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Avaliação Psicológica

versão impressa ISSN 1677-0471versão On-line ISSN 2175-3431

Aval. psicol. vol.21 no.2 Campinas abr./jun. 2022

https://doi.org/10.15689/ap.2022.2102.18942.08 

ARTIGOS

 

Construção e Evidências de Validade do Inventário de Comportamentos do Jeitinho (ICJ)

 

Construction and Validity Evidence for the Brazilian Jeitinho Behavior Inventory (BJBI)

 

Construcción y Evidencias de validez del Inventario de Comportamiento del Jeitinho (ICJ)

 

 

Gustavo Henrique Silva de SouzaI; Jorge Artur Peçanha de Miranda CoelhoII; Germano Gabriel Lima EstevesIII

IInstituto Federal do Norte de Minas Gerais, Teófilo Otoni-MG, Brasil https://orcid.org/0000-0002-4046-9669
IIUniversidade Federal de Alagoas, Maceió- AL, Brasil https://orcid.org/0000-0002-0021-5963
IIIUniversidade de Rio Verde, Rio Verde-GO, Brasil https://orcid.org/0000-0002-1851-4603

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O "jeitinho brasileiro" tem sido conceituado como um comportamento inteligente desenvolvido para a resolução de problemas cotidianos. Desde então, esforços para compreensão desse fenômeno vêm ressaltando a dificuldade de sua mensuração. Assim, este estudo teve por objetivo construir uma medida que avalie e mapeia os comportamentos relacionados a esse construto: o Inventário de Comportamentos do Jeitinho (ICJ). Foram desenvolvidos dois estudos visando operacionalizar e construir os itens do instrumento (Estudo 1) e aferir evidências de validade fatorial e consistência interna em uma pesquisa com 203 participantes (Estudo 2). O instrumento apresenta validade fatorial e consistência interna, compondo-se por 30 itens subdivididos em dois fatores: Vantagens ilegais e antissociais (fator 1) e Eficiência através da informalidade (fator 2). Este estudo fornece uma ferramenta empírica complementar sob uma perspectiva específica para os comportamentos do "jeitinho brasileiro".

Palavras-chaves: jeitinho brasileiro; psicologia transcultural; cultura brasileira; validade; psicometria.


ABSTRACT

Brazilian Jeitinho has been conceptualized as an intelligent behavior developed for the resolution of everyday problems. Efforts to understand this phenomenon have highlighted the difficulty of its measurement. This study aimed to develop a measure that evaluates and maps the behaviors related to this construct: the Brazilian Jeitinho Behavior Inventory (BJBI). Two studies were developed to operationalize and construct the instrument's items (study 1) and to assess evidence of factor validity and internal consistency in a study with 203 participants (study 2). The instrument presented factor validity and internal consistency, consisting of 30 items subdivided into 2 factors: Illegal and antisocial advantages (factor 1) and Efficiency through informality (factor 2). This study provides a complementary empirical tool with a specific perspective for Brazilian Jeitinho behavior.

Keyword: brazilian jeitinho; transcultural psychology; Brazilian culture; validity; psychometrics.


RESUMEN

El jeitinho brasileño se conceptualiza como un comportamiento inteligente desarrollado para solucionar problemas cotidianos. Desde entonces, los esfuerzos por comprender este fenómeno han puesto de manifiesto la dificultad de medirlo. Por lo tanto, el estudio tuvo como objetivo construir una medida que evalúe y mapee los comportamientos relacionados con este constructo: el Inventario de Comportamiento del Jeitinho (ICJ). Fueron desarrollados dos estudios para ejecutar y construir los ítems del instrumento (estudio 1) y evaluar evidencias de validez factorial y consistencia interna en una investigación con 203 participantes (estudio 2). El instrumento presenta validez factorial y consistencia interna, constando de 30 ítems subdivididos en 2 factores: Ventajas ilegales y antisociales (factor 1) y Eficiencia a través de la informalidad (factor 2). Este estudio proporciona una herramienta empírica complementaria desde una perspectiva específica para los comportamientos del jeitinho brasileño.

Palabras clave: jeitinho brasileño; psicología transcultural; cultura brasileña; validez; psicometria.


 

 

Estabelecido como ethos básico da cultura brasileira, o Jeitinho Brasileiro (em inglês, Brazilian way ou Brazilian Jeitinho) tornou-se condição sine qua non para uma definição geral do povo brasileiro (ver, Almeida, 2007; Barbosa, 2006; DaMatta, 1984, 1990). A depender do contexto, o Jeitinho tende a ter uma conotação tanto positiva (p.ex., quando relacionadas à troca de favores e ao uso da simpatia), quanto negativa (p.ex., quando relacionadas à obtenção de vantagens antiéticas ou ilegais e ao uso da malandragem), o que caracteriza a ambiguidade desse comportamento multifacetado (Ferreira et al., 2012; Pilati et al., 2011).

O uso estratégico e recorrente da simpatia e da compensação, da quebra de normas sociais e da trapaça, por exemplo, não são práticas somente da população brasileira (ver, Duarte, 2006; Hofstede et al., 2010; Nishioka & Akol, 2019). Práticas semelhantes podem ser encontradas em diferentes contextos culturais, sob a forma de estratégias de influência social informais. O Guanxi, por exemplo, define um comportamento de troca de favores e relações de poder no contexto social e político entre indivíduos chineses conectados em redes de influência, presente especialmente no meio organizacional (ver, Taormina & Gao, 2010; Zhou et al., 2020). Na cultura árabe, a prática Wasta apresenta similaridade com o Guanxi, que se traduz em outras culturas de língua inglesa sob o termo "pull strings" - em português, "mexer os pauzinhos" (Smith et al., 2012).

Essas estratégias de influência social representam apenas parte dos comportamentos do Jeitinho Brasileiro, que não se resumem às relações sociais. Práticas cotidianas de criatividade (a partir de um nível positivo), bricolagem, adaptações, atalhos e fraudes (chegando a um nível negativo) se caracterizam também como comportamentos associados ao Jeitinho - inteligência e esperteza utilizadas para a resolução de problemas e intempestividades (Ferreira et al., 2012; Miura et al., 2019; Pedroso et al., 2009).

Empiricamente, o construto aparenta ordem circunstancial, porém, sua estrutura psicológica tem sido remetida a explicações no desengajamento moral, na personalidade, na dominância social, na crença no mundo justo ou nos valores humanos (ver, Farias, 2018; Fernandes et al., 2015; Gouveia et al., 2015; Seabra et al., 2012). Isso ocorre devido às diversas barreiras empíricas associadas a esse construto e, embora ascenda social e culturalmente, por ser um comportamento, recai-se sobre a Psicologia a sua compreensão.

Por conta disso, na literatura, verificam-se esforços para a compreensão desse fenômeno por meio de sua teorização (p. ex., Almeida, 2007; Amado & Brasil, 1991; Barbosa, 2006; Duarte, 2006; Motta & Alcadipani, 1999) e, mais recentemente, por meio de sua mensuração (p. ex., R. A. Fernandes & Hanashiro, 2015; Ferreira et al., 2012; Miura et al., 2012; Miura et al., 2019). Tais medidas, até então existentes, têm partido de afirmativas ou cenários hipotéticos atribuídos a outros indivíduos, avaliando-se a probabilidade desses cenários se aplicarem ao respondente em algum grau ou contexto, na tentativa de dirimir efeitos da desejabilidade social. Também, verifica-se o uso de estratégias de identificação de características possivelmente correlatas a comportamentos do Jeitinho, especialmente relacionadas à criatividade, à simpatia, à adaptação, à informalidade e à malandragem. Lacunas sobre a avaliação autodescritiva para esse tipo de comportamento são perceptíveis.

Diante do exposto, este estudo tem por objetivo construir uma medida que avalie e mapeie os comportamentos relacionados ao construto do Jeitinho Brasileiro, reunindo evidências de validade fatorial e consistência interna. Ainda que a mensuração desse construto pautada em instrumentos de autorrelato apresente limitações, evidências empíricas precisam ser colhidas, sendo o instrumento aqui desenvolvido um passo inicial. Para a consecução do objetivo proposto, são apresentados dois estudos: (1) Operacionalização, construção e avaliação dos itens do instrumento proposto; e (2) Obtenção dos parâmetros de validade fatorial e consistência interna do instrumento.

 

Estudo 1: Operacionalização, Construção e Avaliação dos itens do Instrumento

Procedimentos Iniciais

A primeira etapa para a construção do instrumento proposto foi definir uma estrutura teórica e metodológica que fosse funcional e que pudesse reunir evidências empíricas adequadas. Em termos teóricos, estudos de Pilati et al. (2011) e Ferreira et al., (2012) confluem para a distinção do Jeitinho Brasileiro em características específicas: (1) empatia interpessoal; (2) compensação; (3) quebra de regras sociais; (4) criatividade; (5) malandragem; (6) relações de poder; e (7) causar danos à outrem.

Em termos metodológicos, no entanto, desenvolver um instrumento - especificamente para os comportamentos do Jeitinho Brasileiro - livre de vieses e da influência da desejabilidade social, é um desafio iminente em todos os níveis e etapas de sua construção. Nesse caso, os esforços se fixam na minimização do efeito desse enviesamento instituído pela própria natureza do construto.

Dentre as opções clássicas, avaliar atitudes, emoções, crenças ou autoconceito frente aos comportamentos do "jeitinho brasileiro" apresentavam problemas empíricos, visto que o jeitinho é um comportamento que se manifesta de forma ativa ou passiva, sob um caráter positivo ou negativo, considerando diferentes contextos. Um exemplo disso seria um indivíduo que realiza o comportamento de furar a fila em uma determinada situação, sem apresentar culpa; pode, em outro momento, denotar uma emoção negativa a outra pessoa que tenta furar a fila. Da mesma forma, comportamentos corruptos, como a compra de produtos piratas ou sem nota fiscal, podem ser conotativamente errados - no sentido de ilegal ou antiético - na mente do respondente, ainda que este os realize sem a presença de culpa.

A alternativa metodológica utilizada foi a criação de itens que apresentassem possíveis comportamentos cotidianos do respondente (p.ex., "Furar fila" ou "Guardar um lugar para alguém que ainda vai chegar") e que deveriam ser classificados conforme a frequência com que o comportamento é realizado: 0 (zero) = Nunca fiz a 10 (dez) = Sempre faço. Essa estratégia se baseou na nulidade do número "zero" para representar um comportamento nunca realizado pelo respondente, prevendo-se que haveria uma tendência dos respondentes a endossarem baixos valores. Isto é, em casos de negação ao próprio comportamento realizado, o indivíduo tenderia a responder "1" (um) - indicando que já realizou o comportamento em algum momento -, ao invés de "0" (zero). Considerou-se que, variavelmente, o respondente pode mentir, omitir ou mesmo não reconhecer como seu aquele comportamento - ainda que eventualmente o realize. De tal modo, pôde-se trabalhar com duas linhas de raciocínio: (1) verificação dos comportamentos realizados e (2) definição de uma tipologia comportamental de acordo com os graus de realização do comportamento.

Assim, com base nas características supracitadas do Jeitinho Brasileiro, foram intuídos 59 itens, norteados pelos critérios recomendados por Pasquali (2013), para compor a primeira versão do instrumento, intitulado: Inventário de Comportamentos do Jeitinho (ICJ). Após a criação dos itens, estes foram submetidos a duas etapas iniciais de avaliação: validade de conteúdo e validade semântica, para que, então, pudesse-se contar com uma versão inicial do instrumento proposto e submetê-lo à identificação dos parâmetros psicométricos por meio da AFE e consistência interna.

Validade de Conteúdo

A Validade de Conteúdo foi realizada por meio da análise de 8 (oito) juízes, os quais três psicometristas (1 (um) doutor em psicologia experimental, 1 (um) doutor em psicologia social e 1 (um) doutorando em psicologia cognitiva), quatro professores na área de comportamento organizacional (1 (um) doutor em engenharia de produção e três doutores em administração) e 1 (um) pesquisador na área de Jeitinho Brasileiro (doutor em Sociologia). Inicialmente, foi apresentada aos juízes a definição do construto estabelecido como Jeitinho. Os juízes foram requeridos a indicar como adequada ou inadequada a representação comportamental do item, considerando os critérios estabelecidos por Pasquali (para mais detalhes ver, Pasquali, 2013).

A decisão sobre permanência dos itens se baseou na concordância de pelo menos 80% entre os juízes (Pasquali, 2013) que, para esta análise, significou uma concordância entre pelo menos seis dos oito juízes participantes da validação de conteúdo. Como resultado, 17 itens foram pontuados como "inadequado", restando 42 itens para as análises seguintes.

Validade Semântica

A validade semântica foi realizada por meio de uma análise de inteligibilidade dos itens, em que se buscou verificar se eles foram construídos expressando o comportamento de forma clara e sem deixar dúvidas de interpretação (Pasquali, 2013). Para essa etapa, contou-se com quatro participantes de escolaridade até o Ensino Médio, 1 (um) estudante universitário, 1 (um) empresário e dois professores do Ensino Médio das áreas de filosofia e português. Com a avaliação semântica, três itens foram excluídos e 39 itens foram endossados como adequados para compor a versão inicial do instrumento proposto.

 

Estudo 2: Procedimentos de Validade Fatorial e Consistência Interna do Instrumento

Método

Participantes

Participaram do estudo 203 estudantes universitários, dos quais 64,5% do sexo feminino, com média de 24 anos (amplitude de 16 a 60 anos de idade; DP = 8,48). Os participantes foram oriundos de 13 Estados Federativos do Brasil, sendo os Estados com maior incidência: Minas Gerais (66,5%), Rio de Janeiro (9,35%), Alagoas (9,35%), São Paulo (3,44%) e Goiás (3,44%).

Instrumentos

Aos participantes foram requeridos responder dois instrumentos de pesquisa, sendo eles: (1) versão inicial do Inventário de Comportamentos do Jeitinho (ICJ), com 39 itens, respondidos em uma escala de 11 (onze) pontos, variando de 0 = Nunca fiz a 10 = Sempre faço; e (2) um questionário sociodemográfico.

Procedimentos

A aplicação do ICJ (com 39 itens randomizados) foi dada por acessibilidade, com amostragem de conveniência não probabilística, em que os participantes foram solicitados de forma individual, presencial e online via Google Forms, a responderem aos instrumentos, no período entre janeiro e junho de 2016. Foi garantido o caráter voluntário da participação por meio da concordância de um termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), o anonimato e o sigilo das respostas, bem com o respeito às diretrizes éticas que regem a pesquisa com seres humanos (CAAE: 52761616.7.0000.5588).

Análises de Dados

Por meio do executável Factor v10.10.03, foi realizada uma análise fatorial exploratória (AFE) utilizando-se a matriz de correlação policórica, com o método de extração Robust Diagonally Weighted Least Squares (RDWLS) (Asparouhov & Muthen, 2010). Para decisão sobre a quantidade de fatores a serem retidos, foi realizada uma Análise Paralela (Timmerman & Lorenzo-Seva, 2011) e a rotação utilizada foi a Promax. Para o cálculo da confiabilidade dos fatores foi utilizado o software JASP (v.0.13.0.0), sendo calculados o coeficiente de alfa de Cronbach (α), o índice de Confiabilidade Composta e o ômega de McDonald.

 

Resultados

Inicialmente, constatou-se a fatorabilidade da matriz por meio do teste Kaiser-Meyer-Olkin (KMO), que se demonstrou aceitável (0,83), e do teste de esfericidade de Bartlett (χ2(741) = 2177,9; p = 0,000). Para identificar o número de fatores na matriz de correlações, utilizaram-se o critério de Kaiser-Guttman, que indicou um modelo de três fatores, com eigenvalues de 12,30, 2,64 e 2,08 e variâncias explicada de 31,55%, 6,78% e 5,35% respectivamente. Análise Paralela (AP) também corroborou com o modelo de três fatores (Real-data eigenvalues: 33,15, 7,03 e 5,53) (Timmerman & Lorenzo-Seva, 2011). Diante desses resultados, foram realizadas AFEs utilizando-se a matriz de correlação policórica, com o método de extração RDWLS (Asparouhov & Muthen, 2010), fixando o número de fatores em três e com rotação Promax. Nessas AFEs, três itens (17, 19, 25) foram excluídos por apresentarem cargas fatoriais inferiores a 0,30 em todos os fatores, e seis itens (09, 12, 18, 20, 21, 28) foram excluídos por apresentarem cargas fatoriais cruzadas (Hair et al., 2010).

Após essa etapa, tendo em vista a exclusão de um número elevado de itens, optou-se por analisar novamente o critério de critério de Kaiser-Guttman, que dessa vez indicou um modelo de dois fatores, com eigenvalues de 10,10 e 2,40 e variâncias explicada de 31,58% e 7,51% respectivamente. Em concordância, a Análise Paralela (AP) também indicou um modelo de dois fatores (Real-data eigenvalues: 34,12 e 7,87) (Timmerman & Lorenzo-Seva, 2011).

Dessa forma, foi realizada novamente uma AFE utilizando-se a matriz de correlação policórica, com o método de extração RDWLS (Asparouhov & Muthen, 2010), fixando o número de fatores em dois e com rotação Promax. As cargas fatoriais dos itens, nos seus respectivos fatores, são apresentadas na Tabela 1, juntamente com os valores de alfa de Cronbach e os índices de confiabilidade composta e H (H-Latent).

A estrutura fatorial do ICJ ficou composta de dois fatores. O fator 1, pela leitura dos itens, pode ser nomeado de "Vantagens ilegais e antissociais" por cobrir condutas de quebra de leis e/ou normas sociais para alcançar alguma vantagem, responsável por 32,12% da variação total, composto por 20 itens (01, 02, 04, 05, 06, 07, 08, 10, 13, 22, 24, 29, 30, 31, 32, 35, 36, 37, 38, 39). O fator 2, pela leitura dos itens, pode ser nomeado de "Eficiência através da informalidade" por cobrir condutas que abrangem a maximização de um ganho específico por meio da informalidade, responsável por 7,80% da variação total, composto por 10 itens (03, 11, 14, 15, 16, 23, 26, 27, 33, 34).

Com relação à confiabilidade desses fatores, os índices foram considerados satisfatórios para o fator 1 (α = 0,88; CC = 0,92; ω = 0,88) e o fator 2 (α = 0,72; CC = 0,74; ω = 0,72). Ademais, o H-index, que indica o quanto os fatores da AFE são replicáveis em estudos futuros (H < 0,80) (Ferrando & Lorenzo-Seva, 2018), apontou que o fator 1 (H = 0,93) e o fator 2 (H = 0,81) são replicáveis.

 

Discussão

O objetivo deste estudo foi desenvolver um instrumento de pesquisa comportamental-cultural para avaliar e mapear comportamentos relacionados ao "jeitinho", focado na identificação de perfis típicos brasileiros, aplicando-se a qualquer indivíduo: o Inventário de Comportamentos do Jeitinho (ICJ). As análises mostraram evidências de parâmetros psicométricos adequados de validade fatorial e consistência interna do ICJ, com uma solução de 30 itens, revelando uma lógica explicativa pautada em duas dimensões que ressaltam a obtenção de ganhos (fator 1 - "Vantagens ilegais e antissociais") e a maximização de ganhos (fator 2 - "Eficiência através da informalidade").

O fator 1 apresenta itens que descrevem comportamentos malandros (aqui compreendidos como ilegais ou antissociais), os quais visam atingir objetivos pessoais que coloquem o indivíduo em algum tipo de vantagem que este não obteria caso não adotasse esse comportamento. Por outro lado, o fator 2 apresenta itens que descrevem comportamentos de caráter informal para potencializar ganhos pessoais, isto é, ser relativamente mais eficiente do que seria caso tivesse optado pelo comportamento formal, conduta legal ou socialmente desejável.

Retomando o conceito anteriormente definido, o Jeitinho se mostra intrinsecamente relacionado a comportamentos baseados em empatia interpessoal, favores, criatividade, adaptações, atalhos e fraudes para resolver situações do cotidiano. Colar em uma prova, inventar uma história para se safar de um problema, atravessar a rua fora da faixa de pedestre, ou furar a fila são exemplos desse tipo de comportamento.

A fila, por exemplo, é um sistema social, cuja normatização é baseada em uma convenção de boas maneiras e de regras básicas de convivência em sociedade. O comportamento de furar a fila - enquanto comportamento de quebra de uma norma social - pode proporcionar um sentimento de vantagem, satisfação ou poder à pessoa que realiza o comportamento (Iglesias & Gunther, 2007, 2009).

Por outro lado, quanto aos comportamentos informais, a noção de limite ético se confunde com o limite da legalidade, tornando a transgressão às normas sociais, por exemplo, aceitável. Essa interposição, ou confusão conceitual, entre o errado aceitável e o errado inaceitável é o reflexo de uma condição de adaptabilidade da identidade social (Fernandes et al., 2015, Zimmermann, 2009). Os costumes, a cultura e o ambiente social estabelecem os limites da desonestidade e do comportamento desviante ou corrupto. Significa que os limites morais e éticos são determinados pelo aspecto cultural geral - e a sua ruptura está no quanto uma sociedade aceita tais comportamentos (ver, Fischer et al., 2014; Gächter & Schulz, 2016).

No Brasil, considerando um país com um sistema político, burocrático e fiscal ineficiente, em que a corrupção se tornou prática comum e recorrentemente sem punição, as pessoas passaram a crer de forma generalizada que estão em situação onerosa, cujo prejuízo é contínuo e incorrigível - altos impostos, pobreza, falta de infraestrutura em saúde, segurança e educação etc. O jeitinho, portanto, parece se desenvolver como uma forma de contestação coletiva ao sentimento de prejuízo, sendo os comportamentos relacionados a essa prática o meio de se obter algum tipo de compensação ou reparação associada.

Este estudo fornece uma ferramenta empírica complementar sob uma perspectiva específica para os comportamentos do Jeitinho: descreve comportamentos cotidianos comuns à grande maioria das pessoas. Embora os comportamentos do Jeitinho não se resumam a esses apresentados (e provavelmente incluem aqueles comportamentos que foram suprimidos com a análise de validade do instrumento), aqui, o construto é representado por meio de duas noções básicas explicativas: o uso da malandragem para estar em vantagem e o uso da informalidade para ser mais eficiente no dia a dia. Significa que os comportamentos do jeitinho são basicamente realizados para a obtenção e a maximização de ganhos.

Como limitações deste estudo, destaca-se inicialmente a base teórica analisada, que se estabelece em uma abordagem êmica, perfazendo uma investigação da perspectiva do indivíduo dentro do grupo social e sua cultura subjacente. Basicamente, trata-se do Jeitinho como um construto sociocultural, em que suas características ora se assemelham a padrões comportamentais universais e ora se apresentam com idiossincrasias de um comportamento coletivo comum no contexto brasileiro.

Outra limitação do estudo é a abordagem metodológica (tamanho amostral, instrumentos utilizados e análises realizadas) que tem foco central somente na testagem de um instrumento e na aferição de sua validade fatorial e consistência interna. Em virtude disso, a interação do ICJ com outros instrumentos e a relação com outros construtos possivelmente subjacentes não são testadas. Isto é, o trabalho produz unicamente evidências relativas ao construto, sem explorar indicadores de validade convergente, divergente ou preditiva - cabendo-se estudos complementares com amostras mais robustas.

Portanto, dentro das limitações apontadas, apresenta-se a necessidade de explicação do fenômeno do Jeitinho Brasileiro frente a outros construtos e mediadores, como os valores humanos, o desengajamento moral, a dominância social, a adaptabilidade cognitiva, as crenças no mundo justo etc. Também, a moderação da desejabilidade social pode fornecer uma explicação complementar ao padrão de resposta ao Jeitinho Brasileiro. Procedimentos de validade fatorial confirmatória se apresentam como demandas para estudos futuros em novas amostras, bem como o estabelecimento de parâmetros de normatização para o uso adequado da ferramenta.

 

Agradecimentos

Os autores agradecem ao IFNMG pelo financiamento de bolsas de pesquisa.

Financiamento

Não há dados do processo.

Declaração de participação da elaboração do manuscrito

Declaramos que todos os autores participaram da elaboração do manuscrito. Especificamente, os autores Gustavo Henrique Silva de Souza e Jorge Artur Peçanha de Miranda Coelho participaram da redação inicial do estudo - conceitualização, investigação, visualização, todos os autores participaram da análise dos dados, e os autores Jorge Artur Peçanha de Miranda Coelho e Germano Gabriel Lima Estevesparticiparam da redação final do trabalho - revisão e edição.

Disponibilidade dos dados e materiais

Todos os dados e sintaxes gerados e analisados durante esta pesquisa serão tratados com total sigilo devido às exigências do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos. Porém, o conjunto de dados e sintaxes que apoiam as conclusões deste artigo estão disponíveis mediante razoável solicitação ao autor principal do estudo.

Conflito de interesses

Os autores declaram que não há conflitos de interesses.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Gustavo Henrique Silva de Souza
Rua Mocambi, 295, IFNMG, Bairro Viriato
Teófilo Otoni-MG, CEP: 39.800-430
e-mail: gustavo.souza@ifnmg.edu.br

Recebido em outubro de 2019
Aprovado em setembro de 2021

 

 

Nota sobre os autores
Gustavo Henrique Silva de Souza. Bacharel em Administração e Mestre em Psicologia. Atualmente, professor do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais e Diretor de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação.
Jorge Artur Peçanha de Miranda Coelho. Licenciado em psicologia (UFPB), doutor em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Atualmente, é Professor Associado da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Alagoas.
Germano Gabriel Lima Esteves. Psicólogo (UFAL), doutorando no Programa de Pós-graduação em Psicologia Organizacional e do trabalho (PPG -PSTO/UnB). Atualmente, é Adjunto II na UniRV e coordenador do Laboratório de Avaliação Psicológica de Rio Verde

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