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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.17 no.1 Ribeirão Preto  2016

 

ARTIGOS

 

Acolhimento institucional e adoção: uma interlocução necessária

 

Institutional sheltering and adoption: a necessary dialogue

 

Acogimiento institucional y adopción: una interlocución necesaria

 

 

Martha Franco Diniz Hueb1

Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba-MG, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Objetiva-se problematizar a importância do preparo da criança/adolescente e da interlocução entre equipes da Instituição e do Judiciário para efetivar uma adoção com menor risco de devolução.Aponta-se que tanto o desligamento da família biológica, quanto a espera pela família adotante, vem acompanhada de ansiedade inerente à construção de novos vínculos, sinalizando importantes aspectos psicossociais carentes de intervenções. Utilizando-se de discussão teórica associada com a prática clínica, conclui-se que técnicos do contexto institucional devem criar um espaço seguro para que crianças/adolescentes possam ser ouvidos e compreendidos ao viver tal processo, assim como necessitam comunicar hábitos, gostos e preferências pessoais para a equipe psicossocial do Judiciário com finalidade de facilitar a transferência de valores e de afeto para família substituta.

Palavras-chave: acolhimento institucional; adoção; crianças/adolescentes.


ABSTRACT

Our aim is to discuss the importance of preparing children/adolescents and to promote the dialogue between institutional and judiciary staff to provide adoptions with lower risk of return. Both the disconnection from the biological family and the wait by the foster family are followed by the anxiety inherent to the development of new bonds, indicating important psychosocial aspects that require interventions. By using theoretical discussions associated with clinical practice, we conclude that institutional technicians must create a safe space so that children/adolescents can be heard and understood when going through such process, in addition to communicate habits, personal likes and preferences for the judiciary psychosocial staff with the purpose of facilitating the transfer of values and affection to the surrogate family.

Keywords: institutional sheltering; adoption; children/adolescents.


RESUMEN

Se tuvo como objetivo problematizar la importancia de la preparación del niño/adolecente y de la interlocución entre equipos de la Institución y del poder Jurídico, para tornar efectiva una adopción con menores riesgos de devolución. Se apunta que tanto la separación de la familia biológica, como la espera de la familia adoptiva, es acompañada de ansiedad inherente a la construcción de nuevos vínculos, señalando importantes aspectos psicosociales carentes de intervención. Se utilizó discusión teórica asociada a la práctica clínica, concluyéndose que técnicos del contexto Institucional deben crear un espacio seguro para que los niños/adolecentes puedan ser oídos y comprendidos al vivir tal proceso, así como comunicar hábitos, gustos y preferencias personales para el equipo psicosocial del poder Jurídico con la finalidad de facilitar la transparencia de valores y de afectos para la familia sustituta.

Palabras-claves: acogimiento institucional; adopción; niños/adolecentes.


 

 

A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para
me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu
soube, pertencer é viver
(Clarice Lispector, 2009).

 

DA FAMÍLIA AO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL: UMA DOR INEVITÁVEL

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), criado em 1990, através da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, dispõe sobre proteção integral e cuidados especiais a todas as crianças e adolescentes. Todavia, é importante ressaltar que tal proteção trata-se de um verdadeiro consórcio de responsabilidades entre Família, Estado e Sociedade, os quais devem garantir prioridade absoluta ao direito à vida, saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, convivência familiar e comunitária, além de proteção a crianças e adolescentes de toda forma de negligência, discriminação, exploração e violência (Brasil, 2009).

Destaca-se que a dita proteção a ser oferecida pelo Estado e pela Sociedade é secundária à proteção familiar. Cabe a esta, primordialmente, a assistência material, moral e educacional, de forma a prover o desenvolvimento natural e o bem-estar de crianças e adolescentes. É na família, fenômeno universal, que se estabelece um espaço destinado à aprendizagem de respeito para com o outro, à constituição de vínculos, à vivência de emoções e afetos em contínua relação com o contexto sócio-cultural em que se insere (Gomes & Pereira, 2005; Nunes, 2008). Unidade social complexa, a família deve prezar pela provisão da satisfação de necessidades básicas entre seus membros, pelo desenvolvimento da personalidade e da socialização de valores (Salomé, Espósito, & Moraes, 2007). Entretanto, algumas famílias, por questões diversas, não conseguem ser provedoras de fatores de proteção e passam a ser geradoras de risco à vida de seus integrantes.

Sempre que os direitos dos vulneráveis forem violados ou ameaçados cabe à autoridade judiciária utilizar de medidas protetoras e, dependendo da situação, a melhor proteção é retirá-los da família de origem e inseri-los em programa de acolhimento familiar ou institucional. Contudo, reconhece-se que no Brasil, país com tradição na institucionalização de crianças e de adolescentes em situação de vulnerabilidade, a retirada do ambiente familiar que deveria ser realizada apenas quando se colocasse verdadeiramente em risco o bem-estar de seus membros, pode se dar de maneira atropelada. Muitas vezes, o Estado e a Sociedade não conseguem prestar atendimento adequado à família de origem de tais crianças e adolescentes para que possam se reorganizar, o que lhes dá a conotação de desqualificada aos olhos de muitos, levando à institucionalização de seus filhos de forma precipitada (Moreira & Miranda, 2014). Na maioria das vezes, trata-se de genitores com reduzida capacidade de provisão de sustento e de educação de suas proles, desencadeando a privação da convivência familiar e comunitária, devido em especial à escassez de recursos socioeconômicos de seus responsáveis (Cavalcante, Silva, & Magalhães, 2010; Moreira & Miranda, 2014; Rizzini, Rizzini, Naifi, & Batista, 2006).

Ademais, é importante destacar que relatórios das instituições de acolhimento em geral são falhos, o que dificulta uma intervenção mais acurada. Em grande parte, os motivos da perda do poder familiar são descritos em termos genéricos como sendo em função da "pobreza", "drogadição", "negligência" e "doença mental" de seus genitores, pouco revelando sobre as reais condições dessas famílias que, quando não desqualificadas, tornam-se invisíveis e frágeis diante de todo o processo. Em geral, faltam informações sobre a família de origem, dificultando a visão do cenário histórico-social e econômico que envolve o contexto familiar, a fim de compreender a realidade dessas crianças (Rossetti-Ferreira, Almeida, Costa, Guimarães, & Mariano, 2012).

Por outro lado, em algumas regiões já se vislumbram estudos que lançam luz sobre esta realidade. Pesquisa realizada na Comarca de Uberaba (MG) retratou o perfil de crianças e adolescentes acolhidos no ano de 2012. Eram, em sua maioria,meninas, na faixa etária entre quatro a seis anos e entre 13 a 15 anos de idade que não frequentavam a escola regularmente antes de serem acolhidas. Quando não residiam na família extensa, o contexto familiar geralmente monoparental era chefiado por mulheres com alto índice de desemprego, uso de bebidas alcoólicas, drogas e criminalidade. O estudo identificou que o principal motivo de acolhimento institucional decorria de situações de negligência, seguido da precariedade das condições socioeconômicas e de abuso de álcool e drogas pelos responsáveis (Gontijo, Buiati, Santos, & Ferreira, 2012). Informações mais detalhadas de estudos como este poderão sustentar e direcionar formas de atuação das equipes institucionais e do Judiciário, a fim de reduzir danos.

Neste contexto, destaca-se que são necessários incentivos para que sejam fortalecidos laços familiares e comunitários, que visem à manutenção ou reinserção da criança/adolescente em sua família natural ou extensa, e caso não seja possível, que sejam direcionados para família substituta (Brasil, 2009). O encaminhamento para uma instituição de acolhimento somente deve se dar quando esgotadas todas as possibilidades de permanecerem em seu núcleo de origem, pois, por mais rápido que possa ser retirar uma criança de sua família, o seu retorno é bastante longo (Silva, 2012; Silva & Arpini, 2013), principalmente do ponto de vista da criança ou adolescente, para os quais o tempo neste período de desenvolvimento vital é muito significativo. Schettini (2015) afirma que o tempo da criança é outro, pois são como sementes no envelope, possuem prazo de validade e precisam encontrar um solo fértil para se desenvolver. A instituição de acolhimento, por melhor que seja, não é um lar, ressalta Schettini.

Nesse sentido, estudo realizado com crianças de seis a 12 anos de uma Casa de Proteção identificou ansiedades e angústias intensas nos participantes e observou, independentemente do tempo de institucionalização,ser comum o desejo de retornarem o quanto antes para suas famílias, a despeito de serem bem tratadas na instituição e da negligência ou maus-tratos lhes dispensado pela família (Arduini, 2013). Reforça-se que condições socioeconômicas desfavoráveis não devem ser motivo de acolhimento institucional. Deve-se avaliar os vínculos entre seus membros e, se estes forem satisfatórios, tanto a criança quanto o adolescente devem ser mantidos no contexto familiar, promovendo a inclusão da família em programas de apoio do governo. Estudos apontam que a família neste contexto deve ser vista tanto como origem, quanto como fonte de recursos para a solução da situação envolvendo seus membros (Lopes & Arpini, 2009; Moreira & Miranda, 2014; Rizzini et al., 2006).

Segundo a Nova Lei da Adoção, a Lei 12.010/09, o acolhimento em instituições é considerado uma medida provisória e excepcional, não devendo ultrapassar o período de dois anos. De seis em seis meses é preciso que a instituição emita um relatório, visando à reavaliação da situação da criança e de sua família, fato que facilita o acompanhamento dos menores pelas equipes psicossociais e permite que a reintegração se dê no menor tempo possível, a fim de que as referências familiares não sejam perdidas, ou que se processe a adoção (Brasil, 2009).

Bowlby (1952/2006) enfatizou que é essencial à saúde mental e ao desenvolvimento da personalidade do bebê e da criança pequena a vivência de uma relação calorosa, íntima e contínua com a mãe biológica ou substituta permanente. Winnicott (1986/2005) apontou o quão prejudiciais são os maus-tratos na infância, acarretando sentimentos de insegurança e atraso no desenvolvimento. No entanto, as instituições de acolhimento, com suas práticas prioritariamente disciplinadoras, nem sempre apresentam estrutura capaz de promover um real acolhimento, como preconizado pelos últimos autores citados, fato que pode dificultar a reinserção familiar ou a transição para a adoção, como será discutido a seguir. Mister destacar que, embora os avanços científicos tenham realçado a importância da família para o desenvolvimento humano, também revelam a necessidade de se empreenderem esforços no sentido de adequar suas contribuições às práticas institucionais, quando essa é a alternativa mais viável (Azôr & Vectore, 2008). A aplicabilidade dessas contribuições, em nosso entendimento, poderia ser redutora da dor inevitável quando se dá a separação da família de origem para a maioria dos envolvidos.

 

DO ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL À ADOÇÃO: DOR OU TRAVESSIA COMPARTILHADA?

Ressalta-se que o acolhimento institucional tanto pode ser uma forma de espera pela reestruturação familiar e de preparo para o retorno à família biológica daquela criança ou adolescente que se encontra em situação de risco social ou pessoal, como pode ser visto como período de transição para o processo de adoção, quando não há mais possibilidades de reinserção na família de origem ou substituta. Se, por um lado, a institucionalização acolhe e contém, por outro pode provocar ansiedade devido a mudanças no ambiente, na rotina, nas pessoas com quem a criança passa a conviver, levando-a a ter de se adaptar às novas situações. Neste sentido, a equipe técnica da instituição de acolhimento deve ser preparada para atuar em uma ou outra situação, ou seja, para a reinserção, ou para a adoção. Para tanto, é de extrema importância que esta equipe, composta por psicólogos e assitentes sociais, elabore o Plano Individual de Atendimento (PIA) assim que a criança ou adolescente chega à instituição (Brasil, 2009). É o PIA que traçará o caminho para o atendimento demandado por cada criança ou adolescente em suas particularidades e necessidades, constituindo-se em um instrumento de significativa importância, uma vez que, ao olhar individualmente para cada acolhido, poderá fornecer-lhe uma melhor provisão ambiental dentro de uma concepção winnicottiana (1986/2005).

Enquanto meninos e meninas estiverem acolhidos, há de se destacar que serão os monitores, sob a supervisão da equipe técnica, que lhes servirão de modelos identificatórios, protegendo-os e orientando-os, cumprindo, assim, um papel central na vida destes. Igualmente, a convivência com pares, em situação de vida semelhante, pode ser considerada como um apoio afetivo e social, agindo como fator de proteção. Ao compartilhar experiências semelhantes conseguem amparar-se mutuamente (Oliveira & Pereira, 2011).

Portanto, é de fundamental importância que, ao lidar com a criança institucionalizada, considerada carente do ponto de vista afetivo, saiba-se respeitar os objetos e fenômenos transicionais já existentes, o que pode ser um brinquedo, uma música, um paninho trazido de casa ou até mesmo uma atividade autoerótica. Nesse sentido, uma criança que é retirada da família de origem e inserida na instituição, à espera angustiante do retorno ao lar ou de uma adoção restauradora, pode suportar melhor a invasão ambiental, decorrente das várias mudanças em sua rotina, se houver a possibilidade de ter em sua companhia um objeto que lhe seja significativo, representativo de alguém.Também conseguirá suportar melhor as invasões ambientais se tiver suas atividades autoeróticas – uma vez apresentadas – suportadas, toleradas e compreendidas pelos cuidadores como meio de viabilizar a adaptação (Winnicott, 1950/1993).

Importante apontar que a adoção é uma medida excepcional e irrevogável que deve ocorrer apenas quando estiverem esgotados todos os recursos de manutenção da criança ou adolescente em sua família natural ou extensa (Brasil, 2009). Pode ser definida como o estabelecimento de relações parentais entre pessoas que não estão ligadas pelo vínculo biológico direto, mas que podem vir a se vincular afetivamente através de uma construção conjunta de ligações materno-paterno-filiais, ao se compartilhar desejos, sonhos, afetos e medos (Hueb, 2002).

Todavia, ressalta-se que, quase sempre, o processo adotivo é um remexer nas entranhas dos envolvidos. Intrincados nela encontram-se pais que desejam gerar um filho e não conseguem; pais que não desejam o filho e o procriam e rejeitam; pais que, apesar de amarem seus filhos, não conseguem mantê-los, precisam doá-los em decorrência da ausência de políticas públicas de emprego, moradia, saúde e educação. Porém, ainda há pais que se dispõem a acolher este filho ora rejeitado, ora doado, e que, uma vez desligado de sua família de origem, necessita de um meio familiar afetivo que promova o estabelecimento de laços e lhe possibilitem crescer e desenvolver-se (Hueb, 2002, 2012; Rocha, Arpini & Savegnago, 2015).

A adoção, vista como outra possibilidade de constituição familiar, pode trazer resultados tão satisfatórios quanto a filiação biológica. Também pode ser vista na atualidade como uma das alternativas apresentadas para encaminhar crianças e adolescentes a uma resolução da situação de desamparo familiar (Amazonas, Dias, & Schettini, 2006). Para uma criança privada da família, a adoção é o meio mais completo de recriar vínculos afetivos, sendo também um movimento humanoao encontro do outro, um gesto de amor e solidariedade (Trindade, 2010). Entretanto, a adoção não deixa de ser um fenômeno social complexo, pois tanto o desligamento da família biológica, com suas implicações, tais como tristeza, luto, quanto a espera pela família adotante, quando não mais se faz possível a reinserção familiar, vem acompanhada de ansiedade inerente à construção de um novo vínculo filial, envolvendo esperança, desafios, possibilidades e impossibilidades, fato que aponta importantes aspectos psicossociais que necessitam de acompanhamento, estudo e uma profunda sensibilidade no trato desse fenômeno.

Entre os pesquisadores que se destacam no trato científico dessa questão existe relativo consenso em torno da ideia de que, nos primeiros anos de vida, são graves as sequelas físicas, cognitivas, afetivas e sociais derivadas do tempo passado em instituições de acolhimento, uma vez que a criança afastada do seu ambiente familiar passa a conviver com pessoas e situações estranhas, o que pode acarretar intensas manifestações emocionais, como angústia e medo. Se o tempo passado longe de casa for demasiadamente longo, a possibilidade das sequelas decorrentes dessa experiência serem mais graves e persistentes tende a ser ainda maior, como mostram observações clínicas e pesquisas longitudinais que acompanharam a colocação de crianças em instituições e, depois, a sua convivência em lares adotivos (Cavalcante & Magalhães, 2012).

Se por um lado a Lei n º 12.010/09, visando aperfeiçoar as relações entre adotantes e adotandos, em especial na construção de laços familiares duradouros, determina através de seu artigo 50, que os candidatos à adoção obrigatoriamente participem de um curso preparatório, por conseguinte há de se preparar também o indivíduo que virá a ser adotado. É no curso preparatório que se podem esclarecer aos pretendentes à adoção, os meandros da adoção, seu procedimento e dificuldades, de forma a minimizar a possibilidade de devolução da criança ou do adolescente. Essa devolução, quando ocorre, faz aumentar ainda mais a vivência de abandono, e é na instituição de acolhimento que tem que se dar a preparação para o adotando. Os postulantes precisam ser lembrados que as crianças a serem adotadas não passaram diretamente da maternidade para a família adotiva, mas tiveram progenitores e uma história de vida, história que geralmente consta do processo da criança (Palacios, 2010). Essa história não pode ser perdida, não pode ser negada, muitas vezes precisa ser resgatada para ser, então, elaborada psiquicamente.

A confecção de um álbum de fotografias, ou em formato de scrapbook, com recordações da instituição de acolhimento, muito tem beneficiado esta transição para a adoção, pois se trata da história viva daquele tempo em que vínculos afetivos e sociais foram estabelecidos. Um estudo observou que a preparação de crianças que vivem em instituições de acolhimento pode contribuir,sob vários aspectos, para que a adoção tenha êxito, particularmente ao prevenir ou minimizar o sentimento de medo diante da necessidade de se adaptar a um novo contexto familiar (Contente, Cavalcante, & Silva, 2013). A partir do momento em que a equipe técnica tiver certeza de que esse ou aquele virá a ser adotado, independente da idade em que se encontra, a criança ou adolescente deve receber informações acerca de sua futura família. Tal medida é uma forma de dotá-los de conhecimentos que poderão prepará-los emocionalmente para as novas exigências de adaptação que certamente encontrarão pela frente e para o reconhecimento dos vínculos que estabelecerão a ligação entre os envolvidos nesse processo transitório.

Vale lembrar que os adotados, ao serem inseridos em uma nova família, trazem consigo como bagagem inúmeros padrões de comportamentos e funcionamentos estabelecidos, além de história de relacionamentos vivenciados, como ressaltado anteriormente. A integração numa nova família requer várias tarefas pelas quais a criança/adolescente tem que passar, sendo que esta tem que se adaptar a uma nova realidade, muito distinta da sua. Músicas, cheiros, alimentos, vocabulário utilizado, hábitos diferentes daqueles da família de origem e da instituição, serão percebidos e recebidos de forma impactante. Não há como negar que a adaptação a uma nova família é marcada por um "choque cultural", onde o adotado é confrontado com exigências de uma família que tem diferentes padrões de comportamento que os seus, devendo haver um ajuste de expectativas (Palacios, 2010). De forma romanceada, diferentemente do real, costuma possuir uma ideia estabelecida de como será a sua nova casa, seu novo estilo de vida e como se dará o relacionamento com os novos pais. Nesta fase de integração e adaptação, a criança necessita, portanto, aprender todo um conjunto de regras, rotinas e hábitos da nova família e adequar-se a estas, o que não é uma tarefa fácil, nem para ela e nem para os novos pais. Muitas vezes tem de vivenciar o luto da idealização de uma família novelesca, ou semelhante a de um comercial midiático, a fim de que o real se sobreponha ao ideal, ao possível.

Para que tal tarefa seja bem-sucedida, ressalta-se que a família adotiva, por sua vez, deve dar tempo à criança e respeitar as suas dificuldades em se comportar dentro do que é esperado, uma vez que esta provém de um meio com diferentes regras e padrões de comportamento. Além disso, os pais adotivos devem respeitar a sua história de vida para criarem um sistema familiar que incorpore aspetos das experiências de vida de todos em separado (Cruz, 2013). Ao se adotar alguém, para além da história de vida, adotam-se também as marcas de contínuas exposições a situações de risco em contextos anteriores (Contente, Cavalcante, & Silva, 2013).

A fim de que se evitem devoluções de crianças e que este processo seja tendência ao crescimento tanto dos pais quanto dos filhos envolvidos, faz-se necessária tanto a preparação de postulantes à adoção quanto a preparação da criança/adolescente para a travessia de um caminho até então desconhecido, que pode desencadear conflitos, ansiedades, medos, mas que pode promover alegrias no estabelecimento de um novo encontro. A Lei 12.010/09 é clara quanto à obrigatoriedade legal da preparação de ambos os extremos: pais e filhos. Todavia, compreende-se que entre a criança desejante de uma família e uma família desejante de filhos, exite outra unidade intermediária, não menos relevante, que não pode ser esquecida e que se torna de fundamental importância: a instituição de acolhimento. Esta, se bem sustentada, pode vir a funcionar como um espaço potencial na concepção winnicottiana (1975/1971), viabilizando o compartilhamento de angústias, redução do estresse e enfrentamento das novas condições a que então serão submetidos.

É preciso que tanto os Grupos de Apoio a Adoção (GAAs) quanto as universidades com seus Serviços-Escola de Psicologia e de Assistência Social, possam aliar-se à equipe do Judiciário e estabelecer parceiras com equipes de instituições de acolhimento para ajudá-los a se prepararem para o fornecimento de suporte à criança ou adolescente no que diz respeito à convivência na instituição, assim como no seu desligamento para com essa. Destaca-se que, para a equipe técnica, o suporte adequado torna-se uma tarefa delicada e difícil, pois requer sensibilidade, habilidade e conhecimento, a fim de que consigam ajudá-los a lidar com as possíveis situações dolorosas. Entende-se que a atuação e o manejo adequados poderão permitir aos acolhidos uma condição mais tranquila e segura (Winnicott, 1958/2000), que refletirá também no trabalho da equipe, tornando-se uma via de mão dupla.

Além do preparo da equipe da instituição, os Serviços-Escola podem ser mediadores de intervenções durante o processo institucional, adotivo e pós-adoção. Tal manejo favorece aos institucionalizados a expressão de sentimentos, o sanar de dúvidas e o ressignificar de acontecimentos, tornando-se, portanto, sujeitos ativos diante do processo de separação da família original e transição para a adotiva, quando se é possivel.

Exemplifica-se com o recorte de um caso, atendido por uma estagiária, na modalidade de psicoterapia de fundamentação psicanalítica. Trata-se de um garoto de seis anos, institucionalizado desde os dois anos de idade, portanto, por quatro anos, para além do que permite a lei 12.010/09. Entretanto, há de se ressaltar que a institucionalização de quatro anos se deu em decorrência de duas tentativas de recoloção infrutíferas e intempestivas. Na primeira, totalmente inadequada, tentou-se a reinserção na família de origem, a qual naquele momento não possuía nenhuma condição da prática do cuidado, e que inclusive colocou a vida da citada criança em risco, ocasionando-lhe o retorno à casa de acolhimento. A segunda, também precipitada, encaminhou uma criança cheia de energia para um casal quase septuagenário, que não conseguiu fornecer-lhe o manejo e sustentação física e psíquica de que necessitava (Winnicott, 1958/2000).

Este garoto, aqui ficticiamente designado como Antônio, em atendimento numa aobrdagem clínica psicanalítica, pode expressar seus sentimentos, após a contação de uma história infantil com personagens adotivos. A psicoterapia fornecida logo após a adoção, pelo Serviço-Escola, o mesmo que, em parceria com o Judiciário também prepara os postulantes à adoção através de oficinas interventivas, permitiu que Antônio pudesse ressignificar e nomear seus sentimentos antes, durante e pós a adoção. Ao término da leitura do livro (Weber, 2004), criou espontaneamente o que nomeou de "uma novela", intitulando-a de Guerra de Amor. Em voz alta, pôs-se a dizer:

Já faz amor. Em um dia, no coração, quando não se é adotado o coração é todo preto, mas quando vem uma família..., no primeiro dia que a família chega prá adotá... Ainda nois não somo adotado, quando nois ainda tá no abrigo (fala bem baixinho). Quando, eu fui adotado no abrigo, aí quando as pessoa da família chegou meu coração ficou vermelhinho e branco. E essa parte aqui, desses peito aqui, uma parte ficou um pouco preta. Então... ai ficou de outro jeito, ficou com cor de ouro.

Com expressão oral aparentemente confusa, e sem muita estruturação lógica de começo, meio e fim, Antônio conseguiu poeticamente expressar a inquietude de sua vida em uma novela, que foi resignificada pela estagiária psicoterapeuta. Compreendeu-se que, através do simbolismo expresso pela citação de um coração antes preto, vivendo em um mundo de sombras, e que vem a se tornar vermelhinho, aquele que é cheio de amor, para, em seguida, transmutar para cor de ouro, pode reviver e expressar sua história, com muita ansiedade pela chegada dos novos pais. Esse processo foi marcado pelos acontecimentos e vínculos desfeitos, porém, esperançoso para ser verdadeiramente precioso para alguém: cor de ouro! (Andrade, 2013).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há de se destacar que, embora a Nova Lei de Adoção apresente medidas que muito tem beneficiado as crianças e adolescentes, inclusive assegurando àqueles em condições de serem adotados que, antes da inserção na família substituta ou adotiva, passem por período gradativo de preparação e por acompanhamento posterior realizado pelos profissionais da Justiça da Infância e Juventude, muito ainda tem de ser feito em nosso país. A precariedade da equipe técnica em grande parte de instituições de acolhimento no Brasil tem sido uma triste realidade. Não são todos os municípios que possuem profissionais suficientes para atendimento da demanda institucional, e quando há, geralmente não se sentem totalmente seguros. Um dos estudos recuperados no presente artigo atestou que os analistas do judiciário declararam que não se sentiam capacitados para atuar no preparo de crianças como rege a Lei 12.010/09 (Contente, Cavalcante, & Silva, 2013). Alegaram que a exigência legal da preparação das crianças na travessia para a adoção gerou uma demanda nova em termos profissionais, o que poderia estar dificultando a elaboração de estratégias metodológicas adequadas a um trabalho interdisciplinar com a atuação integrada de órgãos do Judiciário e instituições de acolhimento. Reconheceram que a preparação tanto de postulantes como de adotandos deve visar um conjugado de estratégias interventivas de forma a permitir à criança visualizar por quê e como seria seguro viver em outra família, que não a de origem.

Portanto, resalta-se que o trabalho de preparação e integração numa nova família deve ser composto por uma equipe interdisciplinar que vise uma preparação concomitante de pais e filhos, envolvendo relato de histórias de vida, preferencialmente de forma lúdica e pictórica para com as crianças e adolescentes, como tem sido a experiência na Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Dentro desta ótica, destaca-se a importância social das universidades e dos GAAs nesta travessia, de forma a dar continuidade para além do que sustenta a Lei 12.010/09. O cuidado ainda precisa ser mantido, e cabe em especial às universidades o envolvimento ético e responsável para auxiliar no processo que envolve a adoção: antes, durante e depois. Na medida do possível devem promover projetos de extensão que preparem postulantes à adoção, fornecer psicoterapia para pais e filhos intrincados neste processo, e também capacitar, em parceria com técnicos do Judiciário e GAAs, as equipes das instituições de acolhimento. Sobretudo cabe às universidades e aos GAAs o desenvolvimento da atitude adotiva, aquela que, segundo Suzana Schettini (2015), é baseada no afeto, é uma escolha de viver.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Martha Franco Diniz Hueb
E-mail: huebmartha@gmail.com

Recebido: 25/08/2015
1ª revisão: 30/09/2015
Aprovado: 22/10/2015

 

 

1 Martha Franco Diniz Hueb é docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

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