969-70/1992, p. 43).2

Na clínica, à primeira vista, o desejo indicaria o movimento e a procura do diferente, e a repetição conotaria a volta do mesmo. À primeira vista, portanto, uma análise iniciaria a sua peregrinação com o insuportável da repetição e abriria para o desejo: "não ceder em seu desejo", ensina Lacan (1959-60/2008, p. 375).

 

No começo, havia o desejo

Freud começou a história da Psicanálise com a consideração do sintoma como manifestação do retorno do recalcado, e daí deduziu o desejo e o inconsciente (que Colette Soler chega a nomear como "o inconsciente-desejo"). O sintoma surgiu e se qualificou, então, tanto quanto a angústia, pela sua relação com o desejo, enquanto solução de compromisso e substituto do desejo recalcado, reprimido, inter-dito.

O desejo, portanto, apareceu incontornável desde os primeiros passos da metapsicologia freudiana para fundamentar os esboços do aparelho psíquico e orientar a interpretação do inconsciente (enquanto a repetição apareceu bem depois para localizar, nomear, um fenômeno que se apresentou como obstáculo ao tratamento analítico da neurose de transferência).

Evidentemente, todos os conceitos freudianos da Psicanálise têm o desejo como referência: a transferência, a resistência, a interpretação, o recalque, o inconsciente, o Édipo, a pulsão, a histeria, a angústia, a sexualidade infantil etc. E o desejo "é a interpretação" de todas as formações do inconsciente, o sonho, lapso, sintoma, fantasma.

No entanto, o desejo não é propriamente indicado como conceito referencial fundamental, e, inclusive, há três palavras diferentes que correspondem à palavra "desejo" na obra freudiana: Wunsch – Begierde – Lust, embora o conceito freudiano de libido, desde 1894, condense, de uma certa forma, o que denominamos como "desejo inconsciente".

"O desejo é o movimento", anunciou Freud (1900/ s.d.) desde a Interpretação dos Sonhos: é o movimento que, a partir do traço mnêmico da primeira experiência de satisfação, enlaça o objeto suposto satisfazer a necessidade. As formações do inconsciente testemunham desse princípio de prazer que alicerça toda a aparelhagem psíquica.

Partindo de uma "catexização alucinatória da lembrança de satisfação" (Ibid.), "nada senão o desejo pode colocar nosso aparelho anímico em ação" (Ibid.) e "colocar o aparelho em movimento". O seu paradoxo principal é que ele seja indestrutível e invariante, condensando "o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une" (FREUD, 1908/ s.d.).

Lacan colocou no primeiro plano da teoria analítica a noção de desejo descoberta por Freud. Influenciado pelo seu estudo de Hegel via Kojève, no período da guerra, podemos até dizer que Lacan virou lacaniano ao extrair de sua leitura de Freud (e de Hegel) a teoria do desejo. Mas é com Saussure que ele vai poder argumentar o paradoxo da sua "persistência indestrutível" (LACAN, 1955/1998, p. 57), e a sua teoria do desejo logo vai se tornar articulada e inseparável da teoria do sujeito extraída, decorrente da lógica do significante e da estrutura da linguagem.

"É preciso tomar o desejo ao pé da letra" (LACAN, 1958/1998, p. 426), podemos ler em "A direção da cura e os princípios de seu poder": "o desejo efetivamente está no sujeito pela condição, que lhe é imposta pela existência do discurso, de que ele faça sua necessidade passar pelos desfilamentos do significante" (Ibid., p. 634).

Os Escritos testemunham essa primeira parte de seu ensino, que poderíamos chamar de "Subversão do sujeito e dialética do desejo", emprestando o título do texto dos escritos de 1960 (publicado em 1966), e que funda a direção da cura e os princípios de seus poderes nas consequências da subversão do sujeito e da dialética do desejo, e de seus efeitos sobre o inconsciente-desejo (inconsciente-linguagem, inconsciente-fantasma).

Assim se passaram mais de vinte anos do percurso de Lacan.

A partir de 1967-1968, inicia-se a virada lacaniana, que se orienta desde o tratamento do gozo, os discursos, e o Real, que se destacou como conceito em 1964 em consequência da distinção feita por Lacan da repetição como conceito fundamental da Psicanálise.

 

A repetição

Lacan indica que a repetição é o ponto de partida irredutível da novidade freudiana: "o ponto de partida irredutível da novidade freudiana, a saber: a repetição" (LACAN, 1966-67/inédito, Aula de 01/02/1967).

Freud examina a repetição como um problema clínico desde 1914, mas só depois de sua virada conceitual encontrará, em 1920, sua articulação teórico-clínica, com o exorbitante e decisivo "Além do Princípio de Prazer".

A repetição encontra-se, então, localizada como trauma e pulsão de morte, justificando, assim, as versões "demoníacas" das suas manifestações na clínica psicanalítica, que obstaculizam o trabalho da transferência, e até mesmo produzem as piores "reações terapêuticas negativas". Devemos, no entanto, a Freud, e desde então, uma definição mais lógica do que patológica, quando ele designa a pulsão de morte e a repetição que a manifesta como "algo que não se liga" (FREUD, 1900/ s.d.).

De uma certa forma, este será o ponto de partida de Lacan quando, em 1964, ele inventa a repetição como conceito fundamental da Psicanálise, designando sua estrutura como "encontro falho do real" (LACAN, 1964/1988, p. 57). Ponto de partida (partição/corte) no ensino de Lacan que, doravante, nunca mais cessará de precisar a estrutura, ou seja, o sujeito como resposta do real.

Assim, Lacan interessa-se primeiro pelo desejo como fundamental e decorrente da estrutura de linguagem; no entanto, é com a repetição que ele abre os Escritos, com seu famoso texto A Carta Roubada, extraído de seu segundo seminário, desdobramentos lógicos sobre a repetição que os avanços de 1964 vão contradizer radicalmente ("a repetição não é a volta dos signos" [Ibid., p. 56]).

O conceito de repetição em Lacan vai sofrer diversas reviravoltas, acompanhando suas diferentes reconsiderações do que é o inconsciente. Mas também podemos dizer que são as várias reconsiderações do problema clínico da repetição que o obrigaram a distinguir o inconsciente-real do inconsciente-linguagem, ou ainda como diz Colette Soler, do inconsciente-desejo.

O desejo se deduz do inconsciente-linguagem e é uma consequência da estrutura de linguagem. A dimensão do Real vai descentrar o desejo e, pelo contrário, enfatizar a importância da emergência lógica da repetição e a temporalidade subjetiva que ela inaugura, assim como ela abre o capítulo do campo lacaniano propriamente dito: o campo do gozo. Depois do giro do campo lacaniano, o que ocorre com o desejo?

Vale observar, portanto, que se desejo e repetição foram diferenciados tanto por Freud quanto por Lacan, a partir de suas manifestações fenomênicas na clínica, Lacan não cessou de articulá-los até o fim de seus seminários.

2. Lacan retomou a articulação topológica dos dois desde sua experiência da clínica e dos desenvolvimentos necessários da teoria que a orienta.

Não é explícito no Grafo do Desejo (porém evocado pelo sentido das flechas), mas é essa articulação topológica da repetição e do desejo que o toro mostra, desde o Seminário 9: pois são as voltas da demanda (a sua re-petitio) que permitem circunscrever, como efeito, a localização do desejo e sua causa. Articulação, enodamentos topológicos que ele apresentará com o "8 interior" (LACAN, 1966-67/inédito, Aula de 15/02/1967) no Seminário 14, "esse duplo enlace do traçado da repetição" (Ibid.).

A repetição não é apenas uma manifestação, ela é a estrutura, o seu ponto de partida e de partição real. O desejo, como movimento, é uma consequência, um efeito de uma causa real, um "pas-de-sens" (passo de sentido) consequente do "pas-de-sens" (não sentido).

 

 

A repetição é o necessário da estrutura que não cessa de escrever o real em jogo como impossível.

É um encontro, diz Lacan em 1964, ou seja, contingência, pois é sempre de uma maneira imprevisível que se manifesta o real como encontro falho, com o "não há relação sexual".

A repetição, de fato, é sempre diferente. Topar com o encontro falho do real é sempre imprevisível, incalculável.

Pas-de-sens (não sentido): é assim que ela se apresenta na clínica psicanalítica antes que a entrada na análise lhe convide para um pas-de-sens (passo de sentido), o equívoco do sujeito suposto saber e seu impasse programado: pas-de-deux.

A repetição não cessa de escrever o Um que nunca alcança o dois da relação, ela "não se liga", embora permita que ecoe na sua insistência irrevogável o "Y a d'l'Un" do real que ex-siste. A repetição faz diferença, ela dá notícia do Um que ex-siste: encontro sempre novo.

O desejo, como efeito, se liga, se conecta, ele parece fazer laço com o outro, mas, de fato, é um objeto que ele enlaça, um objeto constrangido pela interpretação fantasmática: o princípio da monotonia e da mesmice. As errâncias do desejo parecem nunca se aventurar muito longe do cálculo fantasmático e do molde que ele configura para o "objeto a".

O desejo e sua modelagem fantasmática não salvam da repetição, tanto que, na experiência da psicanálise, a transferência, seu vetor e seu trabalho próprio não curam da repetição (SOLER, 2010/2013, p. 26). Pelo contrário, a sua demonstração (do impasse do sujeito-suposto-saber) produz o limite da série infinita, único caminho para, do impossível, deduzir a ex-sistência do real.

Quem se procura no desejo, encontra aí as miragens da verdade que dão sentido, mas é na repetição que acha essa dimensão que Kierkegaard localiza como ética e que Lacan qualifica como "a diferença, a distinção, a unicidade" (LACAN, 1961-62/inédito, Aula de 06/12/1961), "lugar temporal" (LACAN, 1966-67/inédito, Aula de 22/02/1967) dirá ele no seminário da Lógica do Fantasma:

É que Kierkegaard percebeu que a repetição tinha um alcance revelador. E é isso que pode interessar ao psicanalista, independentemente da concepção daquilo que for revelado. Para ele, a repetição tem uma implicação ontológica, ela revela algo do ser do sujeito. "A repetição é a palavra de ordem de toda concepção ética", diz ele, e, aliás, quando encontra a repetição, segundo sua expressão, acrescenta: "sou novamente eu mesmo" (SOLER, 2010/2013, p. 48).

Contudo, se a filosofia extrai dessa temporalidade paradoxal algo que volta, sempre atual e único, nunca passado, se a arte e a música usam seus recursos para produzir o mais novo e surpreendente, se a poesia joga com o seu ritmo para lançar mão da sua rima e da sua pulsação própria, na Psicanálise o fenômeno se apresenta quase sempre como um estraga prazer! Uma análise pode chegar até esse ponto de passe, e de extração de seu alcance ético, mais além que sua redundância patética.

Podemos, portanto, articular o desejo como efeito da repetição e a repetição com efeito do dizer. Ou seja, a repetição do traço unário como efeito do Um-Dizer.

Talvez uma palavra única poderia condensar os três tempos:

Dizer – Repetição – Desejo: ENCORE!

Mas seria preciso desdobrá-lo e enunciar assim:

En-corps – Encore! – Encore?!

No corpo: En-corps, o Dizer – Outra vez!: Encore!, a repetição – Mais ainda?!: Encore?!, o desejo.

E talvez possamos avançar que o que enoda os três é algo de um acontecimento de corpo – do corpo: o sintoma.

3. Por fim, não posso deixar de convidar para a dança do encore: Marguerite Duras que, pelo afeto de sua prática da letra, disparou meu interesse pelo enodamento do acontecimento, da repetição e do desejo.

A sua obra permite vislumbrar a articulação da ética da repetição com a extravagância do desejo: pas-de-deux.

O marinheiro de Gilbraltar (1952), primeiro romance de Marguerite Duras ao qual tive acesso, é um exemplo paradigmático desse enlace do acontecimento, da repetição e do desejo. Foi um primeiro gancho para mim do "ravissement", arrebatamento, "captura/deslumbramento" (LACAN, 1965/2003, p. 198) que a "prática da letra" de Marguerite Duras provoca em alguns, como Lacan, entre muitos outros.

Le Marin de Gilbraltar (DURAS, 1952)3 é o nome do desejo feito causa, que propulsa Anna nos mares e continentes, à procura do instante de amor que o encontro com o marinheiro, na sua contingência radical, lhe proporcionou um belo dia em Xangai. O narrador da história interrompe um casamento "normal" e uma vida tediosa, no meio de uma viagem a Firenze, para acompanhá-la nessa perseguição zelosa da Itália até a África, passando pelos mares da Espanha.

A miragem do encontro, sempre repetida nos portos e marinhas, não cessa de inscrever o não encontro necessário do "dois", tão mirabolante.

Vetorizada pelo desejo inalcançável, a travessia que zarpará nos mares azuis, verdes e negros, sempre recomeçados, não dispensa para Anna os seus repetidos corpos a corpos eróticos com qualquer um que pudesse lhe dar notícias da paixão perdida, nem mesmo desvalida o amor "verdadeiro" com o parceiro de viagem que tangencia a expedição toda.

Esse romance do exílio amoroso encena os movimentos sucessivos de uma coreografia que alterna o langor e o vigor do desejo por um lado, e, por outro, tanto o fastio da repetição quanto o desconcerto das suas irrupções repentinas.

Desejo e repetição se apresentam aqui no seu entrelaçamento estrutural e paradoxal. Mais do que errância, enquanto fuga ou deriva, é uma dança que Anna e seus parceiros (do desejo, do amor, e do corpo a corpo) piruetam: 1, 2, 3, 4 – 1, 2, 3, 4: Je te demande... de me refuser... ce que je t'offre... parce que c'est pas ça ("Eu te demando de me recusar o que te ofereço porque não é isso... não é isso" [LACAN, 1971-72/2011, p. 81]).

É a dança que permite que o objeto do desejo vire e volte como causa, marcando o Um de repetição que evoca (invoca) o Um Dizer que ex-siste a todas as voltas.

A poesia, tanto quanto o amor, presentifica também esse savoir-faire: entrelaçar, trançar o sentido e o sem-sentido, o Um e o Outro, encore, e en-corps. Mas, nada melhor do que a dança para produzir, encenar, fazer mostração, da alternância contrabalançada da repetição e do desejo: quem não lembra do trecho do balé Cafe Müller, de Pina Bausch,4 que Wim Wenders imortaliza em seu filme,5 no qual uma mulher precipita-se incansavelmente nos braços de um homem que a deixa cair, e ela, de novo, se precipita nos braços dele, que a deixa cair e, de novo... encore.

Desejo e repetição são também os protagonistas do baile da embaixada da França em Calcutá, no qual Lol V. Stein se encontra, desaparecida, siderada, perante o desejo (desiderare) arrebatador de seu noivo Michael Richardson e Anne Marie Stretter.

Desejo e repetição tramam a letra e a música de todos os romances, filmes e peças de Marguerite Duras.

O baile é o lugar da dança e contradança do desejo e da repetição que conta India Song, longa-metragem de Marguerite Duras, de 1975.6 E o baile do desejo alucinante dos homens todos, que cada um por sua vez, enlaçam Anne Marie Stretter numa sequência atordoante de pas-de-deux: rumba, tango, ragtime, valsas, 1, 2, 3... pas-de-deux.

Baile inesquecível, por causa da música de Carlos D'Alessio,7 do olhar de Lol V. Stein (a mesma do romance de 1964 [DURAS, 1964]) invisível, foracluída do baile e por causa do desejo aparelhado com o mais além do princípio de prazer. Às vezes, o baile silencia, com o adagio de um piano, com o rasgo do grito monstruoso do Vice-Consul (DURAS, 1965) e com o canto da mendiga laosiana, encantação de alíngua, em contraponto do drama do desejo, silêncios marcando o passo fora do tempo da repetição.

O grito, a música em descompasso, as vozes em off dessincronizadas, o olhar multiplicado pelo espelho monumental da sala de baile, participam dessa coreografia em que a repetição da "não relação sexual" engata o passo do próximo ritmo, inebriador em cadência com o desejo.

A travessia de uma análise não dispensa o leme do desejo, mas pode despregar da mesmice e de suas errâncias, ou seja, do cálculo do gozo a partir da falta do Outro: "como um sujeito que atravessou a fantasia radical pode viver a pulsão?", pergunta Lacan (1964/1988, p. 258).

Mais além do cálculo é preciso contar com Um Dizer, exceção dos Uns da repetição, que repercutem "o diferente, distinto, único", separado.

Desprender-se do horror de saber do Um Sozinho é preciso, para poder se contar como Um único e poder devolver ao desejo alguma extravagância.

Dançar é preciso: pas-de-deux.

 

Referências

DURAS, Marguerite. Le marin de Gilbraltar. Paris: Gallimard, 1952.         [ Links ]

DURAS, Marguerite. Le Ravissement de Lol V. Stein. Paris: Gallimard, 1964.         [ Links ]

DURAS, Marguerite. Le Vice-Consul. Paris: Gallimard, 1965.         [ Links ]

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SOLER, Colette. (2010). A Repetição na experiência analítica. São Paulo: Ed. Escuta, 2013.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: dfingermann@terra.com.br

Recebido: 05/02/2014
Aprovado: 31/03/2014

 

 

* Psicóloga. Psicanalista. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano Brasil - Fórum São Paulo. Coautora de Por causa do pior (Iluminuras).
1 Referência ao VIII Encontro Internacional da IF-EPCFL, que acontecerá de 25 a 27 de julho de 2014, no Palais des Congrès, em Paris.
2 No original: "Ce qu'à suivre la veine, le fil de son expérience, Freud a été amené a formuler dans un temps second dans son énonciation n'en a que plus d'importance, puisque après tout, rien ne semblait l'imposer dans le premier temps, celui de l'articulation de l'inconscient.
L'inconscient permet de situer le désir, c'est là le sens du premier pas de Freud, déjà tout entier non pas seulement impliqué, mais proprement articulé et développé dans la Traumdeutung. Cela est pour lui acquis quand, dans un second temps, celui qu'ouvre l'Au-delà du principe du plaisir, il articule que nous devons tenir compte de cette fonction qui s'appelle quoi ? – La répétition".
3 Há também uma versão cinematográfica do livro (1967) feita pelo diretor Tony Richardson, com Jeanne Moreau no elenco.
4 BAUSCH, Pina (1978). Cafe Müller. http://www.youtube.com/watch?v=3WLazG0bQPI.
5 WENDERS, Wim (2011). Pina. http://www.youtube.com/watch?v=CNuQVS7q7-A.
6 DURAS, Marguerite (1975). India Song, com Delphine Seyrig, Michel Lonsdale e Mathieu Carrière. http://www.youtube.com/watch?v=laUM85wOcPA.
7 Carlos D'Alessio (1935-1992) é o autor-compositor de toda a trilha sonora do filme. http://www.youtube.com/watch?v=t-emOQ1jBv8.