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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.27 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2021

https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2021v27n1p1-20 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2021v27n1p1-20

 

Violência doméstica contra mulheres: um olhar pela via dos afetos

 

Domestic violence against women: a look by way of affections

 

Violencia doméstica contra las mujeres: una mirada por el camino de los afectos

 

 

Aline Daniele Hoepers1*; Eduardo Augusto Tomanik**

 

 


Resumo

Este artigo tem por objetivo discutir como mulheres em situação de violência doméstica se sentem, isto é, os impactos afetivos desse processo vivenciado por elas. Apresentamos, inicialmente, discussões teóricas sobre os afetos e a violência doméstica contra as mulheres. Exibimos, em seguida, algumas expressões emocionais de mulheres em situação de violência doméstica que frequentavam um grupo de acompanhamento destinado a esse público, em uma sede do interior da Defensoria Pública do Estado do Paraná. Foi nesse cenário que se efetivou, em 2017, a pesquisa de campo por meio de encontros de grupo focal. Como fundamentos teórico-metodológicos, contamos com os aportes da Epistemologia Qualitativa de González Rey e do Movimento Construcionista Social. Os resultados obtidos mostraram mulheres amedrontadas, envergonhadas, enclausuradas em dinâmicas relacionais atravessadas por violência doméstica e que revelaram um campo de desafios rumo à construção de outras formas de se relacionar, de sentir e de viver de modo alternativo à violência.

Palavras-chave: Emoções. Mulheres. Violência doméstica.


Abstract

The aim of this paper is to discuss how women living in situations of domestic violence feel, that is, which are the affective consequences of this process upon them. The first step was the presentation of theoretical discussions about affections and domestic violence against women. Thereafter, we showed some emotional expressions of women in situations of domestic violence who attended a follow-up group at the headquarters of the Public Defender’s Office in the state of Paraná, Brazil. It was under these circumstances, in 2017, that the focus group meetings occurred, and field research was conducted. We rely on the contributions by González Rey concerning Qualitative Epistemology and on the social constructionist movement as theoretical and methodological framework. The results revealed women who felt frightened and ashamed, cloistered in relationship dynamics crossed by domestic violence, which put on show a field of challenges towards the construction of non-violent ways of bonding, feeling and living.

Keywords: Emotions. Women. Domestic violence.


Resumen

Este artículo tiene como objetivo discutir cómo se sienten las mujeres en situaciones de violencia doméstica, es decir, los impactos afectivos de este proceso experimentado por ellas. Inicialmente presentamos discusiones teóricas sobre los afectos y la violencia doméstica contra las mujeres. A continuación, mostramos algunas expresiones de emoción de mujeres en situaciones de violencia doméstica, que asistieron a un grupo de intervención dirigido a este público en una sede en el interior de la Defensoría Pública del Estado de Paraná. Fue en este escenario, en 2017, que la investigación de campo se llevó a cabo a través de reuniones de grupos focales. Como fundamentos teóricos y metodológicos, confiamos en las contribuciones de González Rey sobre la Epistemología Cualitativa y en el Movimiento Social Construccionista. Los resultados obtenidos desvelaron mujeres asustadas, avergonzadas, encerradas en dinámicas relacionales atravesadas por la violencia doméstica y que expusieron un campo de desafíos en la búsqueda por la construcción de otras formas de sentir, relacionarse y de vivir de manera alternativa a la violencia.

Palabras clave: Emociones. Mujeres. Violencia doméstica.


1. INTRODUÇÃO

A violência se constrói e se expressa articulada com as tessituras da realidade social. Ela encontra subsídios diversos para se manter nos diferentes espaços relacionais. Um de seus frequentes alvos, seja nos espaços públicos ou privados, é a mulher, justamente por motivos ligados ao seu gênero, como veremos adiante.

Conforme o Mapa da Violência (Waiselfisz, 2015), entre 83 países pesquisados, o Brasil ocupa a quinta posição mundial na taxa de homicídios de mulheres. As particularidades regionais, etárias e raciais permitem que a proporção das ocorrências do fenômeno, ao longo do território nacional, se dê de modo variado. Seja como for, esse dado evidencia um índice alarmante, muito acima da maioria dos países. O Atlas da Violência (Cerqueira et al., 2017) adverte, inclusive, que, antes de chegar a desfechos fatais, é bastante comum que a violência contra elas já tenha surgido de outros modos, envolvendo dimensões psicológica, sexual, física e material.

No atual contexto brasileiro, 29% das mulheres afirmam ter sofrido ao menos um tipo de violência nos últimos 12 meses, de acordo com pesquisa realizada pelo Datafolha e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2017). Inferimos que tais dados, já preocupantes, poderiam ser ainda piores, caso elas tivessem sido indagadas sobre a ocorrência de violências ao longo de toda a sua vida e não apenas do último ano.

A referida pesquisa nos dá alguns subsídios para identificarmos que, entre as possíveis faces da violência contra as mulheres, uma parte expressiva dos índices se refere à violência doméstica. Segundo 61% das participantes, a pessoa autora da violência foi alguém conhecido; na maioria das vezes, maridos, namorados, ex-maridos ou ex-namorados. O local que mais incidiu como cenário das violências foi o próprio lar, conforme 43% delas (Datafolha, & Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2017).

Essas situações de violência doméstica nem sempre são denunciadas, mas as que o são já compõem uma quantidade expressiva de casos que chegam à Justiça e dão origem a algum encaminhamento. No ano de 2016, conforme o Conselho Nacional de Justiça (2017), a partir do registro de boletins de ocorrência, instauraram-se mais de 290 mil inquéritos acerca de situações de violência doméstica contra mulheres. Apesar de esse ser um índice elevado, ele ainda não abarca a ampla proporção de casos de mulheres que não chegam a efetivar denúncias, pelos mais diversos motivos.

As relações entre homens e mulheres, permeadas pela construção social desigual dos gêneros (historicamente constituída e cotidianamente reafirmada e propagada) foi e ainda é um cenário de expressivas ocorrências de violências de homens contra mulheres.

No contexto familiar, ela ganha contornos próprios, passando a ser caracterizada como violência doméstica. Esse fenômeno configura-se e está permanentemente relacionado com aspectos sociais, históricos, econômicos, culturais, geográficos, raciais, midiáticos, familiares, geracionais, relacionais, pessoais, religiosos, entre outros.

Os dados apresentados se inscrevem como ponto de partida para as discussões que nos propomos a aqui desenvolver. Podemos, agora, situar nossa intenção de, diante deles, provocar reflexões sobre como essas mulheres se sentem. Uma vez inseridas nessas dinâmicas relacionais, os efeitos das violências atuam em suas constituições subjetivas e em suas vivências. Nosso objetivo é, então, discutir os impactos afetivos desse tipo de violência em suas vidas.

A violência doméstica contra mulheres tem se colocado, no contexto atual, como objeto de preocupação de estudos, de noticiários e da própria sociedade de modo geral. Para além das particularidades e dos pretextos que fundamentam seus interesses, normalmente tais debates se estabelecem comprometidos com a dimensão física (palpável ou visível) do fenômeno. Os aspectos afetivos, invariavelmente, seguem invisibilizados, silenciados, enclausurados. Nossa intenção foi a de lançar um olhar para o fenômeno, considerando-o de modo dinâmico e, por conseguinte, integrado e atravessado também por aspectos emocionais.

Elegemos os afetos como via possível de compreensão da violência doméstica contra as mulheres, especialmente dos impactos vividos por elas, justamente por eles serem processos relacionais, efeitos dessas interações humanas, tal como veremos a seguir na concepção proposta por Heller (1993). A violência doméstica se constrói, cria raízes e se perpetua ali, nos relacionamentos entre as pessoas, ainda que composta e atravessada por outros tantos elementos de um campo mais vasto. Logo, os afetos (atravessando, constituindo e produzindo laços humanos) podem revelar impactos de dinâmicas relacionais caracterizadas por violência doméstica. Foi nessa direção que nossa pesquisa se delineou.

1.1. A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS AFETOS

A concepção de afetos da qual partimos compreende-os como processos construídos por e construtores de relações. Aqui, os sentimentos não são considerados como algo encapsulado dentro dos sujeitos, que se expressam de dentro para fora, numa manifestação unidirecional. São reconhecidos como processos dinâmicos e integrados entre si e a outros elementos que compõem a subjetividade.

Ainda que alguns autores, autoras ou vertentes teóricas delineiem diferenciações entre afetos, sentimentos e emoções, vamos tomá-los como sinônimos nesta discussão.

Heller (1993) afirma que "sentir significa estar envolvido com algo [. . .]. Esse 'algo' pode ser qualquer coisa: outro ser humano, um conceito, eu mesmo, um processo, um problema, uma situação, outro sentimento… outro envolvimento" (pp. 15-16, tradução nossa). Os afetos são, portanto, processos relacionais. Representam o próprio envolvimento que se estabelece com algo ou alguém. Partindo das discussões trazidas pela autora, Tomanik (2015) diz que os afetos "são os efeitos produzidos em cada ser humano, por seus contatos com o mundo, com seus semelhantes e até consigo mesmo" (pp. 1-2).

Heller (1993) afirma que "sentir significa estar envolvido com algo [. . .]. Esse 'algo' pode ser qualquer coisa: outro ser humano, um conceito, eu mesmo, um processo, um problema, uma situação, outro sentimento... outro envolvimento" (pp. 15-16, tradução nossa). Os afetos são, portanto, processos relacionais. Representam o próprio envolvimento que se estabelece com algo ou alguém. Partindo das discussões trazidas pela autora, Tomanik (2015) diz que os afetos "são os efeitos produzidos em cada ser humano, por seus contatos com o mundo, com seus semelhantes e até consigo mesmo" (pp. 1-2).

A construção e a expressão dos afetos se configuram permanentemente entrelaçadas com nossas vivências, com as relações e as comunicações que estabelecemos, com as decisões que tomamos, com as ações que empreendemos, com tudo aquilo que pensamos e com os contextos nos quais nos inserimos. Não são meras reações emocionais isoladas, são criadas nesse interjogo de relações.

Segundo Heller (1993), agir, pensar e sentir compõem um mesmo processo, ainda que tenham diferenças funcionais. Quando falamos, pensamos, agimos, os afetos se dimensionam como elementos intrínsecos a esses outros processos e não como meros acompanhamentos deles. Há, pois, uma integração afetivo-cognitivo-comportamental. Rey (1999) também destaca que as emoções não são fenômenos que apenas agregam ou acompanham outros sistemas, são processos dinâmicos que compõem nossa subjetividade.

O sentir atravessa, cria e integra a vida das pessoas de maneira contínua. Heller (1993) explica que somos afetados de modo permanente, não alternamos momentos constituídos de sentimentos com outros sem a presença deles. O que acontece é que a intensidade com que eles são vivenciados sofre alterações, transforma-se de acordo com o grau de envolvimento de cada sujeito com os aspectos com os quais se relaciona.

No processo de sentir, de acordo com Heller (1993), podemos nos focar mais na própria implicação ou no conteúdo com o qual estamos envolvidos. Esclarece a autora: "Posso estar envolvido com algo ou envolvido com algo" (Heller, 1993, p. 21, grifos da autora, tradução nossa). Conforme o que tem mais importância para a pessoa, o sentimento emergirá como figura ou fundo. Todavia, esses modos de sentir não são estáticos ou permanentes, têm um caráter dinâmico, podem passar por transformações de destaque. Aqueles que não ocupam o papel central num determinado momento não são menos importantes, continuam exercendo efeitos sobre nós.

Para Heller (1993), não vivenciamos um único afeto de modo isolado, os sentimentos se intercruzam constantemente. A sua diversidade é praticamente infinita, ainda que nem sempre consigamos identificá-los ou nomeá-los. González TomanikRey (1999) também sinaliza que há uma grande diversidade de emoções. Muitas nem chegam a adquirir sentido consciente para quem as vivencia, assim como outras não têm sido conceituadas por teorias psicológicas e, ou, reconhecidas nas esferas de representações sociais.

Tomanik (2015) descreve que a constituição dos afetos "envolve dimensões neurofisiológicas, históricas, ideológicas e linguísticas" (p. 2). Nelas, estão presentes conteúdos diversos de ordem pessoal, cultural e representacional. Por tudo isso, o processo de sentir precisa ser entendido de maneira integrada ao contexto em que se desenha.

Experiências e características pessoais, elementos da cultura e conteúdos representacionais dos pequenos grupos conformam o campo do sentir, delineando particularidades em cada ser humano, em cada espaço grupal, em cada sociedade.

1.2. NUANCES DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA AS MULHERES

A violência, segundo Odalia (2012), sempre esteve presente nas sociedades, fazendo parte da história da humanidade. Constrói-se e se desenvolve na vida social, admitindo, por isso, algumas especificidades locais. Minayo (1994) salienta que "na configuração da violência se cruzam problemas da política, da economia, da moral, do Direito, da Psicologia, das relações humanas e institucionais, e do plano individual" (p. 7).

Na dinâmica social, a violência se entrelaça com os fatos cotidianos e se configura por múltiplas facetas, por vezes como um aspecto natural, banal demais para ser significado como tal. Odalia (2012) pontua que, de fato, tal fenômeno nem sempre se mostra de forma clara em todas as suas expressões, podendo se delinear de modo sutil ou de maneira tão bem esboçada que, muitas vezes, passa por um acontecimento natural.

Uma de suas faces é a violência doméstica contra as mulheres. Ela ocorre na família ou em alguma relação afetiva em que a mulher é acometida por expressões de violência pelo fato de ser mulher. Não se restringe apenas às agressões físicas, abarca outras tantas formas de se manifestar: emocional, sexual, material e moral (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006), que podem ou não se manifestar de forma associada.

Quem empreende a violência pode ser qualquer pessoa que com a mulher mantenha vínculo afetivo e, ou, familiar. Em nosso cotidiano, nos estudos, nas estatísticas, notamos que mais comumente se trata do companheiro ou ex-companheiro. Utilizaremos o termo "autores" da violência flexionado apenas no gênero masculino para demarcar nosso posicionamento de problematização da construção de relações hierarquicamente desiguais construídas histórica e socialmente entre homens e mulheres.

Conforme Butler (2003), a vida cotidiana, as relações humanas e as sociedades de modo geral estão organizadas dentro de uma lógica sob a qual se inscrevem o feminino e o masculino. As diferenças na compreensão dos sujeitos homens e mulheres não são produtos da natureza, mas sim do discurso, que contribui para criação e manutenção de uma construção social normativa, dicotômica, generificada e desigual.

Com base nas contribuições da autora, entendemos que, nesse contexto, noções do que é ser homem e ser mulher, com suas respectivas características masculinas e femininas, são ditadas, criadas, disseminados, garantindo espaços para que relações hierarquicamente desiguais se perpetuem e pressupostos machistas circulem e (re)criem realidades opressivas.

A violência doméstica contra as mulheres, ainda que tenha umlócus específico de expressão, o âmbito familiar, sofre influências desse vasto cenário, composto por aspectos das culturas, da história, das sociedades, das religiões, das expressões midiáticas, das representações criadas acerca dos gêneros feminino e masculino.

Morgado (2011) destaca que a violência doméstica contra as mulheres ocorre numa relação interpessoal, todavia não se restringe a ela, pois se trata de um fenômeno social que tem proporções mais amplas. Propõe que se analise a "violência doméstica como um fenômeno que se expressa nas relações interpessoais, diferentemente de pensá-lo como fruto das relações interpessoais" (Morgado, 2012, p. 18, grifos da autora).

Nos relacionamentos em que ocorre violência doméstica contra as mulheres, conforme Morgado (2011), suas expressões não aparecem o tempo todo de forma clara, como também nem sempre se apresentam em primeiro plano como algo que possa ser facilmente identificável. É bastante comum, explica a autora, que suas expressões se intercalem com momentos de reconciliação.

Esse fator possibilita que tais relações abusivas se caracterizem por meio de uma ambivalência expressiva, o que contribui para que, em geral, as mulheres inseridas nesses relacionamentos acreditem (mais uma vez) que suas relações poderão se transformar e, ou, que as violências cessarão. De fato, as relações humanas têm potencial para se redimensionarem. Contudo, quando se trata de vínculos em que há ou houve o atravessamento da violência, temos de atentar para a possibilidade de que a circunstância de suposta melhora possa ser apenas um intervalo para a emergência de novas expressões violentas. O contexto de incertezas e ambiguidades relacionais torna-se campo propício para que a naturalização do fenômeno encontre mais forças para se sustentar.

2. A PESQUISA DE CAMPO

Partimos do entendimento de que o pesquisar é um processo de investigação e também de intervenção na realidade, no mundo. Nessa direção, em nossa pesquisa, 1 realizamos estudo de campo de natureza qualitativa, com base em fundamentos teórico-metodológicos da epistemologia qualitativa de Rey, que compreende o conhecimento como diálogo construído permanentemente tanto pelo pesquisador, pesquisadora quanto pelo pesquisado, pesquisada (Rey, 2005). Nossa proposta de pesquisa, como processo relacional e interventivo (atrelada aos possíveis efeitos que poderia criar), ensejou que também buscássemos as contribuições do movimento construcionista social ao longo do percurso. Corradi-Webster (2014) afirma que os pesquisadores, pesquisadoras que se embasam no construcionismo social não visam à neutralidade e à objetividade, desenvolvem uma postura de engajamento e concebem o pesquisar como processo construtor de realidades.

As mulheres em situação de violência doméstica não representaram objetos de estudo disponíveis ao nosso olhar, prontas para serem descobertas, analisadas, caracterizadas. Colocaram-se como (co)autoras ativas desse processo, tendo em vista os papéis de protagonismo que assumiram, a partir dos quais puderam narrar e compartilhar como se sentem naquelas relações abusivas.

As protagonistas foram 19 mulheres que, no contexto da pesquisa de campo, frequentavam um acompanhamento grupal destinado a mulheres que já haviam passado ou estavam passando por situações de violência doméstica, desenvolvido em uma sede do interior da Defensoria Pública do Estado do Paraná. Esse serviço vinha sendo ofertado desde 2015, com o objetivo de orientação, apoio e acompanhamento, em articulação com outros órgãos da rede de serviços. Os encontros do grupo ocorriam quinzenalmente, sob acompanhamento de profissionais de Psicologia e Serviço Social, como também, eventualmente, com a presença de profissionais da área do Direito da mesma instituição ou de profissionais de outras áreas ou setores, como Enfermagem, EducaçãoFísica, Música e Teatro. Neles, eram discutidos e trabalhados assuntos diversos relacionados direta ou indiretamente à violência doméstica contra as mulheres.

No que tange aos aspectos éticos da pesquisa, o processo de investigação embasou-se no consentimento livre e esclarecido das participantes, de acordo com as diretrizes vigentes quanto à pesquisa com seres humanos.

A técnica utilizada foi o grupo focal, por meio do qual desenvolvemos encontros coletivos, nos quais elas narraram e expressaram, centralmente, conteúdos sobre suas vivências nas dinâmicas relacionais violentas. No grupo focal, conforme Gaskell (2002), as pessoas se reúnem para discutir um assunto comum, sendo a interação das pessoas participantes mediadas por um moderador, uma moderadora.

Entre o conjunto de dados obtidos nesses encontros, um dos núcleos temáticos2que se configuraram diz respeito aos impactos afetivos das violências vividas por elas, que se coloca, neste artigo, como foco de nossas discussões. A análise dos dados que compuseram o mencionado eixo ocorreu mediante organização e articulação de conteúdos manifestados por elas acerca de seus sentimentos em três dimensões, compostas por elementos que se associavam e que iam ao encontro de nossas inquietações: impactos afetivos centrais das e nas relações abusivas; afetos e representações quanto aos autores das violências; e afetos das mulheres acerca de si mesmas.

3. RESULTADOS E DISCUSSÕES

Entre as inúmeras possibilidades de sentir, as mulheres em situação de violência doméstica participantes da pesquisa apresentaram alguns afetos específicos para narrar como vivenciam relacionamentos abusivos e para expressar os sentimentos e as representações sobre os autores das violências e também sobre si mesmas.

O fato de terem trazido alguns sentimentos particulares não exclui a possibilidade de que tenham vivenciado outros afetos. Todos, todas nós vivenciamos inúmeras emoções, mas algumas delas podem assumir maior destaque que outras, dependendo das circunstâncias que vivemos, com quem ou o que nos relacionamos, e de que modo nos envolvemos com o que está em nosso entorno. Heller (1993) já havia destacado a profusão de sentimentos possíveis de serem sentidos bem como a possibilidade de que sua expressão ocorra em figura ou fundo.

3.1. IMPACTOS AFETIVOS CENTRAIS DAS E NAS RELAÇÕES ABUSIVAS: A VERGONHA, O MEDO E A CULPA

Ao abordarem, particularmente, as situações violentas nas quais estavam inseridas, as protagonistas da pesquisa invariavelmente disseram que se sentiam envergonhadas e amedrontadas. Vergonha e medo se apresentaram como sentimentos centrais nas vivências dessas mulheres. Em geral, esperamos que os relacionamentos familiares e, ou, afetivos nos proporcionem segurança, amor, respeito e cumplicidade. Nos relatos delas, pudemos identificar a relação afetiva como um lócus de instabilidade, ambiguidades, insegurança.

Heller (1993) explica que a vergonha é um afeto que surge quando sentimos que nos afastamos de certas regras sociais. Quanto ao medo, ressalta que sentir e expressá-lo é, de forma geral, manifestações que caracterizam os seres humanos. As motivações que o fazem incidir têm fundamentos em elementos pessoais e sociais.

A vergonha é narrada por muitas mulheres para definir toda a situação de violência doméstica que viveram ou vivem. Ela se configura, nesse caso, como um adjetivo do próprio viver, como podemos notar na fala de uma delas: "É uma questão de viver realmente a vergonha".3

Em outros casos, as participantes da pesquisa expuseram o sentimento de vergonha para falar do constrangimento que sentem ou sentiam em relação a amigos, familiares e colegas de trabalho. Revelaram que o sentimento de vergonha é intensificado quando essas pessoas exercem uma pressão para que findem com as relações abusivas. Uma das mulheres mencionou a não aceitação da família, por exemplo: "Então já gerou vergonha, porque a família já não aceitava, até que chegou uma situação que não deu mais". Nesses casos, écomum o aprofundamento da autoculpabilização, pois o rompimento com tais relações passa a ser percebido unicamente como responsabilidade delas, sem que se considere toda a complexidade dessas relações atravessadas por violência doméstica.

O medo, assim como a vergonha, foi relatado expressivamente pelas mulheres. Ao contarem os episódios de violência física e de ameaças sofridas, apresentaram-se como mulheres amedrontadas. Uma delas destacou: "Eu tinha medo, medo porque ele me ameaçava de morte", o que indica que esse sentimento se configura como atravessador das próprias vivências de violência doméstica.

Algumas participantes indicaram que o medo não se inscreve apenas como um sentimento presente no momento da violência em si, permanece mesmo quando o perigo real cessou. Uma delas trouxe isso de forma clara ao dizer: "Eu ainda tô tentando me resgatar, tenho medo, choro de medo. Sempre acho que ele vai chegar onde tô e vai me esganar, me enforcar. Tenho muito medo ainda".Esse temor quanto à presença (imaginária) dos autores da violência indica a profundidade dos impactos psicológicos da violência vivida.

O medo surgiu nos relatos das protagonistas não apenas para retratar suas vivências, como vimos, mas também como fator auxiliar da perpetuação das violências vividas. Em um trecho da fala de uma delas, notamos a presença do medo comprometido com a manutenção da violência: "E o medo? E eu lembrava que ele falava que, se eu fizesse isso, ele ia atingir a coisa mais importante, meu filho, minha mãe, meu pai, meus irmão. Aí começo a bater aquele medo". Sentir medo de que ameaças sejam cumpridas coloca-se, então, como fator que dificulta ou impossibilita o rompimento com a situação vivida, ou ainda, como entrave no processo de busca por apoio comunitário e, ou, profissional.

Almeida (1997) explica que é comum que o medo que as mulheres em situação de violência doméstica sentem reduza as possibilidades de distanciarem-se daquelas situações que o produzem. Por outro lado, pode acontecer de justamente esse sentimento de medo impulsioná-las na busca por apoio e, ou, superação da violência.

Além de expressarem vergonha ou medo para descreverem particularidades de suas vivências afetivas nas situações de violência doméstica, algumas participantes trouxeram narrativas em que tais sentimentos se intercruzavam. Heller (1993) já havia sinalizado essa característica dos afetos como processos construídos e expressos de modo articulado. Por vezes, nas falas de algumas delas, nos entrelaçamentos de seu sentir, além de descreverem-se como envergonhadas e amedrontadas, também falaram de si como mulheres culpadas pelo que vivem ou viveram.

Sentirem-se culpadas é bastante comum nos casos em que ainda prevalece uma percepção naturalizada da violência doméstica. A culpa surge como um elemento já internalizado por essas mulheres. Elas podem perceber a violência como algo ao qual terão que se submeter e suportar, colocando-se como culpadas, seja por viverem a situação ou por não conseguirem sair dela. Intercruzada com o sentimento de impotência, a culpa apareceu mais comumente nas falas das mulheres inseridas mais recentemente naquele acompanhamento grupal, que eram aquelas que ainda tinham pouca orientação sobre o fenômeno e sobre os possíveis meios para enfrentá-lo e, ou, superá-lo.

Os fundamentos que compõem o sentimento de culpa, em geral, são provenientes de ideias machistas, reiteradamente apresentadas pelos seus companheiros na dinâmica relacional e reforçadas pela sociedade de modo geral. Devido à fragilidade das mulheres diante das circunstâncias experienciadas, écomum que acabem incorporando esse sentimento de que, de fato, são causadoras das situações vividas. Esse modo de o sentimento de culpa se inscrever demonstra as sutilezas da violência que, ao se colocar de modo tão bem esboçado, passa por algo natural, como vimos nas contribuições apresentadas por Odalia (2012).

3.2. AFETOS E REPRESENTAÇÕES QUANTO AOS AUTORES DAS VIOLÊNCIAS

Ao abordarem, particularmente, as situações violentas nas quais estavam inseridas, as protagonistas da pesquisa invariavelmente disseram que se sentiam envergonhadas e amedrontadas. Vergonha e medo se apresentaram como sentimentos centrais nas vivências dessas mulheres. Em geral, esperamos que os relacionamentos familiares e, ou, afetivos nos proporcionem segurança, amor, respeito e cumplicidade. Nos relatos delas, pudemos identificar a relação afetiva como um lócus de instabilidade, ambiguidades, insegurança.

Heller (1993) explica que a vergonha é um afeto que surge quando sentimos que nos afastamos de certas regras sociais. Quanto ao medo, ressalta que sentir e expressá-lo é, de forma geral, manifestações que caracterizam os seres humanos. As motivações que o fazem incidir têm fundamentos em elementos pessoais e sociais.

A vergonha é narrada por muitas mulheres para definir toda a situação de violência doméstica que viveram ou vivem. Ela se configura, nesse caso, como um adjetivo do próprio viver, como podemos notar na fala de uma delas: "É uma questão de viver realmente a vergonha".3

Em outros casos, as participantes da pesquisa expuseram o sentimento de vergonha para falar do constrangimento que sentem ou sentiam em relação a amigos, familiares e colegas de trabalho. Revelaram que o sentimento de vergonha é intensificado quando essas pessoas exercem uma pressão para que findem com as relações abusivas. Uma das mulheres mencionou a não aceitação da família, por exemplo: "Então já gerou vergonha, porque a família já não aceitava, até que chegou uma situação que não deu mais". Nesses casos, écomum o aprofundamento da autoculpabilização, pois o rompimento com tais relações passa a ser percebido unicamente como responsabilidade delas, sem que se considere toda a complexidade dessas relações atravessadas por violência doméstica.

O medo, assim como a vergonha, foi relatado expressivamente pelas mulheres. Ao contarem os episódios de violência física e de ameaças sofridas, apresentaram-se como mulheres amedrontadas. Uma delas destacou: "Eu tinha medo, medo porque ele me ameaçava de morte", o que indica que esse sentimento se configura como atravessador das próprias vivências de violência doméstica.

Algumas participantes indicaram que o medo não se inscreve apenas como um sentimento presente no momento da violência em si, permanece mesmo quando o perigo real cessou. Uma delas trouxe isso de forma clara ao dizer: "Eu ainda tô tentando me resgatar, tenho medo, choro de medo. Sempre acho que ele vai chegar onde tô e vai me esganar, me enforcar. Tenho muito medo ainda". Esse temor quanto à presença (imaginária) dos autores da violência indica a profundidade dos impactos psicológicos da violência vivida.

O medo surgiu nos relatos das protagonistas não apenas para retratar suas vivências, como vimos, mas também como fator auxiliar da perpetuação das violências vividas. Em um trecho da fala de uma delas, notamos a presença do medo comprometido com a manutenção da violência: "E o medo? E eu lembrava que ele falava que, se eu fizesse isso, ele ia atingir a coisa mais importante, meu filho, minha mãe, meu pai, meus irmão. Aí começo a bater aquele medo". Sentir medo de que ameaças sejam cumpridas coloca-se, então, como fator que dificulta ou impossibilita o rompimento com a situação vivida, ou ainda, como entrave no processo de busca por apoio comunitário e, ou, profissional.

Almeida (1997) explica que é comum que o medo que as mulheres em situação de violência doméstica sentem reduza as possibilidades de distanciarem-se daquelas situações que o produzem. Por outro lado, pode acontecer de justamente esse sentimento de medo impulsioná-las na busca por apoio e, ou, superação da violência.

Além de expressarem vergonha ou medo para descreverem particularidades de suas vivências afetivas nas situações de violência doméstica, algumas participantes trouxeram narrativas em que tais sentimentos se intercruzavam. Heller (1993) já havia sinalizado essa característica dos afetos como processos construídos e expressos de modo articulado. Por vezes, nas falas de algumas delas, nos entrelaçamentos de seu sentir, além de descreverem-se como envergonhadas e amedrontadas, também falaram de si como mulheres culpadas pelo que vivem ou viveram.

Sentirem-se culpadas é bastante comum nos casos em que ainda prevalece uma percepção naturalizada da violência doméstica. A culpa surge como um elemento já internalizado por essas mulheres. Elas podem perceber a violência como algo ao qual terão que se submeter e suportar, colocando-se como culpadas, seja por viverem a situação ou por não conseguirem sair dela. Intercruzada com o sentimento de impotência, a culpa apareceu mais comumente nas falas das mulheres inseridas mais recentemente naquele acompanhamento grupal, que eram aquelas que ainda tinham pouca orientação sobre o fenômeno e sobre os possíveis meios para enfrentá-lo e, ou, superá-lo.

Os fundamentos que compõem o sentimento de culpa, em geral, são provenientes de ideias machistas, reiteradamente apresentadas pelos seus companheiros na dinâmica relacional e reforçadas pela sociedade de modo geral. Devido à fragilidade das mulheres diante das circunstâncias experienciadas, écomum que acabem incorporando esse sentimento de que, de fato, são causadoras das situações vividas. Esse modo de o sentimento de culpa se inscrever demonstra as sutilezas da violência que, ao se colocar de modo tão bem esboçado, passa por algo natural, como vimos nas contribuições apresentadas por Odalia (2012).

3.2. AFETOS E REPRESENTAÇÕES QUANTO AOS AUTORES DAS VIOLÊNCIA

Nas relações humanas, as pessoas desenvolvem, de maneira muito particular, sentimentos e modos de perceber o outro com quem se relacionam, de acordo com as singularidades daquele vínculo, das trocas afetivas ali criadas e das diferenças existentes entre eles, elas. Nos relacionamentos atravessados pelo fenômeno da violência doméstica contra mulheres, notamos que elas vão nos indicar representações e afetos com algumas especificidades, que guardam, em última instância, os próprios contornos dessas relações abusivas.

A maioria das mulheres, ao discorrer sobre seus companheiros ou ex-companheiros, expressou sentimentos ambivalentes ou pouco claros. A confusão afetiva trazida em suas narrativas pode estar relacionada às próprias vivências de violência doméstica, que são, em geral, ambivalentes, pouco estáveis, como explicou Morgado (2011). Não ocorrem violências o tempo todo. Por vezes, elas se mascaram entre a sutilezas das relações violentas, como também se intercruzam com momentos de reconciliação, como vimos nas contribuições da autora.

Os posicionamentos de algumas protagonistas indicaram ambivalências acentuadas, ao trazerem elementos dissonantes para representar o autor da violência. Ele é descrito como homem bom, trabalhador, um anjo, mas também, ao mesmo tempo, como alcoolista, violento, machista, alguém ameaçador. Além dessas flutuações, uma delas relatou não mais saber o que sentia pelo companheiro, em razão de tudo o que viveu, como se seus afetos por ele tivessem se tornando nebulosos, obscuros, confusos. Nas palavras dela: "Então, assim, eu não sei qual o sentimento que eu tenho por ele, mas eu acho que o tempo vai dizer, hoje eu não consigo".

De modo geral, nas relações que os seres humanos desenvolvem, é comum a presença de ambiguidades. Não sentimos uma coisa só, estável e imutável pelo outro. Seria fantasioso conceber afetos estáticos e modos de sentir sem quaisquer paradoxos. Contudo, o que estamos demarcando aqui é que, nas relações atravessadas por expressões de violência doméstica, tais ambivalências de sentimentos tomam contornos particulares, pois agregam representações e, ou, afetos que nos pareceriam inconciliáveis em uma mesma pessoa. Além disso, em alguns casos, como no último exemplo trazido, nem essa ambivalência existe mais, o que prevalece é o não saber, não ter clareza do que se sente. Afetos paradoxais ou pouco claros são, portanto, comuns em suas narrativas.

Algumas mulheres não falaram de suas emoções quanto aos parceiros ou ex-parceiros. Restringiram-se a representá-los por adjetivos. Os termos usualmente trazidos foram: alcoólatra, violento, drogado e bonzão.4 Ao circunscrevê-los a elementos socialmente tidos como negativos, possivelmente se sentem isentas de terem de falar de seus afetos quanto a eles.

Um desses aspectos, inclusive, tomou uma proporção bastante ampla nas narrativas apresentadas pela maioria das participantes quanto às suas representações acerca dos autores das violências. O alcoolismo apareceu como fator comum em sua caracterização para 14 das 19 participantes da pesquisa. Em suas descrições, o uso de álcool aparece como causa ou pré-requisito para a violência ocorrer.

Para Vieira, Cortes, Padoin, Souza, Paula e Terra (2014), o uso e abuso de álcool e a violência são, recorrentemente, abordados e explicados por meio de uma relação de causa-efeito. Contudo, o álcool pode agir, na verdade, como "um fator que potencializa ou vulnerabiliza as mulheres ao contexto violento" (Vieira et al., 2014, p. 370), visto que se coloca como um aspecto desinibidor do comportamento do companheiro.

Assim, não necessariamente fazer uso de álcool torna uma pessoa violenta. Mas se ela tem características violentas em seu modo de funcionamento subjetivo, pode acontecer de, a partir do uso do álcool, haver um incremento da expressão desses comportamentos.

O fato de as mulheres que sofrem violência doméstica terem trazido o alcoolismo de forma expressiva para caracterizar seus companheiros ou ex-companheiros nos indica que esse é um campo de análise que precisa de atenção. Nossa pesquisa não abrangeu esse cenário mais profundamente, mas abriu espaço para que sejam desenvolvidos novos estudos que busquem compreender quem são esses homens, quais suas condições de vida e de inserção social, o que o álcooltem representado para eles e quais sentidos adquirem em relações violentas.

Algumas teorias psicológicas sinalizam que se vincular a um homem alcoolista e violento pode estar relacionado às vivências dessas mulheres em sua infância a respeito de seus genitores, como se essas relações fossem buscadas, ainda que inconscientemente, e revividas por meio da repetição. O estudo de Lima e Werlang (2011), por exemplo, traz algumas considerações nessa direção.

Em nossa pesquisa, no entanto, entre as mulheres que verbalizaram ter parceiros alcoolistas, a maioria delas ressaltou não ter sofrido ou presenciado violência doméstica na infância bem como não ter tido pai alcoolista. Isso sugere que, ainda que essas experiências (se vividas ao longo da infância e da adolescência) possam criar marcas significativas que poderão afetar as relações futuras, isso nem sempre se coloca como regra, já que há muitos outros atravessamentos que figuram nesses relacionamentos abusivos.

De outro modo, quatro delas relataram que presenciaram o pai, alcoolista, empreendendo violência doméstica contra a mãe. Algumas descreveram, inclusive, que também foram alvo das agressões. Revelaram que esse fator, presente em suas histórias, contribuiu para que vivenciassem, em suas relações amorosas, as violências domésticas como aspectos habituais da dinâmica relacional, já que, de modo mais expressivo que as demais, externaram que compreendiam que, se a mãe sofrera tais violências, elas também tinham de suportá-las. É possível que esses aspectos particulares articulados com elementos de um contexto mais amplo, marcado por relações desiguais entre os gêneros (Butler, 2006), contribuam para que a naturalização da violência tome proporção mais ampla nesses casos.

O abuso de álcool pelos companheiros, embora tenha figurado expressivamente na narrativa de muitas participantes como aspecto intimamente relacionado com as violências vividas, deve ser analisado com cautela, visto que representa apenas um dos possíveis fios da complexa teia que configura o grave, emergente e multifacetado fenômeno da violência doméstica contra elas, como nos revelaram as estatísticas e os fundamentos já abordados.

3.3. MORTE EM VIDA: OS AFETOS DAS MULHERES ACERCA DE SI MESMAS

A maneira como as participantes da pesquisa descreveram que se percebem e se sentem nas relações marcadas por violências delineou um espaço de existência específico, aliás um (não) lugar que elas sentem ocupar. Para falar desse lugar ilegítimo, ao qual sentem pertencer nas relações permeadas por violência doméstica, descreveram a si mesmas como vidas enclausuradas, solitárias, isoladas, escravizadas, despersonalizadas, mortas.

Podemos inferir que discursos, saberes e poderes que circulam socialmente e atravessam tais relações tornam ou tentam tornar as vidas dessas mulheres expressões sombrias, existências não importantes. Butler (2000) ressalta ser imprescindível a reflexão sobre de que modo certos corpos que são deixados à sombra contribuem para materializar aqueles corpos designados como importantes. Durante uma entrevista, ao ser indagada sobre o conceito de abjeto, Butler explanou: "O abjeto para mim [. . .] relaciona-se a todo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas 'vidas' e cuja materialidade é entendida como 'não importante'" (Prins, & Meijer, 2002, p. 161).

Algumas das participantes, ao descreverem as situações que viviam nos relacionamentos abusivos, caracterizaram-nos por meio do isolamento social e familiar, da dificuldade de recorrer a algum tipo de apoio ou realizar uma denúncia e do uso intensivo de medicações psiquiátricas em decorrência do intenso sofrimento psíquico, fatores esses que podemos caracterizar como matizes de uma espécie de enclausuramento. Elas sinalizaram que se sentiam presas, confinadas, imóveis diante da fragilização sofrida nessas relações.

Outras indicaram uma possibilidade ainda mais particular de existir de modo subjetivamente confinado, descrevendo-se como escravas. Uma delas disse: "Eu vivia uma fase de escrava, humilhação, e aquilo ali ia passando, ia passando, ia passando, e eu nunca ia deixar, por nada", demonstrando que esse lugar sombrio ao qual sentia pertencer não sinalizava indícios ou brechas de luz. Essa mulher narrou a imobilidade causada pelas reiteradas experiências de humilhação vividas. Outras, para descrever esse lugar de escravidão, caracterizaram-no como uma relação na qual apenas lhes era permitido o que o companheiro considerava correto.

Algumas mulheres também expressaram o sentimento de solidão como forma possível de existir e de sentir em relacionamentos atravessados pela violência. Umas falaram do desprezo e do abandono vividos nas relações conjugais, enquanto outras deram maior ênfaseà solidão decorrente do afastamento de amigos, amigas e familiares, como notamos em algumas verbalizações que se seguem: "E eu comecei a me ver desesperada, porque eu me vi ali sozinha e abandonada"; "Antes eu não podia sorrir, não podia ir na casa de um vizinho, ter amiga, a minha vida era uma tristeza, era só chorar"; "Eu não podia conversar com ninguém, ninguém podia ir na minha casa, [. . .] porque todo homem que frequentava minha casa era meu amante, né".

Muitas delas também descreveram a si mesmas como pessoas que não mais tinham sonhos, planos, desejos. Indicaram que, se um dia eles existiram, ficaram soterrados em algum lugar do passado. Esse processo de despersonalização e inferiorização das mulheres é claramente apresentado na fala de uma delas quando disse: "Eu achava que não ia conseguir tudo que eu fiz sozinha, porque ele jogava na minha cara que eu não era muié pra... que se ele me largasse eu ia passar fome". Essa narrativa revela o ataque à autoestima, que se inscreve como um instrumento poderoso nessas situações, como sinalizou Morgado (2011). Acontece, inclusive, de elas usarem termos constantemente utilizados pelos companheiros para falarem de si. Uma das mulheres disse, por exemplo: "Me sentia um lixo", para descrever como se percebia quando inserida naquele relacionamento permeado por violência.

Uma participante da pesquisa salientou que suas vivências naquele relacionamento marcado pela violência doméstica representaram muito mais do que uma frustração amorosa. Verbalizou: "Pra mim, não foi uma derrota, foi um sentimento assim como se tirassem de mim o direito de viver". Falou, pois, de um sentimento de inferioridade, próximo à morte.

Os efeitos dessas estratégias que contribuem para a construção e a manutenção desse lugar sombrio se capilarizam e vão se dimensionando como parte das dinâmicas relacionais. Podemos tomar como exemplo a fala de uma delas, quando diz: "Assim, devagarzinho, você acha que não tá te atingindo, que énormal, mas, quando você chega numa certa altura, você vê, assim, que você foi presa, você foi privada de muita coisa da sua vida, dos teus sonhos". É comum que tais efeitos passem, inclusive, a ser vividos e sentidos como naturais, dada a sutileza das expressões das violências.

As manifestações subjetivas dessas mulheres anunciaram e denunciaram marcas da violência. Os efeitos das expressões desse fenômeno foram evidenciados em suas narrativas. Por outro lado, elas manifestaram que podem construir estratégias de resistência ante o vivido e criar instrumentos de fortalecimento pessoal. Uma delas relatou: "Tenho muita coisa pra eu almejar, alcançar. [. . .]. Eu tive que sair desse casamento pra resgatar a Alice,5 que eu... que tava assim totalmente a milhares de distância de mim, ela ficou longe... ela desapareceu". Outra narrou um suspiro de esperança e de construção de sentidos novos: "Posso me olhar no espelho e começar a me ver". Revelaram-nos que é possível começar a se mover e, pouco a pouco, romper com as fronteiras desses espaços de confinamento.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pela via dos afetos, buscamos construir discussões sobre as vidas de mulheres inseridas e confinadas nessas dinâmicas relacionais permeadas por violência doméstica. Elas narraram sentimentos sobre si mesmas, sobre os autores das violências e sobre suas vivências naquelas relações abusivas. Suas expressões afetivas, entrelaçadas com seus pensamentos e ações, mostraram-nos a complexidade e a profundidade do abismo em que elas sentem estar naqueles relacionamentos.

Seus posicionamentos evidenciaram que a violência doméstica gera impactos profundos em suas constituições subjetivas e vivências. Seus efeitos não se limitam à violação de sua integridade física, do ideal de relação amorosa ou de normas sociais. Encontram brechas e resvalam por vielas mais profundas do eu: desvanecem a autoestima e a autonomia, enclausuram e silenciam planos e sonhos, capturam novas possibilidades de viver e de se relacionar, amedrontam e envergonham, dominam e matam subjetiva e objetivamente.

O lar, usualmente idealizado por nós como espaço de trocas afetivas agradáveis, segurança e cooperação, passa a ser, nesses casos, cenário de graves violências. Algumas sutis e silenciosas, outras escancaradas, sem quaisquer disfarces. Os laços afetivos se transmutam num emaranhado de conteúdos ambíguos, de nós aparentemente indesvencilháveis.

As estatísticas revelam, como vimos, e a realidade é “insinuosa” em reafirmar que ainda há muito a fazer. O desenvolvimento de reflexões e problematizações sobre a construção social desigual dos gêneros deve ser diretriz crucial no processo de enfrentamento da violência doméstica contra as mulheres. A construção de estratégias de ação, inclusive pela via dos afetos, deve ser buscada a fim de facilitar formas outras de se relacionar, de sentir e de viver de modo alternativo à violência.

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Texto recebido em 23 de outubro de 2019 e aprovado para publicação em 28 de maio de 2020.

 

 

*Doutora, mestra e graduada em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM); psicóloga judiciária do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Endereço: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Sede de Mirante do Paranapanema. Rua Maria Lúcia R. de Almeida, 362 – Centro, Mirante do Paranapanema-SP, Brasil. CEP: 19260-000. Telefone: (18) 3991-1023. E-mail: alinedanielehoepers@hotmail.com.
**Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC São Paulo), mestre em Psicologia Comunitária pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), licenciado e bacharel em Psicologia; professor voluntário no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UEM (mestrado e doutorado); bolsista sênior pela Fundação Araucária. Endereço: Universidade Estadual de Maringá, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Departamento de Psicologia. Avenida Colombo, 5790 - Jardim Universitário, Maringá-PR, Brasil. CEP: 87020-900. Telefone: (44) 3011-4291.

 

 

1 Pesquisa desenvolvida como processo de investigação para o mestrado, tendo o estudo de campo ocorrido, especificamente, em 2017.
2 Outros núcleos temáticos surgiram das dinâmicas relacionais construídas nos e pelos encontros do grupo focal, os quais, dada a complexidade e extensão, não serão discutidos neste texto.
3 Essa e as demais expressões apresentadas ao longo do artigo são excertos das verbalizações das protagonistas da pesquisa. Buscamos manter, nas transcrições, as palavras e expressões tal como verbalizadas por elas, visando a preservar os conteúdos e sentidos originais.
4 Os termos mencionados são mantidos tal como citados pelas participantes. O uso do termo "bonzão", por exemplo, nos contextos em que foi por elas empregado, estava relacionado a um suposto poder associado à masculinidade, isto é, a uma concepção de homem poderoso e superior, fruto de uma sociedade estruturalmente machista.
5 Nome fictício.

 

 

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