SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.13 número1Produção e divulgação científica: um compromisso em constante atualizaçãoA festa rave e o mundo fantasmático: um estudo psicanalítico índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.13 no.1 Ribeirão Preto  2012

 

ARTIGOS

 

Vínculos familiares e atendimento psicológico: a escuta dos pais sobre a alta da criança

 

Family bonds and psychological care: parent's listening to the child's discharge

 

Vínculos familiares y atendimiento psicológico: la postura de los padres en cuanto al alta de sus hijos

 

 

Marcela Lança de Andrade; Fernanda Kimie Tavares Mishima-Gomes; Valéria Barbieri

Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Buscando oferecer o melhor para os filhos, muitos pais procuram por um cuidado especializado, como a psicoterapia, quando acreditam ser necessário. Entre as expectativas do processo terapêutico está a esperança de que seus filhos se curem e possam ser pessoas bem-sucedidas no futuro. Nossa sociedade exige que os pais ofereçam o melhor suporte para que os filhos evoluam e estes, por sua vez, precisam corresponder às expectativas de sucesso. O grupo familiar e o meio em que a criança está inserida interferem diretamente no seu desenvolvimento, pois, apesar da tendência inata ao desenvolvimento, a criança requer a presença de um ambiente suficientemente bom. A psicoterapia, em alguns casos, não é a única opção quando se percebe que a família pode fortalecer seus vínculos e trabalhar juntamente com a criança. Porém, nem sempre essa sugestão de "alta" é facilmente aceita, e a indicação pela não psicoterapia, e sim por um trabalho familiar, pode deixar os pais angustiados e nervosos. Como exemplo, este trabalho apresenta dois casos atendidos nos quais a sugestão do não encaminhamento para psicoterapia e a possibilidade de se trabalhar com a criança no ambiente familiar foram fonte de angústias e frustração dos pais.

Palavras-chave: Família; Vínculo; Psicoterapia; Alta.


ABSTRACT

When considered necessary, many parents seek psychological care in the best interests of their children. It is expected from the therapeutic process to cure children and help them to be successful in future. Society demands from parents to give the best support for their children so that they can grow and match the expectations of success. The environment and family members affect directly the child's development. Therefore, although the child has an innate tendency to self-development, in other to develop healthily, he or she needs favourable environment. Nevertheless, in some cases, psychotherapy might not be the only option as the family realises it can strengthen family bonds and support children. However, the possibility to be given 'discharge' is not easily accepted. Family care only, instead of psychotherapy, can make parents distressed and angry. As an example, this work introduces two cases in which it was recommended that therapy should not be undergone and family care only was cause of distress and frustration for the parents.

Keywords: Family; Bonds; Psychotherapy; Discharge.


RESUMEN

Intentando ofrecer lo mejor a sus hijos, muchos padres buscan cuidado psicológico para ellos cuando lo creen necesario. Entre las expectativas del proceso terapéutico esta la esperanza de que sus hijos se curen y puedan ser personas bien sucedidas en el futuro. Nuestra sociedad exige que los padres ofrezcan la mejor ayuda, para que sus hijos evolucionen y estos a su vez correspondan a las expectativas de suceso. El grupo familiar y el medio en que el niño esta inserido interfiere directamente en su desarrollo, pues a pesar de la tendencia innata al desarrollo el niño necesita de un ambiente suficientemente bueno. La psicoterapia, en algunos casos no es la única opción cuando se percibe que la familia puede fortalecer sus vínculos y trabajar juntamente con el niño. Por lo tanto ni siempre la sugerencia de alta es fácilmente aceptable, y la recomendación de no tener un tratamiento psicoterapéutico y si un trabajo familiar, puede dejar a los padres angustiado y nerviosos. Como ejemplo este trabajo presenta dos casos atendidos en los cuales la sugerencia de no dar un encaminamiento psicoterapéutico y la posibilidad de trabajar con el niño en el ambiente familiar fueron fuentes de angustia y frustración.

Palabras clave: Familia; Enlace; Psicoterapia; Alta.


 

 

INTRODUÇÃO

A procura de psicoterapia para crianças tem sido uma forma recorrente de pedido de ajuda dos pais, seja realizada por intermédio da escola, por profissionais da saúde, ou ainda por conta própria. Buscar a psicoterapia para os filhos representa uma forma de assegurar o bem-estar e o desenvolvimento deles perante as mais diversas dificuldades, já que os pais se preocupam que seus filhos não tenham um bom desempenho nas atividades e responsabilidades diárias se não souberem lidar com seus "problemas".

Atualmente, observa-se um aumento de pesquisas que investigam como são as configurações dessas famílias atuais, para que dessa forma possamos compreendê-las melhor em suas particularidades, desejos e dificuldades. A diversidade é característica desses grupos familiares, em especial no que diz respeito às atividades profissionais dos genitores. Alguns mantêm o padrão tradicional, em que a mãe permanece em casa cuidando dos filhos; em outros grupos, a mulher opta por trabalhar apenas quando os filhos estão na escola, e há ainda aqueles em que ambos - pai e mãe - dedicam-se ao trabalho, muitas vezes integralmente, sendo esta uma atitude necessária por conta das dificuldades cotidianas e obrigações financeiras. Neste último caso, no qual os pais ficam envolvidos integralmente em seus trabalhos, o cuidado com os filhos passa a depender do apoio social (Souza, Wagner, Branco, & Reichert, 2007).

Winnicott (1957) pontua que há no casamento a necessidade primordial de ter filhos ou constituir família, ainda que o casal desconsidere as questões da própria conjugalidade, o que pode vir a promover incompatibilidades entre o casal. Winnicott (1957) também ressalta que "os pais precisam das crianças para desenvolver o seu relacionamento, e que os impulsos positivos assim gerados são muito poderosos" (p. 64). Nesse sentido, tem-se que o casamento e a família podem significar um desenvolvimento para o casal e um crescimento contínuo (Gomes & Paiva, 2003).

Ao constituir uma família, o casal se vê diante de muitas responsabilidades e obrigações, dentre elas, o provimento material, que pode advir dos ganhos com o trabalho. Além de essencial para a manutenção financeira das famílias, o trabalho é socialmente valorizado, principalmente para os grupos familiares que almejam uma boa educação para sua prole. Além disso, ele também possibilita o reconhecimento e a valorização, tornando-se fonte de crescimento para os genitores (Souza et al., 2007).

Com tanta dedicação ao trabalho e à vida pessoal, além da grande exigência em relação a eles próprios quanto à educação de seus filhos, resta pouca disposição para muitos pais acompanharem e cuidarem de suas crianças. Com a pressão do mundo contemporâneo de que as crianças se preparem cada vez mais cedo para o futuro profissional, os pais optam por outras maneiras de garantir que seus filhos sejam assistidos e bem cuidados - por meio de uma terceirização do cuidado.

É comum que os pais vejam e amem suas crianças por serem estas a imagem de sua própria felicidade e, assim, eles buscam se aproximar como seus amigos e seus iguais, desejando que elas realizem e cumpram suas expectativas. Como a autoridade é vista como sinônimo de severidade, cabe aos pais, portanto, amar seus filhos; a outros órgãos, resta a função educativa (Vilhena, 2004). Nesse sentido, algo que ameace esse amor ou que questione a suficiência dele para as crianças, leva os pais a se angustiarem intensamente, pois ameaça o desejo narcísico de ver seus filhos felizes e realizados (Vilhena, 2004).

Marcon (2002) realizou um estudo em que fez uma avaliação de 25 famílias de três gerações diferentes e pontuou que a concepção atual sobre a criança é representada como um ser desobediente e muito esperto, que tem atividades durante todo o dia além da escola, como balé, judô, natação, inglês, passando pouco tempo livre dentro de casa. Nessa geração, é priorizado o que possa favorecer a individualidade da criança e o seu desenvolvimento neuromotor; a criança recebe cuidados que objetivam manter sua saúde, evitando que adoeça.

Também se pode verificar como atividade "extracurricular" ou um cuidado terceirizado dessas crianças a procura de um psicólogo para início de uma psicoterapia, especialmente quando fica evidente que a motivação dos pais por esta busca está representada pela culpa ou necessidade de sentir que está cuidando do filho, mesmo que por meio de terceiros.

A procura da psicoterapia, portanto, pode representar para a família uma atividade "extra" da criança, que tranquiliza os pais ao oferecer um cuidado especializado para os filhos. A busca pelo atendimento psicológico está diretamente associada aos conflitos, angústias e fantasias dos pais, além dos sintomas apresentados pela criança, que podem ser uma via para mobilizar o grupo familiar a se atentar às angústias, ansiedades e outros sentimentos relacionados, como uma forma de pedido de ajuda que facilita o processo da busca por atendimento psicológico (Cambuí, Monteiro, & Ribeiro, 2011).

É importante ressaltar que o cuidado terapêutico é facilitado quando há participação efetiva dos pais envolvidos no atendimento da criança. Winnicott (2000) considerava o ambiente de extrema importância para o desenvolvimento emocional infantil. De acordo com a sua teoria do amadurecimento, toda criança apresentaria uma tendência inata ao desenvolvimento, necessitando, porém, de um meio suficientemente bom para que este ocorresse de forma sadia (ou seja, um meio que atendesse as necessidades da criança, oferecendo-lhe holding e cuidado contínuo, além de um ambiente estável em que ela pudesse sentir segurança e confiança para agir de forma espontânea).

A existência de um ambiente suficientemente bom, que é representado pela presença de indivíduos que assumam para si as funções paterna e materna de maneira suficientemente boa, possibilita que a mãe se identifique com o seu filho para satisfazer as necessidades deste, introduzindo o mundo em pequenas doses de forma que seja suportável para a criança e para que, assim, ela possa desenvolver seu self verdadeiro, sua identidade, agindo de forma espontânea e criativa no mundo. Pautando-se na teoria do amadurecimento de Winnicott (2000), a inserção da família no processo terapêutico torna-se essencial.

Corroborando a ideia anterior, é de extrema importância que os pais participem do processo terapêutico dos filhos para que não haja atribuição de responsabilidades apenas ao terapeuta (Winnicott, 1987). Ajudar os pais a conseguirem auxiliar seus filhos também os ajuda a respeito de si mesmos (Winnicott, 1984). Entretanto, procurar por atendimento psicológico para os filhos pode também despertar sentimentos de culpa e sensação de fracasso dos responsáveis, pois a necessidade de ajuda pode significar para a família uma confirmação desse fracasso ou uma possibilidade de explorar suas dificuldades e responsabilidades para com o sintoma da criança (Coppolillo, 1990).

Da mesma forma, alguns pais precisam crer que seus filhos são os responsáveis pelos próprios sintomas e não a constituição familiar, dirigida à sua função paterna e materna. Sendo assim, a afirmação do psicólogo de que a criança está bem e não precisa de acompanhamento terapêutico muitas vezes é negada e até recebida como uma afronta à família. Para esses pais, a angústia de continuar a viver com a percepção de algo "errado" em seus filhos, que pode ter sido criado por eles próprios, é insustentável.

A fim de refletir acerca de tais considerações, este trabalho apresenta dois casos de famílias atendidas em triagem no serviço-escola de uma universidade pública, no interior do estado de São Paulo e que buscaram o atendimento psicoterápico devido à presença de determinados sintomas em seus filhos. Neste processo de triagem, procurou-se refletir sobre a dinâmica da família e a reação ao não encaminhamento de seus filhos, trabalhando com a possibilidade dessas famílias de apresentarem uma postura mais ativa no cuidado e na queixa relatada pelos pais.

O serviço de triagem é desenvolvido em pelo menos quatro sessões que incluem uma entrevista de anamnese com os pais ou responsáveis da criança, uma sessão lúdica com a criança, uma sessão familiar em que estarão presentes a criança, seus pais, e outros familiares que residirem na mesma casa (como irmãos ou avós) e as devolutivas, realizadas separadamente, para os pais/responsáveis e para a criança. O atendimento durante a triagem infantil envolve também os familiares, já que não é possível separar as crianças do seu ambiente nuclear e, dessa forma, possibilita-se uma participação mais ativa dos pais. Este modelo de triagem é baseado nas ideias de consultas terapêuticas, desenvolvidas por Winnicott (1994), em que o psicólogo intervém com apontamentos e interpretações sobre as questões trazidas pela família, oferecendo suporte emocional durante as etapas realizadas.

Nos casos descritos neste trabalho, todas as etapas realizadas contaram com a presença de ambos os pais e, apesar das queixas relatadas, não houve a necessidade imediata de atendimento psicológico, o que ocasionou em frustração por parte dos pais.

 

CASOS CLÍNICOS (CASO 1)

Mário, de dez anos de idade, chegou para o atendimento psicológico por apresentar problemas na escola, como dificuldade para aprender a ler, escrever e manter a atenção, por chorar quando pressionado a responder algo que alegava não saber, e por ser uma criança tímida, infantil e dependente, tendo sido diagnosticado por um neurologista com Transtorno do Déficit de Atenção (TDA).

A mãe estava bastante preocupada e desgastada com esta situação "problema". Ela e Mário eram muito ligados até o nascimento do seu segundo filho, o que ocasionou uma mudança radical de atitude da mãe para com Mário, a fim de conseguir cuidar do filho menor, pois ela acreditava que devia se doar inteiramente ao caçula, sendo impossível, para ela, cuidar dos dois filhos ao mesmo tempo. Este fato parece ter ocasionado, conforme percebido durante o processo de triagem, uma separação brusca na relação mãe-filho, prejudicando a aquisição de diferenciação entre a mãe e Mário, o que fez com que este passasse a se mostrar dependente e "medroso" em situações que antes ele conseguia lidar com facilidade.

Nestas situações, a mãe não era capaz de perceber Mário como uma criança que estava em desenvolvimento, tratando-o de forma ambígua - em alguns momentos, como um bebê, incapaz de realizar atividades simples e, em outros, como uma criança mais velha que precisava superar todas as dificuldades sozinha. Mário, por sua vez, sentia necessidade de mostrar aos pais que era capaz e que podia agir com autonomia, mas suas tentativas não eram levadas em consideração, pois eles não reconheciam suas capacidades, em especial em relação à escola.

Durante o processo de triagem, Mário mostrou-se uma criança emocionalmente saudável e espontânea, que estava vivenciando o conflito de ter de crescer (e querer crescer) ao mesmo tempo em que desejava continuar sendo dependente, para não perder o amor dos pais. O diagnóstico de TDA não foi confirmado durante as sessões, bem como a queixa de timidez, pela ausência de sinais de dificuldade de concentração e atenção e presença de iniciativa da criança. Ao final do processo, foi dito aos pais que eles poderiam fazer o acompanhamento do filho, auxiliando-o em suas dificuldades e permitindo que ele tivesse seu próprio ritmo, em especial nas atividades cotidianas da criança dentro do ambiente familiar. Foram ressaltados os recursos da criança em lidar com as diferentes situações, tanto na escola quanto em outros ambientes. Dessa forma, não haveria necessidade de pronto atendimento psicológico, apesar de o serviço ter deixado a possibilidade de retorno caso as dificuldades continuassem.

A notícia não foi bem recebida pelos pais, que se mostraram preocupados com o fato de Mário sofrer bullying na escola por ser muito tímido, ter poucos amigos e apresentar dificuldades escolares. Tal aspecto possibilita pensar em um receio desses pais de que possam fracassar por não terem um filho bem-sucedido na escola e incluído no ambiente social. O pai aceitou a sugestão de se aproximar mais afetivamente do menino e ser mais ativo para ajudá-lo, já que é uma importante figura de identificação da criança. Já a mãe disse que temia não conseguir ajudar o filho, por já se sentir muito desgastada com o cuidado das crianças, e discordou diretamente de várias colocações feitas sobre Mário, demonstrando frustração ao que lhe pareceu ser seu pedido de ajuda negado. Essa sensação de sobrecarga da mãe ao sentir que não conseguirá ajudar Mário com suas dificuldades pode estar relacionada ao fato de que ela acredita que precisa se doar inteiramente ao filho mais novo, assim como fez com Mário, o que inviabiliza o cuidado com este.

 

CASO 2

Isadora, de quatro anos de idade, foi encaminhada pela fonoaudióloga por não aceitar ingerir alimentos, ainda que não houvesse nenhum problema na fisiologia da sua deglutição. Os pais relataram que Isadora sentia fome, mas não prazer em comer, e procurava "fugir" dos momentos da alimentação. Ao nascer, ela foi diagnosticada com laringomalácia (malformação congênita da laringe, que dificultava engolir e respirar simultaneamente) e hipotonia (fraqueza muscular e "moleza" generalizada). Até os primeiros meses, ela foi alimentada por mamadeira e peito e, apesar de recusar a alimentação e não pedir por ela, a mãe de Isadora a alimentava de três em três horas impreterivelmente, de acordo com a recomendação médica. Depois, Isadora começou a fazer uso de sonda com acompanhamento da fonoaudióloga. Os pais relataram que a filha gostava muito da sonda e a protegia para que ninguém a tirasse. Essa dificuldade de respirar e engolir, apesar de curada, ainda sustenta uma grande ansiedade nos pais, em especial na mãe.

Durante o processo de triagem, na sessão lúdica, buscou-se avaliar o brincar de Isadora, para que se pudesse pensar acerca de seu desenvolvimento emocional. É importante ressaltar que, durante o brincar, a criança pode ser criativa e formar sua personalidade, e é sendo criativo que ela está expressando seu verdadeiro self. O brincar é saúde, pois facilita o crescimento e é uma forma de comunicação da criança (Winnicott, 1975). Nesse sentido, foi possível perceber que Isadora usava de muita criatividade em suas brincadeiras, com capacidade para simbolizar e fantasiar, sinais importantes de seu desenvolvimento emocional.

Também foi possível perceber que a relação com o pai era mais afetuosa do que com a mãe, com quem a relação era de condescendência, pois a mãe se mostrava sempre cansada e deprimida, frequentemente buscando a aprovação, o cuidado e o olhar da filha.

Levando em consideração o processo de triagem realizado, foi possível perceber que Isadora estava passando por um processo de desenvolvimento emocional satisfatório e que apresentava muitos recursos. Contudo, a relação com a mãe era conflituosa, já que esta não percebia as necessidades reais da filha e buscava amenizar seus sentimentos de tristeza e desamparo por meio do cuidado que Isadora pudesse lhe oferecer, mostrando uma inversão de papeis.

As dificuldades iniciais de Isadora em relação à alimentação influenciaram no desenvolvimento dos "sintomas" da criança, como o não aceitar alimento, por desencadear emoções de ameaça à sua integridade. Porém, mesmo após a melhora no aparelho digestivo, os pais permaneceram inseguros e ansiosos, o que ocasionou em uma dificuldade da família em oferecer limites e auxiliar a criança a adquirir autonomia. O grupo familiar, em especial a figura materna, mantinha comportamentos rígidos e intrusivos, monitorando obsessivamente o comportamento de Isadora em relação à alimentação, o que caracterizava o vínculo entre mãe e filha em torno dessa questão.

A mãe apresentava sintomas de depressão e dificuldade de simbolização, percebidas durante a sessão familiar, estabelecendo uma forte relação de dependência com a filha, como se esta fosse uma extensão dela mesma, impondo seus desejos sem reconhecer as reais necessidades afetivas da menina nem apoiando-a no desenvolvimento de sua identidade e personalidade. Portanto, rejeitar a comida representava uma forma de rejeitar a presença invasiva da mãe e a necessidade de ruptura e separação, na busca de sua autonomia.

Dessa forma, neste caso priorizou-se o encaminhamento para atendimento psicológico da mãe e não de Isadora. Os pais também foram orientados a ajudar a criança em casa, como diminuir a atenção que é despendida na hora da alimentação e valorizar mais as qualidades de Isadora. O pai acatou a orientação dada, mas a mãe não aceitou o seu encaminhamento terapêutico, mostrando-se muito receosa e defendendo-se dessa sugestão com insatisfação.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cada criança tem representações diferentes para os pais, que estão relacionadas com suas fantasias inconscientes e conscientes, criadas desde o momento da sua concepção, da gravidez, do nascimento e depois dele. Toda essa relação define, portanto, a maneira como os pais lidarão com os problemas e conflitos que surgirem. A criança pode ou não se ajustar às fantasias dos pais, precisando lidar com elas na medida em que começa a ser reconhecida como diferente dos pais e daquilo que idealizaram. Para os adultos, por sua vez, um alívio pode ser usufruído ao perceber que seu filho pode ser diferente e autônomo, sendo capaz de lidar com as situações que lhe são apresentadas, o que permite aos pais extinguir suas ideias relacionadas ao sentimento de culpa e de inutilidade (Winnicott, 2005).

Quando a criança apresenta um sintoma, este pode ser resultado da relação com o grupo familiar, suas dificuldades e conflitos. A grande pressão que os pais carregam de serem perfeitos e oferecerem o máximo possível para seus filhos tanto os aproxima demasiadamente quanto os distancia do contato com a criança. Assumir que o filho não é o único culpado pelos sintomas e queixas apresentadas pelos pais é considerar a possibilidade de que o ambiente familiar não tenha sido tão bom quanto deveria, correspondente ao desejo dos pais de que seus filhos sejam bem-sucedidos socialmente.

Nesse sentido, pode-se ressaltar que a dinâmica e a maneira como a família se organiza perante as dificuldades apresentadas pelos filhos podem ou não fortalecer os vínculos familiares. A qualidade dos vínculos afeta a qualidade da relação da pessoa consigo mesma e a capacidade de aprender, de lidar com as próprias dificuldades e sentir-se realizado, bem como é determinante no desenvolvimento da criatividade (Svartman, 2003).

Assim, nos dois casos apresentados, foi possível perceber como o vínculo familiar é vivenciado. Dessa forma, pode-se assinalar que a queixa apresentada pelos pais estava relacionada à experiência da criança no ambiente familiar, em especial, a dificuldade dos genitores em perceber as necessidades reais de seus filhos, diferentes das suas próprias necessidades. O trabalho do processo de triagem foi realizado no sentido de permitir que os pais pudessem refletir acerca de seus papéis desempenhados e do quanto poderiam fazer pelo filho. Contudo, cada família pode reagir de maneira diferente. No primeiro caso, os pais aceitaram as orientações e se mostraram disponíveis a auxiliar a criança. Já no segundo caso, a mãe teve dificuldade para aceitar a proposta de atendimento para ela e não para a filha, como se ficasse comprovada sua culpa e sua incapacidade de cuidar da criança.

Para que os pais possam propiciar apoio para o desenvolvimento infantil, é necessário que eles estejam atentos à qualidade dos vínculos familiares, sem que haja a necessidade de alcançar a perfeição - ou ao menos o que socialmente se acredita que seja perfeito -, e sim algo particular, de família para família, que faça sentido para as pessoas envolvidas. Atender as expectativas de viver intensamente a vida pessoal, profissional e conjugal, inclusive na relação com os filhos, causa uma sensação de desgaste aos genitores. Os pais precisam estar presentes de forma suficientemente boa, o que significa atender o que for necessário aos filhos, mas também deixar que suas próprias falhas sejam sentidas não como uma incapacidade, mas sim como parte do que é humano, para que seus filhos também possam errar sem medo, agir espontaneamente no mundo e alcançar sua própria identidade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Cambuí, H. A., Monteiro, C., & Ribeiro, D. P. S. A. (2011). O atendimento psicoterápico de crianças "compartilhado com seus pais". In J. L. F. Abrão, & D. P. S. A. Ribeiro (Orgs.), Psicanálise de crianças na universidade: Construindo práticas e delimitando fronteiras (pp. 39-55). São Paulo: Editora Arte.         [ Links ]

Coppolillo, H. P. (1990). Psicoterapia psicodinâmica de crianças: Uma introdução à teoria e às técnicas. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Gomes, I. C., & Paiva, M. L. S. C. (2003). Casamento e família no século XXI: Possibilidade de holding? Psicologia em Estudo (Maringá), 8(n. esp), 3-9.         [ Links ]

Marcon, S. S. (2002). Criando os filhos e construindo maneiras de cuidar. In I. Elsen, S. S. Marcon, & M. R. S. Silva (Orgs.), O viver em família e sua interface com a saúde e a doença (pp. 25-43). Maringá: EdUEM.         [ Links ]

Souza, N. H. S., Wagner, A., Branco, B. M., & Reichert, C. B. (2007). Famílias com casais de dupla carreira e filhos em idade escolar: Estudos de casos. Alethéia, 26, 109-121.         [ Links ]

Svartman, B. (2003). Transubjetividade – Sociedade atual: A importância das redes de apoio. Revista da SPAGESP, 4(4), 29-36.

Vilhena, J. (2004). Repensando a família. Revista Psicologia do Portal do Psicólogo. Recuperado em 28 fev. 2012, de < http://www.psicologia.com.pt/artigos/textos/A0229.pdf >.

Winnicott, D. W. (1945/2000). Desenvolvimento emocional primitivo. In D. W. Winnicott, Da Pediatria à Psicanálise: Obras escolhidas (pp. 218-232). (D. Bogomoletz, Trad.). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1957/2005). Fatores de integração e desintegração na vida familiar (1957). In D. W. Winnicott, A família e o desenvolvimento individual (pp. 59-72). (M. B. Cipolla, Trad.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1960/1984). Agressão culpa e reparação. In D. W. Winnicott, Privação e delinquência (pp. 153-162). (A. Cabral, Trad.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1965/1994). O valor da consulta terapêutica. In C. Winnicott, R. Sheperd, & M. Davis (Orgs.), Explorações psicanalíticas: D. W. Winnicott (pp. 244-248). (J. O. A. Abreu, Trad.). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1971/1975). O brincar: A atividade criativa e a busca do eu (self). In D. W. Winnicott, O brincar e a realidade (pp. 79-94). (J. O. A. Abreu e V. Nobre, Trad.). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1977/1987). The Piggle: Relato do tratamento psicanalítico de uma menina. (E. P. Vieira; H. F. Oliveira, Trad.). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Marcela Lança de Andrade
E-mail: marcela.ldandrade@gmail.com

Recebido em 19/04/2012.
1ª Revisão em 30/05/2012.
Aceite Final em 29/06/2012.