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Psicologia em Revista
versão impressa ISSN 1677-1168
Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.11 n.17 Belo Horizonte jun. 2005
ARTIGOS
Perdas e ganhos do envelhecimento da mulher*
Losses and gains in the aging of women
Márcia de Mendonça Jorge**
Instituto de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
RESUMO
O presente artigo é um relato da pesquisa que embasou nossa dissertação de mestrado, em que procuramos conhecer as trajetórias de vida de mulheres de meia-idade, a fim de compreender as maneiras como elas vivem e lidam com o envelhecimento. Analisamos a trajetória e a identidade de mulheres com idade entre 50 e 60 anos, da população urbana de Belo Horizonte, com as seguintes características: casadas, solteiras e viúvas, com ou sem filhos, que trabalham e que não trabalham fora do lar e com escolaridade entre o 1º. grau completo e o superior. Procuramos compreender a maneira como elas lidam, durante esse período da vida, com a perda das referências identificatórias mais comuns para a mulher & a maternidade e o objeto do desejo do outro &, e pesquisamos outras referências que elas encontram para si mesmas e sobre suas realizações na maturidade.
Palavras-chave: Mulher, Envelhecimento, Referências identificatórias, Maternidade, Objeto do desejo.
ABSTRACT
This article is a report of the research ‘Losses and gains in the aging of women’, where we tried to learn middle-age women’s life pathways, in order to understand how they live and deal with aging. We analyzed the pathways and identities of ten women between 50 and 60 years of age of the urban population of Belo Horizonte, with the following characteristics: married women, single women and widows, with or without children, working and not working, with a senior high-school level and higher education degree. We tried to understand the ways they deal with the loss of the commonest identifying references to women &maternity and the other’s object of desire. Investigation was carried out about other references they find for themselves, and about their fulfillments in maturity.
Keywords: Woman, Aging, Identifying references, Maternity, The other’s object of desire.
O tema deste trabalho é fruto de longa prática clínica, de indagações que, ao longo de nossa vida profissional e de nossos estudos, têm focalizado algumas questões que afligem as mulheres de meia-idade, especialmente o envelhecimento feminino, as perdas que ocorrem nesse período e os possíveis ganhos e, ainda, as perspectivas, nos dias atuais, para a mulher que envelhece.
A pesquisa que resultou dessas indagações teve como objetivo conhecer as experiências de envelhecimento de mulheres com idades entre cinqüenta e sessenta anos das camadas médias da população de Belo Horizonte. Procurou-se investigar a maneira como elas lidam com o próprio envelhecimento e com a perda das referências identificatórias mais comuns para a mulher, tais como a maternidade e o suposto lugar de objeto de desejo do outro.
A pesquisa de campo foi realizada mediante entrevistas sobre a história de vida dessas mulheres, tendo sido focalizados os processos de envelhecimento, as perdas e lutos vivenciados, bem como suas relações com aquilo que representam como “ser mulher”. A pesquisa permitiu que interrogássemos sobre as saídas e as possibilidades para novas identificações, durante o processo de envelhecimento, na medida em que as vias ou as referências mais comuns se encontram definitivamente barradas para as mulheres nessa etapa de sua existência. Nesse caso, investigamos outras referências que as mulheres porventura construíram para si mesmas, a fim de manter o sentido de continuidade e permanência, no processo de construção de sua identidade.
A pesquisa teórica incluiu, primeiramente, uma revisão histórica sobre a mulher brasileira no século XX, e, principalmente na segunda metade do século, período que coincide com a maior parte da vida das entrevistadas. Sabemos que o século XX, especialmente a segunda metade, foi um período de grandes transformações na sociedade e de grandes conquistas alcançadas pelas mulheres. O grupo entrevistado viveu sua juventude nas décadas de 60 e 70, quando recrudesceram os movimentos feministas, a revolução sexual e a revolução dos costumes por que passou a sociedade brasileira, na leva de outros países ocidentais. Principalmente para a mulher, tais mudanças foram enormes: os sujeitos de nossa pesquisa, que nasceram entre 1940 e 1950, foram criados sob um véu de normas e padrões rígidos de comportamento que os restringiam quase exclusivamente ao meio doméstico e familiar.
Tomamos a teoria psicanalítica freudiana, considerada por Benjamin (1998) como explicativa do que foi outrora aceito: a gênese da estrutura psíquica na qual uma pessoa representa o sujeito e a outra serve como seu objeto. Para a autora, a evolução da estrutura psíquica mostra como ela é formada e sua premissa de dominação. A desigualdade entre os gêneros é revelada se considerarmos diversas situações, entre as quais o relacionamento mãe-filho dentro do erotismo adulto, a consciência precoce da diferença entre mãe e pai, até as imagens globais de homem e mulher (masculino e feminino) construídas em âmbito cultural. Fundamentalmente, essas posturas moldam o diferente destino das crianças & homens e mulheres. Assim, as meninas se identificam com o objeto, e os meninos, com o sujeito, na teoria psicanalítica do complexo de Édipo. A mãe, identificada com o objeto de desejo do homem, seu marido, e com a maternidade, será objeto primário de identificação das meninas, assim como o pai, identificado como sujeito de desejo e com o ambiente exterior ao lar, será objeto primordial de identificação dos meninos.
Pensamos como a maioria dos estudiosos do gênero e da psicanálise, isto é, que ninguém nasce homem ou mulher, mas nascem seres humanos com características sexuais femininas ou masculinas. O tornar-se homem ou mulher, com os atributos que identificam cada gênero é um processo que acontece no decorrer da história do sujeito no mundo onde vive.
A teoria freudiana ensejou-nos compreender os mecanismos de identificação que permitirão a construção da identidade feminina e masculina com base na vivência do conflito edípico, a partir da entrada do pai na relação dual da criança com sua mãe, e do rompimento da simbiose mãe-filho, da introdução da castração e da falta, e permitiu à criança a sua identificação de gênero. Os estudiosos do gênero (Gilligan, 1982; Rocha-Coutinho, 1994; Besse, 1999) fundamentaram nossa pesquisa e observação de que o convívio maior da menina com sua mãe proporciona a ela modelos para identificação mais significativa e mais intensa com mulheres em seus papéis femininos, principalmente de “maternação”. Esses modelos, que são construídos histórica e culturalmente, é o que chamamos de referência identificatória, ou seja, modelos mais comumente aceitos e valorizados pela sociedade.
Enfocamos duas das referências identificatórias mais comuns no mundo atual, que são a maternidade e o desejo de ser amada pelo outro. Com relação à referência identificatória da mulher de desejar ser desejada pelo outro, Freud (1925) afirma que a mulher é narcisista, isto é, quer ser amada, quer ser antes de tudo, escolhida, eleita. Chasseguet-Smirgel (1975) declara que a mulher deseja freqüentemente obter satisfações narcisistas: dar-se sexualmente para receber o amor de um homem, adornar-se, como forma de investir seu ego corporal, suporte material de sua vida amorosa. Consideramos que, no seu estado de desamparo, de falta de reconhecimento, a mulher necessita do outro para se afirmar, sentir-se amada e ser reconhecida.
Freud (1931) assegura que a feminilidade constitui-se essencialmente na maternidade, posição esta que se torna problemática no contemporâneo, visto que observamos inúmeras mulheres que não desejam ser mães e haver, no mundo atual, outras possibilidades de realização e de identificação para a mulher.
Com o envelhecimento, de acordo com Messy (1993), ocorrem as perdas das referências identificatórias, e também a perda da juventude, da beleza física e da saúde plena. Dessa maneira, as possibilidades para o sujeito podem constituir- se em experiências adaptativas e criativas de lidar com as perdas, utilizando- se de mecanismos de defesa adaptativos e até de formas sintomáticas e patológicas de lidar com elas. A maneira de encarar o envelhecimento e a velhice parece depender, além de aspectos individuais, de um conjunto de fatores introjetados da realidade social, econômica e cultural na qual o sujeito está inserido.
As teorias contemporâneas que visam à compreensão do processo de vida do indivíduo ao longo de sua biografia entendem esse trajeto de vida como resultado de progressões e regressões, de perdas e ganhos, de continuidades e rupturas. E também enfocam o ser humano concebido singularmente dentro de processos mais amplos da história e da cultura. Esses estudos (Fooken, 1985; Olbrich, 1985; Taylor; Ford, 1981, citados por Munnichs et al., 1985) nos apresentam uma visão otimista e maiores possibilidades para os velhos e para a velhice. Há, sim, inúmeras perdas, físicas, psicológicas e sociais. Mas há também ganhos e aquisições. Existe hoje maior divulgação dos resultados desses estudos, e políticas poderão ser implementadas valendo-se deles. Acreditamos ainda que o progressivo aumento do número de pessoas velhas contribui, de maneira positiva, certamente, para a mudança na percepção da velhice e na atitude em relação aos velhos.
Nesse contexto, a maturidade e o envelhecimento são considerados não apenas como processos individuais, mas também como parte do processo de vida do ser humano. Analisamos ainda as mudanças e transformações que ocorrem nessa fase. As mudanças incluem perdas físicas, cognitivas e sociais que fazem emergir novas emoções e sentimentos com os quais o indivíduo terá de lidar nessa fase da vida. Entendemos que há também ganhos emocionais e cognitivos. De toda forma, o que desejamos ressaltar é que o ser humano é único e singular e, portanto, sua vivência e sua história também são únicas e particulares, devendo ser analisadas sob essa perspectiva, dentro do contexto mais amplo de sua história social. Considerando o indivíduo que envelhece & em particular a mulher & numa época que se volta para valores efêmeros de consumo, produtividade e um padrão estético da juventude, quais seriam as suas possibilidades de continuidade e permanência nesse momento de perdas graduais e sucessivas? Essa foi a questão a que desejamos responder com nossa pesquisa.
Consideremos as perdas vivenciadas no processo de envelhecimento, as transformações sofridas nesse percurso, a impossibilidade de realização da mulher de meia-idade, mediante a maternidade (perene referência cultural para sua identificação) e, também, a concepção de que o corpo é o mediador entre a psiquê e o mundo, meio pelo qual se reconhece e se identifica o sujeito. De posse desses elementos, cabe uma pergunta: diante da perda das referências identificatórias mais comuns para a mulher de meia-idade, quais seriam as vias possíveis de novas identificações?
Utilizamos o método de história de vida pelo fato de ser uma abordagemcompreensiva e integrativa, que nos permitiu interpretar as transições individuais como parte de um processo contínuo e interativo de mudança histórica. Dessa maneira, a abordagem utilizada tentou vincular as biografias individuais aos comportamentos coletivos, como integrantes de um processo de mudança histórica.
O estudo que empreendemos foi uma pesquisa de campo exploratória. Por meio de entrevistas com dez mulheres da faixa etária entre 50 e 60 anos, das camadas médias urbanas da população de Belo Horizonte, procuramos conhecer sua história de vida, focalizando os processos de envelhecimento, as perdas e lutos vivenciados e suas relações com períodos anteriores, relacionados aos papéis de mulher, filha, mãe, esposa e irmã. Pelas histórias de nossas entrevistadas, buscamos encontrar formas e estilos de vida, os quais poderiam ser atualizados durante o envelhecimento da mulher.
Empenhamo-nos em pesquisar, também, as saídas e as possibilidades para novas identificações durante o processo de envelhecimento, na medida em que outras vias se encontram definitivamente barradas para as mulheres, nessa etapa.
A análise das histórias de vida das entrevistadas foi realizada tomando por base as cinco categorias comentadas a seguir.
AMBIVALÊNCIAS DO ENVELHECIMENTO
O processo de envelhecimento faz emergir sentimentos bastante ambivalentes em cada sujeito. Muitas das mulheres entrevistadas consideraram que há mudanças físicas marcantes, sentidas como perdas, principalmente da energia física e da capacidade locomotora própria da juventude. No entanto, argumentaram que também há ganhos. Daí a ambivalência da vivência do envelhecimento, ora visto como algo positivo, ora como algo negativo. Na maioria das vezes, as mudanças são sentidas como perdas. A perda da energia física é muito citada. Cansaço, fadiga, diminuição da força e falta de condicionamento físico são associados ao envelhecimento:
Depois de ter tirado os hormônios, por conta própria, eu sentia ao longo de um tempo, e mais o ano passado e o ano atrasado, um certo cansaço, certa fadiga, eu chamo de... um pouco de desinteresse, depressão, falta de entusiasmo em alguns momentos, eu chamo de envelhecimento (E. R., 53 anos).
A valoração negativa do envelhecimento, nesse depoimento, parece nítida, dada a relação entre os aspectos biológicos e os psicológicos. Assim, o envelhecimento é representado como “um certo cansaço, certa fadiga” associada a “desinteresse, depressão e falta de entusiasmo”.
Quando essa fase é comparada com etapas anteriores da vida, fica ainda mais clara a diferença entre elas, o que permitiu apreender o sentido do envelhecimento para as entrevistadas. Muitas delas relataram que a vida mudou bastante depois dos cinqüenta anos, sendo o envelhecimento sentido como uma carga, um peso, com uma conotação quase unicamente negativa:
(antes) ... tinha vaidade. Gostava de fazer ginástica e nadar, musculação e natação. Hoje, não faço nada e quando saio, tenho horror de voltar e ter que subir o morro. Tem três anos que eu mudei (V. M., 56 anos).
A menopausa e a perda de capacidade reprodutiva são outros fatores que também contribuem para uma conotação negativa ao processo de envelhecimento. Uma entrevistada expressa sua desilusão em não poder mais ter filhos:
Tirei o útero, as trompas e um ovário, não tenho mais regras. Outra desilusão é quando a gente pára de ficar menstruada. É desilusão, a gente parece que está envelhecendo mesmo. Aquilo, a gente não se sente mais aquela mulher poderosa... poder ter filhos, esse, o poder (M. L. O., 55 anos).
A feminilidade é, assim, muitas vezes, relacionada à maternidade. Vemos que, para M. L. O., o poder da mulher é poder ter filhos, e isso poderia ser traduzido da seguinte maneira: ser mulher é ser mãe. Se não se pode mais ser mãe, onde se encontra a mulher? Qual o seu poder? Qual o seu sentido em ser? Talvez seja isso o que outra entrevistada, E. R., queira nos transmitir quando, brincando, nos diz: “Tiraram meus recheios!”. E tudo isso é associado ao envelhecimento, daí a sua representação negativa.
Por outro lado, as perdas físicas e corporais são contrapostas a ganhos cognitivos e psicológicos. Algumas mulheres valorizaram claramente a aquisição de conhecimentos como possibilidade viável para compensar outras perdas e sofrimentos que não podem ser evitados. Nesse caso, os ganhos advindos da experiência de vida são parte dos elementos que contribuem para que o envelhecimento seja sentido simultaneamente como bom e ruim, já que as diversas perdas levam as entrevistadas a considerá-lo negativamente. A conotação é nitidamente ambivalente:
A cabeça... pode ser que quando a gente tenha mais idade, pode ser que dê esclerose, como a gente vê com as pessoas mais idosas. Mas com 40, 50 e 60 anos, você está sempre ganhando. É mais uma troca, você vai vivendo, o tempo vai passando, você vai adquirindo mais conhecimento, vai aprendendo mais. E o que você ganha na cabeça vai perdendo no corpo. Se a gente tivesse 15 anos com a cabeça que a gente tem hoje, seria maravilhoso! (E. M. F., 52 anos).
REALIZAÇÃO OU SENTIMENTO DE FRACASSO
O cotidiano das entrevistadas comporta uma multiplicidade, uma riqueza de experiências que vão se organizando desde as mais precoces etapas da existência até a maturidade, comportando sentimentos aparentemente opostos de realização e de fracasso. Tais sentimentos são vividos ao longo das etapas de vida, no meio familiar, laboral e afetivo no qual elas vivem.
V. M., 56 anos, separada pela segunda vez, teve muitos problemas nos dois casamentos, e também com os seus filhos e com os filhos do segundo marido. Tentou a vida em outro país, onde ficou por um ano, retornando depois ao Brasil, sem trabalho e sozinha. Relata que atualmente sua vida está péssima, não tem trabalho, não tem projetos nem desejos. Sente-se feia, gorda e velha. “Nunca tinha prestado atenção nisso. Quando parei de trabalhar, e de fazer tudo, passei a sentir solidão. Hoje, fico fazendo ponto de cruz, igual a uma velha”.
O sentimento de fracasso de V. M. advém, além das experiências frustrantes com os casamentos, com os filhos, com o próprio trabalho, também do fato de não ter tido uma prole numerosa, principalmente por não ter tido uma filha: “Meu sonho dourado era ser mãe, verdadeira mãe. Dez filhos. Acho que isso me deprime até hoje. Eu vivo sozinha, tenho a síndrome do ninho vazio... (chora) Tinha muita vontade de ter menina e não tive”.
Já V. R., 57 anos, tem uma avaliação realista, consciente, de seus recursos e de seus limites. É casada, não tem filhos e é aposentada. Depois de vários conflitos no relacionamento conjugal, considera que tudo faz parte da vida, e que ela e o marido alcançaram um relacionamento bom, a dois. Nas outras áreas da vida, como a profissional, sente-se um pouco frustrada, porque abandonou cedo o trabalho. Entretanto, colocou outras atividades no lugar, como fazer cursos, assistir a palestras, dançar, ler, ir ao cinema, etc.
Minha auto-estima oscila, mas é razoável e tem a ver com o que eu fiz e com o que eu deixei de fazer na minha vida... Mas eu não poderia ter feito nada diferente. Eu fiz o que eu podia, e fiz muita coisa, com os recursos que eu tenho. Então, acho que tenho uma auto-estima razoável.
Apesar de ter momentos de tristeza, de desagrado em relação a si mesma, V. R. considera o saldo positivo, associando-o ao contexto de sua própria história. Mostra-se satisfeita em relação ao casamento e à escolha de não ter filhos. O que parece fazer oscilar seus sentimentos é o abandono precoce da vida profissional. Hoje pretende voltar a investir no trabalho profissional.
LAÇOS E RELACIONAMENTOS: NOVAS FORMAS
Como vimos anteriormente, a relação com outro ser humano é fundamental para a constituição do sujeito psicológico. Na maturidade e na velhice, percebemos uma alteração de valor dos laços e relacionamentos do indivíduo: com os filhos criados, o casamento já constituído há muitos anos, ou desfeito, e, em conseqüência de uma introspecção maior no período da maturidade, os laços sociais se restringem. Contudo, continuam a ter grande significação para nossas entrevistadas. Elas nos mostram interesse em preservar as amizades e os laços sociais, em estar com o outro, nem que seja por telefone ou por e-mail: “[...] só visito alguns poucos amigos. Esses, eu acho que não se afastarão. Depois, eu prezo muito as minhas amizades, estou sempre ligando para saber notícias, e os amigos também ligam, mandam e-mails” (T. M., 50 anos).
N. S. relata que o relacionamento tanto pessoal quanto sexual com o marido foi diminuindo aos poucos, até que, com a sua cirurgia para retirada do útero e com a doença do marido, terminou por completo o relacionamento sexual. O relacionamento pessoal, segundo ela, também deixou a desejar: após 35 anos de casados, eles vivem como “parceiros”, como ela define. Vivem sob o mesmo teto, jogam o mesmo jogo, contudo, não são companheiros, não há mais amor. Mas ela se acomodou. Vemos, então, que, após longos anos de casamento, com a chegada da maturidade e, também, em decorrência da história própria de cada indivíduo, os laços com o outro se alteram, tanto no sentido de um estreitamento das relações quanto de um distanciamento.
Minhas atividades sexuais paralisaram depois de minha cirurgia (retirada do útero, com 56 anos) e da doença de I. (marido) Ele baixou o ritmo de vida, a sexualidade, e, daí, a atividade sexual foi perdendo, um afastamento natural. Antes de eu fazer a cirurgia, eu já vinha perdendo. E não iniciamos mais não. Porque ele é um homem que não conversa, e eu me acomodei. Mas se a gente puder ter um companheiro com vida sexual ativa, é algo que complementa a vida. Alguns casais conseguem isto... O ideal é que se tenha um companheiro, faz falta. Falta um companheiro, amor, afeto, sexo.
Contudo, N. S. não fica parada, apesar da “acomodação” sexual e da “acomodação” com o marido. Ela busca prazer nas amizades com outras pessoas, geralmente mais jovens:
Falta um companheiro, afeto, amor, sexo. Eu sou muito racional, o que eu faço não substitui, não há sublimação. Não tenho sexo e tenho que aprender a conviver com isso. São opções de vida... tenho muitos amigos. É um espaço que você tem para o outro e eu consegui criar esse espaço. Estou sempre fazendo amizades novas e são sempre pessoas mais jovens que eu.
METAMORFOSE
Notamos, na maturidade, a necessidade da mudança constante do indivíduo para se adaptar às transformações inexoráveis que ocorrem no ambiente, nas suas relações com os outros e em si mesmo. Rosenmayr (1982) nos fala da noção de metamorfose como uma nova configuração de atitudes, como a criação de uma gestalt de comportamentos e estilos de vida, necessários para a adaptação a esse novo período evolutivo. A noção de coping, como um mecanismo de criação e adaptação de recursos para lidar com os desafios constantes que a pessoa enfrenta nessa etapa, também nos permite abordar a mudança e a metamorfose vividas por cada uma de nossas entrevistadas, ao longo do processo de envelhecimento.
M. L. O., 55 anos, é um exemplo claro de mulher que vem mudando e se transformando, na maturidade. Talvez porque sua vida foi extremamente difícil, porque passou por sérios problemas de saúde na família (marido e filha), desde que se casou, e sérios problemas financeiros, já que se dedicou de corpo e alma aos familiares, esqueceu-se de si mesma durante os longos anos da doença de seu marido, em sua juventude. M. L. O. consegue refletir sobre sua vida, numa avaliação significativa de si mesma. Ela consegue elaborar uma mudança, uma metamorfose mesmo, no sentido proposto por Rosenmayr: revisão e rejeição de comportamentos anteriores, percepção profunda de seus desejos, e renovação da vida.
Na área do sentimento, você é mais amadurecida, não tem ansiedade para determinadas coisas, não tem mais falta de paciência de querer conseguir as coisas. Então, isso modifica. A gente se educa, mas essa educação depende de cada um. Porque existem mulheres da minha idade que são muito ansiosas para muita coisa. Mas isso porque eu fiz um trabalho comigo e cheguei à conclusão de que eu seria mais feliz se eu dominasse a minha mente, dominasse mais eu mesma e eu me tivesse mais nas mãos.
Eu costumo falar que eu vivo mais pelo coração do que pela razão. E eu estou trabalhando para mudar e estou conseguindo. Porque eu acho que o coração me traiu muito. Tudo o que eu fiz com o coração eu tive desilusão... Então quando você pára e pensa, você faz melhor as coisas. E eu tenho tentado muito mais com a razão do que com o coração, e tenho conseguido muito as coisas, mas não tudo... e eu cheguei à conclusão de que, se eu não me melhorar, ninguém vai fazer isto: eu é que tenho que melhorar, então eu estou fazendo análise.
M. L. O. revela sentimentos que sugerem que a maturidade proporciona ganhos subjetivos, o que inclui mudanças em termos de conhecimento, de segurança e de enriquecimento interior. Ela parece alcançar isso, no sentido de uma metamorfose.
Ruga não é sinal de velhice. O espírito é que não se pode deixar envelhecer. Eu posso começar a viver todos os dias. Eu deixei de levar as coisas muito a sério, deixei de ser detalhista, perfeccionista. Hoje não estou nem aí. A gente vai melhorando com o tempo.
PROJETOS DE VIDA: VIVER E PERMANECER
A mudança, a renovação e a metamorfose, como as definimos, são requisitos para se viver bem em todas as etapas da existência, especialmente na idade madura, quando o indivíduo se depara com desafios mais intensos advindos do mundo exterior e de sua própria interioridade. Diante disso, os projetos de vida se constituem como meios para se alcançar a “meta” da transformação na idade madura e permitem uma perspectiva de futuro, de transformação do próprio indivíduo para adaptar-se à sua nova realidade. Vemos, então, em algumas mulheres entrevistadas, o desenvolvimento de projetos culturais e de realização intelectual, entre outros:
Não consigo imaginar minha vida de outra maneira. Mesmo quando me aposentar, gostaria de continuar a escrever. Mas, para escrever, terei que sair pelo mundo, pois continuarei a ser repórter. A essência da minha profissão é esse contato com as pessoas (T. M., 50 anos).
T. M. também tem projetos de realização afetiva. Acredita que tem muitas coisas boas para compartilhar com outra pessoa, oferecendo amor e repartindo sentimentos, compartilhando interesses e experiências: “Eu queria alguém com quem tivesse um projeto comum... alguém que me apoiasse no que ando fazendo... por enquanto, sou só eu comigo, e isso é uma coisa muito chata”.
Ela continua:
[...] eu me sentiria bem nesse sentido, dividindo as coisas boas, compartilhando afinidades, repartindo sentimentos. Acho mesmo, que me sentiria muito bem dando amor, oferecendo o que tenho de bom a outra pessoa. Porque atualmente, eu só me dou à minha filha e à minha mãe, e isso não é totalmente satisfatório (T. M., 50 anos).
O trabalho é um dos projetos mais comentados. Algumas mulheres não sabem ao certo o que fazer nesse momento da maturidade, mas gostariam de fazer algo, de trabalhar, de ser produtivas. O sentimento de algumas delas é o de que, se não tiverem um projeto, um trabalho ou uma ocupação, a vida tornase vazia e sem sentido. M. L. O. deseja ainda realizar-se afetivamente e também aspira à realização profissional e financeira, não como ideais inalcançáveis, mas como projetos reais para um tempo próximo:
Eu ainda quero muita coisa. Eu não me realizei ainda. Faltam algumas coisas para eu resolver para me realizar. A primeira delas é que eu trabalhei muito, mas ganhei muito pouco. Eu gostaria agora de trabalhar menos e ganhar muito. Hoje eu tenho a chance. Vou ser empresária (fala da herança) (M. L. O., 56 anos).
O indivíduo, desamparado ao nascer, constitui-se pelo reconhecimento do outro e por tipos de identificação que faz ao longo de sua existência. Essa identificação acontece mediante os vínculos que ele estabelece com o meio social e que implicam o seu reconhecimento e a sua valorização pelo outro. O indivíduo constrói, então, uma imagem de si mesmo, valorizada e narcísica, que é a base de sua identidade. Com o envelhecimento, o impacto das mudanças que ocorrem nessa etapa, principalmente físicas, pode levar à quebra da imagem narcísica do sujeito. Grande parte das mulheres nos relata experiências de sofrimento, dor ou horror, diante das mudanças da maturidade. Tais sentimentos surgem a partir da imagem que o espelho lhes revela, expondo as mudanças físicas na fisionomia e no corpo e, depois, gradualmente, conferindo- lhes a desagradável sensação de não serem mais olhadas ou admiradas pelo outro, como ocorria quando eram jovens. A maioria delas expressou a sua percepção de mudanças físicas negativas, isto é, de um declínio físico, por exemplo, a diminuição da capacidade física, dificuldades maiores para se locomover, cansaço ou fadiga física. Outras expressaram insatisfações com o corpo, no plano estético, quando, exemplificando, relatam que engordaram, não têm mais cintura, a pele e os cabelos não têm mais brilho, etc. Simultaneamente, elas percebem em si mesmas transformações positivas, nos níveis psíquico, mental e social. Muitas consideram que o amadurecimento lhes trouxe mais segurança, experiências e conhecimento e, portanto, mais sabedoria. O envelhecimento trouxe também para muitas mulheres mais tranqüilidade em relação ao mundo, em geral, e às pessoas, em particular. Trouxe ainda, para outras, realização profissional, familiar e social mais significativa.
A ambivalência em relação ao envelhecimento é nítida. Por mais que haja ganhos em vários campos, as perdas sentidas em relação ao corpo, tanto na perspectiva estética quanto da perda da saúde e do declínio físico, não deixam de evocar sentimentos de fragilidade e de desamparo. Algumas mulheres lidam com esses sentimentos, tentando superá-los e também encontrar novas formas de satisfação e de realização. Nesse sentido, julgam-se realizadas profissional, intelectual ou espiritualmente, bem como no âmbito familiar e social. Outras, contudo, encontram-se insatisfeitas em vários campos ou em todos eles e, conseqüentemente, sentem-se fracassadas nesse momento da vida, sendo tomadas pela depressão e por sentimentos de impotência.
As diferenças observadas nas entrevistadas, baseadas em suas histórias, são decorrentes de experiências que vão dos períodos da infância e da adolescência até a vida adulta e a maturidade, e se relacionam com os fatores de seu ambiente socioeconômico e cultural. Portanto, os sentimentos atuais de realização ou de fracasso parecem depender de sua maneira de inserir-se no mundo, de acordo com a vivência precoce da vida, acrescida da vivência posterior, o que contribui para a imagem que o indivíduo construiu de si mesmo e de sua identidade. Essa imagem depende, pois, da relação estabelecida com o mundo externo e determina não apenas a forma como ele se vincula à realidade, mas também o modo como ele se relaciona com os outros e como se projeta para o futuro.
Durante o processo de envelhecimento, há perda gradual dos investimentos nos objetos do mundo. Há uma volta para si mesma, para uma busca de realização numa vida mais espiritual e interior. Segundo estudiosos como Goldfarb (1998), Beauvoir (1970), Anzieu (1992), a saúde psíquica dos indivíduos, particularmente na maturidade, depende da capacidade de manter investimentos, laços e vínculos com objetos externos, fora do eu. Muitas mulheres relataram esses investimentos. O que se pode concluir, com base em suas biografias, é que os relacionamentos e os vínculos mudam na maturidade. Parece que não há mais a necessidade constante da presença do outro. Mas os laços mais fortes e intensos são mantidos, às vezes a distância, guardando, contudo, forte tonalidade afetiva.
Quase todas as mulheres relatam a importância do relacionamento com as figuras do grupo familiar: o marido que se tornou grande amigo ou que, ao longo dos anos de relacionamento, se tornou bom amante e companheiro. Também relatam bom relacionamento com os filhos e realização com os netos. Algumas se distanciaram do marido, do ponto de vista afetivo e/ou sexual. Outras se separaram e se divorciaram uma ou mais vezes.
A maioria das entrevistadas se refere com apreço às relações com amigos, colegas e vizinhos. Elas conservam relacionamentos sociais menos numerosos do que na fase adulta, contudo eles possuem grande importância e intensidade. São vínculos duradouros, em que observamos a troca de experiências, a transmissão de “sabedorias” (Bosi, 1998), o compartilhamento de interesses e de afetos. Assim, deduz-se que elas podem encontrar satisfação e prazer de diversas maneiras, nesse período da maturidade. Aqui se inclui o investimento nos netos, nos filhos e em outras pessoas que mostram necessitar de seus cuidados e de sua atenção. Mas esses relacionamentos importantes e intensos são concomitantes à construção de uma vida mais tranqüila, mais espiritual e voltada para si mesma. Em síntese, perceberam-se, nas entrevistadas, algumas estratégias coping e metamorfose no sentido de lidar com os grandes desafios do envelhecimento, no mundo atual. A construção de outros caminhos e projetos, em última instância, abre a perspectiva do tempo futuro e das possibilidades de realização pessoal, perspectiva de continuidade da existência, mais ampla que a pura conservação biológica.
Para alguns estudiosos do envelhecimento (Benjamin, 1998; Besse, 1999; Bertaux, 1982), o indivíduo tem uma vida satisfatória na maturidade e na velhice, quando ele investe libidinalmente algo fora dele, quando o sentido da vida se expande para a vida simbólica, para as realizações e os vínculos que apontam, em última instância, para sua transcendência. Nas entrevistas, observamos que algumas mulheres relatam essas experiências na maturidade.
Os projetos das mulheres entrevistadas variam muito. São projetos profissionais, projetos de realização financeira, de realização social, familiar, afetiva ou espiritual. A construção desses projetos e a sua empreitada varia de acordo com a história particular de cada entrevistada. Mas parece que, para grande parte delas, a própria perspectiva de realização de seus sonhos e projetos, baseada nas primeiras ações que visam levá-los a termo, já traz satisfação e envolvimento. O projeto e o sonho parecem dar a cada mulher um sentido para sua vida, um desejo de viver para realizá-lo.
Outra questão a ser observada: se há descontinuidades no envelhecimento, essas acontecem dentro de um contexto de continuidade, em relação aos processos de vida (Bertaux, 1992). Há certa alternância entre estabilidade e continuidade, de um lado, e alterações e mudanças, de outro. A descontinuidade refere-se à perda de antigos referenciais e implica o abandono de alguns elementos da realidade e de si mesmo. Em vista disso, há a mudança e a metamorfose, isto é, aumento de potencial, criação de estratégias e superação das próprias limitações.
Nosso estudo permitiu concluir que várias das mulheres entrevistadas lidam positivamente com a metamorfose, uma vez que investem em novos projetos de vida, na maturidade, cada qual à sua maneira. Cada história relatada é única, particular, e a perspectiva de vida atual foi moldada pelos caminhos particulares que a entrevistada percorreu até a maturidade. Observa-se que não há referências identificatórias marcantes para a mulher de meia-idade, como existem para a mulher jovem. Contudo, pode-se concluir que elas, cada qual ao seu modo, buscam referências próprias e maneiras de viver e realizar-se nessa etapa. Nesse sentido, podemos dizer que a mulher é um ser singular e plural.
Referências
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• Texto original recebido em dezembro/2004 e aprovado para publicação em abril/2005.
* Este texto é resultado da dissertação de mestrado que tem o mesmo título, defendida em 2001, sob
a orientação da Profa. Lúcia Rabello de Castro.
** Psicóloga, mestre em Psicologia pela UFRJ, professora do Instituto de Psicologia da PUC Minas; e-mail: marjor@ig.com.br.