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Psic: revista da Vetor Editora

versão impressa ISSN 1676-7314

Psic v.6 n.1 São Paulo jun. 2005

 

RESENHA

 

Transtorno de estresse pós-traumático: uma neurose de guerra em tempos de paz

 

 

Fabiano Koich Miguel1

Endereço para correspondência

 

 

Vieira Neto, O., & Vieira, C. M. S. (Orgs.). (2005). Transtorno de estresse pós-traumático: uma neurose de guerra em tempos de paz (262 p.). São Paulo: Vetor.

Como compreender e tratar pacientes que foram vítimas de episódios violentos, como estupro, assalto, seqüestro? Quais as conseqüências psicológicas desses eventos? O livro organizado por Othon Vieira Neto e Claudia Maria Sodré Vieira apresenta onze capítulos com a visão psicanalítica sobre o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), já reconhecido internacionalmente como doença.

Trata-se de um tema que foi historicamente importante para o desenvolvimento da Psicanálise, pois se percebeu que os sintomas apresentados pelos pacientes que sofriam de neurose traumática não podiam ser explicados pela teoria usual, ou seja, como uma manifestação simbólica de algum conflito inconsciente. Apesar disso, o TEPT parece ter sido deixado de lado com o tempo. Preocupados com a responsabilidade do profissional de saúde em uma realidade em que a violência se faz cada vez mais presente e muito se debate o funcionamento mental do criminoso, mas se deixa de lado as conseqüências na psique da vítima, os autores oferecem compreensões teóricas e propostas de intervenção.

No primeiro capítulo, intitulado Transtorno de estresse pós-traumático (TEPT): etiologia, conceito, prevalência, Othon Vieira Neto revê a descrição do transtorno e, considerando a definição da CID-10 como vaga demais, explica fatores como a experiência (resultante do evento factual que não é elaborado e da vivência) e também quais episódios da realidade poderiam ter maior capacidade traumática. O autor coloca a origem do TEPT na frustração libidinal associada a uma situação de perigo, de maneira que uma situação pode tornar-se um trauma quando o perigo presente nela excede as capacidades individuais de enfrentá-lo. Em relação aos sintomas, o capítulo detalha os critérios do DSM-IV, visto como mais específico se comparado com a CID-10, tomando o cuidado de diferenciar o TEPT do Transtorno Dissociativo. Já em relação à prevalência, são citadas pesquisas que indicam que quantidades significativas de pessoas não conseguem se restabelecer por conta própria após alguns meses do evento, considerando cinco fases de resposta ao trauma. O autor esclarece que, em casos crônicos, o TEPT pode permanecer por muitos anos, especialmente quando o episódio violento foi provocado por humanos, fazendo o indivíduo remodelar sua vida de maneira a evitar situações perigosas. Por fim, são apresentados outros transtornos associados ao TEPT e como se dá a comorbidade.

O segundo capítulo, As bases biológicas do transtorno de estresse pós-traumático, é escrito por Renato Teodoro Ramos. Visando a uma interação entre estruturas teóricas diferentes, o autor apresenta o referencial biológico, que enxerga o transtorno como uma falha do organismo em se recuperar de eventos marcantes. Entre os neurotransmissores importantes no quadro, o autor destaca o cortisol, um mediador da resposta de estresse, que possui relação com as memórias intensas e inapropriadas do episódio. Como o cortisol se apresenta em quantidade reduzida em pacientes com TEPT, aventa-se a possibilidade de se prever o desenvolvimento do transtorno no período imediatamente após o evento estressor.

Claudia Maria Sodré Vieira, no terceiro capítulo, A metapsicologia do trauma, propõe uma teorização da ação do trauma no aparelho psíquico, segundo Freud e Ferenczi, apresentando evidências de uma teoria inconsciente sobre o paciente e as causas das dores, diferente da Medicina. Visando a descobrir como a psique lida com quantidades excessivas de estimulações, a autora revê os subsistemas j, y e w, sua função e diferenciação, e como eles agem com a distribuição de energia no trabalho psíquico. Propõe-se que o TEPT apareça como uma repetição compulsiva da dor de quando a vítima se sentiu abandonada e impotente perante uma ameaça a sua vida, o que sugere que o trauma seja uma ferida egóica que provoca um distúrbio narcísico.

O quarto capítulo, escrito por Claudia Maria Sodré Vieira e Eva Maria Magliavacca e intitulado A fixação no trauma e a teoria da libido, inicia-se retomando o conceito de pulsão de morte e compulsão à repetição na teoria freudiana. Propõe-se que o trauma apareça por causa de um excesso de estimulação e incapacidade do aparelho psíquico em se livrar dela, surgindo uma angústia semelhante à do nascimento. A fixação no trauma, assim, se daria como uma busca por uma nova experiência que proporcionasse uma descarga adequada.

Othon Vieira Neto é o autor dos quatro capítulos seguintes. No quinto capítulo, A concepção psicanalítica de neurose e o TEPT, ao relembrar que o transtorno surge a partir de um momento único e com sintomas não simbólicos, ao contrário das outras neuroses, o autor traz o conceito de Neurose Traumática proposto por Freud. Após uma detalhada revisão histórica da obra freudiana sobre o tema, explica-se como o TEPT surge devido a três alterações no aparelho psíquico: inicialmente uma falha na descarga da excitação, surgindo, por diversos fatores, a compulsão à repetição e, por fim, falhas nas defesas.

Em A instituição bancária como observatório humano do transtorno de estresse pós-traumático, sexto capítulo, apresentam-se três casos de pacientes vítimas de TEPT que trabalhavam em agências bancárias. O autor diagnostica cada caso segundo os critérios do DSM-IV, ressaltando que todos os pacientes vivem com sensação de que o perigo continua, indignação por ter passado pela situação e sentimentos de impotência e culpa.

Ainda se referindo aos três casos, no sétimo capítulo, A ansiedade no transtorno de estresse pós-traumático, Vieira Neto esclarece como se dá a ansiedade nos pacientes, que é um medo da repetição de um perigo real e já presente. Enfatiza a explicação da Psicanálise para a riqueza de detalhes que as vítimas recordam do episódio.

O oitavo capítulo, Outras alterações apresentadas após uma situação traumática detalha alterações como sentimento de culpa que a situação perigosa causa na vítima, que pode aparecer como uma busca por um sentido no ocorrido; ressentimento ou revolta com o banco em que trabalhavam, como sensação de abandono do protetor; dificuldades no relacionamento com outras pessoas, com perda da capacidade de amar; irritabilidade, resultado da constante excitabilidade; somatizações e oralidade.

Síndrome de Estocolmo: a identificação com o agressor é o título do nono capítulo, no qual Claudia Maria Sodré Vieira e Orthon Vieira Neto apresentam a descrição da Síndrome de Estocolmo e suas estranhas distorções em relação à figura do agressor, que passa a ser visto com afeto e gratidão. A partir disso, os autores propõem que essa síndrome se trata de um desdobramento do TEPT, tecendo relações com a teoria psicanalítica de Ferenczi, falando da situação de impotência e desamparo e da introjeção do agressor.

O décimo capítulo, também escrito por Othon Vieira Neto e intitulado Um programa de assistência às vítimas de assalto ou estupro, inicia-se falando de dois problemas: o prejuízo ao sistema de saúde que o TEPT pode provocar e o fato de no Brasil existirem poucas iniciativas para cuidados com esse tipo de vítima. Para o primeiro caso, o autor apresenta programas de sucesso nos EUA, que são curtos e eficazes na prevenção e no tratamento do transtorno e proporcionam economia. Já para o segundo problema, é citado um programa desenvolvido por uma instituição bancária brasileira que, com equipe multidisciplinar, presta assistência aos funcionários vítimas de episódios violentos e seus familiares. O autor explica os “9 Ws de Benyakar” que são princípios que orientam profissionais de saúde nas emergências, e os benefícios trazidos pelo programa, não apenas para o acolhimento da vítima, mas também para a cultura da empresa quanto à saúde emocional.

Contribuições da psicologia da saúde na atenção às pessoas com TEPT é o capítulo que fecha o livro, no qual José Tolentino Rosa e Othon Vieira Neto colocam o TEPT como uma epidemia dos tempos modernos, citando a imprensa como responsável em parte pelo aumento do medo da violência. Após uma breve revisão da teoria freudiana sobre acumulação de eventos traumáticos, os autores examinam o conceito de adaptação de Ryad Simon e sua utilidade no caso de um trauma.

Os onze capítulos que compõem esse livro oferecem detalhes minuciosos sobre o TEPT, trazendo junto visões teóricas sobre o fenômeno, predominantemente a psicanalítica, propondo estratégias terapêuticas, organizacionais e até sociais que visam à prevenção ou tratamento, baseado no que há de atual em intervenção nessa área. Por esse motivo, o livro é recomendado não apenas para psicólogos clínicos que seguem o referencial psicanalítico, mas para todos os profissionais que estão de alguma forma envolvidos com tratamento de situações potencialmente violentas, sejam eles terapeutas, médicos, gerentes de banco, advogados, entre outros.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: fabianokm@yahoo.com

Recebido em junho de 2005
Aprovado em junho de 2005

 

 

Sobre o autor:

1 Fabiano Koich Miguel é psicólogo, especialista em Psicologia do Trânsito e mestrando em Psicologia pela Universidade São Francisco.