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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.16 no.3 Belo Horizonte abr. 2010

 

ARTIGOS

 

Desastre e acontecimento na realidade psíquica

 

Disaster and event in the psychic reality

 

Desastre y acontecimiento en la realidad psíquica

 

Ângela Maria Resende Vorcaro I*; Carla Almeida CapanemaII**

IPontifícia Universidade Católica de São Paulo, Universidade Federal de Minas Gerais.
IIUniversidade Federal de Minas Gerais.

 

 


RESUMO

O texto problematiza a sincronia na estruturação do sujeito sem recorrer às teorias de desenvolvimento humano. Para isso, considera a diacronia do trajeto de infans a sujeito por meio do entrecruzamento em trança das três dimensões da realidade psíquica: real, simbólico e imaginário. Este artigo tem como objetivo demonstrar que os acidentes implicados nos entrecruzamentos entre real, simbólico e imaginário são acontecimentos constitutivos da estrutura tridimensional da realidade psíquica de um sujeito qualquer. Diferentemente desses acidentes, os desastres na estruturação do sujeito podem configurar as séries das graves psicopatologias. Como hipótese de trabalho, esta proposta deverá submeter-se à clínica.

Palavras-chave: constituição do sujeito, nó borromeano, psicanálise.


ABSTRACT

This text discusses the synchrony in the structuring of the Subject without resorting to theories of human development. For this, it considers the diachronic path from infans to subject through the intersection braid in the three dimensions of psychic reality: Real, Imaginary and Symbolic. This paper aims to demonstrate that accidents involved in the interrelationships between Real, Symbolic and Imaginary are constituting events of three-dimensional structure of the psychic reality of any subject. Unlike these accidents, disasters in the structuring of the subject can configure the series of severe psychopathology.

Keywords: constitution of the subject, Borromean knot, psychoanalysis.


RESUMEN

El texto problematiza la sincronía en la estructuración del sujeto sin recurrir a las teorías de desarrollo humano. Para ello, considera la diacronía del trayecto de infans a sujeto por medio del entrecruzamiento de las tres dimensiones de la realidad psíquica: Real, Simbólica e Imaginaria. Este artículo tiene como objetivo demostrar que los accidentes implicados en los entrecruzamientos de lo Real, Simbólico e Imaginario son acontecimientos constitutivos de la estructura tridimensional de la realidad psíquica de un sujeto cualquiera. A diferencia de estos accidentes, los desastres en la estructuración pueden configurar las series de las graves psicopatologías.

Palabras clave: constitución del sujeto, nudo borromeo, psicoanálisis.


 

 

O conceito freudiano de realidade psíquica exige considerar o sujeito com base em três dimensões que, a despeito de discernir lugares distintos, se enlaçam a ponto de nos permitir tomá-los como um mesmo ponto: a criança. Entretanto, mesmo coincidindo num mesmo ponto, é seu discernimento que permitirá operar o ato psicanalítico e a direção de um tratamento. Mais ainda, além desses três lugares dimensionáveis, as diferentes posições que os pais podem ocupar são também distinguíveis quando considerados em termos da lógica temporal de extração de um sujeito, a partir do nascimento de uma criança. Assim, quando consideramos cada um dos três pontos constitutivos da família conjugal, que se objetivam em pai, mãe e filho, teremos, para cada um, uma separação de lugares ou de dimensões: real, simbólica e imaginária. É a prevalência de uma dessas dimensões em diferentes tempos que nos permitirá conceber a posição relativa em que esses elementos comparecem, na correlação que mutuamente estabelecem. Trata-se, portanto, de analisar as modalizações que permitirão fixação da estrutura do sujeito, pois o destacamento do sujeito inclui a estrutura da qual partiu, sendo, entretanto, um precipitado singular.

A combinatória das relações que presidem a realidade psíquica pode ser diferenciada, considerando a medida comum que as homogeneíza: cada uma desempenha a mesma função de sustentar juntas as duas outras, ao mesmo tempo em que distingue a heterogeneidade destas:

R - O real é isso em que o inconsciente se sustenta, portanto a coisa inapreensível. É obstáculo do qual nada pode ser deduzido.

S - O que faz com que o real possa ser situável num lugar do espaço é o simbólico. As cifras bordam o real impossível de ser dito, escrevendo o contorno de seus limites, ou seja, os termos escrevem a ausência e permite a veiculação cifrada que o envolve, produzindo o deslizamento significante substitutivo desse inapreensível, sem equivaler a ele.

I - O reflexo dessa coisa, pelo que a representação responde. O imaginário é a condição de representação desse ponto e de sua circulação, no que ele é parecido com outros e ainda dessemelhante a outros. É o que lhe atribui uma relação definível, que o liga a outros, consistindo numa rede de semelhanças e dessemelhanças (Lacan, 1974/751 e Milner, 1983).

Essas três dimensões enlaçam-se. R, S, I coincidem num mesmo ponto numa relação de determinação recíproca que as constrange e as sustenta, tal como a topologia dos nós nos permite.

Vale lembrar que a topologia (Granon-Lafont, 1988) define o espaço por meio das relações entre os movimentos (diacronia) de um objeto invariante (estrutura, sincronia). São os movimentos de um objeto, enquanto este se mantém invariante que estruturam o espaço. A igualdade é definida pela trajetória da apresentação formal de um objeto à outra apresentação formal (diacronia). Assim, um objeto será considerado igual a outro se ele passa de um a outro por meio de uma deformação contínua (diacronia). Quando ocorre uma ruptura, opera-se a passagem de uma estrutura a outra. Temos assim a continuidade do idêntico, a despeito das deformações que modificam sua apresentação formal. Há estrutura quando as incidências que afetam o objeto, provocando movimentos, dobras e torções não alteram sua apresentação formal.

Entretanto, entre a perspectiva de estrutura da topologia e a estrutura do sujeito, temos um hiato. A complexidade da passagem de uma estrutura (sincronia) para uma categoria (diacronia) é formulada nos seguintes termos: "Como descrever suficientemente uma estrutura e a classe das transformações compatíveis? Seria preciso partir da descrição teórica da estrutura do sujeito e descrever as transformações compatíveis com esta estrutura. Não há sincronia sem uma certa diacronia" (Lavendhomme, 2002, p.18).

 

1. Criança: sujeito estruturado ou tempo de estruturação do sujeito?

Interessa notar a veemência com que muitos psicanalistas de criança afirmam a relação entre invariância na estrutura do sujeito e a condição de criança: "Não há especificidade na psicanálise de crianças. A estrutura, o significante e a relação com o Outro não concernem de maneira diferente à criança e ao adulto. É isso que faz a unidade da psicanálise" (Lefort, 1991, p. 13). Entretanto, algo da diferença da criança insiste, pois vale lembrar que a psicanálise com crianças encontra-se até hoje sob a rubrica de "psicanálise aplicada".

Na perspectiva de Lefort (1991), a ideia de estrutura opõe-se à concepção de desenvolvimento infantil, oriunda de uma psicologia genética, que explica o sujeito pela evolução de um sistema de necessidades, num corpo que tenderia à acumulação adaptativa (Lacan, 1992). Mesmo articulando organismo e meio, a noção de estrutura no desenvolvimento é proposta na psicologia genética por Piaget e se define pela maturação ou pela complexificação de um equilíbrio crescente: um estado de maior equilíbrio superaria o estado que o precede e a este jamais retornaria, até a conformação da estrutura adulta-cientista. Teríamos aí um exemplo típico de um processo de estruturação, segundo Piaget. Ultrapassado o momento e o contexto dessa formulação, a própria perspectiva lacaniana oferece seu contraponto.

Efetivamente, a estrutura, o significante são os mesmos para a criança e para o adulto, mas a relação do infans com o Outro difere sobremaneira, pois, entre eles, há a decantação daquilo que Lacan denominou objetos a, para apontar as modalidades das faltas de complementaridade entre o infans e o agente de sua subjetivação. Tais faltas, não apreensíveis no campo simbólico, são, entretanto e por isso mesmo, causas da subjetivação e podem ser localizadas pela atribuição de uma letra: a minúsculo. Afinal, enquanto o infans e o adulto estão ambos imersos no campo simbólico no qual as estruturas discursivas e os significantes operam, essa imersão não é a mesma. Trata-se, para o infans, de se distinguir de sua imersão no campo simbólico que o localiza primariamente como objeto para o agente da linguagem, tomado pela criança como potência totalizadora. O infans localiza as fissuras dessa potência e subverte sua condição de objeto para tornar-se sujeito, por meio dos atos de engate que enlaçam seus orifícios corporais à insuficiência daquela alteridade, desde que possa vir a ser tomada como não toda.

Por isso, Lacan nos lembra de que o Outro é matriz de dupla entrada, pois introduz o significante e também o objeto a. Entre eles, não há nenhuma relação racionalmente determinável. Os objetos a constituídos pelo laço entre a alteridade e os orifícios do corpo definirão a condição de qualquer suposto sujeito: ser causado por um objeto que não é o Outro do conhecimento, mas pelo objeto a que risca, para ele, o Outro. O sujeito é causado por esses objetos a dos quais nada é pensável, mas que determina o sujeito do pensamento que se imagina ser ser (Lacan, 1974-75).2

A asserção lefortiana de que a estrutura do sujeito é, por princípio e desde o princípio, sincrônica é interrogada aqui. Se o sujeito é instaurado desde a incidência do agente da linguagem sobre seu organismo, só podendo fazer-se representar entre significantes, nem por isso ele sofre, de imediato, todas as consequências dessa incidência. Depois de um primeiro corte real que retira o organismo de uma homeostase simbolizante primária, alçando-o à condição de ser faltante, outros cortes causados pela dimensão real da experiência psíquica provocarão o desfazimento da lógica precedente e a instauração de novas condições de estruturação: a passagem dita edípica e a passagem dita adolescente implicam esses cortes reais estruturantes da complexidade psíquica.

É a experiência clínica que permite formular a hipótese de uma diacronia lógica da estruturação do sujeito. A direção do tratamento nos conduz a considerar, no caso de crianças, a estrutura de gestão do desejo como não decidida (Calligaris, 1989). É ainda o que permite ser depreendido da seguinte afirmação:

    Se a criança está inicialmente em posição de objeto do fantasma materno e sintoma da verdade do par parental, se o infantil evolui ao redor do desprendimento do fantasma e de um sintoma próprios, é preciso deduzir disso que precede que a psicanálise com uma criança é repentinamente uma contrapsicanálise: deixar cair isso contra o que, sendo o caso, a análise poderá se efetuar – no sentido em que Lacan lembrava que se pensa sempre contra um significante (Sauret, 1992, p. 490).

A consideração da diacronia implica distinguir a condição de efetuação da função da fala no campo da linguagem. Afinal, o ato analítico incide sobre o que ata a criança-objeto ao Outro. O ato só é um se rompe a condição que lhe antecede; assim acolhendo uma condição de estrutura que se diferencia, que se destaca.

Trata-se, portanto, de seguir a lógica da trilha pela qual a unidade biológica, que está inicialmente no lugar de objeto de uma alteridade estruturada, reverte-se num sujeito estruturado, capaz de transmitir uma herança simbólica. Distinguir a diacronia lógica em que o sujeito se constitui é localizar a estrutura por ruptura da apresentação formal que o antecede, sustentado pela sincronia de sua inscrição, na linguagem.

Essa afirmação pode ser demonstrada por meio do que Lacan nos permite com a topologia do nó borromeano, considerando que as operações implicadas na estruturação do ser em sujeito estão no campo da linguagem. A escrita da lógica psicanalítica do processo de estruturação do sujeito se insere na hipótese de que as manifestações da criança são atos que escrevem o texto que cifra a leitura de sua relação com a alteridade, constituindo sua realidade psíquica (Vorcaro, 1997). Portanto seus atos resgatam a determinação da estrutura que a implica numa impossibilidade do acesso à plenitude do gozo, e que a intimam imperativamente a desejar sem que nada o assegure. Suas manifestações estruturam-se como uma linguagem que ordena "esse tão pouco de realidade que é a nossa: essa do fantasma" (Lacan, 1973-74)3.

Essa linguagem situa-se aquém da imediação de sentido a que se oferece e além do que, dessa cifragem, pode ser descrito. Trata-se de um texto que, para ser reescrito em outro registro, ou seja, decifrado, exige pontuação. E pontuar é localizar as interseções do ciframento que ele desvela.

Assim, o caráter simbólico da teoria se distingue nodulado ao registro imaginário, que apresenta sua consistência, e à materialidade real que o causa. Não se trata, portanto, de privilegiar o simbólico como um modelo teórico a ser aplicado na prática analítica, mas de sustentar os traços do impossível de dizer em que ele se efetua em sentido. A distinção dessas três dimensões não as hierarquiza, apenas permite demonstrar que elas só têm vigência enlaçadas.

Trata-se, enfim, da redução da abusividade imaginária que recobre as frestas com o sentido, e da redução do real à sua insistência que faz tropeço, descontinuidade ao sentido, na unicidade diferencial da criança. Situar a constituição do sujeito, a partir do estatuto simbólico da teoria, é considerar lacunas que rasgam a ficção de domínio do sentido, diferenciando as dimensões do imaginário e do real.

Cabe, portanto, formalizar a incidência dos acidentes que permitem que algo de não efetuado suporte o cenário da eternização do sujeito do desejo, demarcando os constrangimentos que fazem do processo de estruturação subjetiva um ciframento da relação à alteridade.

Espera-se, assim, contemplar apenas as condições que balizam, sem absolutamente bastar, a leitura do texto hieroglífico escrito pela criança em suas manifestações transferenciais, para que seu testemunho seja efetivamente passível de recolhimento e de intervenção, na clínica psicanalítica.

A escrita da lógica do singular irrepresentável, que reincide inédito na criança, é sustentação da insistência do inconsciente, e só passível de localização e bordeamento. Afinal, o efeito desejo num sujeito é defeito de realização. A emergência do inconsciente é a permanência insistente dessa desordem transgressiva do desejo no corpo adaptável de qualquer indivíduo.

A soberania da função de preservação da relação entre desejo e ato de um sujeito, dada pela transferência, cria a exigência ética de uma escrita que subverta o ideal de domínio pleno da criança a que as leis da ciência, ao estabelecer univocidade entre constituição subjetiva e maturação orgânica, conferiram transparência.

Determinar as propriedades específicas do processo de estruturação que qualificam a condição de criança é estatuto balizador ao que permite, ou não, sua clínica. Isso traz como correlato uma perspectiva de sua analisabilidade, bem como de demais modalidades de intervenção junto a seu grupo social (família, escola, hospital) que permitem prescindir, tantas vezes, de um tratamento direto da criança. Localizar esses acidentes implica discernir as propriedades específicas do diferencial em que a condição de criança se efetua, situando a incidência desse irredutível e os traços de suas incisões. A fixação de uma estrutura capaz de permitir a transmissão de uma herança simbólica passa pela consideração da criança a partir da inauguração de um lugar de relações que amarram um organismo irredutível, uma posição significante e uma consistência ideal. Esses três heterogêneos se deixam ler como uma coincidência que os sobrepõe num mesmo ponto. Resgatar o cálculo da especificidade do laço que os aperta exige diferenciar as urgências constrangedoras de incisões que permitem que, desse enlaçamento inaugural, faça-se um sujeito. A perspectiva que ensaiamos aqui é a de percorrer a rota desse ponto mergulhado num espaço que lhe impõe alteridade radical, considerando os deslocamentos que intervêm em sua deformação, traçando rupturas e continuidades. Essas marcam o caráter da constituição subjetiva até que uma estrutura se destaca. Tal destacamento inclui a estrutura da qual partiu, sendo, entretanto, exclusiva, constituindo um precipitado singular.

Considera-se, portanto, que a criança não está só: "Não apenas ela não está só devido ao seu meio biológico, mas existe ainda uma esfera muito mais importante, a saber, a esfera legal, a ordem simbólica" (Lacan, 1995, p. 204). Situar o alcance da distinção e da coincidência entre a consistência da criança, seu organismo e uma ordem transmissível implica considerar o suporte do nó borromeano. Pretende-se, portanto, tratar essa formulação, contando com a indicação de que a finalidade da topologia "é dar conta da constituição do sujeito" (Lacan, 1988a, p. 193). O nó borromeano estabelece a estrutura da realidade psíquica, realidade determinada pelo constrangimento que suspende uma condição desejante singular e indestrutível, demarcada por uma constelação de traços que estruturam a relação ao inconsciente.

A topologia do nó borromeano mostra a geometria tridimensional cujos pontos se determinam pela cunhagem de três círculos vazados, enganchados e inseparáveis, destacando a combinatória das relações que presidem a realidade psíquica. A topologia borromeana tem a medida comum que homogeneíza as três dimensões em que cada uma desempenha a mesma função de sustentar juntas as duas outras, ao mesmo tempo em que distingue, por nomeá-las com as letras R, S, I a heterogeneidade destas.

Essas três dimensões são supostas incessantes e indestrutíveis. É o que faz, de cada uma delas, um círculo: qualquer coisa jamais cessa de existir, qualquer coisa jamais cessa de se escrever e qualquer coisa jamais cessa de se representar. Elas coincidem num mesmo ponto numa relação de determinação recíproca que as constrange e as sustenta.

O nó borromeano é efeito de linguagem. O uso da palavra que permite enunciá-lo distinguindo três sentidos definidos conceitualmente traz à tona o caráter simbólico do nó borromeano. Entretanto, o nó borromeano não se reduz a uma metáfora. Na própria distinção de três registros, o caráter simbólico de sua enunciação aponta o limite da substituição de um significante por outro, já que o sentido de cada termo é elevado ao máximo admissível de seu desvio: o que faz deles três termos distintos é o impedimento da substituição de um por outro. O nó borromeano atinge o limite da metáfora, pois, diferenciando as letras R, S, I, mostra a impossibilidade da substituição de uma por outra, resistindo à redução hierárquica. Nesse mesmo movimento em que o nó borromeano distingue três especificações, ele impede que essas sejam tomadas como círculos consistentes que encerram um conteúdo, pois cada círculo é vazado pelos outros, o que condena cada um ao constrangimento daqueles que o circundam: eles só consistem da ligação que têm entre si.

O nó borromeano é efeito de linguagem. O uso da palavra que permite enunciá-lo distinguindo três sentidos definidos conceitualmente traz à tona o caráter simbólico do nó borromeano. Entretanto, o nó borromeano não se reduz a uma metáfora. Na própria distinção de três registros, o caráter simbólico de sua enunciação aponta o limite da substituição de um significante por outro, já que o sentido de cada termo é elevado ao máximo admissível de seu desvio: o que faz deles três termos distintos é o impedimento da substituição de um por outro. O nó borromeano atinge o limite da metáfora, pois, diferenciando as letras R, S, I, mostra a impossibilidade da substituição de uma por outra, resistindo à redução hierárquica. Nesse mesmo movimento em que o nó borromeano distingue três especificações, ele impede que essas sejam tomadas como círculos consistentes que encerram um conteúdo, pois cada círculo é vazado pelos outros, o que condena cada um ao constrangimento daqueles que o circundam: eles só consistem da ligação que têm entre si.

Enquanto escreve o que pode ser imaginado do real, o nó borromeano é um traço que suporta o real da linguagem, que dá ao nó a consistência real de uma matriz enodada que sustém juntos RSI.

A escrita do nó cunha o furo em que cada dimensão se suporta. Cada uma das três dimensões é efeito dessa dupla ligação que a liga e a constrange às outras duas. O real do nó é essa "ex-sistência" definível enquanto relação de exterioridade inclusa de cada dimensão, em que o fora não é um não dentro. Enfim, no nó borromeano, o traço circular de cada dimensão afirma a distinção que faz cada uma descontínua em relação à outra. Cada traçado circular delimita um interior vazado, portanto um interior em alteridade radical com o traço circular que o bordeja, impedindo um funcionamento deslizante de um registro ao outro. Tal como a demonstração dada na manipulação das letras da linguagem matemática, a unicidade que o nó borromeano escreve implica a sustentação de três letras, num modo de atar que põe cada uma das três na mesma relação de um impossível desatamento: "Basta que uma não se sustente para que todas as outras não somente não constituam nada de válido por seu agenciamento, mas se dispersem" (Lacan, 1982, p. 174).

Contando com a indicação de Lacan de que inventar não se reduz a imaginar (Lacan, 1974-5) 4, realizaremos uma operação de corte sobre os três círculos atados no nó borromeano. Esse artifício aqui utilizado para abordar a hipótese da constituição do sujeito, tecendo um nó, é instigado pela afirmação de Lacan:

    Para fazer um nó borromeano é preciso fazer seis gestos, e seis gestos graças a que eles são da mesma ordem, próximo a isso, justamente, nada permite reconhecê-los. É bem por isso que é preciso fazer seis, a saber, esgotar9 a ordem de permutações duas a duas e saber antecipadamente que não se pode fazer mais, sem o que a gente se engana (Lacan, 1974-75).

Supõe-se, portanto, uma trança que perfaz a trama da qual o sujeito é um determinado particular. Consideraremos, a seguir, os seis cruzamentos entre RSI, até seu retorno ao ponto de partida (Vorcaro, 1997. 2009).

Consideremos uma posição zero, que precede o início da trança, dando-lhe a condição de possibilidade. Trata-se do lugar em que o real do organismo neonato é inserido na realidade psíquica do agente materno, equivalendo ao termo simbólico que o localizava no campo discursivo antes que ele nascesse e equivalendo, ainda, à consistência dos sentidos que interpretam suas manifestações, supondo-lhes intencionalidade subjetiva. Essa superposição real do organismo à posição simbólica investida imaginariamente pela alteridade de um agente produz uma espécie de regularidade automática de alternância. Essa alternância é o mecanismo que opõe tensão e apaziguamento, ao mesmo tempo em que articula essa descarga orgânica de tensão, com o apaziguamento da resposta dada pelo agente materno. É isso que poderá ser tomado, por aquele que o vive, como uma experiência de satisfação. Aí, presença e ausência intercalam-se na automaticidade que articula a resposta materna à manifestação da necessidade. Essa matriz simbólica, que se inscreve na alternância de dois estados, inaugura a condição de subjetivação. Nada há, de sujeito, nesse momento mítico: uma matriz simbólica acéfala que permite a alternância tensão e apaziguamento, colando o organismo à consistência imaginária que lhe é suposta pela mãe que lhe responde. Podemos, assim, distinguir o organismo como algo de real, a alternância entre os termos (tensão e apaziguamento) como simbólica, e a consistência dos sentidos em que o agente materno interpreta o organismo como imaginária. É o que nos permite planificar R, S, I como três linhas vizinhas e maleáveis, que sofrerão deformações contínuas (Vorcaro, 1997, 2009).

Consideremos, agora, um primeiro movimento: incidência do real nessa matriz simbólica. O funcionamento dessa matriz no organismo pode ser caracterizado como simbólico, ou seja, funcionamento presidido pelo movimento que articula tensão e apaziguamento. Quando, por efeito do próprio funcionamento significante, essa alternância não se mantém, o organismo é afetado por uma descontinuidade. É o que nomeamos incidência do real no simbólico. Nesse esgarçamento que perfura a matriz simbólica, situamos o primeiro movimento da trança.

O segundo movimento é a superação dessa descontinuidade no funcionamento, que exige o retorno da equivalência à situação de plenitude anterior. Mas os objetos oferecidos para a satisfação ao gozo do ser não possibilitam o reencontro do gozo pleno supostamente havido antes. Esses objetos ressublinham o traço da diferença entre gozo esperado e gozo obtido, que está cunhado no sujeito. A criança situa o agente da privação, que ela ressente, na alteridade materna e, portanto, localiza nela a possibilidade de satisfação, supondo nela o saber sobre seu gozo. Assim, a falta real no simbólico é recoberta com a "imaginarização" do agente materno. O segundo movimento, portanto, é caracterizado como uma incidência do imaginário no real.

No terceiro movimento, a mãe imaginada onipotente deixa-se pressentir afetada em sua potência. Ela demanda à criança o que esta não sabe dar. Aí, duas faltas se recobrem sem reciprocidade. A criança tenta determinar o desejo materno e se oferece como termo que o contempla, ocupando o lugar fálico a que pode supor equivaler. No pressentimento do falo constituindo uma falta na mãe (falta que não consegue recobrir, mas supõe preencher), traça-se o perfil da estrutura simbólica. Nesse lugar fálico, a criança opera simbolicamente, lidando com a falta. Portanto, nesse terceiro movimento, o simbólico recobre o imaginário: a criança propõe-se como falo, tentando determinar o desejo materno, encarnando-se como termo simbólico que equaciona a falta pressentida na mãe. Mas o pilar é frágil e sem saída. Oferecer-se como falo ao desejo materno é fazer-se de objeto e anular-se como desejante. Nesse terceiro movimento, temos a incidência do simbólico no imaginário.

No quarto movimento, a criança pressente que essa posição que ela adota, de signo, não se sustenta. Por mais que a criança se dê, ela não é o falo materno, não satisfaz a mãe. E se ela pode supor-se ser, ela não tem como defender-se, será engolida e anulada. Por essa via, a criança precisa buscar algo que a defenda do desejo materno. É o que a conduz a deparar algo de real que priva e interdita a mãe. A criança constata que há um constrangimento que incide nelas, obstáculo intransponível entre criança e mãe. Nesse quarto movimento, realiza-se, portanto, o esgarçamento real do simbólico que repete, na trama complexificada, o primeiro movimento e, ainda, integra todos os outros.

No quinto movimento, o obstáculo intransponível entre criança e mãe será transformado, pela criança, no mito da onipotência paterna: ou seja, a impossibilidade real de ser o objeto do gozo materno é reencontrada, imaginariamente, personificada em pai, mitificado em sua onipotência. Apesar de terrível, por lhe tirar a mãe, defende-a da voracidade materna ilimitada. Toda a transição mítica que articula a idealização, o temor e a agressividade são aí produzidos. Nesse quinto movimento, cuja estrutura repete, com outro elemento, o segundo movimento, perfaz-se o recobrimento imaginário do real.

O sexto movimento é efeito da exaustão combinatória da articulação das formas da impossibilidade de ser o falo materno, que esgota a permutação da relação imaginária da criança com o real. Produz-se a metáfora paterna, o sexto movimento da trança, em que o simbólico ultrapassa o imaginário. O falo imaginário é posto fora de jogo e substituído por uma unidade de medida que regula as relações entre desejo e lei, e confere a eles uma lógica. A criança pode supor um saber ao pai; àquele que é capaz de dar à mãe o que ela deseja, ou seja, a criança situa o pai no lugar em que ao menos um sabe o que ela quer. A criança encontra o termo simbólico que barra a sua posição de equivalência fálica e cria algo mais: o título virtual que sustentará a sua identificação ao elemento mediador do campo simbólico, elemento mediador que estrutura a orientação da relação à alteridade. O sexto movimento, portanto, faz reincidir no simbólico o que, no terceiro movimento, teve caráter imaginário.

Notamos, assim, o percurso em que o sujeito se inscreve no simbólico que lhe preexiste. Afinal, é a partir desse investimento fálico da alteridade na criança, que se traça a incidência da ordem significante. Trata-se do funcionamento que se instaura a partir da função imaginária do falo, que promoverá a operação metafórica do Nome-do-pai, permitindo ao sujeito evocar a significação do falo. Dessa forma, o sujeito carrega a causa que o fende: o significante, que lhe permite inscrição pela perda que só existe depois que essa simbolização lhe indica o lugar.

Entre a experiência em que a criança recebe atribuição fálica e a constituição de sua significação, temos o lapso que a trança percorre, na estrutura temporal reversiva em que a castração retroage ao recalcamento originário para lhe conferir significância, nesse après-coup que promove a articulação circular que não é recíproca. Portanto, se essa trança ordena a estruturalidade de um sujeito constrangido pelas dimensões real, simbólico e imaginário, seus movimentos não se superam, eles se mantêm na constrição que os enlaça.

O que foi considerado no trançamento implica a retroação que lhe confere sua condição circular. Mas, cabe ressaltar, o nó borromeano não é a norma para a relação de três funções. A articulação R, S, I só incide num exercício determinado pela versão em que o sujeito se inventa situado em relação à função paterna, ou seja, o nó borromeano é sempre pai-vertido, perversamente orientado. Por isso, a constrição que mantém RSI ligados é sempre singular e enigmática.

As sobreposições em que o real incide no simbólico e este no imaginário se encurralam num ponto central que demarca a causa vazia da realidade psíquica de um sujeito desejante: o objeto que viria satisfazer seu gozo é um objeto insensato do qual não há ideia. Atribui-se a tal objeto uma letra: a, objeto a, cerne do gozo, que só é reconhecível pelos resíduos de seu esfacelamento em objetos pulsionais.

A insuficiência de qualquer gozo que lhe venha em suplência é constrição imposta pelo objeto a, inatingível gozo a mais, alocado no exterior mais central da escrita do nó borromeano. O nó escreve as condições de gozo e permite contar os seus resíduos: as intersecções entre os círculos notam as modalidades do gozo, por falta do gozo pleno que não há. E a realidade é abordada com os aparelhos do gozo, que a linguagem permite, enquanto articula e faz prevalecer articulações privilegiadas entre o simbólico, o imaginário e o real.

É tomando a constituição subjetiva, formação do inconsciente, como o que define a condição de criança para a psicanálise, que podemos considerar que todas as operações implicadas na estruturação do ser em sujeito estão no campo da linguagem, terreno em que a função significante é realizada, "imaginarizada" e simbolizada, em dois blocos distinguíveis: no primeiro (os quatro primeiros tempos), a criança simboliza metonimicamente a função significante, alocando-se no reconhecimento de que poderia responder do lugar em que se supõe esperada, como objeto do desejo de outro – reconhecendo-se como falo; no segundo (os três últimos tempos), a criança simboliza a função significante metaforicamente, remetendo-se, como sujeito, à significação do falo.

Afinal, a função significante incide como real na individualidade do organismo, desde que ele é nomeado, situado na relação a uma linhagem e a um discurso. Tomada pela alteridade, essa individualidade orgânica realiza-se enquanto distinção, pela contingência da função do traço que a separa de sua imanência vital, na singularidade do que é cunhado, resíduo que barra o mero fluxo vital e garante a inscrição da alteridade.

A imaginarização dessa função significante é efeito do mal entendido do gozo pleno que aparelha o gozo possível (fálico), no desdobramento do jogo permutativo, entre significantes, onde se sublinha a equivocidade: o Outro comparece como falta modalizado no fantasma, assim constituído, em que o desejo se apoia. O indivíduo se corporifica no ordenamento pulsional, fomentando a reciprocidade entre gozo esperado e gozo obtido: a equivalência almejada encontra a diferença e a repetição da não identidade a reencontra, defeito de realização que sustém a insistência do desejo.

Essa função significante, como diz Erik Porge (1994), é simbolizada conforme o sujeito se posiciona referenciado no traço de sua diferença absoluta: a única medida comum é a inexistência de medida comum, que o impede de designar-se em equivalência e o constrange a ser representado entre significantes. Nesse encurralamento, um sujeito objetiva-se; discórdia entre o que teria sido para o outro (a representação do outro) e o que supôs ser (o representante representativo). A função fálica em que o ser toma inscrição encontra o limite na existência do que nega essa função: – a barra – função do pai, onde $ só se relaciona ao que está inscrito do outro lado da barra a, que prende o sujeito ao fantasma da causa do seu desejo, o Outro.

Trata-se assim da torção subversiva da condição de equivalência à posição que lhe é conferida na linguagem (sendo contado como alguma coisa que para alguém é signo), para a asserção de sujeito na condição de incomensurabilidade que o singulariza como desproporção (não sabe representar-se, não equivale à posição que outro lhe confere, nem à posição em que supôs situar-se, só se incluindo em sua contagem, entre significantes), ou seja, barrado, separado de sua significação.

Nessa lógica, não há realidade prévia ao funcionamento da linguagem. Trata-se da suplência ao gozo jamais obtido e do aparelhamento para o gozo possível, em que tudo se ordena discurso.

Criança, portanto, é a consistência imaginária que se dá a essa lógica temporal de extração de uma estrutura subjetiva desde a apresentação formal de uma imanência vital e de uma alteridade estruturada, percurso feito das distorções de sua posição consistente na estrutura que o precede.

É possível constatar que os acidentes implicados nos entrecruzamentos entre real, simbólico e imaginário, tratados acima, são acontecimentos constitutivos da estrutura tridimensional da realidade psíquica de um sujeito qualquer. São suas impossibilidades que permitem deduzir os desastres que a série psicopatológica grave diferenciada pela psicanálise localiza, nas manifestações da criança qualificadas como autismo, psicose, fenômenos psicossomáticos e debilidade mental. Tais condições subjetivas podem ser consideradas a partir da impossibilidade de operar algum dos cinco primeiros cruzamentos da trança borromeana produzindo a impossibilidade dos acontecimentos da estrutura. A hipótese da constituição de um quarto elo, na função de suplência, capaz de produzir nova modalização na estrutura, é a aposta do tratamento destes quadros.

Outros quadros clínicos ou grupos sintomáticos, entretanto, também constitutivos de uma série psicopatológica menos grave (fobias, neuroses histéricas, obsessivas, depressão secundária, perversões, etc.) dependerão diretamente daquilo que se arma na operação do sexto movimento da trança, ou seja, a operação simbólica que localiza e circunscreve a metáfora paterna. Entretanto, os rearranjos das novas articulações entre as dimensões real, simbólica e imaginária desdobrados na latência e na adolescência, permitirão estabelecer novos traços estruturais ou ainda sustentar aqueles já constituídos anteriormente.

É o que nos propomos trabalhar na segunda parte deste trabalho (a ser publicada num próximo número desta revista), contando com a consideração lacaniana sobre o sinthoma, ou seja, a quarta dimensão borromeana, que configura a direção ética do tratamento psicanalítico, em toda a série psicopatológica da infância, independentemente de seu estatuto.

 

Referências

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* Doutora em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1997), mestre em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1991) e professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais.
** Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora colaboradora do programa de pós-graduação em Clínica Psicanalítica na Contemporaneidade da Unileste.
1 Lacan, J. (1974-5). O Seminário XXII: RSI, inédito.
2 Lacan, J. (1974-5). O Seminário XXII: RSI, inédito.
3 Lacan, J. (1973-74). O Seminário XXI: Les nons dupés errent, 11 jun. 1974, inédito.
4 Lacan, J. (1974-5). O Seminário XXII: RSI, inédito.

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