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Stylus (Rio de Janeiro)
versão impressa ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.31 Rio de Janeiro out. 2015
TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS: LAÇO SOCIAL
Sublimação: laço entre arte e clínica
Sublimation: link between art and clinic
Clarissa Metzger*
Fórum do Campo Lacaniano – SP
Instituto A Casa
Equipe Hiato, de Acompanhamento Terapêutico
RESUMO
Este artigo parte de minha interrogação sobre a vocação clínica do conceito de sublimação e sua articulação com as artes. Desde Freud, a relação entre psicanálise e arte é presente e é comum que essa articulação se dê a partir do conceito de sublimação. Por essa razão, é importante discernir quais relações entre psicanálise e arte são legítimas e quais visam apenas confirmar o que já se sabe, por meio de um uso distorcido da psicanálise. Para isso, lanço mão da diferença proposta por Lacan entre tratamento psicanalítico e método psicanalítico, para depois precisar o conceito de sublimação em Lacan. Busco destacar que as artes se articulam à psicanálise principalmente como uma maneira de ampliar nossa abordagem da clínica, já que há produções artísticas que evidenciam, de modo quase didático a maneira como se organizam em torno do vazio, aludindo desse modo à estrutura do sujeito. Por fim, proponho que a sublimação estaria presente na clínica de dois modos: por um lado, como consequência da análise que trata o gozo e, por outro lado, como parte da direção do tratamento.
Palavras-chave: Sublimação, Clínica, Arte, Tratamento psicanalítico, Método psicanalítico.
ABSTRACT
This article departs from my questioning on the clinical vocation of the concept of sublimation and its articulations with the arts. Since Freud, the relationship between psychoanalysis and art is present and it is common that this connection takes place from the concept of sublimation. For this reason, it is important to discern which relations between psychoanalysis and art are legitimate and which are intended only to confirm what is already known, through a distorted use of psychoanalysis. For this, I make use of the difference proposed by Lacan between psychoanalytic treatment and psychoanalytic method, and later work specifically on the concept of sublimation in Lacan. I seek to stress out that the arts are linked mainly to psychoanalysis as a way to expand our clinical approach, since there are artistic productions that show in an almost didactic way how they organize themselves around the empty, thereby alluding to the structure of the subject. Finally, I propose that sublimation in the clinic would be present in two ways: firstly as a result of the analysis which treats jouissance and, on the other hand, as part of the direction of the treatment.
Keywords: Sublimation, Clinic, Art, Psychoanalytic treatment, Psychoanalytic method.
Este texto parte de minha interrogação sobre a vocação clínica do conceito de sublimação e da pesquisa a ela relacionada que tenho empreendido. Ao longo dos últimos anos, me deparei com articulações variadas da sublimação com diferentes formas de arte, mas encontrei poucas alusões ao que estou propondo chamar de vertente clínica do conceito. Por outro lado, a relação entre sublimação e arte parece mesmo pedir para ser feita, uma vez que
no nível da sublimação o objeto é inseparável de elaborações imaginárias e, muito especialmente, culturais. Não é que a coletividade as reconheça simplesmente como objetos úteis – ela encontra aí o campo de descanso pelo qual ela pode, de algum modo, engodar-se a respeito de das Ding, colonizar com suas formações imaginárias o campo de das Ding (LACAN, 1959-60/1997, p. 125/FR 1986, p. 119).
Esta vertente é, sem dúvida, a mais explorada e estabelecida. As elaborações imaginárias às quais Lacan se refere incluem as manifestações artísticas em todas as suas variações, que podem, inclusive, ser paradigmáticas da sublimação: belas artes, literatura, poesia – quiçá a chamada sétima arte, o cinema. Entretanto, desde o momento em que Lacan rechaça a ideia de uma psicanálise aplicada, em "Juventude de Gide ou a letra e o desejo" (LACAN, 1958/1998) é necessário, antes de tudo, precisar de qual articulação entre arte e psicanálise estamos falando.
Essa relação não só é antiga como também controversa e remonta ao próprio Freud, que discutiu a arte a partir da psicanálise desde pontos de vista diferentes em vários de seus artigos, como "Escritores criativos e devaneios" (1908), em que busca discutir a relação entre a construção de textos literários e a fantasia do neurótico; ou então em "Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância" (1910), no qual aborda a sublimação e a neurose a partir dos diários de Da Vinci e de alguns de seus trabalhos, além da lembrança infantil que dá nome ao texto. "Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen" (1907) é outro exemplo desse tipo. Não podemos esquecer que Freud utiliza em "O estranho" (1919) um conto de E. T. A. Hoffman para empreender sua discussão sobre o Unheimlich que remete à castração, nesse caso usado mais como metáfora do que como objeto artístico a ser discutido, mas que demonstra igualmente, e uma vez mais, o apreço do pai da psicanálise pelas produções artísticas e literárias.
Tratamento psicanalítico ou método psicanalítico?
Todavia, se as produções artísticas comparecem no texto freudiano, isso não se deve, em última instância, a uma tentativa de desvendar o psiquismo dos artistas a partir de suas produções ou então de decifrar uma obra a partir da biografia do autor, mesmo que Freud pareça se aproximar um tanto disso, por exemplo, no artigo sobre Da Vinci. Ainda que não buscasse de forma geral essa relação tão direta entre vida e obra do artista, Freud levava em conta que havia algo do psiquismo do artista que comparecia em sua obra, tal como encontramos na discussão empreendida por ele em 1908, sobre o processo criativo dos escritores e sua relação com a fantasia. Esse ponto será precisado por Lacan, como veremos a seguir. Mesmo que não se trate de desvendar o psiquismo do artista ou interpretar a obra de arte, Freud já aponta para a existência de mecanismos que regem a criação e que, como aponta Rocha, remetem à linguagem:
Ao tornar o discurso o solo comum que reúne elementos tão distintos quanto a produção linguageira de um analisante e a narrativa literária de um escritor criativo, Freud estará dando um dos passos mais fundamentais para a consolidação de sua teoria do inconsciente. Mas estará, não menos, fornecendo os termos que nutrirão a origem de uma importante polêmica acerca dos limites e consequências da aplicação de seu método (ROCHA, 2010, p. 33, grifos meus).
A importância da linguagem e do significante fica patente em vários dos trabalhos freudianos, desde a Interpretação dos sonhos (1900) até o texto metapsicológico sobre O Inconsciente (1915) entre outros, como bem sabemos. O interesse e a pesquisa freudiana envolvendo as artes vão nessa mesma direção, demonstrando uma ênfase no significante e, portanto, na linguagem, solo comum ao analisante e ao texto literário. Se isso é verdade para o texto literário ao qual Rocha recorre em sua comparação, podemos dizer que o é também para as outras manifestações artísticas que envolvem a articulação de significantes na linguagem, como ocorre, por exemplo na criação de uma gravura ou de um filme. Ainda que a comparação se sustente, ela não é livre de conflitos, levando à polêmica, como alude esse autor e remete à discussão acerca do método psicanalítico.
Entretanto, se a linguagem e o significante já se encontram em posição de destaque sob a pena freudiana em diversos de seus trabalhos, há, sem dúvida, diferenças entre a discussão de um caso clínico e da temática artística. A abordagem freudiana nos textos que envolvem temas relacionados aos artistas e suas obras, ainda que guardem grandes diferenças entre si, tem muito mais relação com o que Lacan elucidará anos depois, em "Juventude de Gide" e que aponta para uma discussão a partir do método psicanalítico – o mesmo método utilizado na discussão de um caso clínico, sem dúvida, mas nesse caso, não é de um caso clínico que se trata. Por mais que não fosse, lembremos que não há manejo da transferência em jogo, o que não nos autoriza, portanto, a tomar uma obra ou um artista do mesmo modo como faríamos com um caso clínico. Nesse ponto, vale a pena recorrer ao texto lacaniano:
A psicanálise só se aplica, em sentido próprio, como tratamento, e portanto, a um sujeito que fala e ouve.
Fora desse caso, só pode tratar-se de método psicanalítico, aquele que procede à decifração dos significantes, sem considerar nenhuma forma de existência pressuposta do significado.
O que o livro1 em exame mostra brilhantemente é que uma investigação, na medida em que observa esse princípio, pela simples honestidade de adequação ao modo como um material literário deve ser lido, encontra na ordenação de sua própria narrativa a própria estrutura do sujeito que a psicanálise designa (LACAN, J. 1958/1998 p. 758, grifos meus).
Encontramos aqui uma precisão do tratamento psicanalítico, que só pode se aplicar "a um sujeito que fala e ouve", afirmação que retoma a importância crucial da fala para o tratamento psicanalítico, exposta pelo autor cinco anos antes em "Função e campo da fala e da linguagem" (1953/1998). Ou seja, o tratamento psicanalítico, para além ou em articulação ao significante, pressupõe a fala – da qual poderíamos dizer que ouvir pode ser consequência. Pois bem, quando não se trata da fala, mas sim de uma decifração do significante, estamos no campo do método psicanalítico. A decifração do significante não pressupõe o significado, que só poderia surgir a partir da fala de um sujeito sob transferência, no contexto de um tratamento analítico. Por outro lado, se o método psicanalítico pode funcionar na ausência de "um sujeito que fala e ouve", ele pode revelar a "estrutura do sujeito que a psicanálise designa".
Mas então, qual seria o objetivo de Freud – e de Lacan e de outros psicanalistas – ao eleger como objeto de discussão artistas e suas obras? Regnault nos oferece pistas ao anunciar que "[...] em Freud, não raro o que parece ser uma elucubração sobre o autor constitui também um avançar ou o avanço de um conceito" (REGNAULT, 2001 p. 21). A intenção de Freud talvez estivesse além do que ele próprio poderia enunciar no momento em que empreendia essas discussões concernentes ao mundo das artes, mas que se torna evidente, por exemplo, nas articulações que busca fazer a partir de sua discussão sobre Da Vinci no texto de 1910 e que abrem a possibilidade de avanços na discussão sobre o conceito de sublimação.
Embora a relação de Freud com os artistas sempre tenha sido um tanto ambígua – por exemplo, chegou a aproximar o trabalho dos escritores ao brincar das crianças, em uma alusão eventualmente pouco elogiosa, tal como encontramos em "Escritores criativos e devaneios" –, em certas ocasiões deixou clara a admiração que nutria por alguns deles e, mais do que isso, tomava a arte eventualmente, tal como indica Regnault, como antecipação daquilo que a psicanálise buscava elucidar. É o que vemos em um trecho da carta de resposta aos cumprimentos de Arthur Schnitzler pelo aniversário de Freud, na qual este comenta: "Muitas vezes me perguntei com perplexidade de onde o senhor poderia ter retirado este ou aquele conhecimento secreto, que eu havia adquirido através de laboriosas investigações" (FREUD apud GAY, 1989, p. 296). Haveria algo que o escritor de algum modo já "sabe" e que diria respeito àquilo que busca o psicanalista, o que entreabre a possibilidade de que a psicanálise tenha o que aprender com a arte naquilo que tange ao psiquismo.
Da arte à clínica
É essa posição adotada por Freud que abre caminho para Lacan e outros com relação à arte e que permite a afirmação de que o psicanalista não apenas não aplicará a psicanálise à arte, "mas aplicará a arte à psicanálise, pensando que, porquanto o artista preceda o psicólogo, sua arte deve fazer avançar a teoria psicanalítica" (REGNAULT, 2001, p. 20). Além de ser o oposto da concepção de que a psicanálise explicaria a arte, também vai na contramão de um certo modo de "aplicar" a psicanálise à arte que não faz mais do que encontrar na arte aquilo que já era ponto pacífico na teoria, como mera confirmação do que já se sabe – não é a isso que Lacan se refere quando alude à "psicanálise aplicada" em "Juventude de Gide"? Por exemplo, fazer uma correspondência direta de elementos de uma obra que confirmariam a presença do Édipo, da castração etc., em uma modalidade que poderíamos chamar de relação imaginária da psicanálise com a obra de arte, na qual a arte apenas espelharia o que a psicanálise buscasse encontrar na obra, sendo nesse caso a obra um mero espelhamento do sujeito do artista. Nessa situação, também poderíamos dizer que a psicanálise estaria em posição de mestria em relação à obra de arte, uma vez que se colocaria na posição de domínio em relação à arte. Do ponto de vista da própria psicanálise, isso seria uma contradição em termos, já que o discurso do mestre é o avesso do discurso do psicanalista.
Desse modo, chegamos ao ponto que nos interessa de forma central: destacar que a sublimação desde as artes é principalmente uma maneira de ampliar nossa abordagem da clínica, já que há produções artísticas que evidenciam, de modo quase didático, diríamos paradigmático, a maneira como se organizam em torno do vazio, aludindo desse modo à estrutura do sujeito.
Sublimação em Freud e em Lacan
Nesse ponto, é importante retomar brevemente as definições de sublimação propostas por Freud e por Lacan para continuar o raciocínio. Lembremos que Lacan trabalha com o aporte freudiano do conceito, mas em 1960, em adição a essa conceitualização, propõe a sublimação como alusão, a partir de um objeto qualquer, ao vazio da Coisa (LACAN, 1959-60/1997). Essa característica da sublimação acompanhará o ensino do autor até as últimas aparições do conceito, no Seminário 16.
Já em Freud, encontramos definições um tanto diferentes da sublimação, a depender do momento teórico (METZGER, 2008). A última definição freudiana da sublimação, aquela a que nos referimos com maior frequência, inclui mudança de meta e de objeto da pulsão; de meta e objeto sexuais para outros não mais sexuais, mas sim socialmente reconhecidos e valorizados e pode ser encontrada em um texto de 1922, "Teoria da libido" (FREUD, 1922/1990). Essa definição dá margem, de forma incômoda, a uma interpretação que conduz à ideia de que aí se trata de uma utilização da pulsão na produção de objetos comercializáveis e, ao mesmo tempo, de um afastamento do sexual. Interpretações como essa se apoiam basicamente na ideia de que a plasticidade da libido que estaria em jogo na sublimação apontaria para uma maior possibilidade de adaptação à realidade, em oposição à fixidez libidinal que se apresenta no sintoma neurótico – nesse sentido, a sublimação surgiria como um ideal a ser atingido, já que seria uma manifestação da "normalidade". A sublimação implicaria, portanto, a "aceitação social", o que a colocaria no lugar ideal desde a ênfase da adaptabilidade. Mas será que era isso que Freud estava propondo?
Lacan já apontava esse estranho estatuto da sublimação, que surge em certa leitura da obra freudiana, mais próxima da chamada psicologia do ego e cujos elementos, inegavelmente, podem ser encontrados no texto freudiano – ainda que essa leitura seja equivocada, já que se apoia nesses elementos sem levar em conta a direção do pensamento freudiano em termos da amplitude de sua obra, tal como Lacan nos apresenta em sua proposta de "retorno a Freud": ao levar em conta a proposição lacaniana de ler Freud de modo coerente com a radicalidade de seu próprio pensamento (o de Freud), é preciso, no mínimo, desconfiar dessa leitura. Se o grande mérito da psicanálise desde Freud é mostrar que a sexualidade humana é desadaptada desde o início, uma vez que é permeada pela pulsão e pela linguagem, não faria sentido que o pai da psicanálise forjasse um conceito que propusesse a impossível adaptação à realidade e a aproximação a uma suposta "normalidade" que ele mesmo tratou de desconstruir em textos como "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (FREUD, S. 1905/1990).
Lacan, em cujo ensino a sublimação está presente desde seus primórdios, não aceita o estatuto "adaptativo" do conceito e propõe, em 1959-60, a definição de elevação do objeto à dignidade da Coisa, o que aponta para a sublimação como uma produção que evidencia o vazio, cerne de toda criação. Assim, a ênfase não mais recai sobre o distanciamento daquilo que é da ordem do sexual na mudança de meta e objeto da sublimação, o que fica claro, por exemplo, na afirmação lacaniana "O jogo sexual mais cru pode ser objeto de uma poesia sem que se perca, no entanto, uma visada sublimadora" (LACAN, 1959-60/1997, p. 198). A ideia de uma exclusão do sexual é incoerente com a própria definição freudiana de pulsão, que é, ela mesma, manifestação do sexual. Assim, como indica Lacan, propor a dessexualização da pulsão na sublimação seria o mesmo que dizer que é possível dessexualizar o sexual. O que restaria dessa operação?
A própria ideia de reconhecimento social ligada à sublimação é colocada em questão; Lacan precisará que a sublimação cria valor social, o que é muito diferente de uma produção que se adapte ao que já existe. Esse é um ponto crucial da discussão sobre o tema que empreende no Seminário 7. Ele também sublinha a presença da alusão ao vazio, o que consideramos uma mudança do estatuto do objeto (e não mais do objeto em si; ele agora deve ser elevado à dignidade da Coisa) como condição da sublimação em vez de levar em conta apenas as mudanças de meta e objeto da pulsão.
Podemos entender que a posição lacaniana não exclui as proposições freudianas, mas sim as explicita e define melhor: não se trata mais de uma mudança de meta que exclui o sexual, mas sim no que toca à posição do objeto da sublimação. A definição lacaniana mantém a sublimação como conceito princeps da psicanálise na interface com a criação artística, mas não só isso. Aponta também para a ideia de que nem toda arte é sublimatória2 e de que há um viés clínico importante ligado ao conceito de sublimação. Lacan nos faz saber que a sublimação não está ligada à beleza ou popularidade de uma obra, mas sim a outras características peculiares: à alusão ao vazio da Coisa, à criação de um valor antes inexistente.
Sublimação na clínica
Embora o conceito de sublimação seja de fato um operador privilegiado na discussão da arte de suas produções, esse não é o único escopo do conceito, que tem abrangência clínica importante, talvez um tanto desprezada ou então pouco elucidada em nosso campo. Se o reconhecimento do vazio e a criação a partir dele têm relação com uma mudança de posição do sujeito diante do objeto, é lícito supor que a sublimação tenha relação, em alguma medida, com certo percurso de análise, embora não necessariamente apenas com este (assim como a análise não é garantia de sublimação, a sublimação não acontece necessariamente apenas a partir de um contexto analítico). Ainda que se trate de um destino da pulsão, na proposta lacaniana esse destino pulsional supõe uma relação específica com o vazio de das Ding e, portanto, com o real. Se a ética da psicanálise aponta para uma relação específica com o real, na medida em que comporta o real de das Ding como central e como norteador do desejo, a sublimação será decorrência lógica da análise.
Essa afirmação fica mais clara se tomamos como referência uma indicação de Lacan no resumo do Seminário 14. Ali, encontramos a sublimação como uma das saídas do impasse da fantasia. Fantasia que, como lembra Brodsky (2004), faz existir a relação sexual que não existe, funcionando, assim, como tela frente ao real. Entretanto, trata-se de um impasse do sujeito, como Lacan já indicara, pois a fantasia faz existir a relação sexual3 onde, de fato, ela não existe. Esse impasse abriria caminho para o ato, mas em versões bem específicas. Um ato que poderia ser da ordem do acting out, partindo do vértice da não relação e caminhando através do vetor da repetição, ou então da ordem da passagem ao ato, partindose do mesmo vértice, mas seguindo com o vetor da pressa. Essas seriam as duas falsas saídas ou lapsos do ato que Lacan indicou, tal como representado abaixo. A sublimação seria uma outra saída do impasse da fantasia, que, como vemos no grafo, levaria ao ato analítico.
Ainda que haja saber no inconsciente, há também um saber que falta (LACAN, 1973/2003, p. 315). No grafo abaixo, vemos que a sublimação parte do vértice em que se encontra a fantasia, que, por sua vez, vem suprir a falta de saber, encobrindo o real. A fantasia, no entanto, tem como causa a incomensurabilidade do gozo sexual do homem e do gozo sexual da mulher, que apontam para aquilo que do ato sexual não se inscreve. Essa sequência culmina na constatação de que não há relação sexual.4 Ou seja, não há um saber no inconsciente que designe o modo como um homem se liga a uma mulher e vice-versa, dado o que acabamos de dizer sobre o gozo e dado que, decorrente disso, a relação do homem e a relação da mulher com o falo é diferente, como inferimos desde a entrada de cada um no Édipo.
O falo é um elemento terceiro, não instala uma suposta complementaridade e menos ainda simetria entre homem e mulher. O que encobre esse não saber da relação sexual é a fantasia, que faz existir um saber que não há, já que é por meio da fantasia que um homem pode se vincular a uma mulher, como se soubesse como fazê-lo. Em suma, "É a partir desse momento, dessa confrontação com o 'não há relação sexual' que surge a possibilidade do que Lacan escreve nesse segundo quadrângulo, ou seja, a sublimação" (BRODSKY, 2004, p. 158). Uma vez que não há relação sexual e que o fantasma tenha sido atravessado, é a satisfação via sublimação que permanece aberta – e, nesse sentido, estamos nos referindo à característica de satisfação da pulsão pela alusão ao vazio da Coisa, característico da sublimação.
Se tomarmos como referência o mesmo quadrângulo, é possível dizer que a sublimação é ela mesma uma expressão da direção do tratamento, uma vez que se configura como saída do impasse da fantasia – que implica sua travessia – e que conduza ao ato analítico. É o que indica o vetor da sublimação, que sai do vértice inferior esquerdo e vai em direção ao vértice superior da direita.
Desse modo, podemos dizer que, no que tange à clínica, a sublimação se apresentaria de duas maneiras diferentes, mas intimamente ligadas: como uma das consequências do fim de análise, na medida em que a análise proponha uma mudança de relação do sujeito com o real/com a pulsão e também, relacionado a essa mudança, como uma ética que norteia a própria análise e que, portanto, está necessariamente presente como horizonte em cada análise empreendida.
Estando assim presente no campo da clínica, a sublimação não seria um modo de tratar o gozo? Talvez possamos pensar em um tratamento do gozo diferente da circunscrição de gozo que o sintoma faz na neurose, por exemplo. O tratamento que a sublimação poderia fazer se daria na direção de uma não fixação do gozo, diferente do que ocorre no sintoma – direção, aliás, apontada pelo próprio Freud. Mas, além da não fixação e concomitante a ela, o tratamento do gozo se daria pela própria alusão ao vazio. Tanto na não fixação quanto na alusão ao vazio temos uma saída para a pulsão diferente da fantasia, que tenta velar o vazio, fazendo existir a relação sexual. Em suma, proponho desde Lacan que a sublimação pode ser, por um lado, consequência da análise que trata o gozo e, por outro lado, fazer parte da direção do tratamento.
Para concluir, retomando nossa proposição inicial, se a sublimação é normalmente utilizada para debater produções artísticas, é importante não perder de vista a importância desse debate para a clínica. A arte interessa à psicanálise na medida em que, a partir da interface que se estabelece entre os dois campos, a própria clínica pode avançar. É como interface entre arte e psicanálise que proponho a sublimação como conceito que faz laço entre arte e clínica.
Referências
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Endereço para correspondência
E-mail: clarissa2007@uol.com.br
Recebido: 12/07/2015
Aprovado: 10/08/2015
* Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano – SP. Mestre e doutora pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Coordenadora do Curso de Formação em Acompanhamento Terapêutico do Instituto A Casa e da Equipe Hiato, de Acompanhamento Terapêutico.
1 Lacan discute aqui o livro escrito por Jean Delay sobre André Gide.
2 O que, de certo modo, já era consequência lógica da definição freudiana da sublimação.
3 Antecipamos aqui a menção ao aforismo "não há relação sexual", que, embora ainda não tivesse sido enunciada e formulada como será posteriormente, já encontra seus pressupostos lógicos no Seminário 14, em que Lacan afirma que não há ato sexual na medida em que há incomensurabilidade entre o gozo do homem e o gozo da mulher.
4 É interessante notar que no Seminário 14 encontramos a afirmação "O segredo da psicanálise é que não há ato sexual" (LACAN, 2008a, p. 293) ("Le secret de la psychanalyse, le grand secret de la psychanalyse, c'est qu'il n'y a pas d'acte sexuel" staferla, p. 142), que depois será modificada para não há relação sexual. Trata-se de uma precisão posterior efetuada por Lacan, de tal modo que a questão não se centre no ato sexual, mas sim na relação, proporção (rapport). Dito de outro modo, a modificação empreendida por Lacan vem responder ao fato de que há o ato sexual, o que não há é relação, proporção entre os sexos. Não como sexos biológicos, mas como posições de gozo.