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Psicologia em Revista
versão impressa ISSN 1677-1168
Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.12 n.20 Belo Horizonte dez. 2006
ARTIGOS
Violência na teoria psicanalítica: ruptura ou modalidade de laço social?
Violence in psychoanalytical theory: rupture or a kind of social bonds?
Tania Coelho dos SantosI,*; Maria Angélia TeixeiraII,**
IUniversidade Federal do Rio de Janeiro
IIUniversidade Federal da Bahia
RESUMO
Haverá uma teoria psicanalítica da violência? Basta associar a violência à pulsão de morte para explicar o crescimento deste fenômeno no laço social contemporâneo? Se nos baseamos na teoria lacaniana dos discursos, a violência é um sintoma ou é a ruptura do laço social? O crescimento desse fenômeno deve ser analisado a partir dos efeitos do objeto a em posição de ideal de nossa civilização ou como o efeito da abolição do Real como impossível que o discurso do capitalismo promove? Essas hipóteses são excludentes ou devemos articular uma à outra? Nossa reflexão ressalta os efeitos subjetivos da disjunção entre os elementos em jogo na estrutura dos discursos, verdadeira causa de fenômenos contemporâneos como a violência.
Palavras-chave: Violência, Sintoma, Ruptura do laço social, Discurso do capitalismo.
ABSTRACT
Is there a psychoanalytical theory of violence? Can the concept of death drive explain the increasing violence of modern social life? In the perspective of Lacans discourse theory, is violence a symptom or a rupture of social bonds? Should the growth of this phenomenon be analyzed considering the effects of object A as the ideal of our civilization, or considering the effects of abolishing the Real as something impossible according to the discourse of capitalism? Are those hypotheses mutually excludent or should we articulate them to each other? This study highlights subjective effects of the separation between the elements at stake in the discourse structure as the true cause of contemporary phenomena such as violence.
Keywords: Violence, Symptom, Break of the social bond, Discourse of capitalism.
Uma questão introdutória
A violência é conceituável na teoria psicanalítica? Para Freud, a violência deve ser incluída no campo dos efeitos da pulsão de morte? No que concerne à teorização de Lacan, sabemos que no primeiro tempo do seu ensino ele toma a pulsão de morte como idêntica aos efeitos de mortificação do simbólico sobre o corpo. Uma profunda inversão desse paradigma, depois do Seminário XX, vai conduzi-lo a reconhecer que o simbólico também vivifica o corpo e é a causa do gozo. Uma outra vertente da linguagem, diferente daquela 1que ele destacara até então, vem enfatizar o gozo do ser falante, pois o ser falante é aquele que quando fala não sabe o que diz. No campo do Outro, o ser falante não encontrará um significante que o represente. Ele é Um sem Outro, por isso não há relação sexual. Os sintomas, discursos e laços sociais são suplências nessa relação do Um com o Outro, relação que não existe, precisa ser inventada. Existirá então uma outra teoria da violência no último ensino de Jacques Lacan? Este último ensino sucede a formulação de que o sintoma e o laço social equivalem a quatro discursos que se articulam numa ordem precisa, e se apóia na tese de que o real é impossível. Como então articular o real impossível à teoria da violência? Será que ela também é uma modalidade de sintoma ou de laço social? Será que ela também se ordena segundo a lógica dos quatro discursos de Lacan? Ou será que ela pode abolir a dimensão impossível do real?
Nossa proposta neste artigo é outra. Queremos demonstrar que a introdução de um quinto discurso, o discurso do capitalista, apresenta uma ruptura com essa lógica articulada em que se sucedem os quatro discursos: o discurso do mestre, da histérica, da universidade e do analista. A vigência dos quatro discursos supõe que o real é impossível e que não há outro modo de articulá-lo senão por meio da lei, da proibição que divide o sujeito. Essa regra de formação não vale para o quinto discurso, o do capitalista.
O valor da proibição como representação mítica do real impossível esvaziou-se desde os movimentos de maio de 1968, que promoveram o imperativo contemporâneo: é proibido proibir!. O real que promove a nossa economia globalizada não precisa da forma da lei que proíbe para se articular. Esta economia aboliu a profunda dessimetria do significante mestre que enuncia a lei e, no seu lugar, promove a multiplicação das regulamentações e dos contratos entre pares. Essa prática rebaixa o funcionamento jurídico à gestão administrativa. A nova ordem avança, devastando os laços sociais e os sintomas, promovendo a metonímia do gozo, incitando à caça desenfreada ao mais-degozar. Esse novo discurso, que recusa o discurso do mestre, aboliu o valor das relações inconscientes, destitui toda pergunta sobre a causa do desejo e somente promove e enaltece o êxtase da satisfação de um corpo que consome, ou do capital que se acumula.
A psicanálise teve também sua participação nesse novo estado de coisas. Ela corroeu a moral sexual civilizada que limitava o gozo à doença nervosa moderna (Miller, 2005). Ela contribuiu para gerar o nascimento do indivíduo desbussolado, que é tratado pelas instituições sociais como um consumidor. De acordo com Miller (2005), podemos formular a lógica dessa nova condição, aproximando-a do discurso do analista, e sustentar que o discurso contemporâneo, pós-moderno, bem como a economia globalizada do gozo, colocam o objeto a em posição de agente.
Essa lógica, entretanto, não é suficiente para romper com o discurso do mestre. O discurso do capitalismo, diferentemente do discurso do mestre moderno, que coloca o objeto a em posição de agente, promove um real disjunto da lei. Dizer que, contemporaneamente, o objeto a ocupa o lugar do agente na estrutura, lugar do significante mestre, não basta para desvencilhar o real de sua simbolização por meio da lei. Entretanto, sem o apoio mítico na proibição, será o real ainda impossível? Pensamos que não. Quando o real não pode articular-se à proibição, todos os elementos (S1, $, S2 e a) que se articulavam na forma de um discurso ficam à deriva. O eixo dos quatro discursos é a primazia do discurso do mestre, imperativo de renúncia que reduz o gozo a migalhas e o condena a só existir sob as espécies do objeto a. O discurso do capitalismo não tem o mesmo eixo. Nele, $ (sujeito) ocupa o lugar do agente (S1) numa espécie de giro que desloca o significante mestre para baixo dele, o real não é mais impossível. Tudo é permitido, não há mais impossível, em lugar nenhum. É proibido proibir!. De fato, Deus está morto, e quando Deus está morto, Lacan já antevia, a conseqüência é o seguinte paradoxo: nada é permitido. A violência então é uma manifestação possível dessa estrutura. Quando tudo é permitido, nada é permitido; a ética do desejo dá lugar ao fardo pesado do imperativo do gozo. A satisfação se efetua sem o apoio na singularidade da fantasia. É a lógica do resultado imediato, direto, é o declínio da diferença sexual. Proliferam os gozos autistas, regidos pela lógica da exceção absoluta na qual cada gozo é autônomo.
Os efeitos dessa lógica aparecem como zonas de devastação no campo do sujeito e do Outro na contemporaneidade. Os sintomas contemporâneos são inclassificáveis, e isto está de acordo com a foraclusão generalizada do Nomedo- pai. O complexo de Édipo muitas vezes não opera como mito do gozo proibido. A lógica articulada dos quatro discursos supunha que o Nome-dopai desempenhasse, na fantasia, a função de agente da castração. Este operador transfere a potência simbólica do significante mestre para o imaginário. Permite transmutar o real do gozo impossível para as vias imaginárias de um real do gozo proibido. A violência dá provas de uma falência da função do imaginário da proibição. Pensamos que a eclosão generalizada da violência no campo social nos aponta os efeitos devastadores do discurso do capitalismo. Hoje, o gozo não é mais impossível, pois a via da fantasia não garante mais que o gozo se limite à transgressão da lei. O gozo emerge sob a forma de um real sem lei, e não contra a lei, na contemporaneidade. Ele não se opõe a essa ou aquela restrição legal. Ele se apresenta desencadeado pelas vias simbólicas, como puro, sem sentido. Poderíamos avançar na direção de pensar suas relações com o capricho, e com a diversidade de modalidades do gozo não-todo de fazer suplência à desproporção entre o simbólico e o real. Nesse caso, a violência não seria um sintoma e seu lugar seria ao lado da psicose, do gozo místico, do capricho e da exceção.
Os quatro discursos, o inconsciente e o real
Partimos da teoria dos discursos e o ponto de orientação nesta pesquisa é, portanto, a definição do inconsciente como ex-sistente aos discursos, o inconsciente como real. Essa formulação é uma atualização de duas outras formalizações lacanianas, de igual importância e que lhe antecedem, que são o inconsciente é estruturado como uma linguagem (Lacan, 1966/98, p. 882) e o inconsciente é o discurso do outro (Lacan, 1966/98, p. 18).
Se adotarmos a tese da ex-sistência do inconsciente aos discursos, seguemse algumas conseqüências. Primeiramente, o inconsciente não está representado exclusivamente pelo discurso do mestre, nem está aprisionado a nenhum discurso. Inversamente, é a posição de extimidade do inconsciente aos discursos que confere legitimidade à passagem de um discurso a outro, como evidenciou o advento do discurso do psicanalista. Isso implica ter que pensar seus efeitos para além do discurso do mestre, que é prisioneiro da lógica fálica e edipiana que ainda organiza os quatro discursos. A teoria dos quatro discursos não escapa à lógica fálica e edipiana, que gira em torno da oposição entre o ao menos um fora da castração, logo, todos submetidos à castração. A prova é que, nesse tempo, Lacan (1969/70) estabelece uma equivalência entre o discurso do mestre e o discurso do inconsciente.
Pensar o inconsciente fora dos discursos é romper com a equivalência entre o discurso do inconsciente e o discurso do mestre. É abrir-se para as formulações de Lacan (1972/73) no Seminário XX, um novo tempo em que se tratava de acolher os efeitos do discurso do capitalismo. Neste seminário, ele nos apresenta outra formulação, que permite pensar o gozo feminino na vizinhança do gozo fálico. Ele obedece a uma outra lógica, para além da lógica do ao menos Um fora da castração/todos submetidos à castração, a lógica do não-todo. Essa outra lógica, pela primeira vez apresentada nesse seminário, permite-nos pensar a singularidade dos sujeitos, um por um, que se reúnem num conjunto inconsistente e aberto. Esse conjunto, ao contrário daquele que é formado pela lógica do todo, não constitui uma classe. Neste conjunto, não há uma exceção do lado de fora dele, pois cada elemento do conjunto inconsistente é único e, por isso mesmo, não há exceção quando não há regras universais para todos.
Aceitar a existência dessa outra lógica implica anulação de qualquer pensamento que conceba o inconsciente como uma operação interna, solitária, individualista e intimista, que encontra perfeito abrigo na clínica psicanalítica para seus secretos e obscuros desejos. Significa reconhecer que só há sujeito na dimensão do desejo e do gozo inconscientes, cuja constituição significante depende da presença do lugar do Outro na estrutura do discurso, bem como do Outro gozo. A via que apontamos consiste em particularizar o modo de gozar próprio à contemporaneidade pós-moderna, por vezes relativista e até cínica, em que aparentemente a função paterna e o discurso universal declinam em favor de um avanço da exceção e da singularidade. Para isso é preciso ir além da função do pai, sem perder de vista a centralidade dessa função. É preciso saber encontrá-la, reconhecê-la, mesmo onde ela se manifesta denegada, abolida, humilhada e denegrida.
Os efeitos do declínio da função paterna manifestam-se em diferentes aspectos do laço com o simbólico. Por exemplo, a aproximação entre o discurso da ciência e o da universidade, durante certo período, produziu o lento esvaziamento do valor de real do saber científico. O saber parece estar por toda parte, tudo é verdade e nada é real. O saber reduziu-se à ficção. Restabelecer o laço entre o saber e o real deve ser uma das ambições do discurso analítico hoje.
Outro exemplo é a manifestação epidêmica da violência, presença devastadora no cotidiano das pessoas, independentemente de classes socioeconômicas, idade, cor, credo ou, até mesmo, país, um fenômeno absolutamente atual com características próprias e diferentes de outras épocas da história da cultura. Ressaltamos sua relação com a autonomia dos implementos, termo empregado por Hanna Arendt, largamente oferecidos pela tecnologia capitalista, que podemos vincular à dissolução progressiva do valor do laço social no contemporâneo, em proveito da produção de indivíduos cujo gozo é autista e regulado pelo consumo do objeto.
Sabemos um pouco mais sobre seus efeitos devastadores no âmbito social ou de domínio público e muito pouco sobre seus efeitos no domínio privado, ou seja, do indivíduo na solidão de sua relação com o objeto. O trabalho clínico do psicanalista pode iluminar um pouco essa dimensão mais obscura e desconhecida, contribuindo para esclarecer a face mais invisível da violência, aquela que incide na subjetividade.
A experiência dos analisandos que sofreram atos de violência pode nos dar uma idéia das transformações psíquicas irreversíveis de um encontro traumático com o real sem lei, real que de direito deveria ser impossível, mas que se apresentou na dimensão do possível, sem a máscara da lei que proíbe. Esses casos colocam em dúvida a potência da palavra em recalcar o trauma. Exibem em toda sua extensão a devastação psíquica e a gravidade dessa condição a que estamos cada vez mais expostos.
Para tanto, identificamos e apresentamos alguns deles: o aparecimento de certos medos relativos ao funcionamento do cotidiano, que poderíamos chamar de uma espécie de fobia social; a instalação do estado de apatia durante um longo período; o desencadeamento de doenças graves como a melancolia; a manifestação de raiva intensa, chegando à fúria, às vezes seguida de passagens ao ato como a mudança abrupta de profissão, e a colocação em ato de fantasias sexuais. Os efeitos da violência manifestam-se como uma ausência de bússolas radical.
Esse fragmento de caso clínico pode mostrar como um ato de violência foi o fator desencadeante para o adoecimento sem possibilidade de reversão. Tratase de um homem, profissional liberal, casado, com filhos, que após brutal experiência de assassinato de familiares próximos passa a caçar homossexuais nas ruas, negando-se a pagar pelos serviços sexuais recebidos. Este ato transforma-se numa compulsão, que o expõe em muitas oportunidades a ser espancado ou mesmo assassinado, colocando-o na iminência de repetir a cena do crime, na qual, poderíamos dizer, ficou petrificado. A violência brutal que surge do real tem o efeito prolongado de quebra da mediação simbólica, como aconteceu neste caso, acrescido da fixação deste gozo mortífero, da ordem do horror do crime, do assassinato. O estado de adoecimento que se instaurou neste homem produziu o aparecimento de um sintoma inclassificável. A sexualidade foi desviada do circuito da fantasia e do princípio do prazer e serve a um gozo que não é transgressão, é um gozo louco, sem lei. Esse caso desvela o imperativo do gozo não-todo, do gozo não regulado pelo gozo fálico, quando ele rege a estrutura, não há mais lugar para o desejo sexual.
Os quatro discursos: o do psicanalista, o da universidade, o do mestre e o da histérica são impotentes para pensar essa configuração subjetiva. Só podemos esclarecê-la a partir do discurso do capitalista, pois aciona um novo imperativo, o de um gozo não-todo completamente desvinculado da lógica fálica. Este último discurso fere alguns dos princípios essenciais que regulam cada discurso, bem como a relação deles entre si, ao abolir o campo da impossibilidade, dando lugar unicamente à impotência. E o que se passa finalmente é que seu regime torna possíveis todos os gozos
Ressaltamos, portanto, que a relação dos discursos entre si é necessária à constituição da subjetividade. A lógica fálica e edipiana, quando situa o real como o gozo impossível, propriedade do pai morto e incompatível com a existência do vivo, cumpre um papel de proibir/permitir o gozo. Somente a partir dessa âncora, podemos pensar a singularidade do sujeito que não se reduz à identificação com o mestre. A violência, como efeito de discurso, toma como parâmetro o rompimento do laço em permutação circular dos discursos. Nossa hipótese é a de que o discurso do capitalista tem uma relação de estrutura com a manifestação da violência e pode nos servir de recurso para elevá-la à dimensão de um conceito em psicanálise.
Não seria a violência, então, um fenômeno contemporâneo produzido pelo discurso do capitalismo? Seria esta a manifestação, por excelência, do sujeito sem bússola, isto é, submetido ao enfraquecimento dos laços simbólicos, à prevalência das imagens e dos funcionamentos imaginários favorecidos pela tecnologia?
Sobre o pai e o pior...
O mundo antigo ordenava-se por meio das modalidades tradicionais de organização familiar que investiam o pai, legalmente, de plenos poderes sobre as mulheres e as crianças, reprimindo as manifestações da sexualidade, dos conflitos e das diferenças de modo geral. Assistimos na modernidade à queda do saber e do poder incontestáveis do pai. O declínio da função paterna exacerbou-se em escala mundial com o avanço do capitalismo nas últimas décadas. Já não vivemos simplesmente as conseqüências da passagem do mundo da tradição para o mundo da ciência. No mundo antigo, a religião agregava em torno do nome de Deus os mais diferentes domínios da experiência humana. O advento da ciência faz um corte com o mundo da tradição, produzindo mudanças na subjetividade. Torna a crença artigo de escolha individual, um problema de consciência individual. Cada um crê em Deus, ou não, de acordo com sua consciência, diferentemente do mundo antigo, quando o humano era obrigado a ser regido pela crença religiosa. Viver fora disso significava recusar o mundo em que vivia e se tornar um herege. Deus passou a ser assunto de consciência individual e a isso Lacan (1938/2001) chamou declínio da imago paterna.
Os sintomas contemporâneos são conseqüências desta nova lógica, que se espalha radicalizando o declínio da função paterna. À lógica fálica, universalizante, vimos acrescentar-se a lógica do não-todo. A cultura feminilizouse no rastro da liberação da sexualidade e do feminismo e esta lógica que, em princípio, parecia trazer-nos um ganho de liberdade e de respeito à singularidade de cada um, lentamente, parece autonomizar-se com relação à lógica fálica (Coelho dos Santos, 2001, p. 104-114). A psicanálise como filha da ciência nasceu em um mundo moderno já descrente e, como ensinou Lacan, Freud tenta com o Édipo, com a crença no pai, dar certa consistência à função do pai. Miller (2004, p. 8) prolonga esse raciocínio quando sugere que a Moral sexual civilizada foi, a seu tempo, uma defesa contra a falha entre as palavras e as coisas. A psicanálise, ele acrescenta, contribuiu para corroê-la e substituí-la. Se concordarmos com Lacan (1970/2001), que a psicanálise freudiana foi a seu tempo uma suplência ao declínio da função paterna, como ela vai enfrentar um mundo onde a lógica do não-todo se coloca a serviço da denegação da função do falo, da função paterna das relações edipianas. Um mundo onde a diferença sexual parece condenada à obsolescência, à não essencialidade e em que o imperativo do gozo não-todo progride em oposição a qualquer dimensão da castração como sinal do real impossível.
A psicanálise surgiu no mundo como o discurso que progrediu no avesso ao discurso do mestre, em que reinava o ideal absoluto para todos. Que relações ela pode ter com o mestre contemporâneo, o discurso do capitalista, que provoca a deriva dos sujeitos na caça ao mais de gozar? Como a psicanálise tem se constituído em uma alternativa àquele discurso?
Sobre o discurso do capitalista
Há uma mudança na teoria dos quatro discursos com a inclusão de um quinto discurso, que é o do capitalista. Lacan (1970/2001, p. 424) construiu o campo dos discursos sobre a tese de que a Revolução Francesa introduziu no mundo o grande R do Real, isto é, o sintoma, a mais-valia, a única prova de que o sujeito foi separado do seu gozo.
Para falar do mestre contemporâneo que é o capitalista, Lacan recorreu ao conceito de mais-valia de Marx, dele extraindo o conceito de mais-de-gozar, sintetizado por Gonçalves:
Com o conceito de mais-valia, Marx destacou algo que já estava no jogo capitalista. [...] Lacan partiu da lógica capitalista delineada na escrita de Marx para, também a partir daí, derivar o conceito de mais-de-gozar. Na teoria marxista, o valor está vinculado ao trabalho. A mais-valia refere-se a trabalho não pago. Foi pela escrita de Marx que algo, que estava fora do discurso, inscreveu-se. Inscrito, pôde ser, então, tratado. O discurso do capitalista corresponde a um deslocamento a partir do discurso do mestre. O gozo produzido neste discurso ganha uma feição contábil quando passa a valor relativo a um mercado. Em se tratando de seres falantes e discursos, já havia função mais-de-gozar antes da instalação do discurso capitalista. No capitalismo, entretanto, o plus-de-gozo, produzido e condensado por meio do objeto a, ganhou o caráter de um plus de valor produzido e condensado em mercadorias. Lá onde estava o mais-de-gozar, adveio a mercadoria. (Gonçalves, 2000, p. 54)
O que dizer do capitalismo contemporâneo? A passagem do discurso do mestre antigo para o discurso do mestre moderno desloca-se do discurso do mestre para o discurso da universidade, que se sustenta da burocracia, até chegar a sua forma final, que é o capitalismo. Trata-se, essencialmente, de registrar os modos como o saber se desloca em relação aos lugares. O discurso do mestre na atualidade é o discurso do capitalismo. Foi, pela primeira vez, escrito por Lacan, na conferência de Milão, em 1973. Ele não se constitui a partir de um quarto de giro das letras como os outros discursos, mas se deduz por uma torção do discurso do mestre.
No discurso do capitalista, temos como ponto de partida a inversão da posição de S/ e de S1 . S1 passa a ocupar o lugar da verdade, e não mais o do agente como no discurso do mestre. vai ocupar o lugar de agente, como no discurso histérico, com a diferença que sob ele não se encontra mais S2, o saber em posição de verdade, e sim S1. O que pode ser S1, o significante mestre, na posição da verdade de $?
Ressaltemos, ainda, a supressão das flechas oblíquas, ou das duas arestas do tetraedro, por uma manobra obtida mediante torção. Encontra-se aí uma situação diferente dos outros discursos, nos quais nenhum termo é isolado e cada um alimenta o outro numa reação em cadeia cuja tendência é o arrebatamento(Darmon, 1994, p. 223). Verifica-se claramente que o lugar da verdade não está mais protegido e que os quatro vértices se alimentam uns aos outros suprimindo a hiância e a disjunção que há entre o lugar da produção e da verdade. O que quer o capitalista é apagar este efeito de impossibilidade ou, em outras palavras, qualquer evocação da fantasia, para manter o sujeito insatisfeito de modo bem particular.
Se para o mestre antigo interessava, sobretudo, que as coisas funcionassem, para o capitalista interessa sustentar a insaciedade como um modo de insatisfação do sujeito. Esta insaciedade deve garantir um mercado para o qual não há falta de objeto, e onde tudo é possível. A dimensão lógica do fato de que não há relação sexual, que é o modo como se escreve a impossibilidade, está foracluída. O objeto, neste caso, é produzido em escala veloz para ser imperativamente consumido, suprimindo, a desproporção entre o que se deseja e o que se alcança. A demanda perde o valor para a oferta embrutecida. Gadjet é o nome do seu produto. Ademais, este novo mestre aprendeu a gozar do objeto que o outro produz para ele, e isso não é sem conseqüências.
O discurso do capitalista por um lado promove o sujeito à posição de mestre, ou seja, o comando é exercido por um sujeito barrado e não pela tradição impessoal, ao mesmo tempo o apaga ao diluir as expressões individuais de comando na estrutura do próprio discurso. Dessa forma o ideal do sujeito autônomo, senhor do seu destino, que está na base não somente da economia liberal, mas da própria sociedade leiga moderna, sofre um violento abalo. Como pensar que esse sujeito é quem comanda com o seu desejo, se esse mesmo desejo é causado por um objeto do qual ele não tem controle? Assim, embora o lugar de comando seja ocupado pelo sujeito, que se exibe na expressão das suas escolhas e da sua liberdade, o verdadeiro comando é exercido pelo objeto de consumo, que sustenta de fato o discurso. (Teixeira, 2003, p. 152)
Nesse regime é preciso que o consumo seja maníaco e o gozo uma vez que o temos é para gastá-lo, desperdiça-lo (Lacan, 1969/70, p. 9-21).
O psicanalista e a construção da atualidade
O que se pode esperar do discurso do psicanalista com respeito à violência que substituiu o mal-estar na civilização contemporânea? De acordo com o postulado, que toda realidade humana é realidade de discurso e que o real exsiste ao discurso, é preciso compreender a violência como ruptura real com a neurose estruturada como discurso ou laço social. As possibilidades de intervenção sobre a violência, bem como sobre o discurso que produz a violência, requerem do psicanalista um manejo novo da interpretação.
Do sucesso dessa nova ferramenta depende a potência da psicanálise diante dos sintomas atuais. É preciso revisitar a clínica fundada sobre a fala interpretativa, fundamento da psicanálise, interrogando sua potência diante da violência, na qual prevalece o ato, especialmente nas manifestações clínicas chamadas sintomas contemporâneos e inclassificáveis. Seria a fala ainda capaz de promover um novo regime de relação com o corpo e uma nova relação com o gozo da vida?
Apostamos que as palavras numa análise não perderam seu vigor, pois:
a palavra do psicanalista situa-se no nível do que não é nem falso nem verdadeiro, mas enunciação, que se subtrai do modo comum de dizer. O gesto do analista que convida o analisante a dizer tudo abre para ele a experiência de uma palavra cujo dizer vai além do dito. O resíduo dessa experiência, a conseqüência de uma análise é o poder de reencantamento do mundo pela palavra. A palavra em análise dissocia-se da exigência de utilidade direta. Não porque ela não seja útil, mas porque não serve para adaptar o sujeito à moralidade vigente nem aos ideais de consumo do capitalismo nem aos valores que aí estão. Ela é útil para recriar no ser falante o gozo de viver que não aspira ao progresso, porém ao avanço que se faz sob a determinação da repetição para Freud e do real para Lacan e que admite o retorno do Um, do dito primeiro que funda a série. Dizer que a estrutura da experiência psicanalítica não é sem, é valorizar a repetição como dimensão real do sintoma. (Coelho dos Santos, 2002, p. 1-13)
Essa dimensão se opõe em princípio ao avanço do significante separado do gozo do falante, como está posto pelo avanço do significante puro da ciência no capitalismo.
Numa cultura capitalista individualizante, na qual os laços sociais estão empobrecidos e esvaziados, encontra-se, em contrapartida, a proposta psicanalítica que continua apostando na recuperação do laço do ser falante com a palavra em sua dimensão discursiva. Nesta clínica, o lugar do dizer reabilita o real como impossível, ex-sistente. Reabilita a ex-sistência do dizer em relação ao dito, que tem relação com a estrutura de linguagem que nos determina. Confronta o discurso do capitalista ao resgatar o direito à insatisfação, como não se reduzindo a insaciedade. É o analista que pode dizer ao mercado que não há o objeto da satisfação. Que não se trata de que temos muito ou pouco, pois não há, nem haverá no mercado, jamais, o objeto que poderia nos satisfazer. Queremos analisar a violência à luz deste esforço de resgate da dignidade da insatisfação. Nós não exigimos que o mercado produza mais para nos satisfazer, ao contrário, sustentamos que ele não pode nos dar aquilo que demandamos.
Há uma política a deduzir do ato analítico, que é a noção política do gozo que requer que o ato mesmo de tomar a palavra se faça ação porque falar é gozar. Trata-se de tomar a palavra para reinventar mundo, mais além de exercer as liberdades democráticas, que nada mais fazem que homogeneizar homeostasiar porque é da responsabilidade da psicanálise nos confrontar ao horror do vazio da causa. (Coelho dos Santos, 2002, p. 1-13)
Entretanto, o que se apresenta na violência é o horror despido de qualquer revestimento simbólico, é o fascínio pelo objeto que preencheria toda a necessidade. Há uma dimensão na atualidade que diz respeito ao caráter público, midiático, televisivo, globalizado da violência cotidianamente mostrada, como fatos que fazem parte dos noticiários diários, nacionais e internacionais, que se conclui pela banalização da violência e pela redução da dimensão subjetiva do humano à imagem. Enfim, a violência virou espetáculo televisivo, cinematográfico e jornalístico, cujas imagens globalizadas imprimem simultaneamente o efeito de horror e fascínio.
Pode-se observar que as relações sociais têm sido largamente regidas pelo imaginário e suas formações, e que constituem uma certa cultura do narcisismo e do individualismo propiciadores da violência. Como analistas, precisamos assegurar as condições para que um ser falante possa responder pelo seu desejo e seu gozo diante das implicações e exigências da vida na atualidade. Nosso interesse é conhecer a violência que prolifera de forma epidêmica no cotidiano de cada um em muitos lugares do mundo, indistintamente. Dada sua extensão, sabe-se mal como ela afeta hoje os laços sociais e como, no sentido oposto, é por eles engendrada. Ela não é apenas um sintoma, isto é, uma modalidade de laço social, mas uma das muitas modalidades de devastação desses laços, um ponto de ruptura, uma incidência do gozo fora do discurso. É preciso reinscrevêla, pelo gesto interpretativo do analista, nas vias do campo da fala e da linguagem, recuperando o direito de cada um à insatisfação e ao mal-estar, que alimentam o laço social. É preciso evitar, na medida do possível, as vias que levam à ruptura. Esse deve ser o compromisso do analista na atualidade.
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Texto recebido em outubro/2006.
aprovado para publicação em dezembro/2006.
*Doutora em Psicologia Clínica, pós-doutorado no Departamento de Psicanálise de Paris VIII, professora associada do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ, coordenadora do Núcleo Sephora de pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo, psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, bolsista de Produtividade Científica do CNPq, nível 1C. E-mail: taniacs@openlink.com.br
**Mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ, professora assistente da graduação em Psicologia e do curso de especialização em Teoria Psicanalítica da UFBA, psicanalista membro das Formações Clínicas do Campo Lacaniano. E-mail: angelia@campopsicanalitico.com.br
1Lembro ao leitor que o inconsciente lacaniano estrutura-se como a linguagem, pois um significante é o que representa um sujeito para outro significante. A linguagem, nessa perspectiva, aliena o sujeito daquilo que o causa, reduzindo-o a não ser mais que o desejo que se representa na cadeia de significantes.