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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.16 no.3 Belo Horizonte abr. 2010

 

ARTIGOS

 

Violência, culpa e ato: causas e efeitos subjetivos em adolescentes

 

Violence, guilt and act: causes and subjective effects in teenagers

 

Violencia, culpa y acto: causas y efectos subjetivos en los adolescentes

 

Henrique Figueiredo CarneiroI* ; ColaboradoresII**

 

 


RESUMO

Este trabalho apresenta um relato de pesquisa realizada sobre a violência e o adolescente, evidenciando o objetivo, as causas e os efeitos subjetivos que desencadeiam a violência na atualidade. Apresenta também uma investigação qualitativa com referencial teórico-conceitual da psicanálise, em destaque os conceitos de mal-estar, lei, anomia, limites, laços sociais, necessidade, desejo, culpa, passagem ao ato, individualismo, discurso capitalista, amor, vida e morte. Foram utilizados fotografias e fragmentos de filmes apresentados aos adolescentes inseridos no projeto Pró-jovem, desenvolvido na cidade de Maracanaú, Ceará, Brasil. As análises confirmaram os pressupostos da pesquisa de que a violência guarda relação direta com a ineficácia dos discursos normativos, que a culpa não comparece em consequência dos atos desfechados contra o próximo e que o sujeito não se guia por uma referência mítica do representante da lei.

Palavras-chave: violência, culpa, ato, adolescente, lei.


ABSTRACT

This article presents a survey on violence and teenagers, pointing out the objective, causes and subjective effects that trigger violence nowadays. A qualitative research with theoretical and conceptual psychoanalysis model is presented, focusing on such concepts such as malaise, law, anomie, boundaries, social bounds, need, desire, guilt, acting, individualism, capitalist discourse, love, life and death. Photos and movies fragments were showed to teenagers inserted in the project Pro-Jovem, developed at Maracanaú city, Ceará, Brazil. The analysis confirmed the research’s assumptions that violence is directly related to the ineffectiveness of normative discourse; guilt does not show up as result of unclosed acts against a fellowman and that the subject is not guided by a mythical reference of the law.

Keywords: violence, guilt, act, teen, law.


RESUMEN

Este trabajo presenta el relato de investigación realizada sobre la violencia y el adolescente. El objetivo, las causas y los efectos subjetivos que desencadenan la violencia en la actualidad. Una investigación cualitativa con base teórico-conceptual del psicoanálisis, destacándose los conceptos de malestar, ley, anomia, límites, lazos sociales, necesidad, deseo, culpa, pasaje al acto, individualismo, discurso capitalista, consumo, amor, vida y muerte. Fueron utilizadas fotografías y fragmentos de películas presentadas a los adolescentes insertados en un proyecto social del gobierno brasileño, llamado ProJovem, desarrollado en la ciudad de Maracanaú, Estado de Ceará, Brasil. Los análisis confirman las hipótesis de la investigación, que la violencia guarda una relación directa con la ineficacia de los discursos normativos, que la culpa no se presenta como consecuencia de los actos contra el prójimo y que el sujeto no se guía por una referencia mítica de un representante de la ley.

Palabras clave: violência, culpa, acto, adolescente, ley.


 

 

Introdução e situação da pesquisa

Este relato de pesquisa é resultado do projeto Violência, Culpa e Ato: causas e efeitos subjetivos em adolescentes, desenvolvido pelo Laboratório sobre as Novas Formas de Inscrição de Objeto (Labio), da Universidade de Fortaleza (Unifor), com o apoio do CNPq, no período de 2007 a 2010. A pesquisa foi desenvolvida no Centro de Referência e Assistência Social (CRAS), localizado no Município de Maracanaú, Região Metropolitana de Fortaleza, Estado do Ceará.

A equipe envolvida com a pesquisa foi distribuída em três grupos. Esses três grupos de pesquisadores atuaram com sete grupos de adolescentes, totalizando 56 participantes na faixa etária entre 15 e 17 anos, todos participantes do Pró-jovem, projeto desenvolvido pelo governo federal em Maracanaú.

Previamente ao início do trabalho em campo, foram realizadas sessões de preparação dos pesquisadores, com vistas ao aprofundamento da intervenção com o material visual, que consistia na utilização de imagens e fragmentos de filmes a serem aplicados nos trabalhos com os adolescentes. Foram realizadas séries de quatro encontros, intercalados com as supervisões de discussões do material.

As 53 imagens exibidas aos adolescentes denotavam diversos contextos de violência. Elas foram escolhidas aleatoriamente pela equipe de pesquisadores, extraídas de sites que tratam do tema da violência. Essas imagens propiciaram aos adolescentes uma associação com a expressão de seus sentimentos, estabelecendo, dessa forma, uma discussão sobre a violência vivida no social, dentro do espaço do grupo.

Também foram usados como técnica de pesquisa um trecho do filme Escritores da Liberdade e o trailer do filme Parada 174, com finalidades distintas.

O primeiro por se aproximar de um contexto em que os adolescentes se identificam: situações de tédio, tempo esvaziado e a busca de sentido para o esvaziamento. O objetivo era a mobilização dos adolescentes para falarem a respeito das atividades praticadas por eles que lhes traziam satisfação (por meio de atividades de ócio), o sentimento de pertencimento à cidade e suas percepções acerca do sentido da vida e as circunstâncias da morte no contexto social.

A escolha do trailer do filme Parada 174 foi por representar cenas de violência em espaços públicos, que ocorrem no cotidiano. Sua apresentação se deu em dois momentos, ao final da exposição inicial do projeto em que foi exibido sem nenhum comentário por parte da equipe ou dos participantes; e, no segundo momento, ao finalizar o trabalho de campo, tempo em que os adolescentes puderam se expressar a respeito das cenas.

A pesquisa perseguiu os seguintes pressupostos:

  1. que a violência é efeito do enfraquecimento de limites discursivos que, na atualidade, fomenta o ato de consumo como prioridade nas relações sociais;

  2. que o ato de consumo suporta outros atos classificados como violentos e dirigidos ao próximo;

  3. que a culpa do sujeito ao desenvolver o ato contra o próximo fica diminuída quando os mitos estruturantes que limitam os espaços entre os cidadãos estão desgastados e, inclusive, impossíveis de serem tomados como referência, dada a dinâmica substitutiva de investimento no consumo.

Dessa forma, a meta era atender aos objetivos propostos no projeto. O objetivo geral da pesquisa era propiciar aos adolescentes e jovens a possibilidade de discutir novos paradigmas subjetivos frente aos impasses vivenciados no seu espaço social, questionando, assim, a relação direta entre o espaço social violento e uma saída diante do mal-estar pelo uso da violência e da passagem ao ato. Como objetivos específicos, o destaque era dirigido ao discurso do consumo como marca contemporânea; do uso de drogas como formas de fazer frente ao desamparo psíquico; e da aniquilação do próximo como uma desilusão e falta de identificação com o representante de um discurso, cuja função possa suportar e desviar simbolicamente sua eliminação.

Com base nesse norteamento, as intervenções estiveram voltadas para a discussão e reflexão sobre as causas e os efeitos da violência, bem como dos outros temas desencadeadores: trauma, expectativa de cidadania, laços sociais, ócio e insegurança. Partindo sempre da associação entre as imagens escolhidas pelos adolescentes e suas falas.

 

Coleta e organização dos dados

Os dados foram coletados por meio de anotações realizadas por um pesquisador, que exercia o papel de observador, designado previamente para essa função durante as sessões efetuadas. O material era coletado, debatido com a equipe de pesquisadores em reuniões intercaladas com as sessões e reapresentado nas sessões com os adolescentes.

As análises dos dados foram realizadas com base no discurso dos adolescentes previamente registrados pelos pesquisadores durante a execução dos grupos.

Como referência à base teórica da organização metodológica dos dados, foram utilizados os mapas conceituais e a árvore de associação de ideias de Spink (1999). Assim, foram delineados os passos da pesquisa, em que o ponto inicial foi a leitura de todo o material selecionado, uma vez que Spink (1999, p. 106) afirma que "é comum, em pesquisas que buscam entender os sentidos dos fenômenos sociais, a análise iniciar-se com uma imersão no conjunto de informações coletadas".

Após o estudo metodológico, o passo seguinte foi a realização de uma leitura seletiva desses dados, destacando-se as repetições em trechos significativos, articulados à luz do referencial teórico da psicanálise, com as teorias de Freud (1914/1976) e Lacan (1964/1998).

A escolha dos mapas categoriais se deu por ser um recurso que viabilizava a sistematizaçã=o do processo de análise de dados. A construção desses mapas obedeceu a uma sucessão de passos e foram desenvolvidos da seguinte forma:

  1. Após a leitura e apropriação do material, foram destacadas as repetições existentes nas falas dos adolescentes. Com base nessas repetições, foram organizados os seguintes agrupamentos de sentidos dados pelos adolescentes:

    Grupo 1: inocência, família, justiça, despreparo da polícia, desarmamento, discriminação, mídia, sentimentos em relação à violência.

    Grupo 2: consumo, contexto familiar, desigualdade/alteridade, lei, diálogo, influência do outro, influência midiática, insegurança geográfica, lazer/ócio, morte e vida, sentimentos relacionados à violência, violência sem idade.

    Grupo 3: lazer/ócio, cidade/pertencimento, vida, morte, violência e questões sociais, lei, pais/pai/mãe/contexto familiar, sentimentos despertados em relação à violência, atos de violência, consumo e violência sem idade.

  2. No segundo momento, os três grupos de pesquisadores realizaram a uniformização entre os agrupamentos gerais dos núcleos apresentados, mediante discussão do conteúdo coletado. Assim, os agrupamentos foram organizados em torno de cinco eixos centrais (violência e morte; violência e lazer; violência e consumo; violência e culpa; violência e lei), baseados nos pressupostos da pesquisa, observados na lista de fluxogramas (em anexo).

Como última etapa, com base nos fluxogramas construídos, as categorias foram estabelecidas, permitindo a realização das análises. As oito categorias finais identificadas para análise foram: I - Declínio das referências familiares; II - Desimplicação subjetiva; III - Ócio e violência; IV - Vida e morte; V - Violência e consumo; VI - Anomia, violência e lei; VII - Pertença subjetiva; VIII - Violência e culpa.

 

Análise das categorias

Categoria 1 - Declínio das referências familiares.

O material analisado nesta categoria incide, inicialmente, sobre o que nos comenta Freud (1976d), ao destacar as relações entre as pessoas como um dos principais desafios a serem enfrentados. Nesse sentido, a família aparece como um dos pontos referenciais da crise que enfrentam os adolescentes e, ao mesmo tempo, confirma-se como um espaço em que se "presidem os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico" (Lacan, 1985, p. 13).

Os adolescentes apontaram as mudanças no ordenamento da família a que se refere Roudinesco (2003), com relação à perda do domínio paterno como fonte que confere uma identificação ao sujeito. Na mesma direção, fazem conexão entre o esvaziamento desse domínio e a falta de uma postura ética por parte dos pais, que eles sintetizam como um enfraquecimento da imagem. Com isso, corroboram a afirmação de Lacan (1985, p. 60):

    Não somos daqueles que se afligem com um pretenso afrouxamento do liame familiar. [...] Mas um grande número de efeitos psicológicos nos parecem depender de um declínio social da imago paterna. [...] Qualquer que seja seu futuro, esse declínio constitui uma crise psicológica. Talvez seja a essa crise que se deve relacionar o aparecimento da própria psicanálise.

O quadro que os adolescentes descrevem é de extrema preocupação e gravidade quando pensamos a questão hierárquica. Para eles, não só prevalece a relação igualitária descaracterizada de alteridade, mas, muitas vezes, há como uma inversão de ordenamento. Os pais ocupam a posição de dependentes do roubo praticado por um filho, e a ordem dada por eles se transforma em uma transgressão autorizada. Significa dizer que a questão vai além do que aponta Lebrun (2004, p. 14), sobre uma passagem de Russerl, ao dizer que passamos a viver a "[...] família igualitária em que a hierarquia desapareceu no casal e se esfuma entre gerações". Além de igualitária, a dependência funda uma submissão dos próprios pais ao ato transgressor dos filhos.

Dentro desse contexto, a família foi apontada pelos adolescentes como estando desestruturada:

    Pais não ensinam, não ajudam a sair da violência; os pais incentivam a roubar. Um amigo me disse: "Ei, tenho que arranjar um celular pra minha mãe..."; tem mãe que espanca, só falta matar o filho; acho que é limite; falta de educação; passaram da falta do limite; a família não dá a educação que merecia; não deram limite certo; tem mãe que bota a criança pra pedir esmola na rua. (Trecho da fala dos adolescentes)

Esses depoimentos confirmam que a discussão sobre o declínio da função paterna guarda uma relação direta com o fenômeno social da violência e estabelece um vínculo com o contexto da família contemporânea. Se o pai é, sobretudo, simbólico, o representante da autoridade, que vai interferir na relação mãe e filho (Dor, 1991) e se, ao mesmo tempo, não estamos falando da existência de um pai encarnado para ocupar essa posição de autoridade, o que vemos nos fragmentos dos discursos dos adolescentes pesquisados indica uma ruptura de posição que causa uma deflação simbólica. Algo que se apresenta fragilizado no espaço da família e que emana de quem deveria fazer um ponto, uma definição diante de um dos preceitos éticos mais rudimentares em termos de civilização: não roubarás! Pelo contrário, é desse lugar esvaziado de sentido que vem a ordem contrária, pois os pais incentivam os filhos à transgressão e ao ato.

Categoria 2 - Desimplicação subjetiva

Percebemos, nesta categoria, que há uma falta de implicação subjetiva que o adolescente aponta como dominante no espaço social. Com isso, o Outro do discurso, da lei, representado pelos referenciais sociais e que devia oferecer certa estabilidade e segurança para a manutenção e diferenciação de valores importantes para o sujeito, está esvaziado de potência, o que torna os laços sociais fluidos e sem consistência. Segundo os adolescentes, o imperativo é a aparência, a imagem, fato que gera uma dependência extrema do olhar do outro apenas no sentido de ver o que cada um ostenta. Império da exacerbação individualista, em que a violência se dissemina favorecida pelo mundo das imagens e da virtualidade. Para apoiar essa constatação, Venturini, Barbosa e Pinheiro (2006, p. 114) apontam que:

    No contemporâneo, em que a visibilidade e a transparência constituem um valor fundamental, a imagem passa a desempenhar um papel soberano. Contrariamente ao mundo das metáforas subjetivantes dos personagens enigmáticos e dos segredos íntimos, a atualidade é marcada por ideais difundidos imageticamente. Ser alguém é ser capaz de produzir uma determinada imagem. Na sociedade de consumo, os objetos são oferecidos como ornamentos fundamentais para a construção da imagem de ideal.

Desse cenário conflitante, podemos afirmar, com base nos dados da pesquisa, que uma das consequências importantes para uma reflexão sobre a violência reside na crise do campo dos ideais. E a atualização do ideal de Eu, conforme Roudinesco e Plon (1998), constrói-se numa dinâmica simbólica e de sublimação, tomando-se sempre como referência o Outro. O problema é que o discurso dominante que encarna o lugar do Outro regulador mostra-se inconsistente em demasia, obrigando que a regulação seja puramente imagética, como pontua Carneiro (2007, p. 79):

O discurso levantado pelos adolescentes explicita bem esse processo e destaca uma das causas dos atos violentos, a falta de implicação subjetiva que é refletida pelos atos dos amigos e retratada na mídia. Essa categoria mostra esses dois campos, os amigos e a mídia como o Outro regulador dos atos na atualidade. Há uma crise de simbolização desde o ponto de vista do sujeito, ao tempo que o espaço para sublimação fica totalmente afetado pelos imperativos objetivados da predominância da imagem.

Categoria 3 - Ócio e violência

A pesquisa constatou que há violência praticada nos momentos de ócio nos espaços sociais. Os traços de violência estão presentes na navegação virtual pela internet; no ato de pichação de muros e espaços públicos; em roubos planejados em grupos; em festas; no simples passeio pelo calçadão, no shopping; entre outros.

Sabe-se que as experiências de lazer, segundo Dumazedier (1980), possibilitam desenvolvimento, diversão e descanso ao serem atividades realizadas em certo tempo livre, ou seja, fora do trabalho, que permitam escolhas, ainda que susceptíveis a influências externas de outros sujeitos ou de contextos e culturas específicas. Entretanto não é essa concepção encontrada pelos adolescentes pesquisados. O que deveria ser um processo de socialização ou atualização de laços acaba quase sempre em atos pancadaria e vandalismo.

As atividades de lazer não escapam à violência social e refletem, muitas vezes, a fragilidade das relações familiares. Comportam rupturas de valores adquiridos, podendo gerar conflitos de relações grupais, principalmente reforçadas na fase adolescente (juventude) devido a instabilidades específicas dessa faixa etária (Cifuentes, 2003).

Carneiro (2008) aponta, na atualidade, para o avanço de estudos e intervenções no âmbito do ócio, é a transformação do ócio nocivo em situações de ócio produtivo. Estudioso do tema, Cuenca (2004) destaca o ócio negativo como experiências perigosas ou negativas por serem capazes de ocasionar danos individuais ou sociais, já que são isentas de representação e sentido pessoal, ao contrário de um ócio autêntico e substancial, caracteristicamente subjetivo e representado. Em outras palavras, o que deveria ser ócio, como saída para ressignificar o tédio, o cansaço, o mal-estar, acaba por ser uma autêntica possibilidade cênica que o social propicia para passagens ao ato. Um dado que leva à pergunta sobre qual o sentido das atividades sociais de ócio programadas para os adolescentes. No quadro com as falas construídas pelos adolescentes a respeito do ócio, observa-se que muitas práticas de ócio resultam em cenas de violência pública.

Categoria 4 - Vida e morte

Nesta categoria, fica o registro da consequência da desorganização subjetiva que conflui na banalização da vida do próximo. O sentido de vida parece esmaecido, indicando um enfraquecimento na condição desejante dos sujeitos na contemporaneidade. Permeado pela via do consumo, valorizando-se a condição do ter em detrimento do ser, apresenta-se o predomínio na obtenção do objeto de satisfação, mesmo que, para isso, seja necessária a eliminação do outro.

Nesse contexto, o valor da vida torna-se instável pela condição de violência comum nos nossos dias, o que é confirmado nesta pesquisa, na fala de um adolescente: "Violência acontece por conta da ambição e individualismo", e ainda, "No Brasil se mata mais do que numa outra guerra". A perspectiva de vida comparece pautada pela marca da desesperança, e a morte toma uma configuração de naturalidade, como se vê nestas falas: "As pessoas veem a morte como solução, desespero, não existe mais o pavor, algo natural, e quando alguém diz ‘fulano morreu’, ninguém liga, só quando é alguém que fez algo importante".

Essas falas confirmam a expectativa pouco valorizada da vida, que se encontra em constante desqualificação com a perda gradativa da sacralidade. Nesse contexto, a vida é tomada por uma perspectiva de vida nua (Agamben, 2002), em que a valorização do outro não se concretiza, negando-se uma relação de alteridade e, por consequência, a manifestação de singularidades. Os fragmentos das falas apontam à banalização incondicional da vida: "As pessoas matam por 10 centavos, não estão sabendo aproveitar a vida, vivendo de qualquer jeito".

Com a banalização da vida, a potência simbólica do sujeito aparece fragilizada, e a passagem ao ato se torna uma saída iminente. Assim o sujeito sucumbe, preocupado com os ditames do consumo e em alcançar o que Ehrenberg (2010) nos apresenta como o caminho do sujeito autônomo, buscado a qualquer custo.

Categoria 5 - Violência e consumo

Este é um dos estopins da violência, na concepção dos adolescentes pesquisados. Quem está longe do poder de compra de bens ofertados como o objeto de satisfação por excelência alimenta como ideal a posse desses ditos bens. O sujeito preso nas armadilhas do consumo vive abaixo do imperativo de adquirir quinquilharias a qualquer custo. Como consequência dessa lógica, vê-se aumentar cada vez mais a desigualdade social, como se pode constatar com o crescimento descontrolado das cidades, o trabalho infantil, a prostituição infanto-juvenil, a violência desgovernada, o uso abusivo de drogas, entre outros fatores, sinalizando, assim, a exclusão social.

Para Marin (2002), há uma denúncia, com base nesses sintomas sociais considerados como perversos, desse quadro de desigualdade social em que estamos inseridos. Foi constatada essa condição em muitos fragmentos de discurso: "Não é fácil viver na sociedade"; "Pode bater só porque tem dinheiro, não vai ser preso"; "A gente compra, e outro não tem condições de comprar, e aí rouba"; "Matam e roubam para comprar drogas. Isso traz violência na família e desunião"; "Roubam até a própria família"; "Para participar da gangue, tem que consumir o que eles consomem (vestimenta, drogas), defender eles até a morte".

Complementando esses fragmentos, vários outros recortes trabalhados denotam efeitos subjetivos, causando violência por causa da desigualdade social.

O sujeito vive a ilusão de pertencimento social a partir de sua capacidade de consumo. Para Arendt (2003, p. 264):

    O fato é que uma sociedade de consumo não pode absolutamente saber como cuidar de um mundo e das coisas que pertencem de modo exclusivo ao espaço das aparências mundanas, visto que sua atitude central ante todos os objetos, a atitude de consumo, condena à ruína tudo o que toca.

Dessa forma, a violência encontra espaço propício para seu avanço, pois os limites são ditados pelo discurso capitalista (Lacan, 1992, p. 48), em que o imperativo é ter sempre mais, pois "há um mais-de-gozar a recuperar", estabelecendo uma relação de nada perder.

O discurso capitalista (Lacan, 1992) produziu mudanças significativas nas relações entre as pessoas e apresenta a pretensão de ser uma das modalidades de laço social aplicando a lógica de que tudo e todos se tornam mercadorias, com valor de compra e venda. E se tudo tem um preço, a impossibilidade deixa de existir, ressaltando a promessa de uma satisfação total do sujeito em cada ato desfechado em relação ao próximo. Essa característica fica evidenciada no cotidiano, no seguinte fragmento analisado: "As pessoas pensam mais em si, em possuir aquilo que desejam". Em outras palavras, seguem a lógica de uma autonomia que se pauta na hipótese apresentada por Ehrenberg (2010), quando discute o mal-estar na sociedade contemporânea.

Categoria 6 - Anomia, violência e lei

Esta categoria surge com base em recorrentes falas dos sujeitos da pesquisa, quando se referem a uma lei distorcida, aos limites fragilizados e aos atos de corrupção praticados pelos representantes da lei. Tem-se, assim, estabelecido um estado de anomia, no qual a lei se apresenta de forma violada, num exercício ilegal e, muitas vezes, enfraquecida, demonstrando quase seu desaparecimento. A transgressão se torna a regra. O que deveria ser exceção se torna norma. É dessa forma que a anomia é

    Como o resultado da ruptura entre os objetivos individuais culturalmente estabelecidos e os meios socialmente instituídos para alcançar essas metas, produzindo, como consequência, a decadência e a desorganização da estrutura institucional dentro de um sistema social (Meireles, 2004, p. 70).

Um quadro de incredulidade na lei se estabelece, pois não se tem certeza a quem ela "serve", vindo, assim, a interferir nos parâmetros que norteiam as relações sociais às quais se mostram inconsistentes, manifestando-se pelas desestruturações no corpo social que, nesta pesquisa, caracteriza-se pela violência. Podemos perceber, nestes recortes, uma referência a uma lei que não se sustenta: "A polícia passa por cima da lei"; "A lei é cega"; "Nem sempre a lei acontece do jeito que é pra acontece"; "Lei seca não é solução: se for um juiz, delegado bêbado, é solto"; "Meu vizinho não tem carteira e anda de carro porque é irmão de policial"; "Os vagabundos têm mais direitos que os cidadãos, vagabundo tem mais moral que o policial"; "Traficante dá dinheiro pra polícia"; "O ronda conhece vagabundos"; "Encontra em flagrante, prende e depois solta, porque ganharam dinheiro deles". Além disso, há também a corrupção entre os representantes da lei, como podemos observar: "Têm policiais que não dão busca de arma porque são corruptos"; "Governo irresponsável, cheio de corrupção, os caras querem crescer, cada um quer ser o melhor do que o outro, país mal administrado, fica cheio de violência."

Assim, "na sociedade contemporânea, o estado de anomia está diretamente relacionado com a questão da lei e tem caracterizado as sociedades ditas violentas" (Carneiro & Santos, 2008). O que se apresenta é uma lei despotencializada, que se traduz, para Agamben (2004, p. 61), como "Um estado de lei em que, de um lado, a norma está em vigor, mas não se aplica (não tem "força"), e em que, de outro lado, atos que não têm valor de lei adquirem sua ‘força’".

Ainda, de acordo com Martins e Carneiro (2009, p. 612):

    Sem a baliza da autoridade reguladora, não há como sustentar, diante de cada cidadão, a referência à culpa, quando o sujeito no espaço da cidadania comete um ato transgressor. A transgressão passa a ser um elemento próprio do estado de anomia, que salta de uma política para uma biopolítica moderna de invasão do desejo, pois o que se impõe é a ordem da necessidade.

Segundo Ambertín (2007a), esse estado de anomia cresce na nossa sociedade, provocando rupturas no laço social, deixando um lastro de dessubjetivação e desumanização devido ao imperativo de gozo que se estabelece.

Categoria 7 - Pertença subjetiva

Esta categoria surge das falas decorrentes dos adolescentes sobre a insegurança geográfica. São fragmentos que expressam os diversos sentidos de pertença ao local, considerando o contexto da violência. Para explicarmos um pouco sobre esse conceito de pertencimento subjetivo, é pertinente falarmos de patrimônio cultural.

O Fórum UNESCO diz que a memória é um motor fundamental da criatividade, que está diretamente ligada ao patrimônio de um povo, pois gera, a partir da cultura, tomada em suas manifestações naturais, materiais e imateriais, um ponto de referência de sua identificação e as fontes de sua inspiração (UNESCO, 2009).

Carneiro (2006, p. 20) pontua que o sofrimento de um povo pode ser evidenciado com base nas perdas coletivas a que se submete.

    Toda perda sofrida pela cultura material deixa marcas impagáveis na memória do povo. Cada atentado realizado contra o patrimônio cultural material de um povo gera traumas muitas vezes insuperáveis, que se articulam com outras sensações de perdas, já vivenciadas por cada cidadão, no âmbito de sua vida psíquica privada.

Esse dano causado, quando analisado no plano subjetivo, evoca, segundo Carneiro (2006), uma ruptura onde o cidadão se sentia partícipe ativo ou até mesmo passivo de um determinado significante que nomeia um laço social da ordem gentílica; não precisando que a pessoa esteja engajada em uma luta, uma reivindicação por uma bandeira patrimonial da preservação ou salvação de um bem.

A partir do momento em que alguém nasce, vive ou adota um determinado lugar, o faz por vários motivos, permitindo que o cidadão inicie a construção de uma identidade imaginária com todo o universo que o cerca.

Nas falas decorrentes dos adolescentes, eram notórias as queixas do quanto nada se fazia para a preservação do patrimônio de uma nação, de um povo, de uma cidade, de um bairro, de uma rua e, principalmente, quando se eliminava do seu convívio os ícones significativos de suas histórias: afetivas, profissionais, familiares e religiosas. Esses ícones são imagens materiais representativas do ideal de um povo. Mas acontece que eles não se identificam mais com esses ícones e muito menos se reconhecem neles: "Moro porque é o jeito"; "Ando no calçadão, mas não gosto, porque só tem turminha"; "Meus amigos não frequentam o calçadão". Se há uma banalização do patrimônio material de um povo, quando pensado dentro de uma perspectiva subjetiva, em que as regras ganham permissividade pelo silêncio dos governantes, espalha-se uma lógica similar, banalizando-se a vida humana dentro da cidade como morada (Carneiro, 2006).

Não sabem a quem se dirigir para encaminhar o registro de sua queixa, pois se trata de um dano psíquico, e, para esse tipo de dano vivido pelo cidadão, ainda faltam dispositivos que sustentem vias de reparos dentro do espaço de cidadania.

Alguns relatam que, mesmo diante desse contexto de desvalorização e violência no local onde vivem, ainda assim desejam permanecer ali, dando continuidade à sua vida: "Eu nasci aqui e vou morrer aqui". Um dito que comprova a relação que o sujeito estabelece com suas origens.

Categoria 8 - Violência e culpa

É importante registrar que esse foi um conteúdo predominante na pesquisa. Dado interessante, porque a culpa é inerente ao sujeito em virtude de sua relação com a lei.

Podemos aqui atribuir que todos os discursos recortados nas categorias anteriores encerram uma referência à culpa que fica velada entre os adolescentes.

Os fragmentos denotam uma espécie de reivindicação inconsciente de uma posição perdida, o que chama atenção, se nos lembramos do mito do assassinato do pai da horda primitiva (Freud, 1976a) ou do sofrimento inerente ao homem e dos meios pelos quais ele tentará escapar ou amenizar o mal-estar (Freud, 1976d).

A reivindicação da culpa como uma categoria central para o sujeito e sua relação com a sociedade serve de um indicativo de que essa não é apenas uma leitura de quem faz uma análise das relações sociais na academia. Ela aparece como uma condição de sobrevivência ou como uma forma de preservar uma posição subjetiva vital para o adolescente em sociedade. Os discursos registram uma conotação de queixa sobre a quem recorrer, uma autoridade, uma instituição, para sustentar a lei. É nessa perspectiva que podemos identificar com os adolescentes uma referência à culpa.

Ambertín (2007) sugere que, no decorrer dos tempos, existia a vergonha sentida pelo ato realizado, em que o olhar dos outros era importante para esse sentimento e o consequente sentimento de culpa. No entanto, ao longo dos anos, foi se dissolvendo, até chegarmos à nossa sociedade pós-moderna, em que a culpabilidade está realmente desaparecendo, ao que Ambertín alega que vivemos em uma sociedade com um acentuado déficit de vergonha por parte dos sujeitos. O que ficou, como seguimos na pesquisa, é uma espécie de pergunta pela culpa, dirigida ao social.

    A culpabilidade verdadeiramente tinha um rosto, uma cara, um semblante pesado para suportar, mas tem outro semblante que é muito importante. Que é esse semblante que permite o laço social, se nós não cumprimos horários, não cumprimos os pactos... não se pagam as dívidas... sem respeitar nada e a família tampouco. Então a culpa vai se apagando [...] (Ambertín, 2007).

Contudo, o que foi percebido nesta pesquisa é que a vergonha à qual os adolescentes se referem está relacionada com uma vergonha performática inserida no campo imagético, em que não há uma implicação subjetiva do sujeito.

Isso caracteriza a falta de impedimentos ou interdições na sociedade, pois as próprias instituições que poderiam barrar, de alguma forma, os atos violentos não aplicam a interdição. Ao contrário, há uma proliferação de falta de autoria quando se trata de fazer cumprir a lei. Sabemos que a proibição tem uma relação direta com a culpa como efeito ou resposta subjetiva, mas, com a eliminação da autoria ou da responsabilidade pelo corte de atos e desmandos, prevalece a instalação de uma lógica anômica, em que as fronteiras entre a proibição e a culpa se tornam permeáveis.

 

Conclusão

A análise das categorias construídas na pesquisa aponta em direção à confirmação qualitativa dos pressupostos considerados.

As causas do desencadeamento dos brotes de violência, identificadas nos fragmentos discursivos dos adolescentes, indicam uma desorganização dos laços sociais e corroboram, sobremaneira, com a ideia de que não há mais limites nítidos entre desejo e necessidade, pois a necessidade está sendo constantemente elevada à condição de desejo. Esse dado se deixa notar principalmente pela exacerbação no cumprimento de um imperativo de consumo que emana da ordem vigente e que se transforma em controle das necessidades. São ideias que atendem ao que Lacan (2008) chama atenção, para o deslocamento do desejo para a necessidade por causa do apetite como a marca principal de uma sociedade.

O consumo, pelo discurso capitalista, é efetivado como uma lei própria e com autonomia imperativa, como se fosse uma referência balizadora de valores sociais. Eis o imperativo de gozo em que sujeito é acometido. Com isso, o que se instala é um estado de anomia em que a lei subsiste, porém em sua desorganização. A castração é extirpada por tal lógica discursiva, e o resultado é o rechaço de uma das referências constituintes da subjetividade: o amor. Desse modo, o laço social está ameaçado em sua base, em sua crença (Ambertín, 2008), pois o legislador, a autoridade que o sustenta, distribui como insígnias, não mais a ordem, balizada pelos ideais sociais, senão atos de consumo, que, consequentemente, são responsáveis pela disseminação de atos de violência ao autorizar a nova lei (anômica) que promove a (in)sustentabilidade dos laços.

Sem a baliza da autoridade reguladora, não há como sustentar, diante de cada cidadão, a referência à culpa, quando o sujeito, no espaço da cidadania, comete um ato transgressor. A transgressão passa a ser um elemento próprio da representação do estado de anomia que salta de uma política para uma biopolítica moderna (Agamben, 2003) de invasão do desejo, pois o que se impõe é a ordem da necessidade.

Uma consequência importante no campo das relações sociais e que afetam os laços da cidadania é que a voz imperativa situada no controle do consumo, objetivando um retorno de mais-valia que alimenta o dispositivo de controle, não permite que o cidadão identifique um responsável pela ordem do consumo. Essa ordem sobre o edito da necessidade é circulante e também distribuída, de forma igualitária, dentro de toda a sociedade. A diferença é o acesso ao bem colocado como o referencial regulador das relações sociais, como uma espécie de semblante dos pressupostos éticos das relações entre as pessoas.

Como a alteridade vigente é o acesso ao bem, que também se confunde com objeto da subjetividade de cada sujeito, o que fica exposto radicalmente é uma das formas de mal-estar que Freud (1976d) destaca no "Mal-estar na civilização", ao dizer que as relações entre as pessoas é a fonte mais complexa de geração de sofrimento psíquico. Acrescentamos, nesta pesquisa, que o grau de complexidade advém principalmente da revelação de que não há responsável pela ordem do consumo, senão um discurso sem um representante específico que possa ser responsabilizado. O discurso capitalista dilui a responsabilidade entre órgãos de controle da economia globalizada.

Como não há um responsável pela ordem do consumo, não há como responsabilizar a ninguém pela impossibilidade de acesso ao bem materializado, nem mesmo ao próprio sujeito. A consequência dessa conclusão da pesquisa aponta muitas variáveis de grande valia para o estudo da violência, suas causas e efeitos subjetivos. Um dos efeitos é que o bem fica reduzido às bugigangas do mercado. Com isso, o bem-estar social segue a mesma linha de argumentação discursiva e ganha espaço de verdade no discurso do consumo. A outra consequência destacável é que implode o lugar da alteridade como um lugar de referência a um mito. Se o mito é importante para regular a relação entre amor e ódio, o que subjaz dessa operação é a constatação de que sua ausência promove um levante na tolerância da diferença entre os sujeitos no laço social. O que resta é o império "thanático" por excelência, como forma de relação amorosa (Carneiro, 2007).

A ordem vigente indica que a diferença se manifesta pela balança do mercado. Um mercado sem responsáveis e com uma ordem distributiva pautada no acesso pela necessidade, não importando a forma de acesso. Enfim, não há um mito que sustente um discurso, como na religião ou em outros campos, em que o Outro sustenta o foco e as revoltas. Dessa forma, estas são dirigidas ao próximo por meio dos excessos de atos violentos que permeiam o cenário social contemporâneo.

 

Referências

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* Professor titular do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Unifor, psicanalista, coordenador do Labio e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, editor da revista Mal-estar e Subjetividade.
** Colaboradores da pesquisa: doutora Marta Gerez Ambertín (Universidad de Santiago del Estero - Argentina); mestra em Psicologia Márcia Batista dos Santos (Universidade de Fortaleza - Brasil); alunos de Mestrado em Psicologia: Thiago Costa Matos Carneiro da Cunha (Labio), Rossana Vaz Borja (Labio), Carla Renata Braga de Souza (Labio/Leipcs), Lisieux D’Jesus Luzia de Araújo Rocha (Labio/Otium - Universidade de Fortaleza - Brasil); graduado em Psicologia Marcus Vinicius Ximenes Rocha (Universidade de Fortaleza – Brasil); bolsista de I. C. CNPq: Ricardo Pinheiro Maia Júnior; bolsista de I. C. Funcap: Rayana Silva Lima (Universidade de Fortaleza). Projeto apoiado pelo CNPq por meio de Bolsa de Produtividade em Pesquisa concedida ao Prof. Dr. Henrique Figueiredo Carneiro.

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