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Stylus (Rio de Janeiro)
versão impressa ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.31 Rio de Janeiro out. 2015
TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS: LAÇO SOCIAL
Sintoma social e a emergência do PCC
Social symptom and the emergence of PCC
Carlos Eduardo Frazão Meirelles*
Fórum do Campo Lacaniano
RESUMO
O artigo é uma pesquisa teórica sobre o conceito de sintoma social de Jacques Lacan. Discute as noções de sintoma como retorno da verdade na falha do saber, e como satisfação real, articulada à interpretação de Marx sobre a passagem do tempo feudal ao capitalismo, com a emergência do trabalhador proletário. Para além de um período histórico e uma classe social específica, Lacan estende a condição proletária a cada indivíduo da sociedade moderna, associada à ausência de laço social. Interpretamos essa condição pelas relações de trabalho mediadas pelo capital, pelo apagamento das relações sociais na mercadoria, e pelo despojamento de saber com o advento da máquina e sua proliferação no cotidiano. Utiliza elementos da organização do Primeiro Comando da Capital (PCC) como exemplo.
Palavras-chave: Sintoma, Lacan, Marx, Primeiro Comando da Capital, Capitalismo.
ABSTRACT
The article is a theoretical research on the concept of social symptom by Jacques Lacan. It discusses the notions of symptom like a return of truth in the failure of knowledge, and as real satisfaction, linked to the interpretation of Marx on the passage of feudal time to capitalism, with the emergence of proletarian worker. Way beyond a historical period and a specific social class, Lacan extends the proletarian condition to each individual of modern society, coupled with the lack of social ties. We interpret this condition by working relationships mediated by capital, by the invisibility of the social relations in the merchandise, and by the dispossession of knowledge with the advent of the machine and its proliferation in everyday life. We use in the article elements from the criminal organization of the First Command of the Capital (PCC) as an example.
Keywords: Symptom, Lacan, Marx, Primeiro Comando da Capital, Capitalism.
A atuação em um órgão de assistência social em uma região periférica da Grande São Paulo, por alguns anos, levou à consideração de algumas articulações entre psicanálise e sociedade.
A alteridade encontrada na experiência nas favelas, desde a arquitetura até os laços sociais, incluiu um conhecimento da organização conhecida como Primeiro Comando da Capital (PCC).
Como detalham os trabalhos da antropóloga Karina Biondi (2009) e da socióloga Camila Caldeira Nunes Dias (2013), o PCC se diferencia de outras organizações de venda de drogas, como o Comando Vermelho (CV), no Rio de Janeiro, pela politização de suas lideranças, e pela ideologia que os organiza. Um ponto paradoxal de seu surgimento expõe uma divisão social. Apresentam-se como antagônicos ao Estado e à lei jurídica, mas sustentando ideais e ações condizentes aos princípios desses mesmos Estado e lei organizadora dos laços. Como uma lei que se torna antagônica a si própria, expõem que a lei liberal, democrática e republicana, que se pretende universal a todos os cidadãos, não se realiza sem exceções, e desses lugares de exceção surge de modo transgressor e perturbador uma demanda de reconhecimento e cumprimento dessa lei.
A elaboração da experiência de campo (GONÇALVES FILHO, 2009) em comunidades periféricas, com referências da psicanálise e da sociologia, conduziu à noção de sintoma social como posicionamento e discernimento crítico da conjuntura social atual do Brasil, ocupando o PCC o lugar de formação metafórica de um processo histórico, e exemplo de tentativa paradoxal de suplência do furo da lei pela reiteração fálica do próprio furo da lei. Propomos uma discussão teórica da noção de sintoma social e, ao final, breves apontamentos sobre a emergência do PCC.
Sintoma
Em diversos momentos de sua obra, Lacan atribui a Marx a invenção da noção de sintoma. No Seminário 18, diz que "o responsável pela ideia de sintoma foi Marx" (LACAN, 1971, p. 153). No Seminário RSI, diz que os psicanalistas devem "buscar a origem da noção de sintoma, [...] não em Hipócrates, mas em Marx" (LACAN, 1974-75/inédito, aula de 18/02/1975). Em 1966, no texto "Do sujeito enfim em questão", articula o sintoma em Marx pela relação entre verdade e saber.
É difícil não ver introduzida, desde antes da psicanálise, uma dimensão que poderíamos dizer do sintoma, que se articula por representar o retorno da verdade como tal na falha do saber. [...] Uma verdade de uma referência diferente daquilo, representação ou não, pelo qual ela vem perturbar a boa ordem. [...] Essa dimensão, mesmo não sendo explicitada, é altamente diferenciada na crítica de Marx (Ibid., 1966a, pp.234-235).
O retorno perturbador da verdade na falha do saber seria uma estrutura que aproxima o sintoma analítico daquilo que Marx interpretou como efeito do capitalismo. Em 1966, o sintoma analítico é pensado por Lacan em torno da teoria do significante: "[...] O sintoma só é interpretado na ordem do significante. O significante só tem sentido por sua relação com outro significante. É nessa articulação que reside a verdade do sintoma. O sintoma [...] é verdade" (Ibid., 1966a, p. 235). A relação estabelecida entre dois significantes produz efeitos de sentido em que o sujeito diz mais do que pensava e queria dizer. O que retorna como Outro, percebido como alheio ao eu, não esperado e não intencional, seria privilegiadamente o que é negado ou não reconhecido pelo sujeito, e tão mais perturbador será seu retorno quanto mais estiver nessa condição. A estrutura desse retorno é tal que, ao mesmo tempo oculta e revela o que se nega. A astúcia do inconsciente faz com que os mesmos artifícios usados para recalcar sejam os que trilham o retorno do recalcado.
No caso do Homem dos Ratos, para recorrer a um exemplo rápido, temos uma medida protetiva que elaborou após sua primeira masturbação, uma prece com sons aparentemente sem sentido que termina com a palavra amém. "Gleijsamen" (FREUD, 1909/1996, p. 242). Na verdade, trata-se da mistura do nome da amada, Gisela, com a palavra sêmen. A medida protetiva ao desejo acaba ela mesma por realizar simbolicamente o ato sexual. Como formação do inconsciente, o sintoma é, ao mesmo tempo, algo que revela e esconde, sendo que o que aparece não permite uma apreensão imediata do que o causa, necessitando de interpretação. Nesse sentido trata-se de "uma verdade de uma referência diferente daquilo pelo qual ela vem perturbar a boa ordem", isto é, o que aparece perturbando a boa ordem é diferente da referência que permite enunciar sua verdade.
Em anos posteriores a 1966, teremos formulações diferentes de Lacan sobre o sintoma, mas que continuarão a se articular a Marx. Em "A Terceira", temos que "o sentido do sintoma não é aquele com o qual nós o alimentamos para sua proliferação ou extinção, o sentido do sintoma é o real, na medida em que ele se atravessa aí para impedir que as coisas andem, no sentido de que elas dão conta de si mesmas de maneira satisfatória" (LACAN, 1974/inédito). De modo semelhante, no Seminário RSI irá situar o sintoma "como refletindo no Real o fato que há algo que não funciona e onde, no campo do Real, esse algo que não funciona se mantém" (Ibid., aula de 18/02/1975). As interpretações de sentido não são eliminadas, mas consideradas também no que podem servir para alimentar o sintoma.
[...] Ao nutrir o sintoma, o real de sentido, não se faz outra coisa senão lhe dar continuidade de subsistência. É, ao contrário, enquanto algo no simbólico se cerra do que chamei o jogo de palavras, o equívoco, o qual comporta a abolição do sentido, que tudo o que concerne ao gozo, e notadamente ao gozo fálico, pode igualmente se cerrar (LACAN, 1974/inédito).
Nessa direção, em relação ao discurso crítico de Marx, Lacan dirá que "não basta" – assinalei eu e a história o demonstra – "que se produza essa irrupção da verdade para que o que se sustenta nesse discurso seja derrubado" (LACAN, 1971, p. 154). Esse aspecto levará a considerar o quanto a interpretação crítica de Marx serviu, de certa forma, para consagrar o capitalismo: "dito e feito. O que [Marx] emitiu implica que não há nada a mudar. É bem por isso, aliás, que tudo continua exatamente como antes" (LACAN, 1974/inédito). A interpretação justa mostra a eficiência do capital, o quão bem está estruturado, e até ensina como ele funciona, podendo, inclusive, conduzir à decisão de empreender, extrair a mais-valia, ou investir em ações.
Destacamos estes dois aspectos do sintoma analítico na obra de Lacan a serem detalhados em articulação ao pensamento de Marx como sintoma social – o retorno perturbador da verdade na falha do saber, e o satisfatório de impedir que as coisas andem.
O surgimento histórico do proletário
Buscar a origem da noção de sintoma, que não é absolutamente a se buscar em Hipócrates, mas em Marx, em sua ligação entre o capitalismo e o tempo feudal. [...] O capitalismo é considerado como tendo certos efeitos, e porque, efetivamente, não os teria? Esses efeitos são, afinal, benéficos, já que têm a vantagem de reduzir a nada o homem proletário, graças a que o homem proletário realiza a essência do homem, e, por ser de tudo despojado, está encarregado de ser messias do futuro. Tal é a maneira como Marx analisa a noção de sintoma (LACAN, 1974-75/inédito, aula de 18/02/1975).
A origem da noção de sintoma viria da interpretação de Marx a um período histórico específico, a passagem da produção feudal para a capitalista, tendo como efeito principal o surgimento do proletário. Por diferentes aspectos nesse processo histórico podemos considerar o retorno de uma verdade que estorva, e formas em que a manutenção do que não funciona é satisfatória.
As ideias liberais sustentam a igualdade de condições, para se produzir conforme o esforço individual; a liberdade de iniciativa, para empreender; e a tendência ao equilíbrio das forças econômicas, por efeito do livre mercado. Contudo, a massa populacional de proletários denuncia com sua própria existência a inverdade dessas ideias liberais.
Na transição do tempo feudal ao capitalismo, Marx demonstra que "a expropriação da terra que antes pertencia ao produtor rural, ao camponês, constitui a base de todo o processo" (1890/2013, p. 787). A base da acumulação inicial de capital para investimento adveio da expulsão dos camponeses de suas terras, por parte de novos empreendedores, os burgueses, que as transformavam em pastagens para criação de ovelhas, obtendo lã como matéria-prima para os primeiros galpões de manufaturas, os de tecelagem, já organizados como linha de produção, protótipo das fábricas quando do advento posterior da máquina. Não havendo escritura das terras, pois a posse se baseava no pacto de suserania e vassalagem entre nobres e servos, as opções dos camponeses eram ou lutar até a morte, ou de um dia para o outro passar a ter nada além do próprio corpo, restando apenas vender a força de trabalho como uma mercadoria, nas condições impostas pelos novos empreendedores. As favelas brasileiras, contexto de surgimento do PCC, se originaram de escravos antigos libertos, que, sem nada com que se estabelecer, se apropriavam de terrenos periféricos às cidades, e se desenvolveram com o proletariado crescente com a industrialização. O ato inaugural do capitalismo não é de igualdade, liberdade e equilíbrio, e a massa populacional proletária que se origina é a emergência da verdade da espoliação, seu retorno perturbador.
Da mesma forma se dá com as relações de trabalho que se estabeleceram, em especial na mais-valia, em que Marx identifica uma expropriação na venda da força de trabalho. O valor do salário é menor do que o valor produzido pelo trabalho, sem o que não se produz lucro. Parte das horas de trabalho vão para o investidor. "A essa parte da jornada de trabalho denomino tempo de trabalho excedente, e ao trabalho nela despendido denomino mais-trabalho" (MARX, 1890/2013, p. 293). Zizek afirma que a extração da mais-valia "[...] representa a negação interna do princípio universal da troca equivalente de mercadoria; em outras palavras, ela acarreta um sintoma. [...] Ponto de exceção que funciona como sua negação interna" (ZIZEK, 1996, p. 307). A equivalência universal do valor das mercadorias pelo tempo de trabalho investido é negada na força de trabalho como mercadoria, pela desproporção que confere sua lei. Com a lógica da extração da mais-valia os assalariados tendem a permanecer estáveis no mesmo patamar de riqueza, por mais que trabalhem, enquanto que os investidores criam condições para acúmulos extremos, com cada lucro podendo ser reinvestido e gerar novas fontes de extração de mais-valia. A desigualdade se torna um efeito necessário, satisfatória para a concentração de lucros, e não uma falha no percurso. Lacan diz que "o subdesenvolvimento é, muito precisamente, a condição do progresso capitalista" (1971/2009, p. 36), "a expansão do capitalismo veicula o subdesenvolvimento" (Ibid., p. 47).
A desigualdade é um capitalismo bem-sucedido, desde que não atrapalhe demais a boa ordem, não se insurjam grandes greves ou revoltas. A igualdade de condições para produzir conforme o esforço individual, a liberdade de iniciativa para empreender, a tendência ao equilíbrio das forças econômicas por efeito do livre mercado, se revelam proposições falhas, e o proletário expõe o desequilíbrio de poder que deixa sem escapatória a expropriação do valor do trabalho. O aspecto perturbador pode ser considerado, de modo amplo, no fato de que uma multidão de despojados de tudo vivendo em torno de ilhas de opulência necessariamente cria uma situação de permanente tensão, com todos os riscos à manutenção da boa ordem. Marcola, depondo sobre a história do PCC na CPI do Tráfico de Armas, situa essa herança social como campo de surgimento do PCC: "Nós todos somos praticamente filhos da miséria, todos somos descendentes da violência, desde crianças somos habituados a conviver nela, na miséria, na violência. [...] Quer dizer, a violência é o natural do preso, isso é natural" (BRASIL, 2006, p. 25). A dimensão política do grupo, como comentaremos, está na denúncia da contradição ideológica e na tentativa de "refrear essa natureza violenta", proibindo o preso "de tomar certas atitudes, que para ele seria [sic] naturais, só que ele estaria invadindo o espaço de outro" (Ibid.). Seguindo o raciocínio de Zizek, o proletariado seria a expressão sintomática da negação interna da sociedade:
Assim que tentamos conceber a ordem social existente como uma totalidade racional, temos de incluir nela um elemento paradoxal que, sem deixar de ser um seu componente interno, funciona como seu sintoma – subverte o próprio princípio racional universal dessa totalidade. Para Marx, esse elemento 'irracional' da sociedade existente era, é claro, o proletariado, 'a desrazão da própria razão' (Marx), o ponto em que a Razão incorporada na ordem social vigente depara com sua desrazão (ZIZEK, 1996, p. 308).
De modo semelhante, Dunker articula com Marx uma "homologia entre a divisão social do trabalho e a divisão do sujeito" (2015, p. 187), o fato de que Marx inventa o sintoma ao "descrever a divisão social do trabalho que se estabelece no sujeito trabalhador, sendo, então, o nome desse sintoma o proletariado. Ou seja, o sintoma é a formação de uma classe social específica, o proletariado, sintoma do falso universal chamado sociedade" (Ibid., p. 222).
Lacan aponta, porém, que também para Marx a existência de proletários é satisfatória. Porque deles é que pode advir a força de transformação social, como agentes da revolução, e messias futuros. Nesse sentido sua existência seria benéfica. De modo paradoxal, isso assegura seu lugar, concede toda importância para que existam proletários, sendo como que necessários. "Dito e feito. O que [Marx] emitiu implica que não há nada a mudar" (LACAN, 1974/inédito).
O que Lacan discerne como sintoma na obra de Marx aproxima-se da noção de ideologia: "A verdade não tem outra forma senão o sintoma. O sintoma, quer dizer a significância das discordâncias entre o real, e aquilo pelo que ele se dá. A ideologia se quiserem [...]" (LACAN, 1966-67/inédito, aula de 10/05/1967). Poderíamos considerar a discordância entre o real do mais-de-gozar da mais-valia, e os significantes mestres pelos quais o liberalismo se dá. Nesse momento Lacan situa a função do Um como tentativa de estabelecer proporção entre os sexos, e a "presença de um gap, um furo [...] alguma coisa que não cola [...], um abismo" (Ibid.) nessa tentativa. "O sintoma, todo sintoma, é nesse lugar do Um furado que ele se liga. E é nisso que ele comporta sempre, por mais espantoso que nos pareça, sua face de satisfação ao sintoma" (Ibid.). No discurso do capitalista o S1 "é colocado no lugar da verdade", tentando fazê-la "sem falha" (FINGERMANN, 2005, p. 78). Dunker aponta a relação entre sintoma e ideologia, citando Althusser que relaciona a alienação à função do eu: "É nessa direção que Lacan afirma que o eu, como instância de desconhecimento, possui a estrutura de um sintoma. Nesse sentido, Marx inventou o sintoma quando descreveu a ideologia" (DUNKER, 2015, p. 222).
Na relação de senhor e escravo não havia o encobrimento do desequilíbrio de poder envolvido, como há na ideologia que justifica a relação do capitalista e do assalariado. Havia conflito, pois é uma dominação, mas em uma luta direta. No trabalho moderno, há um encobrimento ao se anunciar o direito à liberdade, uma negação interna na mais-valia sem escapatória, e o retorno de algo não previsto, uma massa de indivíduos despojados de tudo. Essa estrutura sintomática ideológica está presente em diversos elementos da civilização moderna, "[...] Marx analisa [...] uma multidão de outros sintomas, mas a relação destes com uma fé no homem [proletário] é totalmente incontestável" (LACAN, 1974-75/inédito, aula de 18/02/1975). O proletário possui um valor nodal na série de ideologias sociais por se referir às relações de trabalho e produção, alicerces fundamentais para a organização da vida coletiva. Nesse sentido, seria o único sintoma que poderia ser atribuído à estrutura social.
Cada indivíduo é um proletário
Em "A Terceira", temos a proposição de Lacan de que o único sintoma social é o proletário, ao mesmo tempo em que estende essa condição a cada um da sociedade. "Há apenas um sintoma social: cada indivíduo é realmente um proletário, isto é, não tem nenhum discurso com que fazer laço social, em outras palavras, semblante" (LACAN, 1974/inédito). Aparentemente, é apenas nessa passagem da obra de Lacan que há a expressão sintoma social, mas é coerente com o que vinha construindo com Marx sobre o sintoma desde 1966, e com o que apresenta no Seminário RSI (LACAN, 1974-75/inédito, aula de 18/02/1975). O que é diferente é a atribuição da condição proletária a cada um da sociedade, ricos e pobres, assalariados e investidores, e relacionada à ausência de laço social.
Uma das formas de interpretar essa proposição é considerar o que para Lacan diferencia o proletário, surgido com o capitalismo, do escravo, o explorado da antiguidade, que não é um sintoma social: "O proletário não é simplesmente explorado, ele é aquele que foi despojado de sua função de saber. A pretensa libertação do escravo teve, como sempre, outros correlatos. Ela não é apenas progressiva. Ela é progressiva à custa de um despojamento" (LACAN, 1969-70/1992, p. 140-141). A noção do proletário como o despojado de tudo advém de Santo Agostinho (XAVIER, 2013, p. 98), se referindo aos romanos cuja única função era ocupar a terra e reproduzir, para manter as fronteiras do império, possuindo nada além do próprio corpo. É uma acepção utilizada por Lacan ao se referir ao proletário como "aquele que assegura a função do que é mais despojado no capitalismo, [...] estado de despojamento" (LACAN, 1971/2009, p. 154). Certamente a libertação dos escravos é um progresso, ninguém propõe que se volte à escravidão. Contudo, em um mesmo passo de emancipação, paga-se o preço de uma perda, e o proletário é despojado do saber fazer que o escravo possuía. O escravo sabia produzir todos os objetos que a sociedade precisava. Sabia como plantar, produzir ferramentas, tecer, construir as moradias. Na era moderna, com a divisão do trabalho em linha de produção, cada um não domina mais o produto final por completo. Com o advento da máquina, há um distanciamento ainda mais radical do saber fazer, pois para operar uma máquina em uma linha de produção não é necessário eventualmente nem saber o que se está produzindo. Basta dominar algumas operações simples de um mecanismo, movimentos elementares e repetidos. A força de trabalho torna abstrata, praticamente pura força do corpo em procedimentos rudimentares, bastando ter um corpo para trabalhar na fábrica. "[...] Não é como Saber – ao oposto do escravo antigo, portanto – mas como simples força de trabalho que o proletário entra no processo de produção capitalista [...]" (ASKOFARÉ, 1997, p. 180). A perda do laço social se manifesta como isolamento em uma tarefa apartada do todo; o relacionamento com a máquina e não com outro corpo humano; e o hiato de conhecimento e poder a toda rede de determinações do trabalho.
A mercadoria também permite estender a cada um da sociedade atual a condição proletária de despojamento de saber e redução ao próprio corpo. Marx aponta que em cada mercadoria, em sua forma final, há um apagamento das relações de trabalho e do processo envolvido. É o que chama de caráter fetichista da mercadoria, comparando-a aos objetos inanimados das sociedades antigas, que recebem atribuições de características humanas. "É apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas" (MARX, 1890/2013, p. 147). Tudo que determina a mercadoria, as horas de trabalho necessárias, as relações sociais envolvidas, o corpo ali implicado, as relações de poder, os conhecimentos para fabricação, o que orienta as escolhas de produção, todo esse campo desaparece, e o que aparece são características atribuídas à mercadoria, em especial sua tradução em um valor, o preço, como uma cifra, uma codificação: "Na testa do valor não está escrito o que ele é. O valor converte, antes, todo produto do trabalho em um hieróglifo social. [...] A determinação dos objetos de uso como valores é seu produto social tanto quanto a linguagem" (Ibid., p. 149). O dinheiro é para Marx "a forma acabada [...] do mundo das mercadorias que vela materialmente, em vez de revelar, o caráter social dos trabalhos privados e, com isso, as relações sociais entre os trabalhadores privados" (Ibid., p. 150). Nas relações medievais, contrapõe Marx, "[...] as relações sociais das pessoas em seus trabalhos aparecem como suas próprias relações pessoais e não se encontram travestidas em relações sociais entre coisas, entre produto de trabalho" (Ibid., p. 152).
[...] A verdade recalcada – a da persistência da dominação e da servidão – emerge num sintoma que subverte a aparência ideológica de igualdade, liberdade e assim por diante. Esse sintoma, o ponto de emergência da verdade sobre as relações sociais, são precisamente as 'relações sociais entre as coisas': [...] aí temos uma definição precisa do sintoma histérico, da 'histeria de conversão' que é própria do capitalismo (ZIZEK, 1996, p. 310).
O advento da máquina, no que diz respeito tanto ao trabalho quanto à mercadoria, é um elemento a se destacar na condição proletária de cada um. Lacan localiza o início do discurso capitalista 200 anos antes do início do discurso do analista, que consideramos em 1900. "É por isso que dois séculos depois desse deslizamento, [para o discurso capitalista] [...], a castração fez enfim sua entrada irruptiva sob a forma do discurso analítico" (LACAN, 1971-72/inédito, aula de 06/01/1972). O início das expulsões camponesas é anterior a 1700, "ocorreu no último terço do século XV e nas primeiras décadas do século XVI" (MARX, 1890/2013, p. 789). O ano de 1700 é a data aproximada da origem da primeira máquina, a máquina a vapor, que ao longo do século é automatizada e utilizada para produções em larga escala, dando início à Revolução Industrial.
Da primeira máquina a vapor até hoje, um dos fatos significativos é que elas saíram das fábricas e se proliferaram por todos os espaços da vida, permeando os laços sociais. Operamos essas grandes máquinas, que são os carros, os pequenos eletrodomésticos, a centralidade da televisão em muitas casas, como uma companhia, os computadores cumprindo inúmeras funções na vida diária, celulares sempre ao alcance – todos os gadgets que levariam a uma grande lista. De certa forma, nos tornamos todos operadores de máquinas, em tempo cada vez mais integral. Parcerias com elas, com efetivas melhoras a necessidades variadas, mas com um despojamento a rebote, de saber de seu funcionamento e determinações, e do gozo do corpo, subtraído pelo trabalho do simulacro. Lacan considera o valor subversivo que pode haver no saber do explorado, mas questionaa via de retorno ao saber fazer, como no pensamento do comunista chinês Mao Tsé-Tung.
Se há uma coisa cujo tom me choca na temática que chamam de maoísta é sua referência ao saber manual. A nova ênfase dada ao saber do explorado me parece estar profundamente motivada na estrutura. A questão é saber se isso não é algo totalmente sonhado. Em um mundo onde emergiram essas coisas inteiramente forjadas pela ciência, gadgets, será que o savoir-faire, no nível do manual, pode ainda ter peso suficiente para ser um fator subversivo? (LACAN, 1969-70/2009, p. 140-141).
O PCC
Um dos aspectos surpreendentes no depoimento de Marcola à CPI do tráfico de armas em 2006 é o testemunho de que presidiários se apropriam do saber formal de pensadores clássicos da cultura para questionar sua condição e formar um coletivo por uma causa. Uma restituição de saber aos que estão em um estado de despojamento, não pelo saber fazer, mas pelo saber de mestre, que produz efeitos emancipatórios nas cadeias e nas favelas, não sem repetir precisamente o que tentam eliminar, consequência da destituição de um mestre por outro. Quando o deputado Paulo Pimenta (PT) aponta no PCC uma "estrutura leninista" (Ibid., p. 29), Marcola confirma:
A gente leu muito sobre Lênin, sobre a formação do Partido Comunista. A gente lê sobre tudo. DEP. PAULO PIMENTA – Quando tu dizes a gente lê, tu queres dizer que é uma prática dos dirigentes estudar? MARCOLA – Dirigentes, não, presos em geral. DEP. PAULO PIMENTA – Mas preso comum estudando Lênin? MARCOLA – Claro, por que não? [...] Por que o preso faz isso? DEP. PAULO PIMENTA – Por quê? MARCOLA – Porque ele foi acordado, foi conscientizado, numa determinada época, de que os direitos dele, enquanto ele não soubesse que ele tinha determinados direitos, eles jamais seriam concedidos, o senhor entendeu? Então foi uma forma... foi um despertar (BRASIL, 2006, p. 29)
Discutem a estrutura do partido comunista e Marcola cita ainda "Mao Tsé-Tung" (Ibid., p. 30), "Nietzsche", "Voltaire" (Ibid., p. 92), "Victor Hugo" e "Santo Agostinho" (Ibid., p. 93), como algumas de suas leituras que vêm à cabeça. No campo do saber formal encontram referências para ações. Dentre os primeiros atos do PCC, estão a proibição do estupro, do roubo e do crack em todas as prisões do Estado de São Paulo, sob o argumento de afronta à "dignidade humana" (Ibid., p. 27), em decisões debatidas e definidas por voto de todos. Lembremos que na democracia brasileira, e em outras, condenados à prisão não têm direito a voto. Contudo, de modo mais radical do que ela, realizam uma democracia que inclui não apenas o voto, mas a possibilidade direta de qualquer preso de qualquer um dos presídios emitir uma opinião e participar do debate, construindo acordos não por trocas de favores utilitárias, mas por consenso a um bem comum. Outra ação nos presídios foi a educação da massa carcerária a hábitos de higiene e saúde, com a distribuição gratuita de produtos para tal, que por direito o Estado deveria fornecer, mas não o faz deliberadamente (Ibid., p. 31, pp. 99, 197). Outra lei que sustentam é a própria condição da palavra como lei. Em conflitos variados em prisões e favelas há a obrigação de haver um diálogo, com busca de consenso, em que antes se resolvia com atos impulsivos de violência. Tal princípio se expande para o próprio uso da língua.
Mais decisivo é perceber que isso que se chama PCC se efetua nos quatro cantos da cidade, onde se fala e se escuta [...] esse modo específico de travar conversas, marca registrada do PCC, que substitui os 'palavrões' e as ofensas banais por um novo jargão 'do crime' [...]. Esse modo de travar conversas é efetuado também por crianças de 7, 8, 9 anos, que já sabem que não devem mandar seus colegas 'tomar no cu'. Já preferem dizer: 'Veja bem, fulano, essa fita não tá certa. Vamo debater essa fita' (MARQUES, 2010).
Surgido após o massacre de 1992 no Carandiru, como forma de defesa contra abusos de poder de diversas ordens, o PCC pede que o código penal seja cumprido, com o fim das torturas e a inclusão da educação e profissionalização como meio de ressocialização do preso. Defende também, como muitos juristas (CARVALHO E FREIRE, 2005), que seja extinto o Regime Disciplinar Diferenciado que, com critérios genéricos, prevê o isolamento do preso vinte e duas horas por dia, renováveis indefinidamente, em flagrante descumprimento das regras mínimas da ONU para o tratamento de reclusos, se aproximando antes do uso da masmorra medieval. Comumente descrito como uma lei paralela, o PCC não propõe uma inversão sadeana da lei, o direito universal ao gozo desmedido e abusivo (LACAN, 1966b, p. 780), mas, pelo contrário, denuncia tal inversão em pontos da lei que se pretende esclarecida. Nesse sentido apresenta-se como emergência da verdade de que a ideologia liberal possui um furo. Nas favelas e cadeias a organização não é chamada de PCC, mas de o Partido, ou o Movimento.
O principal crime cometido pela organização é o tráfico de drogas, que desde 2006 responde quase que pela exclusividade da atividade econômica do grupo. Como indicamos em outra oportunidade (MEIRELLES, 2010), o surgimento de proibições globais às drogas ocorreu antes por fatores econômicos e de poder entre grupos do que por questões de saúde (COSTA, 2007, p. 59-67; HERER, 2006). Marcola indica que, seguindo critérios pragmáticos do que "degrada o ser humano" (BRASIL, 2006, p. 54) e do que não, tolera a maconha e a cocaína. Nessa discordância entre a ideologia e o real, encontra um meio de exploração econômica, tentativa de contornar a exploração que testemunha no campo do trabalho. Nesse ponto transgride a lei brasileira, mas se aproxima da legislação de outros países, e da tendência atual, de agosto de 2015, do Superior Tribunal Federal brasileiro pela descriminalização do uso. A tentativa de transformação política do PCC encontra sua principal contradição na reprodução da violência que tenta eliminar, como reconhece o próprio Marcola (Ibid., p. 35). Seja no modo de sustentar as leis e condutas emancipatórias, punindo o descumprimento com espancamento ou morte, seja nas tentativas de reconhecimento social de sua causa, sequestrando jornalistas da Rede Globo (2006) para publicação de um manifesto (http://youtu.be/bwPHGk0ifb4), seja na defesa contra torturas, por meio de ataques às corporações policiais nas ruas (Clínica de Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Harvard e Justiça Global, 2006), a organização recorre a atos bárbaros que são precisamente o que pretende superar. Não por acaso, a mesma demanda de reconhecimento que levou ao sequestro dos jornalistas, se fez agora em 2015 como uma encomenda a que um rapper, Cascão, do grupo Trilha Sonora do Gueto, compusesse uma música para esclarecer a população em geral sobre a causa e os objetivos do PCC, a música "W2 Proibida".
Em uma condição limite de despojamento, de lugares de exceção da lei que se pretende universal, o PCC surge como formação crítica, que expõe uma verdade da estrutura social, e como uma formação conciliatória, de sutura do desacordo ideológico, se alojando em um ponto em que passa a ser satisfatória a conjuntura ideológica de poder, por exemplo com a proibição às drogas e a corrupção policial. A interpretação com a noção de sintoma social sugere que as tentativas de eliminar o PCC com repressão abusiva tenderão, como de fato se observa, a justificar e consolidar mais a causa que os funda, por repetir a violência histórica de que são efeito. O reconhecimento das demandas legítimas e legais no campo político poderia favorecer a deposição mútua das armas.
Referências
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Endereço para correspondência
E-mail: frazaomeirelles@gmail.com
Recebido: 12/07/2015
Aprovado: 10/08/2015
* Psicanalista, membro do Fórum do Campo Lacaniano, graduação e mestrado no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.