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Stylus (Rio de Janeiro)
versão impressa ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.33 Rio de Janeiro nov. 2016
ATUALIDADE DO LAÇO SOCIAL
Psicanálise e contemporaneidade: novas formas de vida?
Psychoanalysis and contemporaneity: new ways of life?
Christian Ingo Lenz Dunker*
Analista Membro de Escola - AME
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
Universidade de São Paulo. Instituto Psicologia
RESUMO
Neste artigo apresento três notas sobre a contemporaneidade da psicanálise. Na primeira, examino sua contemporaneidade a si tendo em vista a distinção entre a temporalidade de mythos, epos e logos no tempo da transferência. Na segunda nota examino os tempos da diagnóstica psicanalítica em relação à temporalidade da tecno-psiquiatria. Na terceira nota examino a inserção da psicanálise lacaniana na cultura brasileira dos anos 1970 e sua incidência sobre a vida em forma de condomínio.
Palavras-chave: Temporalidade, Brasilidade, Diagnóstico.
ABSTRACT
My aim in this article is to present three notes about the contemporaneity of psychoanalysis. On the first note, I examine its contemporaneity taking as a point of departure the distinction between the temporality of mythos, epos, and logos in the time of transference. On the second note, I examine the times of psychoanalytical diagnosis in relation to the temporality of tecno-psychiatry. On the third one, I discuss the insertion of Lacanian psychoanalysis in the Brazilian culture of the 1970's and its incidence over life as a condominium.
Keywords: Temporality, Brazilianism, Dyagnosis.
Nota sobre o "contemporâneo" em psicanálise
Em grego, temos três expressões que podem igualmente ser traduzidas por "palavra": mithos, logos e epos. Cada uma destas expressões comporta uma temporalidade diferente. O mithos é a palavra sem autoria, a palavra das origens imemoriais que, por ser de todos, não é de ninguém. Mithos é algo que se diz além do dizente, de forma circular, de tal forma que o que vem antes pode ser posterior ao que vem depois. É o ça parle (isso fala). Logos é outro tipo de palavra. Palavra universal, palavra que supera o tempo de sua própria enunciação. Palavra que possui uma lógica que aspira à verdade, em meio dizer.
Epos, origem de termos como época, épico e epocal, refere-se ao relato e à narrativa. A recitação do epos pode ser feita por meio de um discurso antigo e mesmo em uma língua arcaica ou estrangeira. Mas é um discurso indireto, entre aspas, que se apresenta não apenas para o coro, mas também para os espectadores. Tradicionalmente o epos refere-se à origem de uma pessoa, comunidade ou grupo (LACAN, 1953/1998), mas segundo aquele que conta. Lacan critica a degradação destas duas formas de palavra na modernidade. Mithos deixa de ser uma palavra coletiva e passa ao mito individual do neurótico. Logos deixa de ser ambição de verdade e passa a ser saber universal. Mithos e logos parasitam epos de tal maneira que não podemos mais reconhecer o valor deste tipo de palavra. De certa maneira tudo virou epos. Por isso pensar a psicanálise em seu tempo tornou-se uma tarefa tão simples quanto inexequível.
Pensar o próprio tempo em que se está é, em princípio, uma tarefa inexequível quando se imagina tomar o epos como uma evidência. Os únicos que são capazes de engendrar um resquício de epos são aqueles que se sabem exilados. São os velhos, as crianças, os estrangeiros. São aqueles que praticam o que Valéry chamou de profissões delirantes: "aqueles que têm coragem de querer claramente algo absurdo". Sabe-se que se está envelhecendo quando de repente começam a sair de nossa boca expressões terríveis como: "na minha época ..." ou "no meu tempo...". Ou seja, uma época se apreende excentricamente. Como dizia Santo Agostinho: quando me perguntam o que é o tempo eu não sei, mas quando não me perguntam eu sei. Os velhos largaram esta estranha obsessão de pertencer ao próprio tempo, experimentam o tempo à distância. Assim como para as crianças o tempo, o seu tempo, funciona como um horizonte. A frase de Lacan diz "que antes renuncie a isto, portanto, quem não alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época", ou seja, alcançar em seu horizonte, não simplesmente pertencer à sua própria época. Esta prudência com relação ao assenhoramento de seu próprio tempo parece depender do reconhecimento da opacidade do tempo.
Portanto, a psicanálise em seu tempo, não deve resumir-se, a saber, se ela é filha da modernidade ou da pós-modernidade, se ela sobrevive ao fim das grandes narrativas ou se inclui na sociedade do espetáculo. Se ela é herdeira das práticas de confissão e disciplinarização dos corpos ou se inclui-se como uma forma de familiarismo repressivo, falocêntrico ou universalista. Se ela é uma forma laica de religião ou uma técnica terapêutica ineficaz. Se ela fornece as bases biológicas para uma possível neurociência ou os fundamentos lógicos de uma teoria da cognição e da linguagem. Se ela é progressista ou conservadora. Tais debates são importantes e caracterizam a posição da psicanálise em uma época. Espera-se que deles se extraia um diagnóstico: será que a psicanálise cabe neste tempo? Não estaríamos nós fora deste tempo, como casulos ou fósseis sociais de um experimento científico datado?
Tais debates presumem certa noção do que vem a ser uma época e com isso uma economia própria do que é o tempo. O tempo em que se está ou do qual se está excluído. Ao pressentir que a psicanálise é vítima de uma obsolescência não programada estamos nos fazendo pertencer à nossa época. Época na qual se vive em atraso e fora do tempo, o novo acontecendo em outro lugar. Mas ao pertencer a esta época, ao pertencer demais a esta época, deixamos de nos situar a partir de epos. A narrativa hegemônica desta questão identifica nosso tempo ao que realmente está acontecendo, ou seja, a tudo aquilo que é capaz de gerar ou de se apresentar como novo. Mas a obsessão pelo novo, como já se observou, tornou-se uma velha obsessão. Entra em cena aqui o que chamo de o novo conservadorismo psicanalítico, ou seja, o argumento aqui é de que é preciso cautela com relação às descrições mais ou menos midiáticas de nossa época, prudência diante dos grandes diagnósticos massivos sobre a cultura, sobre a arte e sobre a ciência e sobre a sociedade. Isso é verdade, em uma época marcada pela sensação de que há um grande evento em curso, em algum lugar ocorre uma grande festa, da qual estamos sempre em atraso ou exclusão. Há duas estratégias mais simples, eu diria reativas diante deste mal-estar:
a. Dizer que o que há de mais radical na psicanálise é que ela contenta-se em permanecer como é: como uma Velha Senhora. Ela afirma o valor da experiência contra a vivência, a importância do desejo contra a depressão, a importância da lei contra o gozo, a força da ética contra o mundo da técnica, do tempo longo de uma análise contra a rapidez da cura dos homens feita às pressas. A prova disso é que ela sobreviveu, apesar de seu anacronismo.
b. Dizer que o que há de mais radical na psicanálise é que ela é atualizável. Ela aparece aqui como uma Enfant Terrible, o moleque travesso das ciências humanas, a única prática à altura da ação comunicativa (Habermas), o reduto de uma estilística da existência (Foucault). Ela é atualizável justamente porque estava na frente na aurora da modernidade. Ela sempre foi profética: o papel da sexualidade, a crítica do funcionamento das massas, a segregação inerente à expansão dos mercados comuns, o recuo diante das utopias e planejamentos sociais.
Digo que estas duas posições representam o novo conservadorismo psicanalítico tanto por ironia ao fato de que já faz cem anos que ambas as soluções abundam a história da psicanálise, quanto pelo fato de que ambas aceitam tacitamente a tese de que nossa época é tangível, imediatamente tangível: basta abrir os jornais. Nisso ela está perfeitamente em acordo com nossa época, que se imagina transparente a si mesma, que as coisas realmente se conservam apesar de plenas de mudanças. Ou seja, tanto uma quanto a outra confiam no retrato que recebem desconhecendo uma das regras elementares do funcionamento narcísico: entre o retrato e aquele que pretende nele se enxergar há sempre um lugar terceiro. Lugar para o qual concorremos para produzir em soberano desconhecimento e ignorância. Enquanto nos medimos no retrato, procurando o melhor perfil e ajustando nossa posição, esquecemos que nossa época foi produzida, como fato simbólico e discursivo, também pela psicanálise. Portanto, a psicanálise está perfeitamente em acordo com esta época, simplesmente porque ela contribuiu para produzi-la. A questão é saber se ela poderá sair de sua própria época para poder reencontrá-la.
Portanto, um dos problemas cruciais para a psicanálise, em sua clínica e em sua presença no mundo é saber se ela conseguirá sair do condomínio no qual ela mesma se torna contemporânea de si mesma e de seus síndicos.
Nota sobre o diagnóstico
Muitos psiquiatras questionam as renovações feitas pelo DSM-V, porque elas não se apoiam de fato em novas descobertas científicas, mas em redefinições nominalistas de sintomas e definições operacionais de síndromes. Isso valoriza ou sobrevaloriza o diagnóstico mediante exame retrospectivo dos efeitos de medicações, cujo verdadeiro mecanismo de ação se desconhece. Ou seja, a unidade perdida com o sequestro da neurose, como hipótese que unifica história de vida, sintomas e personalidade, é reencontrada na unidade de um objeto: a medicação. A hipótese da recaptura da noradrenalina para explicar o mecanismo da ansiedade, proposta em 1958, foi expandida para a relação entre a dopamina e a esquizofrenia, nos anos 1960, para a serotonina e a depressão, nos anos 1970, e finalmente ligando a endorfina aos circuitos do prazer na década de 1980. Observe-se que se trata de uma mesma matriz hipotética que se reaplica em diversos casos. Em todos eles o transtorno é considerado um déficit de substância neuronal. A medicação entraria assim, de modo compensatório, fazendo o que o corpo não consegue fazer por si mesmo. Mas tal hipótese deixa de lado o caso em que certos estados mentais sejam produzidos de forma totalmente inédita na propriocepção, na experiência corporal e na economia de significação do sujeito, como parece ocorrer com o uso continuado do metilfenidado (conhecido popularmente como Ritalina). Ou seja, há sim um "antes" e um "depois" da medicação que estabelece uma nova unidade no eu, mas esta é criada pela medicação e não pressuposta por esta.
O caráter mais ou menos questionável das descobertas em torno dos neurotransmissores se faz acompanhar de outro fato mais difícil de entender. Palavras, principalmente metáforas, narrativas ou experiências de linguagem em contexto intersubjetivo induzem a receptação e a distribuição de neurotransmissores como dopamina, serotonina, noradrenalina e endorfinas. Palavras mudam o seu cérebro, e o seu cérebro muda suas palavras, mas não da mesma maneira.
O real prejuízo que temos com o sequestro da noção de neurose, para o tratamento de nossos pacientes, não é que agora eles não querem mais saber da arqueologia infantil, nem das conexões sexuais e esquecidas na gênese histórica de seus sintomas, mas que eles se vejam sancionados, por um dispositivo diagnóstico com força de lei e poder disciplinar, na desconexão entre seus próprios sintomas. Ou seja, uma das características mais antigas e mais simples da neurose, a saber, o fato de que nela o sujeito não liga (aliena) os pontos que unem sua vida, seus sintomas e sua personalidade tornou-se a forma oficial e padronizada de pensar a loucura. A neurose opera pela desconexão entre contextos narrativos, como que a dizer que a vida sexual é uma coisa, a profissional é outra, a familiar uma terceira coisa, os cuidados com o corpo algo à parte, as fases da vida um problema isolado. A vida pessoal é apenas "outro setor" desta grande loja de departamentos na qual nos transformamos. Mas todo aquele que se vê diante de uma experiência maior de sofrimento sabe que não é assim. O sofrimento tem uma valência política incontornável, porque ele liga os assuntos: a alimentação com a pobreza, a miséria com a família, a família com o Estado, o Estado com a saúde, a saúde com a maneira estética de viver o corpo, e assim por diante. O sofrimento pode ter a estrutura de uma novela, como o Romance Familiar; de uma teoria, como as Teorias sexuais infantis (Freud) de um mito como o Mito Individual do Neurótico, da poesia chinesa ou simbolista (Lacan), de uma narrativa (A. Ferro) e até mesmo encontrar sua expressão universal na tragédia (Édipo para Freud, Oresteia para M. Klein, Antígona ou Filotectes para Lacan). As pesquisas em torno da dissolução da forma romance, empreendidas por autores como Beckett, Joyce e Duras, desafiam o paradigma discursivo no qual a neurose foi descrita a partir da unidade narrativa-narrador, da coerência entre contar (Erzählen) e descrever (Beschreiben), da progressão articulada de conflitos, da tensão entre diegese da ação e verticalização de personagens. Talvez não seja uma coincidência que os mesmos anos 1950, que presidiriam a emergência do DSM-I, tenham assistido, mais uma vez, a onda de declarações sobre a morte do romance. Mas isso só confirma que o tipo de unidade que encontramos na noção de neurose nos leva a sistemas simbólicos como a literatura, o mito ou os discursos sociais, e que ela pode ser redescrita consistentemente em função destes, tanto em termos semiológicos quanto diagnósticos. Mas isso exigiria reconhecer o mal-estar que preside a insuficiência das articulações entre sofrer e ter um sintoma, no interior do sistema DSM.
Certo é que as novas formas de vida, que identificamos com a temporalidade contemporânea, definem-se pela certeza objetiva de uma certa expansão do mundo, correlata de estratégias redutivas deste mesmo mundo ao cenário de nossas pequenas áreas de funcionamento e circulação. Passamos a sofrer de acordo com esta retração narcísica. Se Lacan dizia que o declínio da função social da imago paterna nos levará à ascensão das neuroses de caráter, podemos dizer que a expansão realizada de nossos mercados comuns nos levará a novas formas de sofrimento segregativo.
Nota sobre a vida em forma de condomínio
É em nome da insegurança, indeterminação, estranhamento, e seus consequentes juízos de diferença, que se formam muros, arenas e jardins, espaços protegidos no interior dos quais o conflito pode ser administrado. Podemos dizer que neste tempo o mal-estar é lido como anomia suprimida. O conflito deixa de ser percebido como sistêmico, e como tal inapreensível pelo eu, e passa a se apresentar mimeticamente em um pequeno antagonismo administrável, uma luta regrada:
Correlativamente a formação do eu simboliza-se oniricamente por um campo fortificado, ou mesmo um estádio, que distribui da arena interna até sua muralha, até seu cinturão de escombros e pântanos, dois campos de luta opostos em que o sujeito se enrosca na busca do altivo e longínquo castelo interior cuja forma simboliza o isso de maneira surpreendente (LACAN, 1949/1998).
O sonho em torno da casa envidraçada é uma solução ardilosa que alguns analisantes encontram para representar (Rücksicht Dartstelbarkeit) simultaneamente a função de transparência e a função de distanciamento que a primeira fase da fantasia prescreve. Tipicamente este sonho culmina em temas em torno da representação, do palco, da torção entre público e privado, da intimidade e devassidão, de autômatos e bonecos. Muito comumente esta série é interrompida pela emergência de personagens obscenos: ditadores, mestres ou feitores. Se conseguimos extrair a terceira etapa da série, nela aparecem os desmembramentos, as partições e decomposições do corpo, a erotização da morte ou da violência, as figurações gososas da violência.
Temos então quatro tempos do processo de condominização. Primeiro, é preciso definir o que é um espaço produtivo, que deve se tornar território, e o que é um espaço improdutivo, que permanecerá em anomia. Notemos que a dificuldade aqui não está em saber como um espaço é produtivo, mas em definir os critérios de improdutividade.
Em segundo lugar é preciso estabelecer muros, fronteiras, marcas, que fixam o lugar dentro e o lugar fora, as zonas de passagem e as zonas de interdição. Temos então uma forma de vida no qual o mal-estar encontra-se nomeado. Surge então uma nova divisão, agora entre espaço produtivo e espaço reprodutivo. Por vida reprodutiva entenda-se um conjunto de procedimentos securitários, morais, estéticos, higiênicos, alimentares bem como um conjunto de cuidados, atenções, disposições, atualizações, advertências bem como um conjunto de encargos, taxas e obrigações "necessárias" para a vida continuar a funcionar.
Em terceiro lugar surge a função do síndico, aquele que deve gerir o sofrimento da vida em espaço reprodutivo, de tal modo a transformá-lo em formas palpáveis de insatisfação e consequentemente tornar a reprodução, produtiva. O síndico não se ocupa do espaço produtivo, mas do espaço no qual a vida se reproduz, se repõe, se restaura. Sua função é mostrar que ali onde lemos apenas variações amorfas de modalidade de viver há um potencial de uso e de consumo.
Finalmente encontramos, no quarto tempo, a passagem da fantasia para a gênese de sintomas, dos quais seriam sua expressão simbólica. Cada forma de retorno do que foi suprimido liga-se a um tipo de sofrimento. Podemos então propor uma primeira divisão destas patologias do social, envolvendo respectivamente:
1. As que procedem do retorno no Real do que foi negado pelo território imaginário. A referência aqui é a expropriação do território que funda o condomínio como espaço apartado e regido por leis de exceção. Este estado de exceção particular engendra patologias da perda da experiência, que se mostra como anestesia e violência, como sentimento de inautenticidade e irrelevância. Ele é a fonte do mal-estar que encontramos no interior de um universo excessivamente organizado, controlado e higienizado.
2. As que derivam da segregação real do espaço simbólico. Neste caso é o muro, como patologia da divisão do sujeito, que se apresenta em formações de fragmentação, esquizotípicas, com a prevalência dos sentimentos narcísicos de deslocalização, de anomia e de perda de pertencimento.
3. As que se organizam ao modo da impostura imaginária da autoridade simbólica. Aqui é a figura do síndico e seus regulamentos, que nos serve de alegoria para entender a gênese de uma patologia do reconhecimento. São as formações de ideais de vida, de gozo e de ordem, que se exprimem como sentimento de impostura, de falso reconhecimento e de conflito entre promessa e realização. Aqui, o mal-estar é recorrentemente interpretado como violação de um pacto de obediência.
4. As patologias que se apresentam como anomalias de gozo. Neste caso temos todas as formas de sofrimento que giram em torno da gramática social do objeto intrusivo. Desde a hipertrofia do consumo como patologia do supereu, até a percepção de excesso no consumo de substâncias moduladoras da experiência (que criam um condomínio interiorizado) e ainda as formas que tendem a recompor a infelicidade residual no universo condominial atribuindo-as ao vizinho, no fundo ao "outro condomínio" que estaria, por assim dizer, raptando um fragmento do gozo que é aqui sentido como faltante.
A lógica do condomínio pode agora ser compreendida como o correlato necessário de uma forma de vida que Boltanski e Chiapelo chamaram de cidade por projetos, baseada na orientação da produção para a forma de redes e da informação para o modo de conexões. Assim podemos navegar por todos os universos paralelos e virtuais, tendo acesso livre a todos os lugares, mas com a garantia sólida de que na "vida real" temos nosso próprio condomínio que nega, ponto a ponto, todos os aspectos da vida virtual, em rede e hiperconectiva. A produção é deslocalizada, o emprego se torna precário, a segurança social declina e a exploração se combina com a exclusão. Surge então um tipo de trabalho, por projeto, que consegue contornar benefícios sociais e dispendiosas proteções trabalhistas ou sindicais, gerando consigo uma espécie de oportunismo da produção:
Desespacializada [da concepção Estado-nação], sem instância de representação, nem posição preeminente, dominada pela exigência de ampliação ilimitada das redes, ela [...] permanece indiferente à justiça, e mais geralmente à moral [...] Além disso, a exigência de autonomia e o ideal individualista de autoengendramento, autorrealização como forma superior de sucesso [...] contribuem para tornar o homem das redes pouco atento à dívida como fonte legítima de elos sociais (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 1999/2009, p. 391).
A lógica do condomínio é a face familiar, privada e íntima deste processo. Por isso quase todos os atributos verificados no processo produtivo se encontrarão, com o sinal trocado, e de forma invertida no condomínio, onde vigora a vida reprodutiva. Ele é um lugar fortemente delimitado, com instâncias de representação como o síndico, possui uma posição como indexador social de classe ou origem, não é indiferente à justiça, com seus códigos e regulamentos, e é, sobretudo, um espaço moral. Nele ganham substância os ideais de autorrealização e sucesso. Ao fim e ao cabo, um condomínio é, em geral, adquirido por meio de uma dívida extensa, que anela o sujeito a um compromisso futuro. O papel desta dívida, que pode ser substituída, trocada superestimando o valor do bem imobiliário, mostrou sua importância na crise econômica da última década. Estados Unidos, Espanha, Irlanda, Grécia, em quase todos os casos a crise desencadeou-se como uma crise imobiliária.
Nota sobre o muro e o aMuro
O muro é uma estrutura de defesa. O muro é uma forma de determinação do espaço como território. A defesa (Abwehr) é um conceito psicanalítico que gira em torno das diferentes maneiras pelas quais a indeterminação, gerada pelo desejo, pela angústia, pelo trauma e pela pulsão, pode ser concernida em estruturas de determinação ou de ocupação (Besetzung). Defender-se do desejo é tornar a indeterminação de seu objeto, determinada. Defender-se da angústia é tornar seu objeto não apenas determinado, mas determinante. Defender-se do trauma é tornar a repetição insensata e indeterminada, uma mesma figura de identidade pulsional.
Freud, em seu trabalho sobre o Mal-estar na cultura (FREUD, 1929/1988), enumera uma série de "estratégias de vida" que se poderia adotar para fugir ao desprazer. Quase todas elas estão condensadas em nossa parábola do condomínio fechado: associação entre trabalho de conquista da natureza e acolhimento em uma comunidade orgânica de experiência, refúgio em um mundo próprio e protegido, sentimento de que se usufrui de uma experiência que é acessível para poucos, ilusão de uma realidade esteticamente orientada, sentimento de ruptura intencional com o "mundo comum", e finalmente, a anestesia induzida pela intoxicação. Em tais condições a possibilidade de sonhar e a as ilusões disponíveis à consciência tornam-se perigosamente próximas de sua realização efetiva. Nesta situação ocorre uma destituição tanto da função de ideal, que é a de apresentar-se como negatividade futura (utopia), quanto da função do objeto, que é a de apresentar-se como presença não localizável (atopia). Entre um e outro há o Real como aquilo que volta sempre ao mesmo lugar, des-encontradamente ao mesmo lugar.
A utopia é uma ilusão que se sabe ilusão, justamente por isso ela exerce a função reguladora própria do ideal. Quando a função de ideal é substituída pela de um objeto determinado está estabelecida a condição para o fascínio totalitário e para a servidão voluntária. Ora, essa substituição regressiva, que procura alocar um objeto empírico no lugar da falta estrutural, dissociando crenças e saberes, mimetizando regras particulares com leis universais, é exatamente a estrutura social do fetichismo. Este modo de divisão primário, chamado por Freud de Verleugnung, correlato psicanalítico do que outro processo de produção de falsos universais, ou seja, o que Marx chamou de fetichismo da mercadoria. Assim como a mais-valia seria um caso particular da função de mais-de-gozar, o fetiche da mercadoria seria um caso genérico da função clínica do fetiche clínico. Freud já havia percebido este sistema de cruzamentos entre patologias sociais e patologias do indivíduo ao afirmar que assim como o sintoma do neurótico obsessivo é como uma religião particular, as religiões coletivas seriam expressão da generalização de sintomas obsessivos (rituais, constrição de pensamentos, penitências, juramentos etc.).
Essa é uma consequência regular da psicologia das massas, como processo de individualização (FREUD, 1912a/1988). Um líder, uma figura da excepcionalidade, vem a ocupar, como objeto, a posição de Ideal de eu para seus seguidores. Este mantém entre si relações de equivalência orientadas pelas posições narcísicas de eu ideal. Contudo, é preciso pensar, depois de Freud, uma psicologia das massas para além do eu e neste caso a noção de sofrimento torna-se essencial. O sofrimento, como vimos, é sempre estruturado como uma demanda, daí sua ligação com a lógica do reconhecimento, com a dialética do amor e daí também sua estrutura de retorno, regressão e resistência.
Contudo, nem todo mal-estar se constrange a ser capturado pela demanda, assim como nem todo desejo se inscreve sob forma de demanda. Assim como a demanda é um estado, de excesso de determinação do desejo, o sofrimento é um estado de excesso de determinação do mal-estar. Seria possível entender, por esta via, a existência de certas formas de mal-estar que não se articulam como sofrimento, porque não se articulam em estrutura de demanda. O sofrimento que não se articula como demanda é semelhante a uma alienação imperfeita. Por exemplo, uma alienação que perde a capacidade de exteriorização simbólica ou que suspende a distinção entre estrangeiro e próprio é uma alienação precária, ou melhor, uma alienação que se exagera a tal ponto que perde sua função de defesa.
Para Lacan (1961-62/2003), a demanda se estrutura ao modo de dois toros entrelaçados, o toro do sujeito e o toro do Outro. O toro é uma estrutura topológica circular semelhante a uma boia. Imagine duas boias entrelaçadas e você terá a figura à qual Lacan alude. O conceito psicanalítico de demanda é muito importante para desestabilizar a força intuitiva da noção de pedido, de queixa ou e até mesmo a noção econômica de demanda. Por ser inconsciente não é possível saber exatamente quando e porque uma demanda é satisfeita. A imagem dos dois toros serve para mostrar como aquilo que é demanda no sujeito torna-se desejo no Outro, e aquilo que é demanda no Outro torna-se desejo no sujeito. A neurose é definida por Lacan como esta parceria entre os dois toros. A cura psicanalítica é, em grande parte, a experiência de que afinal estes dois toros não se encaixam perfeitamente, que há entre eles um suplemento, uma ilusão que faz com que ambos se articulem em um sistema de passagens perfeitas. É neste "gap", neste ponto de desencaixe entre os toros, que o neurótico introduz seu objeto a. É também neste ponto que o neurótico oferece sua própria divisão subjetiva ao Outro. A difração causada pela demanda, como momento de objetivação do desejo, explica por que o sujeito não sabe o que pede no ato mesmo de pedir. Isso é outra maneira de mostrar como as teorias baseadas no sujeito econômico que age por motivações racionais, sempre maximizando ganhos e reduzindo prejuízos, não podem funcionar perfeitamente, em todos os momentos.
Há formas de sofrimento que aparecem como demanda para o Outro. São as que se manifestam como aspirações de ajustamento, adequação ou normalização. É o tipo de sofrimento que faz pedido e apelo ao outro. Ela acusa mais claramente uma forma objetivada do desejo, um objeto no qual ele se aliena. Daí que seu semblante clínico seja a insatisfação, a indignação e a reivindicação. Também o desejo histérico, como desejo de um desejo insatisfeito, permite exemplificar esta posição do sofrimento como pedido intransitivo. Neste caso a demanda adquire sua forma aparentemente mais simples de nomeação de uma falta, seja como frustração imaginária, como castração simbólica ou como privação real.
Há outras formas de sofrimento que surgem como modos afirmativos de identidade, de caráter ou de personalidade. São demandas contra o Outro. Elas não se refletem em aspirações de transformação, mas que se baseiam na recusa. Sofrer, apesar da passividade semântica aludida pela etimologia do verbo (pathos), apresenta-se aqui na forma específica de um ato ou de uma atividade. Um exemplo disso encontramos no chamado Transtorno de Personalidade Agressivo Passiva, caracterizado pela atitude de aceitação apática de ordens e regras, mas que silenciosamente constrói uma atitude de resistência e recusa, semelhante ao dito de Barthelby, o escrivão descrito por Melville, que dizia diante de todas as demandas: "I would prefer not to" (eu preferiria que não). São como monumentos que consagram e protegem uma história ou uma experiência, recusando-se a esquecê-la ou substituí-la impropriamente. É a posição negativista da criança diante do desejo do adulto. É também a posição da anoréxica diante dos objetos alimentares que se lhe oferecem. Posição que alcança seu grau mais elaborado de formalização literária no dito do escrivão Barthelby, de Melville "I would prefer not to" (eu preferiria que não).
Há formas de sofrimento que decorrem da desarticulação da demanda, da desorientação de seu endereçamento simbólico, da suspensão calculada da dialética do reconhecimento. Nesse caso trata-se de um sofrimento que ataca a oferta do outro, que avança contra o lugar em que se é instalado pelo outro quando se tem o sofrimento reconhecido. São formas de sofrimento que não pedem nada, mas que, ao contrário oferecem algo ao Outro. Um bom exemplo disso é a posição masoquista, na qual se poderia entrever a modalidade mais pura e desinteressada de amor. O que se oferece ao outro é a própria carência, desamparo ou ausência. Se o pedido é uma forma de sofrimento que constitui o falo como significante da falta, a oferta é uma modalidade do sofrimento que se baseiam na identificação ao objeto a, com a qual suturamos a demanda no Outro.
Finalmente, há formas de sofrimento que são impercebidas ou irrealizadas pelo próprio sujeito, porque aparecem justamente como demandas do Outro. Neste caso é porque o outro sofre que o sujeito sofre como que por procuração, como se nota muitas vezes na relação dos adultos com crianças. Este é também o caso do fetichista, que jamais sofre porque tem um fetiche, mas eventualmente porque este fato lhe traz dificuldades secundárias, quanto ao modo de praticá-lo, quanto à dificuldade social que este pode implicar. A enunciação desta forma não nomeada de mal-estar poderia se resumir a: não é isso. Não se trata da recusa de uma oferta, nem do pedido, mas do ponto de suspensão do próprio circuito da demanda. A demanda é toda do Outro. É ele quem se encarregará de trabalhar, de re-ofertar, de pedir, de recusar os objetos específicos. O não é isso se aplicará a cada uma destas fases da demanda, de modo ambíguo e flutuante. Não é isso se aplica indistintamente a quem oferece, ao que é oferecido e ao próprio reconhecimento do que foi recusado.
O muro é uma estrutura de defesa contra a falta (pedido), uma mensagem de indiferença contra o outro (oferta) e uma negação indeterminada de reconhecimento (recusa). O muro, ou a estrutura de véu quando se trata do fetichismo, diz invariavelmente que "não é isso", para os que estão fora, e consequentemente "é isso" para os que estão dentro.
No mesmo seminário em que Lacan (1971-72a/2012) introduz a relação borromeana entre Real, Simbólico e Imaginário, ele redefine a estrutura da demanda por meio do conceito de recusa. A fórmula que sintetiza a estrutura da demanda, e que decompus anteriormente, em modalidades narrativas do sofrimento é: "eu peço que recuses o que te ofereço, por que não é isso".
A posição discursiva da demanda, assim como a narrativa do sofrimento, não deve ser reduzida ao processo aquisitivo ou incorporativo. Aqui o eco estruturalista é claro: receber não só implica a obrigação de retribuir como pedir é ao mesmo tempo oferecer. Por isso a gramática da demanda é homóloga à gramática do amor (dar o que não se tem a quem não pediu). Recapitulemos agora os quatro tempos da lógica do condomínio segundo a estrutura da demanda:
1. Pedir ou não pedir, que em termos da dialética do amor refere-se à inversão de conteúdo da pulsão entre amar e odiar. Trata-se, neste caso, da decisão primária que delimita o espaço no qual as relações de reconhecimento podem e devem se dar. Segundo a lógica freudiana (FREUD, 1911/1988) da constituição do narcisismo, aquilo que não entra na esfera da oposição prazer-desprazer é excluído como zona de indiferença. O condomínio localiza um campo para além do qual se estabelece esta zona de indiferença, exterior ao escopo da luta pelo reconhecimento.
2. Recusar ou aceitar diz respeito ao ato de sanção pelo qual a demanda se inscreve no Outro. Recusar ou aceitar uma demanda não quer dizer satisfazê-la, mas reconhecer a pertinência de sua formulação, sua inscrição significante, sua assimilação a um discurso constituído.
3. Dar ou receber, que diz respeito à inversão simples entre amar e ser amado, organiza a expectativa básica de reciprocidade e correspondência, matriz essencial das relações de reconhecimento.
4. Não é isso ou é isso. O quarto tempo da gramática amorosa é a sua única forma de negação real, ou seja, aquela pelo qual o oposto do amor é uma exterioridade constituída pelo desejo, pela angústia ou pelo gozo. É o tempo no qual a fantasia retorna sob si mesma, trazendo efeitos de decepção e insuficiência.
Lacan reescreve esta oposição poeticamente:
Entre o homem e a mulher, há o amor.
Entre o homem e o amor, há um mundo.
Entre o homem e o mundo há o muro (LACAN, 1971-72b/2011).Lembremos que o muro, como figura de interposição da demanda, refere-se também aos muros do asilo, uma vez que este seminário se realiza na capela do Hospital de Sainte-Anne, no contexto da antipsiquiatria e da reforma italiana, que originaram um novo modelo em saúde mental. A ironia contida na ideia de falar com as paredes, que dá título a esta conferência, recupera a ideia de que nas paredes há uma demanda e uma modalidade de sofrimento que foi esquecida. Falar com as paredes não é só falar para quem não vai nos escutar, mas reconhecer que nas paredes e nos muros há um mal-estar do qual não lembramos mais o nome e um tipo de sofrimento que exprime uma aspiração de reconhecimento. Novamente o muro aparece como figura da indiferença, da exclusão e da segregação, contendo dentro de si, a forma indeterminada de negação dos tempos da demanda.
O muro determina um lugar. Um lugar é habitado por uma demanda. E uma demanda implica um circuito entre um pedido, (exemplo, Mantenha distância – Cão bravo), uma recusa (exemplo, Propriedade particular – não entre), uma oferta (exemplo: Seja bem-vindo à Morada dos eucaliptos!). Um lugar se transforma conforme o espaço no qual ele se insere. Daí que um lugar não seja um território e que toda demarcação é também uma des-marcação, ou seja, uma possibilidade, mesmo que virtual, de apagamento do território. A enunciação desta quarta articulação da demanda, e que a articula ao desejo, chama-se "não é isso". Paradoxo da designação ostensiva, pela qual a própria indicação do lugar o desmente enquanto território.
Mas o muro no capitalismo avançado adquire outra incidência. Ele substitui a dimensão criativa da negação (não), pela função reificante do (é isso). Esta nova função do muro se distingue do que Lacan chamou de amuro, como figura obstrutiva do amor em relação ao desejo, pois se trata de uma paralização da dialética entre ambos, a espécie de fixação de um sentimento. Esta nova figura do muro, que compõe a lógica do condomínio, nos leva assim a quatro sentimentos envolvidos na produção da patologia social:
1. O ressentimento, derivado da soberania imaginária do Outro e da obstrução da faculdade do pedir (KEHL, 2009). O ressentimento é um efeito estrutural da soberania excessiva do Outro, da consolidação fantasmática de sua onipotência, por identificação redutiva a uma alteridade encarnada e positiva. É fácil perceber como o ressentimento prospera naqueles que se sentem excluídos pelos muros do condomínio.
2. O cinismo, procedente da instrumentalização do sentido e da fixação na posição da recusa (GOLDENBERG, 2002). Cinismo é, antes de tudo, uma patologia da crítica, uma patologia da possibilidade de dizer não, de forma determinada ou indeterminada. O cínico recusa aceitando e aceita recusando, neutralizando assim a função de resistência e de detenção da demanda.
3. A degradação do sentimento de respeito, associada ao declínio de uma determinada gramática de autoridade, decorrente da exclusão ou do fracasso do oferecimento de meios de participação no universo da produção, do consumo e da reprodução cultural (SENNETT, 2003/2004). A autoridade é, principalmente, um efeito da recusa ao exercício direto do poder. Ela envolve um processo gradual de substituição simbólica do exercício do poder pela suposição de que este pode ser exercido, de que seu agente tem os meios para exercê-lo. É por isso que o declínio da função social da imago paterna explica a emergência de formações concentracionárias em torno do exercício do poder.
4. O sentimento de exílio e isolamento, que instaura a inadequação generalizada a qualquer espaço de pertencimento. "Não é isso" torna-se uma espécie de legenda para a impossibilidade de pertencimento. Sua origem é, naturalmente, o ponto genético do desejo, seu apagamento pela interpolação do objeto ou ainda a formação de equivalentes de angústia (a falta da falta).
Freud estabeleceu a culpa, a vergonha e o nojo como os três sentimentos sociais, decorrentes da interiorização da lei. A estes devemos acrescentar as formas sociais da angústia, desde o horror até o pânico, desde o desamparo até o embaraço. Lacan falava dos sentimentos sociais de familiaridade, realidade, apatia ou estranheza (unheimlich), como a realização subjetiva de tensões sociais. Ressentimento, cinismo, desrespeito e angústia subjetivam a impostura da lei, representada pela presença do muro. Seja ela descrita em termos da atividade da linguagem (cinismo), na esfera do desejo (ressentimento) ou do mundo do trabalho (desrespeito), a patologia social do muro não deve ser resumida à enunciação negativa (não é isso), afinal esta é tanto a enunciação da lei simbólica quanto efeito inerente ao trabalho do desejo diante de seus objetos. O que é propriamente patológico na figura sintomática do muro é o desligamento ou a desarticulação que este produz com relação às outras posições da demanda. Não é por outro motivo que os muros se tornaram lugares privilegiados para a escrita de mensagens, grafites e pichações, por meio das quais novas formações de demanda se inscrevem.
Voltemos a este período na cultura brasileira pós-inflacionária, marcado pela indeterminação crônica do valor, tanto das mercadorias quanto das experiências, no qual o laço social em forma de condomínio surge como solução. Lembremos como os primeiros tempos pós-inflacionários estavam carregados por um significante de dupla valência: a chamada abertura – política e econômica. A ideia de que éramos um país fechado, repleto de barreiras alfandegárias, restrições comerciais e que estávamos a recusar nosso ingresso no mundo global do futuro, produzia, como sói acontecer nos efeitos da fantasia, uma realidade constituída a posteriori. Ou seja, já éramos um condomínio, mesmo que não soubéssemos disso ainda.
Isso nos teria levado à fantasia ideológica de que uma vez livres deste pequeno empecilho – "ajuste" era a expressão eufêmica para tal operação –, poderíamos, enfim, dedicarmo-nos à procura da "felicidade", reencontrando novamente nosso glorioso destino. Ou seja, uma versão maldisfarçada da fantasia, que nos faz crer e confirmar, a cada momento, a hipótese de nosso "liberalismo mal implantado". Primeiro, é preciso estabelecer certos limites contra o desprazer, em seguida pensar se é possível alguma satisfação. "Um esforço a mais se quereis montar vosso próprio condomínio" – diria o aspecto sadeano de tal fantasia.
É preciso lembrar que o conceito de condomínio toca-se rapidamente com o universo invertido e periférico das favelas. A fusão sintética dos dois universos opostos é, naturalmente, a prisão. A lógica concentracionária reproduz o estado de exceção alternando a face liberal da formação de muros, que trabalha pela instrumentalização dos dispositivos de regulação, e a face disciplinar dos muros que opera reativamente pelo controle de excessos. Entre uma e outra, há a face romântica do condomínio, aquela pela qual a estrutura se mostra de modo mais visível como idealização. Ou seja, três formas complementares de determinação como bom uso da liberdade, como aperfeiçoamento da ordem e como idealização da experiência, concorrem na sustentação da fantasia narcísica dos muros.
O condomínio, como bolsão de pobreza, aproxima-se do que Milton Santos chamou de pobreza incluída, sinal de uma nova interpretação sobre a diferença social e a desigualdade. Não se trata mais de fazer desenvolver os atrasados, mas de localizar e conter o resíduo como pobreza estrutural globalizada. De acordo com esta lógica é preciso exportar problemas e ao mesmo tempo restringir seu retorno, pelo reforço de barreiras fiscais, controle de fronteiras e restrição de circulação de pessoas. A identidade estrutural que une condomínios de luxo, prisões e favelas aparece como ressentimento social:
O território tanto quanto o lugar são esquizofrênicos, porque de um lado acolhem os vetores da globalização, que neles se instalam para impor sua nova ordem; e de outro lado, neles se produz uma contraordem, porque há uma produção acelerada de pobres excluídos e marginalizados (SANTOS,2000).
Saliente-se, com relação aos três casos o fascínio despertado pela criação de "leis próprias" ao modo de códigos autônomos na favela, no condomínio e na prisão. O delírio do retorno à natureza, a atração exercida pela terra de ninguém, o terreno neutro e virgem sobre o qual se pode definir falicamente regras e normas, permite atualizar a cena primária de toda fantasia, qual seja, o momento originário de nascimento da lei. Encontramos assim uma tentativa de corrigir um fragmento insuportável de realidade que fora suprimido por ocasião da constituição do campo. O campo é uma regra de ocupação, não é um lugar empírico, mas há lugares empíricos que nos permitem reconhecer suas regras de formação. Se o campo de concentração tradicional baseava-se em certos princípios produtivos, discursivos e organizativos, que possuíam seu correlato na noção médica de isolamento, o novo campo está mais adaptado a uma produção deslocalizada.
Outro exemplo cultural correlato da formação de muros é o chamado reality show. Veiculados de maneira massiva e variável desde 2002, eles começam pela importação de uma fórmula internacional, mas que rapidamente ganha fôlego por aqui. Assim como Alphaville, de Godard, dá título a Alphaville, de Barueri; 1984, de George Orwell, é o suporte paródico do Big Brother. O regime murado é orientado para olhar o que se passa dentro. Recuperando nossa antiga tradição da assistência ritual familiar à novela, a transmissão ao vivo deste experimento psicológico pode ser considerada, enfim, o que faltava ao condomínio para que ele encontrasse sua inscrição cultural cotidiana. Forma rediviva da antiga chanchada, aliás, às vezes também pornochanchada, o reality showencontra sua trilha sonora no sincretismo do axé ao forró universitário. Suas câmeras de segurança são parasitadas por uma função segunda, erotológica e pornográfica. Os dramas banais são agora universalizados, como vivência coletiva. A fala prosaica e o cotidiano ordinário nos mostram que qualquer um pode ser uma celebridade, pois ela é feita pelo olhar não pelo objeto. Uma manobra muito interessante, pois permite ao antigo morador do condomínio ter acesso ao que lhe faltava, o olhar de inveja dos que ficam de fora. Inversamente permite aos que estavam fora sentir que no fundo já viviam em um condomínio, só não sabiam disso.
Há uma espécie de paradoxo da imagem tornada assim pornográfica, não pelos eventuais eventos picantes, mas pela forma mesma de exageração e do excesso. Paródia e autorrepresentação nas quais se baseia a própria satisfação de ser olhado. Quanto mais se reconhece a vida cotidiana como produto montado e gerido, menor valor ela tem em termos de autenticidade e espontaneidade. O erotismo, na sua forma de mais-de-gozar, extraída do interior da vida reprodutiva, é muito mais eficaz como valor agregado ao objeto:
A imagem publicitária evoca o gozo que se consuma na própria imagem, ao mesmo tempo que promete fazer do consumidor um ser pleno e realizado. Tudo evoca o sexo ao mesmo tempo que afasta o sexual, na medida em que a mercadoria se oferece como presença segura, positivada no real, do objeto de desejo (KEHL, 2002, p. 123).
O domínio do erotismo, assim como o da violência, está continuamente exposto à banalização. A relação entre estas duas séries pode ser examinada à luz da lógica do condomínio. Freud chamava esta degradação da demanda amorosa de Erniedringung, ou seja, declínio do valor libidinal do objeto (FREUD, 1912b/1988). A imagem que Freud evoca para exemplificar o processo é a do casal que depois do enamoramento inicial vê o casamento se arrastar para a tediosa repetição cotidiana. O homem de volta à roda de amigos no bar e a mulher transformada em um dragão insatisfeita e mal-humorada. O enredo prossegue com a aparição de objetos consolatórios: crianças para a mulher, outras mulheres para os homens. Há algo de substancial que ainda permanece neste roteiro, mesmo com as modificações importantes nos costumes conjugais. A solidão e o esvaziamento dos laços de afeto acompanham as novas formas de avaliação de produtividade, desempenho e retorno de investimento, próprias ao mundo do trabalho e do consumo. A intimidade autêntica torna-se assim um dos condomínios mais cobiçados em função das inúmeras formas miméticas que a vida digital introduziu neste âmbito.
Neste caso teríamos que entender o hedonismo interpassivo, como parte da fantasia do muro. Hedonismo interpassivo retoma a noção proposta inicialmente por Zizek de crença interpassiva. Trata-se de um fenômeno pelo qual uma experiência é vivida por procuração, por exemplo, as antigas carpideiras, que por ofício choravam nos velórios esvaziados do interior do Brasil, ou os "risos de auditório" que nos poupam até mesmo o esforço de achar algo diretamente cômico em uma comédia de qualidade duvidosa. Ou seja, não rimos do riso do outro, mas empreitamos nosso riso a um terceiro, como se ele fosse um síndico de nossa satisfação. O sentimento de que todos os outros estão em uma vida extremamente intensa, eroticamente rica e movimentada, enquanto nós mesmos enfrentamos nossa banalidade solitariamente é um caso particular do sofrimento organizado pela relação intra/extramuros. No hedonismo interpassivo não precisamos sair de casa, enfrentar o trânsito e os riscos reais de uma contingência amorosa. Mesmo que a experiência amorosa assim posta seja excessivamente determinada e vazia, ainda assim é possível gozar com a suposição de que aqueles que estão do lado de fora não sentem assim. Então, nos vendo de fora, e nesta imagem de satisfação que eu suponho que o outro lê em mim, posso recuperar um fragmento do hedonismo real ao qual renunciei.
Três anos depois da aparição da lei brasileira sobre condomínios e cinco anos antes de nossa experiência modelo nos arredores de São Paulo, Lacan postulava que a expansão dos mercados comuns nos levaria à acentuação da segregação como princípio social. Nesta previsão há uma leitura do tipo de consequência que se pode esperar da elevação do regime de igualdade liberal à condição de regra universal bem como do tipo de concepção da troca social que se liga ao fenômeno da segregação. Entre o fenômeno econômico do mercado comum e o fenômeno social da segregação há uma mediação adicional, representada pela anomalia do laço social prescrito pelo discurso do mestre, anomalia que Lacan chamou de discurso do capitalista. Sob certas circunstâncias a relação de reconhecimento, organizada pelo discurso do mestre, em seus movimentos alternados de absorção de sentido e de contrassentido e com sua fantasia subjacente recalcada, inverte-se em uma relação direta e fechada entre o sujeito e o objeto (gozo do consumo) e do significante ao outro (gozo do sentido).
Referências
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E-mail: chrisdunker@usp.brRecebido: 15/08/2016
Aprovado: 12/09/2016
* Psicanalista. AME da EPFCL Brasil. Professor Titular do Instituto Psicologia da USP.