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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.28 Rio de Janeiro jun. 2014

 

TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS

 

Sobre o amor, o desejo e os parceiros

 

About love, desire and partners

 

 

Marcia Assis*

Internacional dos Fóruns - Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Fórum Rio de Janeiro
Fórum do Campo Lacaniano de Niterói

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho traz as articulações entre amor e desejo e, partindo do princípio que no nível do gozo não há par, aponta o parceiro do desejo e a parceria amorosa, enquanto apresenta o amor em três versões: o amor paixão ignorante do desejo, que mente sobre o verdadeiro parceiro; o amor de transferência, condição e obstáculo da análise; e o amor mais digno, que não acredita no parceiro mas reconhece o outro como unicidade solitária.

Palavras-chave: Amor, Desejo, Gozo, Objeto a.


ABSTRACT

the present work discusses the articulations between love and desire and, departing from the principle that, at the level of jouissance there is no pairing, it points out the partner of the desire and the love partnership while it presents love in three versions: love as passion, ignorant of desire, which lies about the true partner, love of transference, condition and obstacle to the analysis, and the more dignified love, which does not believe in the partner, but acknowledges the other as solitary uniqueness.

Keywords: Love, Desire, Jouissance, Object a.


 

 

Introdução

Não há relação sexual: eis o impossível que não cessa de não se escrever. Porém, há "uma relação de amor possível que, desta vez, reconhece o outro" (SOLER, 2012, p. 183). O trecho citado, recortado de Lacan, o inconsciente reinventado, foi o elemento provocador, instigando esta elaboração. O capítulo O amor e o Real nos faz pensar sobre os efeitos da análise diante da questão amorosa. Sendo o amor uma paixão amiga da ignorância, que não quer saber nada disso, aposta-se na mudança, considerando-se que a experiência analítica desvela o real irredutível da castração.

O gozo não é ligante por si só. No nível do gozo não há par. Impossível escrever o dois do sexo. Mas há o par da fantasia, esteio do desejo. Ressalto, no entanto, que o desejo não comporta uma relação subjetiva simples com o objeto, tal como representado pelo losango no matema da fantasia. No seminário A angústia, Lacan propôs ler este matema da seguinte maneira: $ desejo de a (1962-63/2005, p. 59). Eis o casal que se apresenta no nível do desejo, $ em suas relações possíveis com o objeto a mais-de-gozar. Isto envolve um gozo, certamente, o gozo fálico ao redor do qual tudo gira, segundo o que se demonstra na experiência analítica, justamente por ser tal gozo obstáculo. Faço referência ao seminário Mais Ainda, onde Lacan explicita que o gozo fálico obstaculiza o homem gozar do corpo da mulher, pois do que ele goza é do gozo do órgão (1972-73/ 1985, p. 15). Ou seja, "o gozo enquanto sexual, é fálico, quer dizer, ele não se relaciona ao Outro como tal" (Ibid., p. 18).

 

O amor ignorante do desejo

Do que se trata no amor? Será que é fazer um só? Estas são questões trazidas por Lacan no seminário citado acima, às quais acrescento mais uma: qual é o par no nível do amor?

O amor é sempre recíproco, pois "o amor demanda o amor" (Ibid., p. 12). "Amar é querer ser amado" (1964/1988, p. 239), afirmativa de Lacan que denuncia a essência narcísica do amor, salientada desde Freud. Eis a baixeza do amor, revelada por Alcibíades em sua busca pelo agalma (LACAN, 1964/1998, p. 867).

Ainda no Seminário 20 (op. cit., p. 12), ao falar sobre o amor, Lacan nos diz ser este uma paixão ignorante do desejo, impotente e recíproco, pois "ignora que é apenas o desejo de ser Um, que nos conduz ao impossível de estabelecer a relação dos dois sexos" (Ibid., p. 14). Para ilustrar este impossível, Lacan recorreu ao paradoxo de Zenão, onde Aquiles só pode ultrapassar a tartaruga e não em(par) elhar-se a ela. Eis o dito para o que concerne ao gozo sexual: de Dois não se faz Um. Esse Um só se aguenta pela via do significante. O gozo é solitário. Os corpos copulam porque as palavras copulam. "Um corpo, isso se goza. Isso se goza por corporizá-lo de maneira significante" (LACAN, 1972-73/1985, p. 35). A linguagem é obstáculo ao gozo pleno. Este é da ordem do impossível ao ser falante. Resta o gozo limitado, castrado, gozo ferido.

Entre os seres falantes, o ato de amor é a perversão polimorfa do macho, ou seja, sendo falante, aquele que se vê macho aborda a mulher, no entanto, o que ele aborda é o objeto a, causa de seu desejo. Não há acesso ao Outro a não ser pela via das pulsões parciais. É em revolver esses objetos para neles resgatar, restaurar em si sua perda original, que se empenha a atividade pulsional (LACAN, 1964/1998, p. 863). Porém, os corpos que gozam, solitariamente, vêm a se atrair eletivamente. Sem esquecer que há reciprocidade entre o amar e o ser amado, pressupondo um par. No entanto, que par é este? Haverá outro par que não seja o da fantasia, se o parceiro do sujeito não é o Outro, mas o que vem substituir-se a ele na forma de causa de desejo, forma a-sexuada? Dito de outro modo, o objeto que causa o desejo não é nenhum parceiro em particular, apenas a contrapartida do sujeito na fantasia. O que nos leva a reafirmar que o amor é enganador, pois ele mente sobre o verdadeiro parceiro. Soler enfatiza este ponto, o parceiro do casal é sempre o lugar-tenente do verdadeiro parceiro: Dante só obtém de Beatriz um batimento de cílios, um olhar, objeto de sua fantasia (SOLER, 2012, p. 186). Tal exemplo diz o que vale em Beatriz, invólucro do objeto a mais-de-gozar, mas não diz por que Beatriz e não Julieta.

O verdadeiro parceiro, o objeto a, não tem nome, nem imagem. "Ele é causa de angústia, justamente por ser anônimo e desconhecido" (Ibid., p. 170). Ele causa o desejo, mas como indeterminado. A causa faz desejar, lança o vetor, deixando o alvo em branco, quer dizer, não diz sobre o desejável, sobre o parceiro eleito, de onde extrair o mais-de-gozar visado. Soler nos convida à releitura do seminário A angústia (op. cit.) para alcançarmos a distinção estabelecida por Lacan entre o objeto a como pura causa de desejo e o objeto a passado ao campo do Outro, quando um investimento é transferido para objetos historizados, vestidos com as imagens e os significantes do discurso. A fantasia, portanto, é o produto desta transfusão de a para o campo do Outro. Mais tarde, no seminário Mais ainda, Lacan referese à imagem como vestimenta que envolve o objeto a, causa de desejo, afirmando que o amor se dirige ao semblante (op. cit., p. 125).

Ao objeto tornado alvo do desejo, Soler irá designá-lo objeto sintoma. Aí se encontra o que Lacan enunciou como modelo do pai que apresenta o exemplo de uma solução para a indeterminação do desejo, sendo a condição de superação de angústia, pois há para ele um a assegurado, fixado. Portanto, um pai é a figura de uma solução sintomática que aponta a via da suplência, a partir de seu sintoma. Ele pode ter outros sintomas, mas é por esse que ele traz a função de enodar o ICSR à verdade da fantasia, com seu dizer de nomeação.

Só há amor por um nome e só há superação da angústia quando o Outro é nomeado. Cito Lacan, no seminário A angústia (op. cit., p. 366). Melhor tradução de tais frases, encontrei no verso "Teadoro, Teodora", do poeta Manuel Bandeira, inventor do verbo teadorar.1

Duas afirmativas se esclarecem: o sintoma supre a ausência da relação sexual e a segunda, enunciada no seminário Mais ainda: "O que vem em suplência à relação sexual é precisamente o amor" (op. cit., p. 62).

A passagem ao espaço do Outro é o que fundamenta a transferência, considera Soler, que afirma ser o SsS (no qual o objeto está latente) um outro nome ao que Lacan denominou campo do Outro. "O que faz da análise uma aventura singular é a busca do agalma no campo do Outro" (1962-63/2005, p. 366).

 

O amor de transferência: condição e obstáculo do tratamento

É pela via do amor que a análise opera, sabemos disso desde Freud (1915[1914]/1986), que não duvidava da autenticidade deste amor, ainda que não recíproco. Também Lacan não duvidou, chegando a afirmar que sua formulação sobre o SsS mostra que a transferência não se distingue do amor, pois "aquele a quem eu suponho o saber, eu o amo" (1972-73/1985, p. 91), sendo, portanto, condição do tratamento por ser um amor que se dirige ao saber. No entanto, em sua vertente resistente obstaculiza o processo analítico, ao não querer saber nada disso.

No Seminário 10, apresenta o amor de transferência como um amor presente no real (op. cit., p. 122), alertando que nada alcançaremos a respeito do conceito de transferência, se ignorarmos que ela também é consequência desse amor presente, ressaltando a questão central da transferência, sobre o que falta ao sujeito, pois é a partir da falta que ele ama.

No seminário A transferência (1960-61/1992), Lacan buscou o Banquete de Platão para nos mostrar do que se trata na transferência, que não pode ser apreendida fora do registro indicado como o lugar de a, o objeto mais-de-gozar, o agalma, na relação de desejo.2 "Mesmo que o sujeito não o saiba, já é no outro que o pequeno a funciona" (Ibid., p. 194). Este é um efeito legítimo e irredutível da situação transferencial.

Lacan já nos alertara no Seminário A Angústia (op. cit., p. 170), para a função do desejo no plano do amor; ele intervém no amor, sendo seu pivô essencial, porém o desejo não diz respeito ao objeto amado. O analista, aquele que passou pela experiência, sabe sobre a função do desejo e do objeto-causa. Ele sabe sobre o segredo chocante do funcionamento do desejo, dissimulado pelo amor de transferência, em sua versão resistência: o Outro se reduz ao objeto a. Desejar o Outro nunca é senão desejar o a (Ibid., p. 198). O desejo aiza o parceiro.3

 

Um amor mais digno

Soler (2012, p. 188) se refere ao termo empregado por Lacan em Carta aos Italianos: "amor mais digno" (1973/2003), ao qualificar que a análise não é sem efeito sobre o amor. Portanto, podemos apostar que uma análise orientada para o real possa fazer surgir um amor mais digno, aquele que não acredita no parceiro, uma forma de sintoma socializante. A Psicanálise não o prescreve. Este amor ateu, menos tagarela, pode acontecer, pois a análise é capaz de provocar mudança, mas o bom encontro, ela não pode prometer, embora possa criar as condições de possibilidade, ao provocar as des-identificações, liberando o sujeito das restrições que a repetição impunha. A análise revela que o amor é repetitivo, sempre a mesma decepção, ao esperar um efeito de ser. E o amor repetitivo trabalha na direção da conformidade. Porém, há escolhas discordantes que não obedecem nem ao ideal, nem à fantasia.

Lacan afirma no seminário Mais ainda que o reconhecimento de sujeito a sujeito, onde sujeito é apenas efeito do saber inconsciente, é a maneira pela qual a relação dita sexual para de não se escrever (op. cit., p. 198). Ponto de suspensão, contingência, instante "infinito enquanto dura".4 Momento em que nosso desejo estende a mão para a acha ardente e, da chama, por um instante, outra mão se estende para nós, bem como seu desejo.

O termo reconhecimento indica a função nova que o amor assume, revelar a presença e os efeitos do inconsciente real (SOLER, 2012). Índice não de uma intersubjetividade, mas de um inter-reconhecimento entre dois falasseres que trazem, cada qual, as marcas de seu exílio, pois quem fala só tem a ver com a solidão, no que diz respeito ao impossível da relação sexual. Dois falasseres, duas disparidades desejantes. Afinidade que não faz identificação, nem traz uma identidade. A partir de tais considerações, talvez se possa alcançar a frase que instigou esta produção: uma relação de amor possível, que desta vez reconhece o outro, unicidade solitária.

O amor é posto à prova ao se defrontar com o impossível. Diante da impossibilidade, pode surgir a relação de amor possível, alternativa ao amor que visa ao complemento de ser, ao cessar os amores com a verdade e a miragem de completude, uma vez consentida a sorte de falasser.

 

Referências

FREUD, S. (1914). Puntualizaciones sobre el amor de transferencia. Obras Completas de Sigmund Freud. Tradução de José Luis Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu Editores, vol. XII, 1986, pp. 159-174.         [ Links ]

LACAN, J. (1960-61). O Seminário, livro 8: a transferência. Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. 386p.         [ Links ]

__________. (1962-63). O seminário, livro 10: a angústia. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. 367p.         [ Links ]

__________. (1964). Posição do inconsciente. In: LACAN, J. Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 843-864.         [ Links ]

__________. (1964). Do "Trieb" de Freud e do desejo do psicanalista. In: LACAN, J. Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 865-868.         [ Links ]

__________. (1964). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Versão brasileira de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 269p.         [ Links ]

__________. (1972-73). O Seminário, livro 20: mais ainda. Versão brasileira de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 201p.         [ Links ]

__________. (1973). Nota italiana. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 311-315.         [ Links ]

SOLER, C. Lacan, o inconsciente reinventado. Tradução Procópio Abreu. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2012. 234p.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: marcia.assis@gmail.com

 

 

* Psicanalista, membro da IF-EPFCL, Fórum Rio de Janeiro e Fórum Niterói, atual coordenadora do FICL-Niterói.
1 Referência ao poema Neologismo, de Manuel Bandeira.
2 Lacan faz uma equivalência entre agalma e objetos parciais no Seminário A transferência.
3 Expressão de Lacan, utilizada no Seminário A angústia.
4 Referência ao poema Soneto de Fidelidade, de Vinícius de Moraes.