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Psicologia em Revista
versão impressa ISSN 1677-1168
Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.15 no.3 Belo Horizonte dez. 2009
ARTIGOS
A experiência com a Literatura numa instituição prisional
Literary experience in prison institution
La experiencia con la Literatura en la institución de prisión
Mhyrna Boechat*; Virgínia Kastrup**
Universidade Federal do Rio de Janeiro
RESUMO
Este trabalho discute os desdobramentos de uma oficina de leitura com internos de uma prisão no Rio de Janeiro. A oficina se insere no quadro de trabalhos que usam a arte como instrumento de produção de subjetividade e transformação social, como política cognitiva e existencial. Para a compreensão da instituição-prisão, são usadas as ideias de Erving Goffman, Michel Foucault e Loïc Wacquant. Sobre os estudos de produção de subjetividade em oficinas de leitura, o texto toma como referencial Gilles Deleuze, Felix Guattari e Virgínia Kastrup. Foram realizados encontros semanais com um grupo heterogêneo quanto à escolaridade, para a prática da leitura em conjunto. São apresentados relatos dos encontros, para demonstrar a dinâmica do grupo e a multiplicidade dos efeitos produzidos. O texto analisa a potência da arte, precisamente da Literatura, como fator expansivo de subjetividade na atmosfera de violência e privação que caracteriza a instituição prisional.
Palavras-chave: literatura; produção de subjetividade; prisão.
ABSTRACT
This paper discusses the implantation and development of a reading workshop carried out with prisoner in a prison in Rio de Janeiro. The workshop belongs to the set of proposals that use art as a tool for the production of subjectivity and social change and also as a cognitive and existential politics. In order to understand the prison-institution, the text makes use of the ideas of Erving Goffman, Michel Foucault and Loïc Wacquant. Concerning the production of subjectivity studies, the text takes Gilles Deleuze, Felix Guattari and Virgínia Kastrup as a theoretical framework. For the practice of group reading, weekly meetings were held with a group that was heterogeneous concerning level of schooling. Reports of those meetings are presented in order to show the group dynamics and the manifold effects they produced. The text analyses the power of art, namely that of literature, as a factor that can expand the subjectivity in the atmosphere of violence and deprivation that is charachteristic of the prison institution.
Keywords: literature; production of subjectivity; prison.
RESUMEN
Este trabajo discute los desdoblamientos de un taller de la lectura con los internos de una prisión en Río de Janeiro. El taller si inserta en el cuadro de trabajos que utilizan el arte como instrumento de producción de la subjetividad y de la transformación social, mientras política cognitiva y existencial. Para la comprensión de la institución-cárcel son utilizadas las ideas de Erving Goffman, Michel Foucault y Loïc Wacquant. En los estudios de la producción de la subjetividad en talleres de lectura el texto toma como referencial Gilles Deleuze, Felix Guattari y Virginia Kastrup. Han sido realizado encuentros semanales con un grupo heterogéneo cuanto a la escolaridad, para la práctica de lectura en conjunto. Son presentados relatos de los encuentros para demostrar la dinámica del grupo y la multiplicidad de los efectos producidos. El texto analiza la potencia del arte, precisamente de la literatura, como factor expansivo de la subjetividad en la atmósfera de la violencia y la privación que caracteriza la institución de prisión.
Palabras-clave: literatura; producción de la subjetividad; prisión.
1 Introdução
O presente trabalho tem como objetivo apresentar a implantação e os desdobramentos de uma oficina de leitura realizada com internos da unidade prisional Hélio Gomes, no Complexo Penitenciário Frei Caneca, localizado na cidade do Rio de Janeiro. A oficina foi realizada durante de 16 meses, de 2006 a 2008. A atividade foi desenvolvida por meio do convênio entre a SEAP (Secretaria do Estado de Administração Penitenciária) e a divisão de Psicologia Aplicada da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Ocorreu no contexto de estágio do curso de formação em Psicologia de uma das autoras. O relato apresenta a discussão a respeito da potência da arte, mais precisamente da Literatura, como fator expansivo de subjetividade na atmosfera de violência e privação que caracteriza o presídio. Sugere a possibilidade de sua atuação no sentido de promover um desvio em relação ao suposto destino da marginalidade. Discorre sobre como a experiência com a Literatura por internados pode ocasionar microprocessos bifurcadores do determinismo instaurado nesses espaços. O estudo sugere ainda a leitura de textos literários como possibilidade de aprendizagem ética e transformação de si mesmo e do mundo.
O projeto da oficina surgiu com intuito de promover experiências, em suas dimensões cognitivas, afetivas e emocionais por meio da leitura de textos, instaurando um intervalo no cotidiano prisional e convidando os participantes a um encontro consigo mesmo. Este se insere no quadro de trabalhos que usam as oficinas de arte como instrumento de transformação social e de produção de subjetividade, por meio da leitura em conjunto e da discussão dos textos. O contato com autores clássicos, como Edgar A. Poe, Jorge Luis Borges e Graciliano Ramos poderia abrir espaço para descobertas por experiências afetivas diretas, proporcionadas pela apurada sutileza com que tais autores tratam de temas caros à existência humana.
Serão apresentados relatos de encontros com o objetivo de demonstrar aspectos relevantes da dinâmica do grupo e a diversidade de temas que estiveram presentes, no intuito de evidenciar a multiplicidade dos efeitos da leitura. Para a compreensão do tema da instituição-prisão, foram usadas as ideias de Erving Goffman, Michel Foucault e Loïc Wacquant. Sobre os estudos acerca da produção de subjetividade em oficinas de leitura, tomamos como referencial Gilles Deleuze, Felix Guattari e Virgínia Kastrup.
2 Sobre a prisão
O fracasso da instituição penal em seu objetivo de reduzir a criminalidade foi constatado desde os primeiros anos do século XIX, depois de seu estabelecimento como dispositivo penal, e sempre esteve acompanhado de sua manutenção. Em "Vigiar e punir" (1977), Michel Foucault sugere a análise da detenção penal não pelo seu objetivo fracassado de suprimir a criminalidade, mas antes de distinguir as infrações, organizá-las e usá-las, introduzindo-as em uma gestão diferencial, construindo uma economia geral das ilegalidades. O investimento na punição gera práticas ilegais quando produz delinquência. Foucault propõe uma análise da detenção penal como via de controle da população errante e de atos ilegais, impedindo que estes se ampliem e se manifestem. Desde então, a punição não reprime o crime, mas atribui ilegalidade a determinadas infrações e marca definitivamente os condenados, mesmo aqueles que quitaram suas dívidas com a justiça.
Atualmente o modelo de punição como privação de liberdade responde a demandas referentes à ordem político-econômica vigente. Com a crise do modelo da social-democracia (baseado na regulação econômica e na extensão da rede de proteção social), bem como do advento do neoliberalismo, notadamente a partir da década de 70 do século XX, há uma reformulação das políticas públicas. Tal crise caracteriza a passagem de um regime de pleno emprego ao reconhecimento do desemprego como fator estrutural da economia. Nesse panorama internacional, a taxa de encarceramento é multiplicada em seis vezes nos últimos vinte anos1. O desenvolvimento do aparelho penal apresenta-se então como resposta ao sistema caracterizado pela desregulamentação da economia e aos problemas enfrentados nesse novo paradigma.
Como uma tendência mundial, o sistema penitenciário vem recebendo investimentos maciços a exemplo da política pública de "tolerância zero" norte-americana. Nota-se a "supressão do Estado econômico, o enfraquecimento do Estado social e glorificação do Estado penal" (Wacquant, 2001, p. 18). Além de forte incentivo da mídia, é forjada uma contradição pela presença máxima do Estado no setor de segurança e pelo Estado mínimo no âmbito socioeconômico. Nos países marcados por fortes disparidades sociais, a carência histórica de uma tradição democrática torna o impacto de tais mudanças ainda mais mordaz.
No Brasil, o peso histórico da escravidão, dos conflitos agrários e da ditadura recai sobre a mentalidade coletiva, no uso da força policial para a parcela proletária e na estratificação etnorracial no aparelho judiciário, por exemplo. Assim, o sistema penitenciário brasileiro caracteriza-se por superlotação dos estabelecimentos e condições de vida sub-humanas. A brutalidade cotidiana e a ausência de assistência à população carcerária apenas concorrem para a situação de pobreza e desigualdade, enquanto condena não só o apenado como também sua família ao estigma da ficha criminal, levando-os à discriminação e ao desemprego.
No Rio de Janeiro contemporâneo, são necessárias e urgentes intervenções no sentido de enfraquecer as forças opressoras do neoliberalismo que impelem a propagação, endêmica do crime, da miséria e do medo. Por outro lado, faz-se necessário o desenvolvimento de projetos transdisciplinares de atenção à população carcerária, bem como às famílias, para romper com a lógica viciosa de marginalização da pobreza ou "ditadura sobre os pobres" (Wacquant, 2001). A situação exige propostas inventivas e movimentos de transformação, com o paralelo estudo de seus efeitos.
3 Os modos de subjetivação na unidade prisional
A detenção penal tem como função a privação de liberdade, bem como a transformação dos indivíduos por meio de práticas disciplinares. Foucault (1977) descreve e analisa a disciplina na prisão, onde é esgotada de maneira exaustiva e integral em todas as suas formas, é o que o autor chama de "onidisciplinaridade" (1977, p. 144). A transformação do indivíduo gera saber por intermédio de vigilância, registro e atualização constantes e, em contrapartida, esses mesmos saberes definem como se encaminhará sua pena. O sistema carcerário, seja na sua aplicação, seja na constituição de saber, exerce seus efeitos sobre o corpo, aquele que não deve ser supliciado, e sobre a alma, sede de hábitos. A disciplina vigia, normaliza e examina, delineando a constituição do sujeito. Quando objetiva o sujeito, individualiza e introduz o indivíduo moderno na alçada do saber. O indivíduo se constitui tal como é descrito, mensurado, classificado e normalizado. Na prisão, os efeitos de poder e desenvolvimento de saberes se reforçam mutuamente. É onde melhor se expressa a tecnologia política disciplinar. Trata-se de um tipo de poder produtivo e não exclusivamente repressivo, que se apropria das forças e as reutiliza. O investimento de poder efetua-se a partir dos corpos e das forças e comporta ainda um desdobramento incorpóreo direto: a "alma" moderna.
Em sua obra "O uso dos prazeres" (1984), Foucault aponta a subjetivação como um eixo integrante da relação entre o poder, como vetores de força, e o saber, como dimensão de verdade e conhecimento. As práticas de subjetivação e de cuidado de si derivam de códigos morais e de condutas normativas, conferindo a eles uma dimensão moduladora e individualizante (Deleuze, 2005). Segundo Foucault, a maneira como um sujeito obedece ou resiste a regras, como respeita ou negligencia os valores e seus modos de sujeição às normas constituem margens de variação únicas.
No universo prisional, as práticas de si variam a partir das nuances das leis e normas. Um mesmo interno pode transgredir ou submeter-se a uma regra por motivos diversos de outros internos, como também pode optar por negligenciar outras regras, traçando um caminho próprio. Por exemplo, o uso de drogas pode demonstrar posições de absenteísmo, forma de apoio à facção criminosa, forma de afirmação frente aos companheiros de cela, dentre outras. O uso pode ser restrito a algumas drogas ou não e, sendo dessa forma, pode variar por razões ideológicas, religiosas, status ou outras.
A relação consigo mesmo foge ao rigor das malhas de poder e de seus códigos, o que dará origem a pontos de resistência, nos quais a pessoa problematiza o que é e o mundo onde se insere. Como afirma Foucault, os "homens não somente se fixam em regras de conduta como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo". É o que chama de arte da existência (Foucault, 1984, p. 15). Na prisão, o cuidado de si, essa estética da existência, apresenta-se por esquemas criativos de sobrevivência e convívio na estrutura física e semiótica daquele espaço. A conhecida privação no interior dessas organizações, somada ao abandono do sistema penitenciário brasileiro, com a escassez até mesmo de materiais básicos de higiene, produzem mecanismos improvisados e criativos de maneiras de se comunicar, cozinhar, negociar produtos, transportar objetos e diversas formas inventivas de existir, muitas vezes ilícitas. Sob essa perspectiva, a prisão se apresenta não somente em sua estagnação e esterilidade, mas em um estado latente e fervilhante de potencial inventivo. Esse ponto de vista questiona a concepção comum da prisão como lugar reservado ao confinamento e ociosidade de mentes criminosas, incapazes de exercer qualquer outra atividade além de sua única aptidão: a disposição ao crime. Não podemos negar aqui o poder de violência e hostilidade do meio, bem como acontecimentos indizíveis e mesmo fantásticos aos olhos da classe média.
Os internos requeriam aos guardas a entrada de livros, instrumentos musicais e materiais para confecção de peças artesanais, demonstrando interesse em desenvolver alguma atividade durante o tempo de que dispunham. Muitas vezes a entrada desse material era negada pela administração. A realização de alguma atividade se mostrava possível, já que existiam desejo e potencial inventivo, e parecia necessária, em razão da ansiedade gerada pela ociosidade que, segundo os presos, dificultam a espera pela liberdade. Do ponto de vista prático, o uso da leitura, onde os recursos necessários seriam somente livros, se apresentou como saída para a efetivação de um trabalho com a população carcerária, tendo em vista a carência de recursos e a dificuldade em obter autorização para a entrada de outros materiais. Por outro lado, é sabido que a leitura de textos literários é uma prática de transformação de si e do mundo. Em sua dimensão ética, a Literatura prepara um campo fértil para promoção de experiências de problematização e transposição dos limites de si mesmo e do meio (Kastrup, 2000, 2002; Cabral, 2006).
4 Sobre a Literatura
A leitura de textos literários possibilita o desenvolvimento de modos de subjetivação ou processos de singularização e maneiras de resistir a modos sobrecodificados preestabelecidos. Tecnologias cognitivas de massa, como a televisão, tendem a difundir a serialização e planificação de subjetividades, apontando para o consumo passivo de imagens, de sistema de representação, de sensibilidade e desejo (Kastrup, 2000, p. 69). Considerando o caso específico dos presídios brasileiros, a massa carcerária consome quase que exclusivamente a programação televisiva como opção de entretenimento. A repetição constante dos mesmos temas nessa programação (que circulam entre violência, sexo e corrupção) reduz o repertório de escolhas do preso, que tem poucos canais a sua disposição e que variam muito pouco entre si. A leitura de jornais populares, que comportam temas e linguagem muito próximas às da TV, apresenta-se como uma segunda alternativa de entretenimento. Outra forma de leitura comum na prisão é aquela de caráter religioso2. Internos que buscassem por livros de outra natureza na biblioteca do colégio não encontravam senão livros didáticos. Havia, na biblioteca, poucos livros disponíveis de Literatura, os quais permaneciam intocados.
Para melhor ilustrar a escassez de escolhas pessoais, Goffman (2005) descreveu a dinâmica da instituição total3 como algo que priva o direito de escolha do internado, em função de um plano administrativo central e racional, para a preservação da instituição e manutenção de seu funcionamento. Os sujeitos são proibidos de escolher os horários de suas refeições, restringem-se a circular por espaços delimitados, usam vestuário padronizado, etc. Todavia o internado pode escolher entre ler ou não ler, os tipos de leituras, quais autores, a estória, em quais universos pretende se arriscar no interior de uma prisão.
A respeito do potencial de superação provido pela arte, Guattari e Rolnik afirmam:
A literatura, bem como a música ou a pintura podem acarretar processos de percepção e sensibilidade completamente novos, alcançando microprocessos revolucionários, diferenciação nos modos de temporalização, possibilidade de reapropriação de produtos midiáticos, captação de elementos situacionais que construam referências práticas ou teóricas com certa autonomia do poder global, a níveis semióticos (1986, p. 45).
A primeira tentativa de realização do grupo se deu em outra unidade prisional, e os trabalhos foram interrompidos pela supervisão, que, em desacordo com o referencial teórico usado, chegou a afirmar que o trabalho realizado "não era psicologia". Esse fato nos levou a procurar outra unidade prisional, o presídio Hélio Gomes, que finalmente aceitou o projeto. Ainda assim, os empecilhos burocráticos e ideológicos colocados pela instituição atrasaram o início das atividades do grupo em nove meses. A simples intenção de reunir internos encarnava um cunho transgressor. Os pedidos de autorização para efetuação da oficina a vários níveis de hierarquia, o atraso nas avaliações do projeto da oficina, a falta de espaço físico e a indisposição de funcionários ocasionaram inúmeras dificuldades para a implantação do trabalho.
O trânsito de internos era de inteira responsabilidade dos guardas responsáveis pelo turno e, por essa razão, dava-se de maneira conturbada. Observava-se uma rivalidade fortemente arraigada entre presos e guardas, fundada em discursos, afetos e saberes que legitimam a violência física e simbólica (Boechat, 2008). Assim, a posição de alguns profissionais, principalmente psicólogos e assistentes sociais frente a denúncias de violência, é de culpabilização, de críticas inflamadas à atuação dos guardas. A rotina de trabalho cria uma cisão entre os profissionais da segurança e os de tratamento, o que dificulta a possibilidade de negociação e bom andamento dos trabalhos, prejudicando principalmente os presos. Os psicólogos são vistos pelos guardas como ingênuos "por acreditarem no que os presos dizem", dessa forma não conseguem reconhecimento e colaboração. Em um dos encontros, um guarda perguntou sorrindo: "É você que conta estorinha para preso?".
A tensão desse ambiente se retroalimenta com as precárias condições de trabalho do agente penitenciário, como pouco reconhecimento, má remuneração, capacitação inadequada, acompanhamento médico e psicológico insuficiente, superlotação prisional e reduzido número de guardas.
5 A dinâmica do trabalho da oficina
Foram realizados encontros semanais, com duração de aproximadamente duas horas. O limite de tempo foi estabelecido pelas dificuldades impostas pela instituição. Os encontros ocorriam na escola ou na igreja - católica ou evangélica - de acordo com a disponibilidade desses espaços.
O grupo era constituído de nove internos de idade entre 28 a 52 anos. O grupo era heterogêneo quanto ao grau de escolaridade. Havia um interno com o terceiro grau finalizado, dois com ensino médio e o restante do grupo não havia concluído o primeiro segmento do ensino fundamental. A seleção dos presos foi elaborada por meio de dados coletados nos exames criminológicos e discussões com a supervisão. Foi fundada em dois critérios: o primeiro, a alta penalidade a ser cumprida, pretendia garantir maior tempo de permanência no grupo. O segundo critério, não receber visitas de familiares, foi estipulado a partir de relatos de internos, que descreviam um sentimento de intensa angústia e relatavam que a falta da visitas tornava a espera por liberdade extremamente difícil.
A maioria dos participantes só havia tomado contato com livros de caráter religioso, como a Bíblia ou com livros do gênero autoajuda. Em princípio, a escolha dos textos não foi realizada pelos presos, mas pela própria coordenadora do trabalho, e o material era copiado e distribuído ao grupo. Na seleção dos primeiros textos, foi usada como estratégia a literatura fantástica que, segundo Ítalo Calvino, "nos diz muitas coisas sobre a interioridade do indivíduo e sobre a simbologia coletiva" (2004, p. 10). Alguns exemplos de contos utilizados nesse período foram "O coração denunciador" e "A casa de Usher", de Edgar A. Poe; "O livro de areia" e "O Outro", de Jorge L. Borges. O conto fantástico foi escolhido pela própria solicitação dos presos por "aventura"5. Os finais surpreendentes, com elementos extraordinários ou coisas banais que ocultassem algo de aterrador, envolvia a todos.
Posteriormente foram emprestados livros para que os internos levassem para a cela e escolhessem o conto a ser lido no próximo encontro. Pedia-se então que eles explicassem o motivo da escolha. Também foram feitas avaliações regulares a respeito da dinâmica do trabalho, em que se perguntava o que poderia mudar para torná-lo melhor e quais eram os aspectos positivos e negativos. Foram elaborados relatos detalhados de todos os encontros realizados.
Primeiramente, esclareci aos internos que a fluência na leitura não seria condição para participarem da oficina e que os que tivessem dificuldade de acompanhar poderiam compreender a estória ouvindo, pois faríamos mais de uma leitura em voz alta. Deixei bastante claro que, mesmo sendo da Psicologia, não pretendia avaliar seus comportamentos. Tive o cuidado de esclarecer que a participação na oficina não implicaria na concessão de benefícios legais em seus processos, pois os internos, em geral, anseiam por pareceres favoráveis. Sempre havia cuidado em usar a linguagem menos formal possível para reduzir a distância que me separava do grupo enquanto "dotora" (como me chamavam) e me preocupava em não pressupor ingenuidade da parte deles por seu baixo nível de escolaridade. Pensava que se tratasse de temas existenciais, encontraria pontos de cruzamento e uma linguagem comum a todos nós, independente das discrepâncias sociais e culturais existentes.
A oficina guardava constante atenção em não imprimir nos participantes discursos vazios a respeito de uma suposta importância da leitura, ou ainda discursos impregnados da noção de "cultura-valor", no sentido levantado por Guattari e Rolnik (1986), em que a palavra cultura remete a um julgamento, substituindo noções segregativas. Não se tratava de um exercício da leitura para acumular de saber ou obter cultura.
A seguir, serão apresentados os relatos de dois encontros.
6 "As joias", de Guy Maupassant
O conto "As joias" foi retirado de uma coletânea de Guy Maupassant, que encontrei em meio aos livros didáticos da biblioteca. O livro era datado de 1955, e todas as páginas tinham as extremidades unidas. Foi preciso cortar as antigas páginas amareladas para que fosse lido pela primeira vez, após 52 anos de sua publicação. Foram feitas cópias do texto para serem distribuídas aos participantes.
Como de costume, aguardei por aproximadamente uma hora e quarenta minutos pelos participantes para dar início ao trabalho. A leitura foi iniciada sem qualquer explicação prévia sobre o conto. O texto narra a estória de um homem que se casa com uma graciosa jovem de classe média, muito dedicada, e levam juntos uma vida modesta, pacata e feliz. Até que sua esposa vem a falecer, e ele descobre uma fortuna em joias em seus pertences, levantando dúvidas sobre a sua fidelidade. O personagem passa a viver angustiado, mas opta por não buscar a verdade nos fatos passados e passa a usufruir os bens herdados. Gozando de uma vida confortável, resolve casar-se novamente, dessa vez com uma mulher honesta, porém irascível, que não o faz feliz. Ao término da leitura, expliquei que o autor tinha escrito o texto por volta de 1850, e por isso usava palavras desconhecidas, mas afirmei que isso não prejudicaria nosso entendimento do texto.
Um dos participantes exclamou intrigado: "Ia ser bom ter o livro, para saber o final da estória". Eu respondi: "A estória termina aqui mesmo". Outro interno exclamou, indignado: "Então a estória tá mal contada. Não tem fim..." Expliquei que a riqueza do texto está em deixar no leitor a dúvida atormentadora que viveu o personagem. Seguiu-se o comentário: "Se esse autor estivesse vivo, eu mandaria uma carta para saber o fim da estória". Na discussão, todos concluíram que um amante havia dado as joias para a jovem. Outro interno exclamou que a culpa era da mãe, que tinha "mania de grandeza e queria casar a filha com um homem rico". Ele se refere a um detalhe presente numa passagem do texto, a respeito das ambições da mãe da personagem, que gostaria de casar a filha com um homem rico. Alguém comenta que a família não tem culpa pela desonestidade da filha: "A minha família é honesta, e eu sou ladrão".
Outro interno afirmou que: "O que os olhos não veem o coração não sente. Eu não ia nem querer saber de onde vieram as joias. Ia pensar que ela economizava o dinheiro e, se ela traía mesmo... não importa. O que importa mesmo é que ela me fez feliz". Falaram sobre estórias de traição na prisão e recordaram um caso ocorrido na unidade, em que a esposa do interno se envolveu com outra pessoa, e seu companheiro foi avisado no presídio. Ele aguardou o dia de seu parlatório6 e, durante a visita, matou a facadas a namorada. Os internos afirmaram que o ocorrido não é incomum e já aconteceu em outros presídios. Falaram de outros destinos para traições, como, por exemplo, internos que são "largados" por suas namoradas e acabam se matando. Poucas semanas mais tarde, a equipe de Psicologia soube de um caso de suicídio pelas mesmas razões discutidas. O "Faxina"7 da sala da Psicologia chegou pela manhã na sala de atendimento muito abalado. Disse que seu companheiro estava demorando a acordar para trabalhar e, quando ele o chamou em sua comarca8, constatou que ele havia se suicidado. Havia amarrado os pés em uma extremidade da comarca e seu pescoço em outra e, flexionando os joelhos, forçou sua garganta e veio a falecer por asfixia. O faxina contava ofegante que seu amigo havia recebido uma carta da esposa informando que "estava morando com outro". Disse então: "Não dá pra aguentar isso aqui (referindo-se à prisão) sem família não, doutora. Ninguém aguenta isso não".
O conto de Maupassant é composto por palavras rebuscadas, próprias do século XIX. Havia a possibilidade de estarmos propondo uma leitura muito densa para aquele que era um dos primeiros encontros, fazendo com que a oficina caísse no risco da indiferença, pela inacessibilidade. Quando solicitavam, esclarecia o significado de algumas palavras, apresentando sinônimos. No momento em que o personagem central descobre as joias nos pertences de sua esposa, levantando suspeitas sobre sua fidelidade, era notável a expressão facial de surpresa e espanto nos rostos dos participantes, denunciando o envolvimento com a leitura. E um deles chegou a exclamar: "Já existia isso desde aquela época!". Isso contava como um dos indícios de o texto ter atingido os leitores, apesar da dificuldade do vocabulário.
Pude notar ainda que os internos nunca haviam tido contato com esse tipo de estrutura de texto, que deixa em aberto questões levantadas e mantém uma atmosfera de dúvidas e problematizações. Isso pode se justificar pelo fato de suas experiências serem quase que exclusivamente com leituras de cunho religioso, que ensina ao leitor conclusões seguras a respeito de certo conteúdo moral a ser aprendido. O estranhamento em relação ao texto de Maupassant chegou a ser entendido por um deles como se a estória estivesse "mal contada". Expliquei a eles que a estória foi assim construída de maneira intencional, e que a grandeza do autor expressava-se justamente em sua capacidade de transmitir ao leitor o mal-estar do personagem, em sua dúvida atormentadora de ter sido traído. Esclareci ainda que não era objetivo da oficina privilegiar certos autores ou estilos. Apenas havia trazido uma possibilidade de escrita inédita, diferenciada de suas leituras anteriores.
O calor da discussão, em seus graus de discordância, soou como sinal marcante dos efeitos afetivos gerados pela leitura. Num encontro posterior, um dos participantes mais mobilizados disse que não conseguia parar de pensar nesse texto e que narrou para seus companheiros de cela, que se interessaram em lê-lo, gerando polêmica. Outros participantes agiram da mesma forma. Nesse mesmo dia, um interno comentou ter lido o texto do encontro anterior ("A Rosa de Paracelso", de Jorge L. Borges) com seu amigo de cela, que se interessou pelo tema e pediu para participar do grupo. Posteriormente, outros participantes do grupo também dividiram seus textos com companheiros de cela.
Esse evento chamou atenção, e foi um indicador de um efeito imprevisto. Criou-se, paralela à oficina, uma rede de leitores, participantes não presenciais, que influenciavam indiretamente a dinâmica do grupo, através da leitura em suas comarcas, que geravam discussões nas celas e retornavam ao grupo. Quase todos os participantes trouxeram bilhetes de seus companheiros, solicitando a participação na oficina. Nem sempre pude atender aos pedidos. No entanto, a influência da prática alastrou-se, envolvendo um número maior de internos. Aos poucos, a iniciativa de emprestar o texto aos companheiros se estendia a outras celas, criando um fluxo de trocas em um contágio enriquecedor. Pela impossibilidade de entrar nas galerias, só pude avaliar os efeitos dessa leitura "não acompanhada" pelo que era trazido ao grupo.
Sugeri que relessem na cela os textos que lhes havia interessado, porque assim descobririam mais elementos no texto e poderiam até mesmo chegar a novas conclusões.
7 A oficina avaliada pelos leitores
O início do encontro se deu às 12h30min, em uma sala do colégio. O preparo necessário para convocação de internos se dava pela manhã, e nosso encontro acontecia em média com uma hora e meia, até duas horas de atraso, por causa das dificuldades impostas pela instituição. Três novos internos chegaram ao grupo, e outros três saíram. Era período de recesso, e a escola não tinha sido frequentada, nem tinha sido limpa. À nossa volta, acumulam-se pelos cantos e em cima de algumas mesas dejetos de ratazanas. A ameaça à integridade física estava presente não apenas no interior das celas, e a iminência da contaminação se estendia também aos funcionários e visitantes. Durante o tempo em que aguardamos a chegada de todos, conversamos sobre o livro "Manicômios, prisões e conventos", de Erving Goffman, que eu trazia comigo e que estava sobre a mesa, chamando a atenção do grupo. Expliquei brevemente o assunto do livro e disse que, apesar de ter sido escrito em 1963, ainda era pertinente para os estudos sobre as prisões atuais. Perguntei se eles achavam que a prisão atual é mais "humana", levando em consideração que a maioria deles já havia sido presa mais de uma vez.
Um dos internos afirmou: "Achava melhor antigamente, porque a gente falava com o pessoal dos direitos humanos. Eles iam lá dentro das galerias e ouviam a gente. Antes os presos se respeitavam mais. Hoje em dia, os presos são muito novos e não respeitam ninguém". Os internos mais velhos espantam-se com o niilismo dos mais novos, que não têm um ideal pelo qual lutar, não têm identificação com sua atividade no crime e "se vendem pelas drogas". Perguntei se o fato de o grupo ser predominantemente constituído por pessoas mais velhas teria a ver com essa indisposição dos jovens para se engajarem. Eles concordaram: "Eles não têm vontade de fazer nada, ficam o dia inteiro arrumando briga na cela". Segundo eles, os mais jovens caracterizam-se por serem violentos e não respeitarem limites. "Batem em coroa, matam qualquer um por drogas". Segundo seu discurso, parece haver uma ética que se perdeu com a introdução da cocaína no crime. Parece que a flexibilização de valores, própria da contemporaneidade, se expressa diretamente no comportamento dos jovens e na macroestrutura do crime.
Falei sobre os maus tratos que também existiam nos manicômios, e um interno lembrou: "Fui fazer um trabalho na casa do diretor do manicômio - da região onde residia - e, na hora, lá, eu lembrei de tudo que falaram dele (rindo). Aí eu fiz com ele também, para saber onde ele guardava o dinheiro. O coroa era ruim, não disse... Só falou quando pegamos o filho dele". Os internos mais velhos são especializados em um tipo de crime, e chamam sua atividade de trabalho. Cada um falou sobre seus "trabalhos". Um dos recém-chegados ao grupo dizia que "sua arte era outra, era chave mestra". Abria lojas para que outros roubassem. A importância do crime em suas vidas ganha a dimensão de um trabalho, com todas as suas implicações de identificação, reconhecimento social e engajamento.
Com todos os participantes presentes, iniciei a avaliação do trabalho da oficina. Pedi que os internos antigos explicassem aos que haviam chegado como funcionava o grupo e por que estavam ali. Um dos participantes, bastante entusiasmado, disse que poderiam se beneficiar nos exames de sua participação no grupo, ou seja, o psicólogo poderia dar boas referências dele ao juiz. Afirmou que sair da cela era o maior benefício, e que ali eles podiam se distrair também. Outro interno disse que ali eles poderiam "sair da cela para respirar", poderiam ganhar benefícios, "aprender a ver as coisas de outra maneira" e "abrir a mente". Outro disse que o grupo "era bom", porque sua participação poderia expedir pareceres favoráveis em suas avaliações judiciais. Disse ainda que ali era um espaço reservado, em que poderiam "falar o que sentiam", "desabafar". Apesar dos meus esclarecimentos iniciais quanto à participação na oficina não implicar em benefícios em relação aos pareceres, os internos ignoraram por completo minhas advertências do primeiro encontro. No entanto, a opinião geral sobre o grupo parecia se centrar nos benefícios, na possibilidade de circular pelo presídio e, em último lugar, considerou os efeitos da leitura. Uma interpretação precipitada de seus discursos apontaria para o fracasso dos nossos objetivos iniciais, como uma espécie de injeção de desânimo sobre nossa expectativa a respeito de seus resultados.
Contudo as falas faziam notar o caráter intempestivo da experiência. Se, por um lado, demonstravam a carência de discursos que sustentassem e positivassem a prática da leitura de textos literários, por outro demonstravam acentuado envolvimento afetivo com ela. Pode-se cogitar que os membros mais antigos do grupo, à sua maneira, disseram aos outros internos recém-chegados que a oficina seria uma boa oportunidade e, para isso, apontavam vantagens, mesmo aquelas que eu terminantemente garanti que não lhes daria.
No mesmo encontro, dois deles contaram, revoltados, que um interno roubou um livro "de mil oitocentos e pouco" da biblioteca, levou para a cela e queimou o livro "apenas para fazer uma fogueira". Como se houvessem presenciado um crime, descreviam e reprovavam a maneira como o homem desfolhou as páginas do livro para queimá-las uma a uma: "A gente não podia fazer nada". Também podíamos notar o cuidado com os livros quando alguns participantes devolviam-nos reparados por eles mesmos, com material do colégio.
Os enredos das estórias passavam à posição de tema central nas discussões com outros companheiros dentro das galerias. Elementos dos contos confundiam-se com os de sonhos, a exemplo do interno que, indignado com a possível infidelidade da personagem do conto de Maupassant, chegou a ter pesadelos com essa mesma questão. Entretanto o principal indício do compromisso com a oficina era a própria presença nas atividades. Após o encontro, saíam diretamente da escola para a "gaiola"9 e lá esperavam serem levados de volta para a cela. O encontro era realizado na parte da manhã, e os internos aguardavam naquele cubículo imundo até quatro horas sem se alimentar, e ainda sofriam ameaças e provocações. Um interno havia dito que procurava manter-se afastado da escola para "evitar confusões", porque a saída da cela expunha a contatos e consequentes riscos. Todos concordavam que frequentar a oficina era arriscado. Além disso, a postura de concentração e envolvimento não parecia em nada com uma simples atitude de evadir de suas celas apenas para "passar o tempo".
Notou-se que os internos que se uniram ao grupo nesse encontro apresentavam um tipo de relação física com os textos discrepantes daqueles que já vinham acompanhando o trabalho. Os primeiros seguravam-no como se o fizessem com qualquer objeto, sem atentar para o conteúdo escrito, enquanto os segundos demonstravam extremo cuidado.
8 A Literatura e a expansão de territórios
A oficina de leitura não ambicionou ser uma resposta opositiva ao problema da exclusão social e produção de delinquência própria à instituição, mas se apresentou como um movimento de resistência e um desvio em relação às práticas psicológicas mais frequentes e aos objetivos institucionais apoiados em práticas de privação e de disciplina. Para tanto, forneceu subsídios para a criação de modos de subjetivação, ampliando a oportunidade de experiências de si por meio da leitura.
A oficina de leitura não ambicionou ser uma resposta opositiva ao problema da exclusão social e produção de delinquência própria à instituição, mas se apresentou como um movimento de resistência e um desvio em relação às práticas psicológicas mais frequentes e aos objetivos institucionais apoiados em práticas de privação e de disciplina. Para tanto, forneceu subsídios para a criação de modos de subjetivação, ampliando a oportunidade de experiências de si por meio da leitura.
A extensão dos efeitos positivos pode ser observada também em outro interno, que gostava de escrever poesias, mas que se queixava a respeito de a prisão não "deixar escrever". Ao longo das oficinas, passou a trazer suas poesias antigas e novas, que líamos em voz alta.
Foi possível notar relevantes mudanças em relação ao valor conferido ao livro. Se, no início, o objeto livro produzia olhares vazios, a prática da leitura foi, aos poucos, conduzindo a novas relações e sentidos. Nos primeiros encontros, os internos não fixavam seus olhares sobre as palavras ou frases.
Um dos participantes, na roda de leitura, fingia prestar muita atenção ao texto. Mas observei que ele o segurava de cabeça para baixo e desviava o olhar frente aos mínimos estímulos do ambiente. De objeto estranho, o livro passa a compor rotinas, ocupar espaços em suas vidas e ganha importância. Um claro exemplo foi o caso já relatado dos dois internos que assistiram absolutamente consternados a um companheiro de cela queimando um livro muito antigo, furtado da biblioteca.
No decorrer dos encontros, a atenção se volta progressivamente para o texto. Segue-se então uma leitura cada vez mais encarnada. Como exemplo, podemos citar casos de sonhos matizados por elementos dos contos lidos ou ainda o caso do interno que evitou ler o conto sobre um navio fantasma antes de dormir, pois a descrição do balanço lhe causava náuseas.
O encontro com o texto exige entrega, confiança nas pessoas envolvidas e redução de controle sobre o meio (Kastrup, 2002). No início das atividades da oficina, os presos afirmavam repetidas vezes: "Na prisão, ninguém é amigo de ninguém". Nesse sentido, foi importante pactuar que o que se comentava dentro do grupo não poderia sair dali. A desconfiança de alguns foi superada pela entrega de outros. Já nos primeiros encontros, os internos deixaram de negar seus crimes e passaram a discuti-los abertamente. Foram acolhidas e debatidas opiniões sobre as relações do presídio, carregadas de revolta e tristeza. Um trabalho lento e preciso, de gestos e palavras, tecendo minuciosamente um território afetivo composto pelos membros e pelo texto. Um lugar em que procuravam garantia, alguma segurança e a delimitação em relação a um território prisional, perigoso e adverso. Esse novo território se confirma na fala de um participante: "Nos tornamos uma família. A gente se encontra no banho de sol' e fica junto falando de um monte de coisas". Evidencia-se uma diferença substancial na coesão do grupo.
A oficina produzira movimentos gradativos, de saída de si e de encontro com o texto. Isso significava o distanciamento momentâneo de preocupações com a condição de preso, filho, marido ou marginal. O desvio dessas formações cognitivas e existenciais habituais e a consequente desterritorialização abrem campo para a problematização oferecida pela prática da leitura. Uma atenção fina e inventiva constituiu uma atitude aberta, de disposição para descobertas e novas experiências de si do mundo.
A formação de um território afetivo de leitura viabiliza desterritorializações e reterritorialização, além de distanciar da dimensão molar da prisão. A atenção ao texto retirava-nos da atmosfera saturada do presídio. Pouco a pouco, estampidos, gritos irados de ameaças e altas gargalhadas já não provocam mais qualquer reação em nenhum de nós.
As delimitações do novo território afetivo constituído tornavam-se nítidas e contrastavam com os códigos exteriores. Ao fim dos encontros, um guarda vinha buscá-los. Os internos se calavam, adotavam expressões sisudas, baixavam a cabeça e colocavam as mãos para trás, em sinal de respeito e submissão à autoridade. Era contrastante a atmosfera do grupo e a semiótica do presídio, carregada de extrema violência. Essas delimitações e o contraste às vezes traziam conflitos. Um dos participantes do grupo, após a leitura de um texto, descontraído, resolveu reclamar do longo tempo que teriam que aguardar até que fossem levados para suas celas. Como consequência, foi obrigado a aguardar oito horas. Seus companheiros de grupo foram liberados para suas celas, mas o interno permaneceu ali, sem alimentação e sofrendo ameaças, provocações e agressões físicas10 durante todo esse período.
Frente às condições subumanas já citadas, fica patente que o desenvolvimento de projetos sociais, artísticos e culturais no ambiente prisional rompe com a lógica corrosiva da prisão sobre os apenados. Concluímos que a diferenciação dos processos cognitivos, da percepção e da sensibilidade, promovida pelo contágio da Literatura, expande territórios existenciais em diversas dimensões, dessa forma desestabiliza os efeitos subjetivos previstos pela instituição e desregula as pretensões normativas e disciplinares geradas pela internação, que acabam arrastando novamente para a criminalização.
Para concluir, é preciso reconhecer as limitações deste estudo em relação à compreensão dos largos efeitos produzidos por essa experiência com a Literatura na instituição prisional. Será necessário dar continuidade ao estudo, tendo em vista sua relevância política e social, a elevada quantidade de material produzido e de temas deixados em aberto.
Agradecemos aos psicólogos da Coordenação de Psicologia, ao apoio da SEAP na forma de uma bolsa de estágio e, principalmente, aos internos da Unidade Prisional Hélio Gomes que participaram da oficina de leitura.
Referências
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Borges, J. L. (2001). O livro de areia. São Paulo: Globo. [ Links ]
BRASIL. Presidência da República. (1984, jul 13). Lei 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Diário Oficial da União. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L7210.htm. Acesso em: 28 jan. 2009. [ Links ]
Cabral, M. (2006). Encontros que nos movem: a leitura como experiência inventiva. Tese de doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Rio de Janeiro. [ Links ]
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Wacquant, L. (2001). As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. [ Links ]
Texto recebido em fevereiro de 2009.
Aprovado para publicação em novembro de 2009.
* Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. E-mail: mhyrnaboechat@yahoo.com.br.
** Doutora em Psicologia, professora do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. E-mail: vkastrup@terra.com.br.
1 Em 1997, nos Estados Unidos, contavam-se 645 encarcerados por 100 mil habitantes, que contrasta com a taxa do período anterior de 90 encarcerados por 100 mil habitantes. No Brasil, em 1998, previa-se a duplicação do parque penitenciário (Wacquant, 2001).
2 Os pastores costumam proibir qualquer outro tipo de leitura nas celas exclusivamente destinadas a evangélicos.
3 Goffman delimita o conceito de instituição total como uma organização que exige de seus participantes certo grau de isolamento físico e simbólico, regido por um programa central que organiza o tempo e o espaço do apenados. Estabelece o exercício de certas práticas e usa dispositivos que produzem subjetividades. "Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho, onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada" (2005, p. 11).
4 A Lei de Execução Penal 7.210, de 11 de julho de 1984, determina avaliação técnica dos condenados ao cumprimento de pena privativa de liberdade, em regime fechado e semiaberto, com vistas à individualização da execução. A participação do psicólogo na elaboração de exames delineia sua relação com internos. O psicólogo e seu saber científico detêm efeitos de poder, formulando enunciados que têm estatuto de verdade (Rauter, 1979).
5 Para o detalhamento do tema, confira Boechat (2008).
6 Como é chamada a visita íntima, onde o interno tem o direito de ficar a sós com sua companheira.
7 São chamados faxinas os internos que trabalham para a instituição.
8 Cama de alvenaria individual fixada às paredes das celas, onde ficam sobrepostas como beliches.
9 A gaiola é uma cela de pequenas proporções. Os presos são direcionados de suas celas para este local, e aguardam até que sejam chamados para atendimento. Diariamente, a gaiola permanece lotada, e seus ocupantes chegam a passar horas de pé em condições sub-humanas.
10 O caso foi levado ao diretor do presídio, mas não foi tomada nenhuma providência. A partir desse evento, passei a acompanhá-los até o momento que fossem transferidos para suas celas, e essa postura me levou a embates com guardas e situações de extremo desgaste emocional.