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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.30 Rio de Janeiro jun. 2015

 

ENSAIOS

 

Para sempre é sempre por um triz

 

Forever is always a close call

 

 

Ana Laura Prates Pacheco*

Laboratório de Estudos Urbanos - Universidade Estadual de Campinas - LABEURB - UNICAMP
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - EPFCL

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No Seminário 21, Les non-dupes errent (1973-74), Lacan escreve que "o nodal é o modal", articulando o nó borromeano aos modos de gozo que já havia localizado nas fórmulas da sexuação, no ano anterior. Ele propõe que há dois tipos de nó, estruturalmente distintos: o nó olímpico e o nó borromeano. O nó olímpico é ordinal, pois uma das esferas — a do meio — tem prevalência sobre as outras duas. Esse tipo de nó é aquele que tenta escrever a relação sexual. Dependendo do registro que ocupará a função prevalente — o Simbólico, o Imaginário ou o Real —, teremos uma tipologia de modos de amor que tentam escrever a relação: o amor a Deus, o amor cortês ou o amor masoquista. Curiosamente, garantir o impossível, como faz o amor cortês, é tanta impostura quanto garantir o possível, ou pior, torná-lo necessário. Pois bem, ao contrário do nó olímpico, o nó bô é cardinal — não há ordem, nem prevalência de nenhum dos registros sobre o outro. É essa a característica que permite a Lacan escrever "não há relação sexual" a partir desse nó. Pois como afirma Lacan, o 3 é Real, pois o 1 não atinge o 2. O 2 é ímpar! Belo modo de dizer que relação sexual não há.

Palavras-chave: Amor, Nó borromeano, RSI, Lacan.


ABSTRACT

In the Seminar 21, Les non-dupes errent (1973-74) Lacan writes that "the noding is the modal," articulating the Borromean knot to the ways of jouissance that he had already identified in the sexuation formulae, in the previous act. He states that there two structurally distinct types of knots: the Olympic knot and the Borromean knot. The Olympic knot is ordinal, once one of the spheres — the one in the middle — prevails over the other two. This type of knot is the one which tries to write the sexual relationship. Depending on the register the dominant function will occupy — the Symbolic, the Imaginary, or the Real, we will have a typology of love that tries to write the relationship: love to God, the Courteous love or the masochist love. Curiously, to guarantee the impossible, as the courteous love usually does is as questionable as to guarantee the possible, or worse, to take it as necessary. Very well, on the opposite side of the Olympic knot, the Borromean knot is cardinal – there is no order, or the prevalence of register over another one. This is the characteristic which allows Lacan to write "there is no sexual relationship" from this knot. As Lacan contends, the 3 is Real since the 1 does not reach the 2. The 2 is odd! Great way of stating that there is no sexual relationship.

Keywords: Love, Borromean knot, RSI, Lacan.


 

 

1. O amor seguro e o acontecimento

Nos contos de fada, recontados a partir da Modernidade, quase sempre o final anuncia-se com a frase: "e foram felizes para sempre". O ideal de amor romântico tem seus primórdios no final da Idade Média, desenvolve-se durante o Renascimento e transforma-se em ideal a partir do Século das Luzes. O amor romântico, que nasceu rebelando-se contra a ordem do Mestre, vigente nos casamentos arranjados por interesses políticos e econômicos, acabou sendo assimilado de modo gradual e depois imperativamente aos ideais das famílias burguesas pós-industriais.

Em um livro recente chamado Elogio ao Amor, Alain Badiou comenta o que seriam duas faces da mesma moeda em relação às ameaças contemporâneas ao amor. Amor que leva em conta o acaso e o encontro, e que seria, fundamentalmente, da ordem da disjunção e da diferença, de modo muito similar ao que sustenta Lacan a partir dos anos 70. Para Badiou, essas ameaças são duas: por um lado, a ideia do amor seguro que garante pela minuciosa contabilidade das afinidades um "felizes para sempre" morno e adaptado — transformando o possível em necessário. Trata-se do que Lacan chama ironicamente de "o avô e a avó no horizonte do amor". Por outro lado, temos os discursos pós-modernos que garantem o amor como impossível: "A contrapartida dessa ameaça securitária consiste em afirmar que o amor não passa de uma variante do hedonismo generalizado, uma variante das figuras do gozo. Trata-se de evitar assim qualquer provação imediata, qualquer experiência autêntica e profunda da alteridade com que o amor é tecido" (BADIOU, 2013, p. 13).

Em ambos os casos, tratar-se-ia de conceber o amor como um "risco inútil" (BADIOU, 2013, p. 14) e de afastar o modo da contingência, do qual o amor é tecido, tal como nos ensina Lacan em seus seminários 20, Encore (1972-73) e 21, Les non-dupes errent (1973-74): "o amor nada mais é que um dizer, enquanto acontecimento" (lição 5). Ou nas palavras de Badiou: "o encontro entre duas diferenças é um evento, algo contingente, surpreendente" (BADIOU, 2013, p. 24). Essa definição do amor se sustenta, em Lacan, na escrita do nó borromeano, enquanto a própria estrutura do "espaço do ser falante", pois que há três faces nesse dizer: a face imaginária, ou da imagem efetiva; a face simbólica, e a face real que se refere ao próprio acontecimento desse dizer.

 

 

Trata-se, portanto, da estrita equivalência entre os registros R, S e I — e isso pelas propriedades específicas do nó borromeano que irão interessar a Lacan. Essas propriedades referem-se aos números relacionados à teoria dos conjuntos, lembrando que, a partir de Cantor, os numerais podem ser cardinais ou ordinais. O número cardinal é aquele que expressa uma quantidade absoluta, enquanto o número ordinal indica a ordem ou a série em que determinado número se encontra incluído. O 3 do nó borromeano é cardinal, pois ele pode ser desfeito quando qualquer uma das três argolas se solta. No nó borromeano, o importante é que as argolas se distingam, e que façam 3. A propriedade do triplo refere-se, então, ao seguinte: "assim que cada um dos termos destes três do nó borromeano libere os dois outros, há uma relação real" (LACAN, 1973-74, lição 5).

Como pude argumentar em meu trabalho "A variação inédita e tola do desejo invariante":

Há dizer, na contingência do discurso que faz acontecimento. (...) Há do Um, sempre ímpar. Do qual, pela impossibilidade logicamente implícita de alcançar o dois, podemos extrair a rejeição de que haja a mínima harmonia entre o que se situa do gozo corporal com aquilo que o rodeia. Daí Lacan escreve no nó o paradoxo do desejo enquanto sexuado, essa falha que causa o mal entendido dos gozos, extraindo a consequência estrutural de que o Real é ternário. Porque o Real borromeano, sendo 3, mostra que não há relação sexual, evidenciando o impasse inverificável do sexo. O impasse inverificável do sexo – ou seja, os modos de gozo todo fálico e não todo fálico, incomensuráveis e irremediavelmente distintos – é o que Lacan sustenta quando afirma a convergência do nodal e do modal, incluindo, para além do necessário e do possível, inscritos do lado homem, as modalidades impossível e contingente (PRATES PACHECO, 2014. Inédito). [Grifo nosso].

 

2. O coração tem razões que a própria razão desconhece

O amor seguro, entretanto, não é a única forma que o parlêtre encontrou, ao longo da história, para escrever o amor de modo a afastar a contingência. No Seminário Les non-dupes errent (1973-74), Lacan propõe que há dois tipos de nós, estruturalmente distintos, em relação à escrita no amor: o nó borromeano e o nó olímpico. A rigor, pela teoria dos nós, não se trata propriamente de um nó olímpico, mas de um tipo de enlace. O enlace olímpico é ordinal, pois uma das esferas — a do meio — tem prevalência sobre as outras duas. Esse tipo de nó é aquele que tenta escrever a relação sexual, como encontramos no Seminário Encore (1972-73) em que o amor é o que vem em suplência à não existência da relação sexual. Ele tenta escrever a relação sexual na medida em que exclui o Heteros, produzindo um fechamento.

Lembremos que nesse seminário Lacan havia citado o poema de Rimbaud, Por uma razão, para sustentar que o amor é o signo de que mudamos de discurso:

Por uma razão

Um toque de teu dedo no tambor desencadeia todos os sons e dá início a uma
nova harmonia.
Um passo teu recruta novos homens, e os põe em marcha.
Tua cabeça se vira: o novo amor!
Tua cabeça se volta, – o novo amor!
"Muda nossos destinos, acaba com as calamidades, a começar pelo tempo",
cantam estas crianças, diante de ti.
"Semeia não importa onde a substância de nossas fortunas e desejos", pedem-te.
Chegada de sempre, que irás por toda parte.

O amor então é um sinal. Se onde há fumaça, há fumante, podemos dizer que onde há amor, há parlêtre. E onde há parlêtre, não há relação sexual, como mostra o nó borromeano. Diante desse Real cardinal, entretanto, cada discurso escreverá sua modalidade de fechamento e negação sistemática da abertura estrutural do inconsciente não todo, aberto e paradoxal. Em outras palavras, cada discurso escreverá uma gramática proposicional, sustentada pela lógica dos predicados, ou seja: sujeito, verbo, predicado. Nessa ordem de amores olímpicos, é o verbo que faz meio-termo, agenciando um discurso diferente a cada vez — já que a tentativa de tornar necessária a escrita da relação sexual sempre deixa um resto que não cessa de não se escrever.

 

 

Lacan propõe, então, em Les non-dupes errent uma tipologia, e por que não dizer, uma topologia de amores, baseada nas formas medievais de amor, conforme o lugar que as dimensões ocupem no elo de ligação das outras duas, no nó olímpico. Dependendo do registro que ocupará a função prevalente ou verbal, de ligação — o Simbólico, o Imaginário ou o Real —, teremos um modo de amor que faz signo das tentativas discursivas de escrever a relação. Ele os chama de amor divino, amor cortês e masoquismo. Nesse seminário, Lacan articula o Imaginário ao corpo, o Real à morte e o Simbólico ao saber, enquanto meio de gozo.

 

3. O amor divino

 

 

No caso do amor divino é o Simbólico que está sustentando a relação entre o Imaginário e o Real: "É bem aí que se situa o nervo da religião, enquanto que ela prega o amor divino. É bem aí também que se realiza esta coisa louca, esse esvaziamento do que é o amor sexual na viagem" (lição 4). Lacan acrescenta que o amor divino baniu o desejo transformando-o em finalidade.

Já no Seminário Encore, citando o Abade Rousselot em Para a história do problema do amor na Idade Média (1908), Lacan havia relacionado o amor divino à concepção física (natural) do amor, preconizada por São Tomás de Aquino — embora ele lembre que se trata da sustentação de um Ser supremo que está posto desde Aristóteles. Remete, portanto, ao que chama de "gozo do ser", sustentando a unidade entre o amor a si e o amor a Deus: "amando a Deus, é a nós mesmos que amamos, e ao nos amarmos primeiro a nós mesmos — caridade bem ordenada —, prestamos a Deus a homenagem que convém" (LACAN, 1972-74/1985, p. 96). Na mística de São Tomás: "Para o ser, a perfeição é a consecução do fim, que é a suprema consumação. Ora, é a caridade que nos conduz ao fim e dá-nos a verdadeira beatitude, unindo-nos a Deus" (HUGON, R. P., 1924, p. 45).

Eis de onde deriva, segundo Lacan, o imperativo da dimensão "tu amarás teu próximo como a ti mesmo", própria do amor cristão. A religião cristã, entretanto, produz um deslocamento no amor divino que reintroduz a dimensão do desejo, ao inventar em suas palavras: "essa coisa sublime da trindade".1 Esse amor, entretanto, embora também inscrito em um nó ternário transforma-o em caridade, banindo novamente o Heteros: "O amor é caridade — afirma Lacan —, e graças a isso vocês o verão na arte, muito lamentavelmente simbolizada por esta mulher de seios inumeráveis à qual estão penduradas inumeráveis crianças" (LACAN, 1973-74, lição 4).

 

 

4. Amor cortês

Para Johan Huizinga em seu livro O declínio da Idade Média:

Quando, no século XII, o desejo insatisfeito foi colocado pelos trovadores da Provença no centro da concepção poética do amor, deu-se uma viragem importante na história da civilização. (...) A poesia cortês faz do próprio desejo o motivo essencial e cria assim uma concepção do amor com uma nota de fundo negativo. Sem quebrar todas as ligações com o amor sensual o novo ideal poético conseguiu abraçar todas as espécies de aspirações éticas (HUIZINGA, 1924, p. 80).

No amor cortês é o Imaginário que está no meio, "nisso que ele imagina do gozo e da morte" (LACAN, 1973-74, lição 4). Ele foi produzido pela ordem antiga, que Lacan chama de feudalidade: "Aqui o Imaginário está no meio, está aí o fundamento do verdadeiro lugar do amor" (op. cit.). No Seminário Encore, Lacan havia dito: "o amor cortês, o que é isso? Era essa espécie, essa maneira inteiramente refinada de suprir a ausência da relação sexual, fingindo que éramos nós que lhe opúnhamos obstáculo" (LACAN, 1972-73/ 1985, p. 115).2 O amor cortês garante assim a mulher no lugar do impossível. Lembremos que desde o Seminário 7, A ética da psicanálise, Lacan já havia proposto que embora o amor cortês seja característico de uma época, "suas incidências são totalmente concretas na organização sentimental do homem contemporâneo" (LACAN, 1959-60/ 1988, p. 185).

No amor cortês:

O objeto, nomeadamente aqui o objeto feminino, se introduz pela porta mui singular da privação, da inacessibilidade. (...) A inacessibilidade do objeto é aí colocada desde o início." (...) "Não há possibilidade de cantar a Dama, em sua posição poética, sem o pressuposto de uma barreira que a cerque e a isole". "Por outro lado, esse objeto, a Domnei como é chamada, mas ela é frequentemente invocada por um termo masculinizado — Mi Dom, isto é, meu senhor — essa Dama é apresentada, portanto, com caracteres despersonalizados, de tal forma que autores puderam notar que todos parecem dirigir-se à mesma pessoa (LACAN, op. cit., p. 185). [Grifo nosso].

Lacan nota que mesmo que seu corpo fosse chamado de rechonchudo e gracioso, chamam-na sempre assim. "Nesse campo poético, o objeto feminino é esvaziado de toda substância real" (op. cit., p. 186). "Vemos aqui funcionar em estado puro o móvel do lugar ocupado pela visada tendencial na sublimação, ou seja, que aquilo que o homem demanda, em relação ao qual nada pode fazer senão demandar, é ser privado de alguma coisa de real" (op. cit., p. 189). "As técnicas em questão no amor cortês são técnicas de retenção, da suspensão."

 

5. Masoquismo

 

 

No masoquismo, o Real é o meio entre o Simbólico e o Imaginário: "E se esse Real é bem a morte, aí onde o desejo foi expulso, em termos de acontecimento, aí onde o desejo foi expulso o que temos é o masoquismo" (LACAN, 1973-74, lição 4).

Como meio para unir o gozo e o corpo, Lacan aqui parece estar se referindo a uma outra corrente da teologia medieval que sustentava a ascese pela via do sacrifício corporal. Trata-se da concepção extática (que remete ao êxtase) na controvertida tese de Rousselot. Segundo Huizinga (1924), o cadáver apodrecendo oferece uma incorporação mais concreta do perecível, que a alma medieval exige. A mortificação, por sua vez, era vista como prática necessária para dominar o corpo, considerado a fonte dos pecados. Alguns membros de movimentos e confrarias medievais praticavam a penitência com flagelações como meio de alcançar o êxtase.

Le Brun, em El amor puro de Platón a Lacan, comenta que: "Um traço especial dessa concepção (extática) é a dualidade entre amante e amado que situa a meta 'ideal do amor no sacrifício total da personalidade amante na personalidade amada'". Assim, "o que ama se esvazia de si mesmo e já não tem mais nada suun, nada próprio" (LE BRUN, 2004, p. 342).

Talvez seja esse o traço que Freud, equivocadamente, tenha para relacionar a posição feminina à posição masoquista. Muitas mulheres, efetivamente, tentam fazer a mulher existir, na relação amorosa, pelas insígnias da negatividade. Em seu texto "A Mulher: masoquista?", Colette Soler indaga: "o que há em comum entre um masoquista e uma mulher? A resposta é simples — ela diz —, "ambos, no par que formam com o suposto parceiro desejante, colocam-se no lugar do objeto". Ela nos lembra, entretanto, que para Lacan essa posição em nada se assemelha à impostura perversa propriamente dita já que se trata de uma complacência para com os semblantes. "Não há limite", diz Lacan, "para as concessões que a mulher se dispõe a fazer por um homem, com seu corpo, seus bens, sua alma." (...) "O amor que ela convoca para nele assentar seu ser define o campo de sua sujeição ao Outro." É importante, entretanto, distinguir bem "o efeito de ser que se ganha no amor, ao preço de muitas concessões, do gozo que, esse sim, vai além do semblante. Restam os percalços do amor (SOLER, C., 2005, p. 66).

 

6. Por um triz

Nos três casos tratados por Lacan, o amor se torna o meio pelo qual "a morte se une ao gozo, o homem e a mulher, o ser ao saber".

O Discurso Analítico, entretanto, quando emerge, produz um giro de discurso, ao revelar que a estrutura é borromeana, portanto ternária e modal quanto aos gozos. Eis o novo Discurso Analítico que se anuncia por um decantamento de sentido: o que do sentido se concentra por esse discurso. "Disso que o sentido, o sentido das palavras só aparelha o que chamaremos o coito sexual." Nas belas palavras de Lacan, é preciso a psicanálise para que se possa "franquear a via de um reflorescimento do amor enquanto (a)mur". Lacan recorre novamente ao poeta, desta vez Antoine Tudal: "Entre o homem e o amor, há mulher; entre o homem e a mulher, há um mundo e entre o homem e o mundo há um muro".

Assim, pelas mediações mundanas da linguagem — que Freud chamava de rocha — o amor "é trazido à existência pelo impossível da ligação sexual com o objeto. É necessária essa raiz do impossível". Diante desse impossível, entretanto, algo acontece. Aqui intervém, portanto, o que Lacan chama a função do Real: "o amor se demonstra em sua origem contingente, e de um mesmo golpe, aí se prova a contingência da verdade do ponto de vista do Real". Contanto que essa verdade que se instaura nesse discurso é pelo meio (meia-verdade). Lacan brinca aqui com a equivocação entre meio dito ou meia-verdade e aquilo que está no meio, como vimos, no nó olímpico.

No livro Elogio ao amor, que mencionei no início desse trabalho, Badiou ressalta a importância do que chama de "aspecto diagonal do amor, que perpassa as mais intensas dualidades e as mais radicais separações". O amor enquanto contingente e surpreendente. "É esse o primeiro ponto, absolutamente essencial" (BADIOU, p. 24).

Lacan o formaliza no Seminário 21, Les non-dupes errent, quando afirma que, às vezes, ocorre que algo se escreve, ou melhor, "alguma coisa cessa de não se escrever, para alguns casos raros e privilegiados". Pois garantir o impossível, como o faz o amor cortês, é tanto impostura quanto garantir o possível, ou pior, torná-lo necessário.

É o que Badiou acrescenta em sua elaboração sobre o amor, incluindo e sustentando a questão da duração: "o amor, entretanto, não é simplesmente o encontro e as relações fechadas entre dois indivíduos, e sim uma construção, uma vida que se faz, já não mais pelo prisma do Um, mas pelo prisma do Dois". A isso ele chama de "cena do Dois" (op. cit., p. 24). E nesse sentido, ele acrescenta: "todo amor que aceite a prova, aceite a duração, aceite essa experiência do mundo pelo prisma da diferença produz, à sua maneira, uma nova verdade sobre a diferença" (op. cit., p. 29). Trata-se, segundo Badiou, de uma "construção persistente, ponto por ponto, da experiência do Dois. "Admito o milagre do encontro" — ele diz —, "mas orientado pelo laborioso vir a ser." "Existe um trabalho no amor, e não apenas um milagre." Entendo que esse trabalho só se sustente pela inclusão da meia-verdade que aponta para o "triz" que faz parte do amor.

Apostar no "novo amor" sabendo que não há garantia, eis o desafio do discurso analítico. Em seu texto: "Lógica e poética: por um Triz", Ana Paula Gianesi também fala do triz, a partir do espetáculo de dança Triz, do grupo Corpo. No site do grupo encontramos que na mitologia, Dâmocles, suspensa por um tênue fio de crina de cavalo, serviu de inspiração para Triz, palavra de sonoridade onomatopeica, que tem nos vocábulos gregos triks/trikós (pelo, cabelo) sua mais provável origem etimológica, simbolizada pela expressão por um triz (por um fio)".

 

 

Nos tais casos privilegiados, para não fazer amor olímpico (lê-se, edípico), ou pior, transformá-lo em uma olimpíada, é preciso cantar o amor com os poetas brasileiros Edu Lobo e Chico Buarque no "Grande circo místico" que é a vida:

Sim, me leva para sempre, Beatriz
Me ensina a não andar com os pés no chão
Para sempre é sempre por um triz
Ai, diz quantos desastres tem na minha mão
Diz se é perigoso a gente ser feliz

 

Referências

BADIOU, A. Elogio ao amor. Tradução Dorothée de Bruchard. São Paulo. Martins Fontes, 2013.         [ Links ]

BUARQUE, C. & LOBO, E. "Beatriz". In O Grande circo místico. 1983.         [ Links ]

GRUPO CORPO. Triz.<http://www.grupocorpo.com.br/         [ Links ]>.

HUGON, R. P. Études Sociales et Psychologiques, Ascétiques et Mystiques, 3ª ed., Paris,1924. Revista Permanência, 275. <http://permanencia.org.br/drupal/node/1178>         [ Links ].

HUIZINGA, J. O declínio da Idade Média. Trad. Augusto Abelaira. Ed. Ulisseia, 1924.         [ Links ]

SOLER, Colette. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.         [ Links ]

LACAN, J. (1959-60). O Seminário, livro 7, A ética da psicanálise. Trad. Antonio Quinet. Rio de Janeiro, Zahar, 1988.         [ Links ]

LACAN, J. (1972-73). O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Trad. M.D. Magdo. Rio de Janeiro, Zahar, 1982.         [ Links ]

LACAN, J. (1973-74). Les non-dupes errent – Seminário 21. Versão não publicada oficialmente.

LE BRUN, J. El amor puro de Platón a Lacan. Trad. Silvio Mattoni, Buenos Aires, Ed. Cuenco de plata-Literales, 2004.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: analauraprates@terra.com.br

Recebido: 04/03/2015
Aprovado: 21/04/2015

 

 

* Psicóloga, Psicanalista. Especialista, Mestre e Doutora em Psicologia Clínica pelo IPUSP. Pós-doutora em Psicanálise pela UERJ. Pesquisadora convidada do LABEURB/UNICAMP. AME da EPFCL, Membro do FCL-SP/EPFCL-Brasil. Coordenadora da Rede de Pesquisa de Psicanálise e Infância da EPFCL-Brasil. Autora de Feminilidade e experiência psicanalítica (2001) e Da fantasia de infância ao infantil na fantasia (2013) e La letra de la carta al nudo (2015).
1 Remeto-os aos textos de Sonia Alberti nos livros O amor e o divã e O amor e suas letras.
2 Remeto ao trabalho de Nádia Paulo Ferreira: "Amor cortês: uma invenção dos trovadores para cantar a Mulher" em "O amor e suas letras".