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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.13 n.2 Belo Horizonte dez. 2007

 

ARTIGOS

 

Artes visuais na cidade: relações estéticas e constituição dos sujeitos

 

Visual arts in the city: aesthetic relations and subjectivity

 

 

Janaina Rocha FurtadoI,* ; Andréa Vieira ZanellaII,**

IPrefeitura Municipal de Barra Velha
IIDepartamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina

 

 


RESUMO

As relações que as pessoas estabelecem com o entorno urbano na contemporaneidade são fundamentalmente relações práticoutilitárias, constituídas no desempenho das atividades cotidianas. Nesse sentido, demonstra-se que a arte visual urbana pode favorecer a formação de relações outras entre sujeito e cidade, possibilitando vivências estéticas que venham a modificar e ampliar essas relações, além de promover uma educação estética pela sensibilização do olhar. No presente artigo, apresentam-se reflexões sobre essas questões, considerando as conseqüências da modernização das cidades e do modernismo na arte para a vivência estética atual em contextos urbanos. Ganham destaque, nesse intento, as relações do ser humano com as artes visuais na cidade e a discussão sobre a importância da experiência estética e da educação estética na constituição dos sujeitos.

Palavras-chave: Artes visuais, Relações estéticas, Cidade.


ABSTRACT

The contemporary relations that people establish with the city are predominantly practical and utilitarian, constituted in the performance of daily activities. It is demonstrated that urban visual arts can promote the formation of other relations between the subject and the city, favoring aesthetic experiences that come to modify and amplify those relations and to promote an aesthetic education through the sensibility of the eyes. This article presents reflections on those issues, considering the consequences of modernization of cities and modernism in art for current aesthetic experiences in urban contexts. In that sense, emphasis is given to human beings’ relations with visual arts in the city and a discussion about the relevance of the aesthetic experience and education in the constitution of subjects.

Keywords: Visual arts, Aesthetic relations, City.


 

 

Entre transações e avenidas: artes visuais na cidade e suas implicações

As cidades se ampliaram e se desenvolveram expressivamente nos últimos séculos em decorrência da industrialização. Cada vez mais, vêm adquirindo e conservando um caráter de funcionalidade, fundamentado no constante, ininterrupto e rápido processo de fabricação e comercialização de produtos, bem como na oferta de inúmeros serviços públicos e privados. As relações do ser humano com o entorno urbano, conseqüentemente, se complexificaram, tornando-se primordialmente relações prático-utilitárias,1 ou seja, relações marcadas por uma lógica de consumo.

Compõem as cidades espaços diversos que coexistem e se complementam, deflagrando heterogeneidades e contradições próprias da dinâmica urbana (Canclini, 1990). Ali encontramos manifestações múltiplas engendradas entre o culto e o popular, o tradicional e o moderno, o artístico e o não artístico, tudo acontecendo simultaneamente, incorporado no tempo e na vivência metropolitana.

A experiência estética faz parte da vida do sujeito nesse contexto urbano como uma das formas de apropriação dessa realidade e pode estar relacionada tanto às paisagens, arquitetura, objetos industriais e artesanais, quanto à arte como objeto privilegiado no universo estético (Vàsquez, 1999). No entanto, historicamente, as relações estéticas com as artes visuais foram tendo seu espaço delimitado, passando a ser reconhecidas fundamentalmente em museus e galerias, locais, então, destinados ao legítimo contato artístico (Benjamin, 1996). Como essas mudanças se processaram?

As cidades, centros catalisadores dessa nova postura diante das coisas, dos espaços e das pessoas, foram concebidas de modo a viabilizar o progresso e todas as demais exigências desenvolvimentistas do projeto capitalista. Progresso só se alcança com ordem, assim a ordenação, a padronização e a racionalização dos espaços passaram a caracterizar os contextos citadinos, permitindo o pleno funcionamento da estrutura industrial e agilidade no comércio de produtos e serviços.

A organização do espaço urbano vinha contribuir com a logística dos empreendimentos; desse modo, priorizou-se a construção de espaços que servissem mais como entre-lugares, rumo às funções práticas do dia-a-dia, em detrimento das vivências coletivas e/ou comunitárias.

Enfim, as cidades ganharam forma para dar forma, potencializar/viabilizar a estrutura capitalista e, principalmente, favorecer o consumo. Especular, contemplar, divagar devagar não mais era possível aos transeuntes, aos cidadãos urbanos. As imagens-produtos, os cartazes, outdoors e propagandas foram disseminando-se e acumulando-se, óbvias, nas superfícies da cidade. E as relações com as artes visuais, estético-artísticas, não poderiam acontecer em qualquer lugar, não poderiam estar disponíveis a qualquer um: passaram a ser vendidas em propriedades físicas ou jurídicas, nas quais se reserva ainda toda a privacidade necessária à contemplação. Contemplação igualmente organizada e modulada pelas paredes brancas, iluminações precisas dos museus e galerias de arte, consoante os conhecimentos específicos de seus curadores.

No entanto, as reflexões sobre os princípios, o espaço e a função da arte na Modernidade permitiram que, nas últimas décadas, vários projetos de artes visuais fossem realizados em alguns centros metropolitanos e que se discutisse mais veementemente a arte na cidade. Passou-se a buscar e a valorizar as diferentes expressões artísticas visuais que se tinham espalhadas pelo espaço urbano (Argan, 1992).

Desse modo, perguntamo-nos: quais são as implicações dessa nova relação que vem sendo construída entre sujeito e artes visuais nos mais diferentes, prováveis e improváveis, espaços da cidade? O que promovem essas intervenções estético-visuais inseridas nas ordenadas e racionais estruturas urbanas? Por que a psicologia social deveria interessar-se por essas questões e pelas relações estéticas engendradas nos contextos urbanos?

Pensamos em como as cidades podem ser revisitadas com essas novas formas de expressão estética e, como psicólogas e estudiosas dos processos de criação e relações estéticas nos mais diversos contextos, buscamos refletir como as artes visuais na cidade podem possibilitar a constituição de sujeitos urbanos outros. Da imposta racional cidade moderna aos eminentes trânsitos e engarrafamentos estéticos, almejamos discutir, neste texto, as relações entre cidade, arte urbana e constituição dos sujeitos.

 

Modernização e modernismo: arte e cidade em jogo

Podemos denominar Modernidade, a partir das reflexões de David Harvey (1992), o período que se inaugura com o Iluminismo, em meados do século XVIII, e que acarretou diversas mudanças nos contextos do trabalho, da ciência, da produção, da economia, da estrutura social, na constituição dos sujeitos, na criação artística, enfim, no mundo. Mas necessário se faz problematizar essa definição considerando as discussões que vêm sendo feitas por teóricos que discutem as características da época atual, como o próprio Harvey (1992), Jameson (1996), Maffesoli (1995), Santaella (1980), entre outros, e que apontam as dificuldades de se estabelecerem periodizações estanques e homogeneizações quando se faz referência às definições culturais da civilização ocidental. Com essa ressalva, podemos prosseguir com as reflexões sobre o que se denomina como Modernidade.

A Modernidade apresenta-se como projeto de ruptura com a história e as tradições, ruptura essa sustentada pelo sonho de uma vida mais ordenada, sob a égide das conquistas da racionalidade, objetivada nos avanços da ciência. Canclini (1990) aponta quatro movimentos básicos que constituem a Modernidade e que ainda estão em desenvolvimento na América Latina. São eles: um projeto emancipador, através do qual se buscou a racionalização da vida social e o individualismo crescente, sobretudo nas grandes cidades; um projeto expansivo, na busca de entender o conhecimento da natureza, a produção, a circulação e o consumo dos bens, configurando a obtenção de lucro, mas também a promoção de descobertas científicas e o desenvolvimento industrial; um projeto renovador, que, complementar aos outros, procura melhorias e inovação incessantes na relação com a natureza, libertando a sociedade de toda concepção sagrada sobre como deve ser o mundo e, renovando, por outro lado, os signos desgastados pelo consumo massificado; por último, um projeto democratizador, que confia à educação a difusão da arte e os saberes especializados para obter uma evolução racional e moral.

Constata-se, assim, que o projeto de Modernidade envolveu todos os aspectos da vida em sociedade, provocando mudanças, não sem conflito, na busca do desenvolvimento científico, na política, na economia, na filosofia e na administração dos grandes centros urbanos. O que se pode dizer é que tal projeto se desenvolveu, principalmente após a Primeira Guerra Mundial, como um fenômeno tipicamente urbano.

As cidades passaram por um processo de modernização tanto tecnológica quanto funcional, que se objetivou nos prédios, hospitais, escolas, fábricas e tantas outras edificações, por conseqüência da acumulação populacional e para satisfazer as exigências do processo produtivo (Castells, 2000). Essas mudanças, por sua vez, foram marcadas por uma característica estética funcional, na medida em que se tentou organizar racionalmente a estrutura urbana a partir de um ideal arquitetônico, urbanístico e artístico (Harvey, 1992).

O Modernismo, como corrente artística que se desenvolve nesse período junto a essas transformações gerais, procurou acompanhar o esforço progressista, econômico-tecnológico, da civilização industrial (Argan, 1992). Tinha-se, então, a preocupação de reconstruir as cidades, de oferecer ótimas condições de emprego, de moradia, de saúde, de lazer. Pairavam os ideais de igualdade, de justiça, de cientificidade e de desenvolvimento econômico, permitindo que se buscasse uma arte que estivesse de acordo com o seu tempo e que renunciasse aos ideais clássicos tanto no estilo das obras, quanto nos temas.

Buscou-se diminuir as distâncias da arte com sua aplicação aos diversos campos da produção econômica, repercutindo em diferentes dimensões da vida social, como na construção civil e no vestuário. O entusiasmo pelo progresso industrial, por modernizar e atualizar a arte e, com a arte, a cidade, leva ao empenho em revolucionar as modalidades e a finalidade das produções artísticas (Argan, 1992; Harvey, 1992). Caberia, então, à arte tornar agradável, elegante, moderna e alegre a vida das pessoas na cidade, buscando o seu bemestar e o menor custo das construções.

De fato, é preciso afirmar que o Modernismo não foi um movimento uniforme e linear, mas permeado de tendências diversas que conflitavam entre si e que se modificaram nos diferentes momentos históricos. Após a Primeira Guerra Mundial, por exemplo, procurou-se satisfazer a inquietação da população com projetos de renovação e reconstrução urbana. A cidade foi entendida como um organismo produtivo, um aparelho que devia desenvolver certa força de trabalho e que precisava superar tudo o que impedia o seu funcionamento. Buscou-se o máximo de economia na utilização do solo e das construções a fim de sanar o problema de moradia. Impôs-se rigorosa racionalidade das formas arquitetônicas, a padronização e a pré-fabricação em série de todo tipo de objeto relativo à vida cotidiana e a “concepção da arquitetura e da produção industrial qualificadas como fatores condicionantes do progresso social e da educação democrática da comunidade” (Argan, 1992, p. 264).

No entanto, Harvey (1992) destaca que esses projetos modernistas de habitação, ao serem adotados como princípio para a solução de déficits de moradia para a população de baixa renda, foram concebidos para publicidade e prestígio dos governantes e acabaram por mascarar as diferenças históricas e sociais que subsistiam no contexto urbano. Desprezou-se o ornamento e a personalização das moradias tornando-as massificadas, e os ideais de democratização da comunidade serviram para despolitizar a população e alienála. Da mesma forma, esse movimento em favor da produtividade exigia a dominação do tempo pelo espaço, dinamizando, territorializando e hierarquizando os lugares, em detrimento da valorização de espaços coletivos de convivência, nos quais os sujeitos urbanos podiam se reconhecer.

O modernismo arquitetônico foi uma das formas de relação entre arte e cidade na Modernidade. O desenvolvimento do capitalismo e das novas formas de produção, circulação e consumo de bens materiais e simbólicos, engendraram por sua vez mudanças irrevogáveis na comercialização de produtos culturais, especificamente de produtos artísticos.

Persistia, no entanto, nos primeiros tempos dessas transformações, a concepção de que o artista era um mito, que possuía o dom para criar, mas, ao mesmo tempo, precisava a todo o momento de inovar esteticamente para ter seu trabalho apreciado e, conseqüentemente, conseguir vendê-lo. O artista não podia deixar, portanto, de adequar a sua produção e o seu estilo às exigências do mercado (Benjamin, 1996). A separação da arte e da produção criativa das demais produções humanas era balizada assim por concepções de estética e de criatividade que se assentavam na crença do dom inato da criação. A vivência estética estava, por sua vez, eminentemente relacionada a esses objetos artísticos únicos e distantes da experiência cotidiana das pessoas.

Foi esse lugar dado à arte, como portadora do belo, do essencial, do único e do inatingível, herança de uma concepção tradicional que perdurou no primeiro momento do Modernismo, que fez com que a produção criativa fosse separada dos objetos reais que a rodeavam, traçando uma linha divisória entre o que é estético e o extra-estético (Vàsquez, 1999). Criaramse os museus, lugares próprios para a contemplação da arte e para a vivência estética, estética essa eurocentrista e elitizada. Muito mais tarde é que a concepção de estética se ampliou e possibilitou abranger como arte objetos de outras culturas, que, em sua condição de exóticos, eram colocados nos museus para serem apreciados, misturados uns aos outros sem qualquer preocupação com o contexto nos quais foram produzidos, como se houvesse uma arte universal para além das particularidades históricas e culturais (Canclini, 1990).

Se de início o museu era o lugar da arte e ponto de separação de tudo o que não era arte, partindo de uma compreensão restrita, eurocêntrica, genialista, elitista de arte e estética, foi no decorrer da própria Modernidade que surgiram tendências que objetivavam questionar essas concepções e buscaram democratizar a arte e o seu conceito, sua função social e seu espaço, assim como dinamizar a compreensão estética do período, criando condições para a emergência de uma estética dita pós-moderna ou antiestética moderna.

A arte urbana aparece, então, como um movimento estético/artístico dentro do processo da Modernidade e da sua crítica, em que o status da arte é questionado, e a noção de cidade como espaço da razão, da produção e da função é dialetizada e ampliada para a de espaço de vivência humana, portanto, espaço complexo de relação. Embora a intervenção de arte na cidade ainda venha a ser muitas vezes utilizada exclusivamente para a propaganda e marketing, o que garante o apoio necessário do governo local, muitos projetos objetivam a sensibilização estética e a sua importância para promover novas formas de relação dos sujeitos com o entorno urbano, pontos estes nos quais vamos deter-nos.

 

Relações estéticas e constituição do sujeito

A partir da implicação arte e cidade, cabe-nos refletir sobre a concepção de cidade moderna, racional, funcional, produtiva, industrial, e a complexidade das relações humanas que ali se engendram. Podemos pensar, também, se relações estéticas podem ser vivenciadas em outros contextos, de outras formas e com outros objetos que não aqueles privilegiados no decorrer da história; e se é possível, através da democratização da arte ou mesmo da ampliação de suas fronteiras, de seu saber e de seu fazer, realizar uma forma de educação estética, ou seja, de formação de atividades estéticas que possibilitem engendrar outras relações do ser humano com a realidade.2 Por isso dialogar sobre arte urbana, quando partícipes das inumeráveis contradições da vivência metropolitana, torna-se uma questão fundamental.

Para esse diálogo consideramos a estética como uma forma específica de relação humana com o mundo, tão importante para o seu desenvolvimento quanto qualquer outra, não estando restrita a algumas pessoas, mas fazendo parte da constituição de todo e qualquer sujeito (Vàsquez, 1978).

Ainda convivemos com uma estética urbana racional, funcional, moderna e restritiva, que se impõe pela dominação econômica do tempo, sempre dinâmico, e dos lugares, já bastante privatizados, inviabilizando momentos e espaços onde os sujeitos possam sensibilizar-se com o que está ao seu redor e modificar sua maneira de viver. No entanto, outras formas de relação estética com a cidade podem emergir por meio da arte urbana e da valorização dos espaços públicos, da arquitetura e da cultura local, introduzindo a arte na própria vida, não como seu ornamento, e sim como possibilidade de transformação humana (Vigotski, 1998).

Olhar esteticamente a realidade amplia as possibilidades de relação com a natureza, com os objetos, com os outros e consigo mesmo, visto que os sujeitos, observando-os por outro ângulo e estabelecendo outras combinações, criam para si novas formas de vida, compondo outras tramas de existência no bojo de novos valores, novas sensibilidades, modificando-se profundamente neste processo. Olhares e sujeitos são, assim, historicamente constituídos, expressões de uma determinada organização da realidade que engendra modos datados e característicos de se ver e estar em relação com outros, com a realidade e consigo mesmo. Porém, esses mesmos sujeitos podem fundar outros olhares, podem estabelecer relações estéticas com a realidade, relações estas marcadas por um

olhar mais livre na sua apreensão significativa do mundo, pois busca outros ângulos de leitura, não para ver o objeto em sua présuposta verdade, mas buscando, na relação estética que estabelece com ele, produzir novos sentidos para a configuração de realidades outras. (Reis et al., 2004, p. 54)

As relações estéticas possibilitam, assim, produzir outros sentidos para o que é visto, ouvido, (re)conhecido, assim como reconstruir o olhar sobre o mundo. Permitem transformar, pela imaginação e pela sensibilidade que venham a se objetivar em atividade criadora, a nossa realidade (Vigotski, 1993), potencializando-nos como sujeitos capazes de resistir ao instituído e instituir formas singulares de existência.

Segundo Vigotski (2001), “a casa, o vestuário, a conversa e a leitura, e a maneira de andar, tudo isso pode servir igualmente como o mais nobre material para a elaboração estética” (p. 352). Assim sendo, relações estéticas não precisam estar vinculadas aos objetos que são oficialmente definidos como arte e que costumam estar expostos nos museus e galerias, mas a qualquer objeto que possa ser ressignificado em sua forma e conteúdo e que seja apreendido para além de sua função utilitária. Esses objetos do cotidiano, impregnados de potencial estético, podem ser alçados por qualquer pessoa à condição de partícipes de um intenso diálogo com os modos de ver, ouvir, estar e com a imaginação, possibilitando a atribuição de novos sentidos, novos olhares. Forjam-se, assim, as condições para a emergência de outros sujeitos, capazes de construir espaços outros de relação com a realidade.

Precisamos refletir, no entanto, sobre as condições que temos de fazer uma outra leitura dos objetos e das imagens saturadas do cotidiano, assim como procurar outras visibilidades e outros sentidos que as imagens urbanas podem suscitar. Fundamentalmente, é necessário considerar quais as condições que nos são dadas para que relações estéticas possam objetivar-se em nossas vivências cotidianas.

Quando falamos de arte visual na cidade, procuramos um novo olhar sobre a cidade, ressaltando o movimento próprio que ela tem e que não convém achar que pode ser racionalmente controlado tal como pretendia o projeto modernista. A cidade é marcada por fluxos ininterruptos, por relações contraditórias e diferentes com o que é popular, tradicional, antigo, moderno, bonito, feio, estranho. Enfim, é marcada por eventos e práticas sociais que se pretendeu omitir e sobrepujar via lógica da cidade racional, moderna, lógica esta que procurou nivelar a cidade por uma estética elitista e homogênea.

Contrária a essa lógica, a proposta de arte na cidade decorre da necessidade de priorizar outras relações humanas com o mundo, outras formas de comunicação e de linguagem na urbanidade: desconstruir a percepção que se fez unicamente utilitarista e seletiva do espaço circundante e altamente condicionada às tarefas cotidianas, estreitando-se verticalmente para direções que não se comunicam e não comunicam além do necessário para uma ação imediata. Procura, assim, construir espaços outros, abertos ao desinteresse da função prática dos objetos e à contemplação e ressignificação do que está em nossa volta, de modo a configurar e constituir outros sujeitos urbanos, que supere o que lhes é dado para criar outras redes de significação, outros campos de ação, resistências diversas.

 

Arte e cidade: vivências urbanas e relações estéticas

Vàsquez (1999) salienta que são várias as formas do ser humano se relacionar com a realidade. Essas formas, por sua vez, não se desenvolvem paralelamente, pois decorrem das especificidades de cada contexto social e cultural, de cada momento histórico que privilegia algumas e pouco valora outras. Nos centros urbanos, a partir da racionalidade moderna, foram priorizadas as relações prático-utilitárias, e a percepção do ser humano em relação à paisagem urbana se tornou predominantemente operacional e cristalizada.

As propostas de plano diretor partem dessa concepção prático-utilitária e se centram, geralmente, nos desenhos de linhas retas que privilegiam a ocupação racional do espaço urbano. As avenidas e ruas, espaço de passagem de veículos e seus condutores sempre apressados, apresentam poucos lugares para os pedestres ou mesmo para estacionamento: o objetivo não é a parada, e sim o fluxo sempre contínuo, que permite às pessoas se deslocarem entre pontos específicos, pré-determinados. As praças, por sua vez, cada vez mais clean, deixam de ser locais de encontro para serem pontos de espera do transporte coletivo, geralmente atrasado. E aos olhares, o que se apresenta? Cimento, vidros, linhas retas, uma ou outra árvore agonizante.

A estrutura da cidade atual viabiliza esse trânsito rápido e contínuo de pessoas desconhecidas, permeado de imagens sobrepostas e superficiais, que se impõem veementemente a um olhar desatento pelo espaço. A duração do olhar sobre o urbano é a duração do segundo que se faz necessário para ir, para passar, sendo rara a duração que se perde na contemplação. O todo que se apresenta como urbano, para aquele que sempre vai velozmente, é um todo desprovido dos detalhes, que exigem um caminhar mais lento, um parar pra ver.

Para romper com a cegueira que nos impede de admirar o entorno, Peixoto (1999) defende o olhar estrangeiro, que procura ver o lugar como se fosse a primeira vez, superando as imagens que se difundem pela cidade, banalizadas pela repetição incansável de si mesmas. Um olhar que re-introduz à paisagem a singularidade, a história e o encantamento e que, portanto, viabiliza relações estéticas e a constituição de sujeitos outros. Procurar o olhar que estranha o lugar familiar é dispor-se a ver o que até então parecia invisível e propor, para esse fim, uma outra cultura visual, uma educação do olhar que passa pela necessidade de reinventar nossa sensibilidade visual.

De certa forma, a arte urbana, que se intensificou nas décadas de 60 e 70, veio romper com os espaços de exposição tradicional, com os museus e galerias, para falar e dialogar com os lugares e recolocar as artes entre os objetos cotidianos e mesmo industriais (Peixoto, 2002). E, como objeto do cotidiano, veio reivindicar um sujeito do olhar, a presença humana, as marcas contínuas e singularidades que fazem desses espaços – privatizados pelas fábricas, outdoors, estabelecimento comerciais e outros – novamente espaços públicos, lugares de pessoalidade e relações estéticas informais.

Com sua proposta de ocupação de espaços inusitados, de abrir novas possibilidades de se perceber o entorno, a arte urbana provoca a desautomatização da percepção para ampliar as relações do ser humano com a realidade, modificando essas relações e os próprios sujeitos, na medida em que esse ser humano se implica na contemplação, a partir da sensibilização do olhar. Isso provoca rupturas com a concepção clássica de estética e possibilita pensar na viabilização de uma educação estética através da arte na cidade.

Assim como em outros modos de arte, a arte urbana permite um momento de criação, porque o processo de percepção requer que o sujeito recrie o objeto e, partindo da sua forma e do seu significado, imponha a este sentidos próprios (Vigotski, 2001). São esses novos sentidos que promovem uma relação diferente do ser humano com a cidade e, mais do que com o objeto de arte, com o entorno que lhe constitui. A relação estética dialoga assim com o extra-estético, o artístico com o não artístico, sendo que a arte urbana favorece essa comunicação porque quebra o isolamento imposto pela Modernidade entre sujeito e objeto estético, este último sempre exposto em um lugar que se quer neutro.

A todo momento, a arte na cidade comunica-se com o lugar em que está inserida, com os outros objetos e com as pessoas que por ali transitam e que podem vir a estabelecer relações estéticas com ela. Sendo assim, “as relações com o lugar tornam-se um componente indissociável da obra de arte. Essa nova experiência estética substitui a contemplação de objetos autônomos deslocados do contexto por uma colocação em situação” (Peixoto, 2002, p. 18).

A idéia que sustenta a criação em arte urbana é de que a cidade, como destaca Certeau (2000), é discurso humano, é uma construção social e histórica que comunica, modifica-se, extrapola qualquer tentativa racional de planejar as etapas, de compreendê-la como a uma máquina. O ser humano que nela habita não é somente um ser da razão, mas ser criativo, que estabelece relações afetivas, imaginárias e estéticas com o entorno urbano, construindoo e constituindo-se nele, relacionando-se com as pessoas tendo esse entorno como contexto. Portanto, é possível e fundamental pensar em uma outra comunicação desse ser humano com o espaço e em um outro trajeto do olhar sobre o mesmo, resgatando o lugar em seus detalhes, naquilo que oferece ao sentimento de participação, de fazer-se junto no diálogo urbano, implicando as pessoas nesse processo. A arte ali está para ser vista, para suscitar emoções em quem passa e, por que não dizer, fazer emergir outros e diferentes discursos visuais, imagens outras que venham a significar a imagem mostrada e provocar nossa forma já acostumada de ler o mundo e decifrar as imagens que nele se saturam.

A cidade é o lugar onde o público e o privado, o sujeito e a coletividade, se imbricam, onde as condições, as forças potencializadoras das ações humanas se articulam. Não é um espaço físico apenas, mas espaço de significação. Nesse sentido é que problematizamos esse espaço através da arte visual, para retomálo por sua dimensão humana, antropológica, e não tecnológica e funcional apenas.

Essa discussão está imbuída de uma preocupação com o futuro que queremos e como queremos nossas cidades, o que

implica a necessidade de se enfatizar a multiplicidade de sentidos e significações que o mundo urbano oferece. A resposta possível ao futuro das grandes cidades dirige-se a uma questão fundamental em nossos dias: revitalizar os sentidos das utopias, buscando as energias criativas das manifestações artísticas e retomando o caráter instaurativo das imagens urbanas como elemento fundamental. Em outros termos, pensar a cidade do futuro não a partir de perspectivas dualistas, mas colocando em relação dialógica a sensibilidade artística e a racionalidade técnica. (Limena, 2001, p. 41-42)

Se, por um lado, hoje é praticamente impossível se abster da reflexão sobre as relações entre cidade e natureza, uma vez que as discussões ecológicas trazem à cena as preocupações com o meio ambiente e alertam para a sua destruição, decorrente do avanço tecnológico desenfreado, por outro lado, esse mesmo avanço tecnológico, que possibilitou a industrialização, comercialização e consumo de produtos, bem como o desenvolvimento acelerado dos meios de comunicação de massa, requer que reflitamos sobre o lugar da arte e das relações estéticas com a cidade e com a natureza.

Em relação à exposição ou intervenção da arte urbana, existem problemas técnicos que precisam ser pensados: o tipo de material a ser utilizado, o local para a exposição, o apoio municipal e da comunidade, o tamanho adequado das obras, entre outros aspectos. A arte urbana interfere não somente em uma outra concepção estética da obra, mas também em uma outra concepção social e comunicacional (Canclini, 1982). Essas preocupações são fundamentais para pensarmos a cidade como uma construção humana, cujas relações podem ser modificadas e, portanto, como espaço de diálogo e não de imposição de uma ou outra estética, geralmente objetivada em esculturas e bustos espalhados pelas cidades, que pouco dizem respeito aos seus moradores.

No entanto, permanece uma certa preocupação de que esse tipo de arte seja mais um modo disfarçado de publicidade e política corporativa, uma vez que esses projetos podem ser utilizados para promover os locais como lugares únicos e vendê-los para turistas, assim como utilizados para ornamentar e embelezar a cidade para satisfazer seus moradores. “Sob o pretexto de ressuscitar lugares, a arte in situ acaba sendo mobilizada para apagar as diferenças, através da serialização mercantil das cidades” (Peixoto, 2002, p. 21).

Essas questões requerem atenção, e necessário se faz analisar detalhadamente os projetos de reurbanização através da arte e da arquitetura. Entre vários aspectos a serem considerados, destaca-se a preocupação com intervenções que esvaziam as características arquitetônicas, sociais e históricas dos lugares, mesmo que o objetivo das mesmas não seja adequar-se a essas características e ressaltálas; o respeito às condições específicas de cada bairro, cidade ou país, para não tornar a arte apenas uma distração das verdadeiras aflições e tormentos do ser humano na cidade moderna. Articular as necessidades públicas e locais é imperativo, no entanto faz-se mister não confundir arte urbana com renovação urbana ou recuperação de habitação inadequada (Arte Pública, 1998).

 

Considerações finais

Quando fazemos a defesa da arte na cidade, propomos não somente a ampliação das possibilidades de relação estética com o entorno urbano, já bastante pulverizado pelas construções acinzentadas, mas trazemos à tona uma discussão ética emergente: como é a cidade que queremos? A cidade que aí está favorece relações que nos são fundamentais? Contentamo-nos com as vivências estéticas intimistas e individualistas proporcionadas pelos museus e, atualmente, cada vez mais pelos veículos midiáticos? É realmente possível pensar em relações estéticas com o espaço urbano que configurem condições de possibilidades para se constituírem sujeitos outros?

A arte na cidade organiza a experiência do entorno e a experiência dos sujeitos que nela se implicam, provocando o contexto para novas significações do espaço. Por isso não cabe à arte se ajustar fielmente ao contexto, mas permitir a circulação e o deslocamento de sentidos em torno dela, deslizes que ressaltem as aproximações e os distanciamentos entre as pessoas e as possibilidades infinitas de transformação e superação de uma condição dada.

A arte contemporânea tem se voltado mais e mais ao questionamento da arte e a inesgotáveis leituras da obras em contextos os mais variados, em que as ações não são vistas isoladamente e seguindo regras próprias. Quer fazer-se plural, imponderável, sem qualquer controle ou previsão das condições e conseqüências das ações que ali ocorrem. Disso decorre o estreitamento das supostas distâncias e a dificuldade de diferenciar arte e não arte na contemporaneidade. Se as pesquisas mostram que arte de museu serve essencialmente para as classes cultas (Arte Pública, 1998), a arte urbana vem democratizar a arte, torná-la pública, ir ao encontro da comunidade e trazê-la ao encontro de suas produções. Apresenta-se, assim, a arte urbana como uma necessidade se o projeto que baliza a vida em sociedade é a formação integral do ser humano, é o investimento em suas possibilidades e a produção de novos e cada vez mais complexos modos de ser singulares e coletivos, razão pela qual defendemos as artes visuais na cidade e a ampliação dos espaços em que a arte urbana possa apresentar-se.

Certamente não cabe à arte resolver problemas sociais, mas ela pode promover relações estéticas na tessitura urbana e engendrar, a partir dessas relações, reflexões éticas e políticas. Não cabe à arte suspender as diferenças que coexistem no entorno urbano e viabilizá-lo como um museu aberto, mas criar novas tramas urbanas com a arquitetura, com as paisagens e as pessoas. Acredita-se que a arte urbana pode promover experiências estéticas capazes de modificar os modos de ser e ampliar as relações que se estabelecem com o espaço, constituindo o que Argan (1993) chama de sentimento de cidade.

A reflexão sobre as possibilidades de novas e outras relações estéticas na cidade implica, por sua vez, o reconhecimento da necessidade que temos de reinventar nossa percepção do urbano e a nossa sensibilidade de olhar e de ler os discursos visuais que ali se apresentam, o que destaca a importância da arte na cidade e suas inúmeras intercorrências, seja para os sujeitos que nela transitam, seja para a organização desse espaço que institui modos de ser e de viver. Reconstruir as cidades, assim, é possibilitar a reinvenção dos próprios sujeitos, é possibilitar modos de vida, e à pesquisa em psicologia cabe investigar a qualidade das relações que se estabelecem com a arte urbana e os modos de subjetivação que aí se engendram.

 

Referências

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Texto recebido em setembro/2007.
Aprovado para publicação em novembro/2007.

 

 

*Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina, psicóloga da Prefeitura Municipal de Barra Velha. E-mail: janarf1@yahoo.com.br
**Doutora em Psicologia pela PUC SP, professora titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: azanella@cfh.ufsc.br
1Segundo Vàsquez (1999) são várias as formas de relação que o ser humano pode estabelecer com a realidade: relações teórico-cognitivas; relações prático-utilitárias e prático-produtivas; relações mágicas, místicas ou religiosas; relações econômicas, políticas, jurídicas e morais; relações estéticas; entre outras. Essas relações são privilegiadas diferentemente em contextos sócio-históricos distintos.
2Por educação estética entende-se, a partir das contribuições de Vigotski (2001), o processo de sensibilização dos sujeitos, que permite, por meio de vivências estéticas concretas, estabelecer outras relações com a realidade, ampliando as condições de existência do ser humano e introduzindo a arte na própria vida.

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