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Latin American Journal of Fundamental Psychopathology On Line
versão On-line ISSN 1677-0358
Lat. Am. j. fundam. psychopathol. on line v.4 n.2 São Paulo nov. 2007
RESENHA
Quando eles também são “cronicamente inviáveis”
Sérgio Medeiros*
Universidade Santa Úrsula
PUC-Rio
Université Denis-Diderot Paris 7
A cidade está tranqüila (La ville est tranquille. Drama. França, 2000) Direção de Robert Guédiguian. Com Ariane Ascaride, Jean-Pierre Darroussin e Gérard Meylan.
“A Cidade está Tranqüila” é um recorte assustador da vida cotidiana na segunda maior cidade da França. Marselha só é a bela e plácida ville nas cenas iniciais do filme que apresentam-na à distância. Vista assim do alto até poderia inspirar uma versão da poesia de Paulinho da Viola... porém, quando a câmara de Robert Guédiguian deixa-nos com os pés no chão, não demoramos a perceber a crueza do espetáculo que assistiremos. Na peixaria que aterrizamos vemos Michelle (Ariane Ascaride) manipulando os peixes, enfiando os dedos gelados nos olhos deles. Aliás, furar o olho alheio é prática corriqueira entre os órfãos da contemporânea e globalizada Marselha. Não tivesse ela emprestado seu nome ao hino francês jamais se poderia imaginar que foi de lá que os jovens da pátria levantaram a nação em busca de igualdade, solidariedade e fraternidade. Talvez não tenha sido mera coincidência, pois o tema de “A Cidades está Tranqüila” é exatamente este: o que acontece a um agrupamento humano quando estes três valores são suprimidos. A resposta apresentada pelo cineasta francês é contundente: o horror.
O sonho da igualdade, que um dia foi vermelho, empalidece no cantarolar do motorista que fura a greve dos portuários para tentar sobreviver como taxista. Em francês, inglês ou alemão o resultado é o mesmo. As estrofes, outrora arrebatadoras, da Internacional, soam patéticas e parecem prostrar ainda mais a desesperançosa operária que ele conduz.
A solidariedade, que bem poderia ser branca como a paz, que, aliás, só é branca porque esta é a cor que reúne todas as demais, tornou-se tão transparente quanto à invisibilidade de uma população que perdeu sua subjetividade.
E se a fraternidade, que é o encontro entre os irmãos, um dia foi tão azul como o horizonte que nos litorais sempre reúne o céu e o mar, na Marselha pósmoderna não há horizontes, mas apenas o abismo que nas crenças mitológicas e lendas medievais marcava o fim do mundo.
Seria, no entanto, profundamente injusto afirmar que estas três divisas da nação francesa deixaram de existir. Teimosamente elas resistem. A fraternidade resiste entre a professora de música e o imigrante africano assassinado pelos fascistas. A solidariedade resiste entre a mãe e a filha quando a primeira aceita prostitui-se para dar o que não deveria.
E a igualdade? Ela também parece resistir através do profundo desamparo que atinge igualmente a todos: do matador de aluguel que não suporta a violência às súplicas dilacerantes da adolescente que implora por um pouquinho mais de heroína.
O que teria acontecido à França? Perguntamos estarrecidos. Há um diálogo que parece fornecer uma pista. Não fosse uma discussão entre o casal burguês bem poderia ser um ato falho do roteirista. A sofisticada grã-fina diz ao seu aético e desanimado marido: “antes eram os revolucionários que só possuíam virtudes, hoje são os reacionários que só têm vícios... é a mesma coisa, seu discurso é igual”.
De fato, o maniqueísmo é o mesmo. E afinal a França sempre teve, no mínimo, duas almas. Dos francos-germânicos e galo-romanos aos colaboracionistas e partisans, ou de François Mitterant a Jean-Marie Le Pen os franceses nunca foram propriamente solidários, nem mesmo quando lutaram por ela, como poderiam testemunhar aristocratas e revolucionários que de Maria Antonieta à Robespierre tiveram todos, o mesmo destino: a guilhotina.
Além do deslize maniqueísta que faz do presente o inferno e do passado o paraíso, não passa despercebido um certo ranço elitista que faz a interpretação comovente de Janis Joplin, imortalizando Gershween e o rap dos negros, franceses ou americanos, embalarem as cenas mais dramáticas e horripilantes enquanto o irrepreensível europeu do leste suaviza os raros momentos de harmonia e paz com a música clássica européia.
Mas um filme não é um programa político e vale pelo tanto que nos comove. E “A Cidade está Tranqüila” é uma obra-prima neste aspecto: não conseguimos sair do cinema do mesmo jeito que entramos. Costuma-se dizer do filme que nos tirou o fôlego que ele é um soco no estômago. Este foi um pouco além: um tiro de escopeta com muito sal.
Endereço para correspondência
E-mail: s1955medeiros@hotmail.com
* Psicanalista; Doutor em Psiclogia Clínica; Diretor do IPP-Universidade Santa Úrsula. Pesquisador do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social & LIPIS da PUC-Rio. Pesquisador do Centre de Recherches Psychanalyse et Médecine (Université Denis-Diderot Paris 7 CRPMPandora)