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Psic: revista da Vetor Editora
versão impressa ISSN 1676-7314
Psic v.4 n.2 São Paulo dez. 2003
ARTIGOS
A criança acidentada atendida no hospital um estudo psicanalítico do imaginário infantil
Rosangela Sanchez Grisanti; Elaine Soares Neves Lange; Elen Aparecida Ribeiro
UNISA
RESUMO
Os acidentes infantis representam atualmente uma importante causa de mortalidade. Das internações no Hospital Ribeirão Pires, 42,5%, decorrentes de acidentes no ano de 2002, eram com crianças menores de 14 anos. Este trabalho propõe o estudo de alguns determinantes psíquicos que podem estar associados aos acidentes infantis. Como procedimento utilizou-se o Desenho-Estória com Tema com as crianças acidentadas que passaram por atendimento ambulatorial ou estiveram internadas no período de outubro de 2002 a maio de 2003. Dos acidentes, 96,4% ocorreram enquanto as crianças brincavam. Os resultados demonstraram que a combinação dos sentimentos - o desejo de ser cuidado (sentimento de abandono) e a culpa - aparece como causa mais comum que pode levar as crianças a se acidentarem. Os fatores psicológicos não são únicos, porém fazem parte de um conjunto de condições tanto externas quanto internas, relativas à dinâmica desses sujeitos. A criança que se acidenta parece trazer em sua história uma identificação com comportamentos, em que a culpa e a conseqüente reparação estão presentes. A propensão aos acidentes parece reproduzir um desejo inconsciente de aliviar a culpa.
Palavras-chave: Crianças acidentadas, Contexto hospitalar, Psicanálise, Imaginário infantil.
ABSTRACT
The childish accidents represent an important cause of mortality nowadays. 42.5% of the internments due to accidents, were children from 0 to 14 years old. In this research the search of some possible determinative psychic ones is considered associated to the childish accidents. The Drawing-Story with Subject was used with injured children that had passed for ambulatorial attendance or had been interned from October 2002 to May 2003. 96,4% of the accidents had occurred while these children were playing. The results had demonstrated that the combination of the feelings - the guilt and desire to be well-taken care of (abandonment feeling) - shows off as a common cause which can take children to becoming victim of accident themselves. The psychological factors are not unique, however it is part of a set of both external and internal conditions related to the dynamics of these citizens. The child who has an accident seems to bring in its history an identification with behaviors, where the guilt and the consequent repairing is present. The propensity to the accidents seems to reproduce an unconscious desire to alliviate the guilt.
Keywords: Injured children, Hospital context, Psychoanalysis, Childish imaginary.
Introdução
O interesse por este tema surgiu em conseqüência de trabalhos que foram realizados no Hospital Ribeirão Pires nos anos de 2002 e 2003. Foi observado nos atendimentos ao leito um número significativo de crianças com idades de até 14 anos internadas como conseqüência de acidentes. Após um levantamento estatístico de internações decorrentes de acidentes, constatou-se que 42,5% das 983 internações, eram com crianças menores de 14 anos. Esses dados foram ratificados com os setores de atendimento ambulatorial de ortopedia e fisioterapia que nos alertou para um número, também significativo, de casos de reincidências nessa faixa etária.
No Brasil os acidentes constituem 19,5% da mortalidade na faixa etária entre 5 e 19 anos. De acordo com o Ministério da Saúde (1999), o número de acidentes infantis por causas externas, resultou na morte de 30% de crianças com idade inferior a 14 anos em 1999.
Estudos de caráter preventivo (Filocomo et al., 2002) descrevem o ambiente familiar como palco do maior percentual de acidentes infantis. Segundo a pesquisa, os familiares devem ser alertados e orientados para adotar sistemas e mecanismos de segurança para prevenir os perigos dos acidentes domésticos, ou seja, destaca a importância da modificação das variáveis externas como medidas de prevenção.
Já para Santos (1988) é importante ficar atento também aos componentes emocionais presentes no ato de acidentar-se. Sobre a reincidência de acidentes, em geral num curto espaço de tempo, o autor afirma que podem ser situações buscadas pela própria criança no sentido de autoflagelação ou autopunição e o objetivo pode ser a necessidade de chamar a atenção para si.
Em outras palavras, o acidente pode ser desencadeado por uma motivação interna e não apenas por fatores externos; sendo assim, mesmo que sejam tomadas medidas preventivas tentando controlar as variáveis externas, os acidentes poderiam acontecer uma vez que estão envolvidos fatores emocionais.
As pediatras inglesas Green e Hart (1998) desenvolveram um estudo de caráter qualitativo, cujo objetivo era examinar a opinião infantil a cerca dos riscos de acidentes e oportunidades de prevenção. O ato de ouvir as crianças pode facilitar a compreensão do acidente no diz respeito a seus fatores psicológicos.
Para Roberts (1997) os acidentes infantis na Grã-Bretanha continuam aumentando a cada ano, mesmo com o surgimento de novas medidas de segurança. Observa ainda que não há como tornar um ambiente onde crianças brincam "totalmente" seguro, ressaltando a importância não só de se compreender o porquê dos acidentes infantis continuarem aumentando, como também o meio social no qual ocorreu, sendo assim estaremos mais aptos a progredir na prevenção dos acidentes.
Alexander (1989) afirma que há uma natureza inconscientemente intencional de certos acidentes e que a causa está fora do controle da pessoa. Segundo ele os principais fatores causadores dos acidentes não estão no externo, mas nas pessoas que sofrem os acidentes e com base nessa observação, afirma que as medidas preventivas devem se dirigidas para a pessoa que sofreu o acidente.
Em A Psicopatologia da vida cotidiana, Freud (1901/1976), descreve um mundo inconsciente que nos conduz a determinados comportamentos, dos quais, quase sempre, não temos consciência. Desvenda um sentido por trás das nossas palavras, gestos, atitudes, sonhos e atos descuidados. Muitos desses "atos", segundo ele, mesmo que pareçam acidentais não o são e sim inconscientemente intencionais. Os fatores externos aparentemente causadores dos acidentes nada mais seriam do que uma oportunidade para a intenção inconsciente assumir a ação.
Em estudos sobre o suicídio, Grünspun (1991) observa que em muitos casos em que o ato suicida é efetivado, encontramos um ou mais gestos ou avisos que o antecederam, ou seja, estavam presentes inconscientemente, aparecendo em forma de atos ou comportamentos auto-agressivos. Discorrendo sobre o mesmo pensamento, Marcelli (1998) estabelece um paralelismo entre condutas suicidas manifestas e a propensão a acidente. Afirma que: "Há um continuum entre acidente, suicídio-acidente, suicídio-jogo e suicídio com desejo de morte conscientemente expresso antes da tentativa de suicídio." (Marcelli, 1998, p. 162)
Segundo ele, algumas crianças adotam condutas de "desafio" em suas brincadeiras colocando em risco a própria vida, sendo que mantêm uma consciência parcial do perigo. Em outros casos a história da criança é permeada por uma série de acidentes repetidos (fraturas, queimaduras, diversos acidentes domésticos, etc), o que deve suscitar aos profissionais da área de saúde a compreensão desses acidentes repetitivos não como uma fatalidade, mas como um sinal de um problema psicológico individual.
O acidente pode servir como forma de expiar uma culpa ou escapar de uma punição desconhecida de intensidade talvez muito maior. Um pensamento (ou desejo), que não se torna consciente, pode manifestar-se numa determinada situação para manter o equilíbrio psíquico.
A respeito da idéia de expiação Fenichel (2000, p.143) menciona que esta está relacionada com a possibilidade de uma anulação mágica "... o primeiro ato foi praticado em conexão com certa atitude instintiva inconsciente; e anulado quando se podem repetir em condições internas outras".
Os acidentes, portanto, seriam conseqüências de fatores emocionais e não apenas conseqüência das variáveis externas. Medidas preventivas externas e isoladas de pouco adiantariam para uma compreensão e uma eficaz prevenção dos acidentes, reforçando a idéia de uma análise mais subjetiva da motivação para os acidentes, estabelecendo uma relação dialética entre o psíquico, o soma e o meio ambiente da criança que se acidenta. As escolhas do aparelho psíquico, para dar vazão aos impulsos inconscientes, estão automaticamente reguladas pelo princípio do prazer, ou seja, quando há uma tensão desagradável gerada por esses impulsos o seu resultado final coincidirá com uma redução dessa tensão.
O excesso de energia, muitas vezes presente no brincar, pode gerar angústias e ansiedades esse excesso teria uma relação com o desprazer. O acidentar-se durante a brincadeira estaria a serviço do aparelho psíquico, uma vez acidentando-se paradoxalmente o equilíbrio é mantido.
Para Winnicott (1975) é por meio da brincadeira que o indivíduo - criança ou adulto - pode ser criativo e utilizar sua personalidade na íntegra descobrindo por meio da criatividade o seu Eu. A criatividade do ser humano seria a perpetuação pela vida, de algo que pertence à experiência infantil. Segundo ele, a angústia freqüentemente está presente nas brincadeiras infantis, porém a eminência de uma angústia que não se pode conter pode conduzir a um brincar compulsivo e repetitivo e na busca exagerada do prazer que provém da brincadeira.
A simbologia presente no acidente, nas brincadeiras, nos desenhos e nos sonhos deverá ser compreendida como um elo entre o processo de vida consciente (realidade) e os fenômenos inconscientes do imaginário infantil.
As crianças expressam-se por meio de desenhos antes de saberem escrever; transmitem idéias que elas dificilmente seriam capazes de expressar em palavras (Hammer, 1991).
Klein (1955/1982) desenvolveu a técnica do brinquedo, baseada no método psicanalítico da associação livre, pois esta acreditava que a criança não estaria disposta e nem sempre saberia se expressar por palavras, e por meio do brinquedo, do desenho ou das histórias, ela poderia expressar seu mundo interno, suas fantasias mais inconscientes de forma simbólica.
As dificuldades sentidas pela criança no seu dia-a-dia, sejam elas reais ou fantasias, vão de certa forma influenciar o seu desenho. Quando associamos as histórias à imagem, o desenho ganha uma maior dimensão, tornado-se mais rico em símbolos.
Walter Trinca (1997) desenvolveu alguns trabalhos associando o desenho à história. O procedimento Desenho-Estórias tem sua fundamentação baseada no método psicanalítico das técnicas projetivas. Embora baseado na psicanálise, visou a buscar uma relação mais dinâmica com a pessoa adequando-se ao estilo individual de cada um, permitindo ao profissional uma maior flexibilidade de avaliação.
Foi a partir procedimento Desenho-Estórias que Aiello-Vaisberg (1997) introduziu o Desenho-Estórias com Tema. Segundo ela, o D-E com Tema possibilita uma forma diferente de diálogo, essencialmente fundamentada no método psicanalítico, pois as imagens associadas às histórias se equivalem às associações livres, frente ao tema investigado. É um instrumento que se adapta facilmente às pesquisas de diferentes objetos sociais em grupos ou individuais. Pode ser utilizado em qualquer faixa etária e com pessoas em diferentes condições psicopatológicas. Com o lúdico, espera-se poder favorecer a criança "brincar" com o material pesquisado, "mantendo uma relação criativa espontânea e não defensiva com o método" (Aiello-Vaisberg, 1997, p. 268).
O desenho com seu valor projetivo pode fornecer uma visão das suas fantasias inconscientes e de suas possibilidades de expressão, de criação e de associação. As fantasias são idéias ou imagens mentais criadas para resolver os conflitos intrapsíquicos, dando uma satisfação imaginária aos impulsos e atuando como um mecanismo saudável de adaptação às exigências do mundo externo. As fantasias a respeito de um determinado assunto ou fato, podem se tornar conhecidas por meio dos sonhos, dos jogos infantis, dos desenhos, das brincadeiras e da associação livre. Elas têm a função de representante mental dos instintos. O instinto não pode se tornar um objeto da consciência, mas a idéia que representa o instinto pode (Klein, 1930/1981).
Os mecanismos de defesa vão surgir como uma forma de adaptação à realidade e, conseqüentemente, estão diretamente relacionados com a fantasia (Piccolo, 1994).
Para o indivíduo, muitas vezes, a defesa é a melhor maneira de relacionar-se com o seu meio ambiente, e esta está diretamente ligada à sua personalidade e na forma única de perceber-se e conectar-se com o mundo (tanto interno como externo).
Método
Neste trabalho propõe-se o estudo de alguns possíveis determinantes psíquicos que podem estar associados aos acidentes infantis. Por que algumas crianças se acidentam com freqüência? Que conteúdos inconscientes podem estar associados aos acidentes infantis? Seria um comportamento autodestrutivo?
Fizeram parte desse estudo 28 crianças vítimas de acidentes com idades entre 6 a 14 anos, que estiveram internadas ou passaram por atendimento ambulatorial no Hospital Ribeirão Pires no período de outubro de 2002 a maio de 2003.
O local de realização do procedimento foi o próprio hospital, tanto no ambulatório quanto na unidade de internação. Foi realizada uma entrevista com o responsável pela criança buscando uma compreensão da dinâmica do acidente, como ocorreu, o local e uma possível reincidência. Como procedimento, utilizou-se o Desenho-Estória com Tema, no qual foi pedido que a criança fizesse um desenho com o tema "Acidentes com crianças", criasse uma estória e desse-lhe um título. Os resultados foram analisados qualitativamente a partir do estabelecimento de categorias de idéias semelhantes, classificadas como "fantasias". As expressões gráficas e verbais foram analisadas conjuntamente por compreendermos que o discurso completa o grafismo e vice-versa. Foram consideradas para a análise a intersubjetividade da relação estabelecida entre pesquisadora, criança e família, assim como a fala e os comentários ocorridos durante a aplicação do procedimento. O referencial teórico utilizado foi o psicanalítico.
Resultados
Análise e discussão
Percebemos que 96,4% dos acidentes ocorreram enquanto essas crianças estavam brincando: sendo que 71,5% encontravam-se no ambiente familiar; 24,9%, na escola e apenas 3,6% acidentaram-se de outra forma e em outro local.
A reincidência de 40,6% de acidentes foi um fator que chamou a atenção. As mães apresentaram uma certa dificuldade em reconhecer essas reincidências, pois, quando questionadas a respeito de outros acidentes, respondem primeiramente que não ocorreram, logo após relatam outros pequenos acidentes como tombos, cortes, fraturas ou até internações.
Na impossibilidade de transcrever todo o conteúdo do material coletado, foram selecionados alguns exemplos de cada uma das categorias. As crianças que apresentaram dificuldade na escrita foram ajudadas pelas aplicadoras. As figuras e estórias escolhidas serão mencionadas no decorrer do texto e encontram-se anexo ao final do artigo.
Destacaram-se quatro tipos de idéias que agrupamos nas seguintes categorias/fantasias: "faz-de-conta que nada aconteceu": 10,7%; "onde está a mamãe?": 17,9%; "se correr o bicho pega e se ficar o bicho come": 21,4%; "eu não mereço": 50%.
Na categoria faz-de-conta que nada aconteceu, nenhuma criança desenhou o tema sugerido, nem real, nem imaginário. Os desenhos e as histórias retratam situações contrárias ao que foi pedido dando uma idéia de fantasias mágico-onipotentes, cujo objetivo é que uma fantasia boa, ou ato bom, pode apagar ou anular outra fantasia ou ato agressivo anterior mesmo que seja em fantasia (Piccolo, 1994).
Na Figura 1.1 a criança em questão encontrava-se internada em conseqüência de uma suspeita de traumatismo craniano. Ao desenhar, a atitude dominante era o detalhismo e a preocupação com a simetria, promovendo uma necessidade de rever, acertar e refazer partes do desenho já realizado, chegando ao ponto de apagar completamente, anulando o desenho, desistindo da tentativa, embora deixando marcas gráficas que permitem a identificação do que foi desenhado. Na produção verbal omite que foi empurrada durante um jogo na escola e todos os sentimentos negativos que surgiram por conseqüência do acidente e internação, sugerindo uma idéia de isolamento reforçando a dissociação. A anulação manifesta-se na tentativa de encobrir sentimentos agressivos.
Na Figura 1.2 a criança foge do tema solicitado e desenha uma situação paradisíaca não entrando sentimentos negativos, elementos agressivos ou amedrontadores, como se buscasse com a fantasia a anulação do tema proposto. Anular a culpa, expiando-se de atos cometidos no passado, parece ter sido a intenção, pois a negação e anulação da culpa no processo favorecem o distanciamento da angústia gerada na situação real.
Os desenhos e as histórias da categoria "onde está mamãe?" trazem em sua idéia principal uma fantasia de abandono. Os personagens mostram-se desprotegidos, sozinhos em um contexto e em algumas vezes, expressando a necessidade da presença materna ou de uma figura protetora. Para lidar com a angústia surgida dessa situação, alguns buscam resolver os problemas sozinhos, o que reforça o controle onipotente do objeto, e outros não conseguem resolver, sendo a morte a única solução.
Na vinheta, "foi muito complicado para ela dormir sozinha..." (Figura 2.1), a criança expressa sentimentos de insegurança e abandono. Apesar de a história do acidente ser real, o sentimento de solidão ao qual se refere ao ter ficado só "fisicamente" no contexto hospitalar não confere a realidade. Uma fantasia preparatória funciona como substituta de uma situação real, possibilitando a redução de tensão e canalizando o desejo, de forma a possibilitar a elaboração da angústia (Fenichel, 2000).
A hospitalização despertou fantasias inconscientes de uma angústia de abandono, puramente fantasmática, a situação de internação muitas vezes leva a criança a reviver uma situação de perda e luto. A possibilidade de enfrentar e modificar, ou abater-se diante dessa ansiedade depende da capacidade para reelaborar esse mundo interno, por meio da criação de símbolos representantes do ego e dos objetos que fantasia ter perdido (Grassano, 1996).
Na Figura 2.2 o acidente desenhado, embora sendo real, não foi o que o levou à internação, deixando evidente um caso de reincidência. O titulo "Eu com os Meus Machucados" e a vinheta "Eu fui crescendo e sempre fui caindo bastante..." mostram uma tendência a se acidentar constantemente. Não só o titulo, como o desenho (a figura humana está num movimento de queda para a esquerda), sugere a idéia de uma angústia depressiva, sentimentos de solidão e abandono, levando-nos a pensar numa regressão como mecanismo de defesa. Esse tipo de funcionamento pode dificultar uma possibilidade de elaboração e reparação.
Na Figura 2.3, diante de ansiedades com as quais o ego não consegue lidar, a única solução encontrada é um retorno a um estado primitivo ou até mesmo a desintegração e morte. O desenho mostra a figura de um menino semelhante a um "fantasminha" desprotegido, que parece estar localizado acima das nuvens, sugerindo uma idéia de desprezo em relação ao objeto que uma vez morto não requer a atenção de ninguém. Atua como uma defesa contra as experiências de perdas e culpa. Aqui encontramos defesas primitivas, como a regressão e a inibição.
Para Piccolo (1994), o mecanismo de defesa da inibição, ou restrição do ego, surge diante de ansiedades depressivas, e a inibição de uma capacidade pode provocar sentimentos de sofrimento e impotência para ela a inibição pode ser expressa por figuras fracas e inseguras. No caso da regressão, há presença de figuras em que predomina a perda de "equilíbrio", pessoas caindo ou em perigo de serem derrubadas, destruídas, com tendência de movimentos da direita para esquerda, para baixo ou pendentes.
Quando a criança não encontra no outro o suporte para suas necessidades afetivas, o sentimento de abandono, solidão e morte tornam-se mais intensos, o ego mobiliza defesas narcísicas para lidar com a ansiedade derivada dessas fantasias. Nesse caso há uma distorção da realidade externa, para servir a uma necessidade interna projetada no ambiente (Marcelli, 1998).
A perda vivenciada no contexto hospitalar está ligada a sentimentos de despersonalização. São perdas concretas de espaço, do ambiente familiar, da casa e da intimidade do quarto, porém são sentidas no plano emocional e podem representar de forma mais arcaica a vida intra-uterina e sentimentos de luto e perda, vividos no momento do parto e nas primeiras relações objetais. A brincadeira de forma geral pode possibilitar o processo de catarse e minimizar esses sentimentos, facilitando o relacionamento dessa criança com os profissionais e com os procedimentos necessários no decorrer do tratamento dentro do contexto hospitalar.
Os desenhos representados na categoria "Se correr o bicho pega e se ficar o bicho come" mostram atropelamentos e colisão de veículos. As ações sempre provêem do objeto externo. Os personagens dão a idéia de vulnerabilidade e a perseguição é implacável; não há como escapar, pois os acidentes ocorrem na calçada, na faixa de segurança, com o carro avançando o sinal ou outro carro colidindo na contramão, o que sugere a idéia de uma fantasia persecutória.
A projeção aparece como principal defesa: "quero manter-me distante disto." As angústias, que antes (faz-de-conta que nada aconteceu e onde está mamãe?) estavam relacionadas a perdas narcísicas de amor, afeto ou medo de ser abandonado, transformam-se aqui (Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come e Eu não mereço), em angústia pela perda de provisões do superego como um sinal de perigo a serviço do ego, que faz com que o medo transforme-se em sentimento de culpa, resultando numa angústia de castração (Fenichel, 2000). Nessa categoria os desenhos e as histórias parecem retratar situações de prazer seguidas de punição assumindo uma característica de sentimento de culpa, com juízo de ego, "a angústia do ego em relação ao superego" (Fenichel, 2000, p. 124).
Em alguns desenhos aparece perda de uma parte do corpo (perna, mão) o que pode estar associado à angústia de castração. O acidente no brincar aparece como um freio para a atividade que gera prazer, como se esse prazer fosse proibido. Nas histórias em que o sentimento de culpa está presente com caráter de remorso as crianças terminam com uma moral: "nunca desobedeça aos maiores que você" (Figura 4.2); "isso me ensinou muito a ouvir a minha mãe e meu pai" (Figura 4.3).
As crianças parecem estar conscientes do perigo e do prazer envolvidos na situação, passando a idéia de que, se evitassem aquele prazer, não seriam punidas. A perda que se teme nesse momento é a perda da auto-estima que, em grau maior, representa um sentimento de aniquilação. Parece haver uma busca pela satisfação da consciência (ego) que é sentida inconscientemente no corpo em forma de sintomas dos mais diversos. A necessidade de punição provém da necessidade de ser perdoado, então a dor da punição é muitas vezes provocada como uma forma de aplacar o sentimento de culpa, como uma forma de reparação.
Nas categorias anteriores o medo da perda do amor era uma ameaça que vinha de fora, contudo nessa categoria o perigo vem de dentro, daí o sentimento de culpa usado também como defesa.
Conclusão
Os resultados demonstraram que a maioria dos acidentes ocorreu enquanto as crianças estavam brincando em ambiente familiar ou na escola. O local "escolhido" parece relevante quando pensamos que o acidente foi a forma encontrada pela criança de manifestar seus desejos inconscientes (de ser cuidada, de se redimir da culpa, de rebelar-se, etc.) que podem estar associados às relações estabelecidas com as figuras parentais (família ou escola). O ato de acidentar-se pode se configurar como um sintoma, um pedido de socorro e muitas vezes serve como um freio para a atividade que gera prazer (prazer x punição).
Acreditamos que o controle das condições de risco externo seja necessário, porém não resolveria por completo. As medidas preventivas primárias também devem envolver a pessoa que sofreu o acidente, pois a compreensão dos fatores psicológicos é parte importante da dinâmica do acidentar-se. Quando pedimos à criança que crie um desenho e fale sobre ele em forma de história, estamos favorecendo um equivalente à associação livre, possibilitando a recriação dos sentimentos envolvidos na situação e a elaboração de conflitos. Essa experiência permite que ela entre em contato com fantasias e medos inconscientes e mobilize recursos internos para enfrentar situações semelhantes que venham a se reproduzir no futuro.
O contexto hospitalar pode propiciar uma experiência regressiva e mobilizar conteúdos arcaicos da personalidade. O sofrimento das crianças que se acidentam a ponto de serem hospitalizadas é único e pode passar despercebido pelos pais e profissionais da área de saúde. Estudos que visem à formação de grupos terapêuticos com objetivos preventivos e educativos utilizando o brincar, podem colaborar para a diminuição da ansiedade, o resgate da auto-estima, conscientização da imagem corporal e para a melhoria das relações familiares e sociais, conseqüentemente promovendo melhora na qualidade de vida.
Observamos que a combinação dos sentimentos - desejo de ser cuidado (sentimento de abandono) e sentimento de culpa - aparece como causa inconsciente, as mais comum que podem levar crianças a se acidentarem com freqüência. Os fatores psicológicos não são únicos, porém fazem parte de um conjunto de condições tanto externas quanto internas, relativas à dinâmica desse sujeito. A criança que se acidenta parece trazer em sua história uma identificação com comportamentos, em que a culpa e a conseqüente reparação estão presentes.
Na nossa sociedade existe uma certa "ideologia" que reforça comportamentos de autopunição. O indivíduo sempre "pa-ga" pelos seus erros seja na religião por meio de "penitências", "jejuns", "carmas" ou na lei com a "prisão". O sofrimento seria a forma de se redimir do sentimento de culpa. A propensão a acidentes parece reproduzir um desejo inconsciente de aliviar a culpa. Ao acidentar-se, a criança "repara" os seus erros e "obtém" a atenção e os cuidados dos quais necessita.
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Endereço para correspondência
ellange@usp.br, elenpinho@uol.com.br, rosangela.sg@uol.com.br
Encaminhado em 01/11/03
Revisado em 12/11/03
Aceito em 22/12/03