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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.18 no.2 Ribeirão Preto  2017

 

ARTIGOS

 

Dilemas e desafios éticos na pesquisa sobre exploração sexual

 

Dilemmas and ethical challenges in the research about sexual exploration

 

Dilemas y desafíos éticos en la investigación sobre explotación sexual

 

 

Simone dos Santos Paludo1; Luiza Santos Ferreira2; Luciana Barbosa da Silva Vega3

Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande-RS, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo discutir os desafios éticos enfrentados na pesquisa sobre exploração sexual de crianças e adolescentes e verificar como os avanços trazidos pela Resolução 510/2016 repercutem na condução de estudos com essa população. O planejamento de estudos sobre essa temática prescinde de estratégias metodológicas capazes de identificar pessoas, lugares e práticas que se ocultam constantemente. A recente resolução traz implicações importantes especialmente sobre a obtenção do termo consentimento livre e esclarecido dos responsáveis, o assentimento livre e esclarecido e a manutenção do sigilo versus a necessidade de denúncia. A devolução dos achados e a organização de estratégias protetivas reafirmam que o compromisso do pesquisador vai muito além daquele garantido nas resoluções vigentes até o momento.

Palavras-chave: exploração sexual; ética; criança; adolescente.


ABSTRACT

This article aims to discuss the ethical challenges faced by researchers on sexual exploitation of children and adolescents and to verify how the advances brought by 510/2016 Resolution have been reverberating on the conduction of studies with this population. The planning of studies on this subject dispenses methodological strategies capable of identifying people, places and practices that are constantly hidden. The recent resolution brings important implications, especially regarding the obtainment of free and informed consent of those responsible for children and adolescents at risk, free and informed assent, and confidentiality maintenance versus mandatory denunciation. The feedback of the findings and the organization of protective strategies reaffirm that researchers´ commitment goes beyond the one guaranteed in the resolutions in force so far.

Keywords: sexual exploration; ethics; child; adolescents.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo discutir los problemas éticos en la investigación sobre la explotación sexual de niños y adolescentes e investigar cómo los avances de la Resolución 510/2016 repercuten en la realización de estudios con esta población. Los estudios de planificación sobre este tema prescinden de estrategias metodológicas para identificar personas, lugares y prácticas que se esconden constantemente. La reciente resolución trae importantes implicaciones sobre la obtención del término de consentimiento libre y esclarecido de los responsables, el asentimiento libre y esclarecido y el mantenimiento del secreto frente a la necesidad de una denuncia. El regreso de los resultados y la organización de las estrategias de protección reafirman que el compromiso del investigador va mucho más allá del garantizado por las resoluciones existentes hasta el momento.

Palabras-clave: explotación sexual; etica; niños; adolescents.


 

 

Na investigação sobre a exploração sexual de crianças e adolescentes muitos são os dilemas éticos implicados. Tais dilemas emergem desde a construção da proposta de pesquisa até a sua efetivação, os quais, muitas vezes, ultrapassam as diretrizes descritas nas Resoluções do Conselho Nacional de Saúde. A aprovação da recente resolução 510/2016 pode trazer implicações importantes para o desenvolvimento de pesquisas sobre exploração sexual, uma vez que uma série de particularidades das ciências humanas estão dispostas na redação favorecendo a entrada em contextos até então encobertos. O objetivo do presente artigo é discutir os desafios e os conflitos éticos enfrentados na pesquisa sobre exploração sexual de crianças e adolescentes e verificar como os avanços trazidos pela Resolução 501/2016 repercutem na condução de estudos com essa população.

A exploração sexual de crianças e adolescentes é uma ação criminosa diversificada, pautada na desigualdade de poder e na violação do corpo de meninas e meninos que são amplamente utilizados como mercadorias do comércio sexual (E. Faleiros, 2000; Libório, 2005; Serpa, 2010; Vega & Paludo, 2015). A exploração envolve um grupo variado de práticas sexuais criminosas que visam à obtenção de lucro. Leal (1999) sugeriu quatro modalidades para descrever as práticas de exploração, a saber: tráfico para fins sexuais, pornografia, prostituição na infância e na adolescência e o turismo sexual. Libório (2004) acrescentou que "as quatro modalidades de exploração sexual encontram-se inter-relacionadas, e influenciam-se mutuamente, formando, às vezes, um círculo vicioso difícil de ser quebrado" (p. 24). Por muito tempo tais nomenclaturas foram amplamente utilizadas na literatura acadêmica e, por vezes, discutidas devido à variabilidade de definições relacionadas à temática da violência apresentadas nos mais diversos documentos oficiais da área. Mello e Francischini (2010) apontaram que a falta de precisão no uso do conceito pode acabar dificultando a construção de estratégias que atentem para as particularidades de cada modalidade. Somado a esse fato, as terminologias utilizadas caracterizavam o primeiro obstáculo de pesquisa, tendo em vista todos os significados agregados (reais ou simbólicos) em cada uma das modalidades da exploração. Nesse cenário, as nomenclaturas e as definições operacionais passaram a ser o foco de atenção.

O termo prostituição acabou ganhando maior destaque, uma vez que acabava por culpabilizar a vítima ao sugerir uma escolha de vida ou uma escolha por um mercado de trabalho e não uma violação sofrida, inviabilizando a efetiva ação em busca de direitos e a proteção (Libório, 2013; Faleiros, 2000; Sousa, 2001; Cerqueira-Santos, Morais, Moura & Koller, 2008; Souza & Souza, 2009; Vega, 2014, Veronese, 2012). A partir do reconhecimento de que o termo prostituição infantil e/ou juvenil não era adequado e não traduzia a exploração sofrida por crianças e adolescentes novas terminologias passaram a ser incluídas nos textos acadêmicos. Dos Santos (2007) sugeriu associar a prostituição à exploração sexual comercial, tendo em vista a ideia de que crianças e adolescentes estão na condição de vítimas, ou seja, são exploradas sexualmente. O termo foi sugerido no ano de 1996 durante o I Congresso Mundial Contra a Exploração Sexual Comercial de Crianças, que aconteceu em Estocolmo, na Suécia (Nascimento & Deslandes, 2016). A utilização da expressão referia toda e qualquer atividade baseada na exploração sexual do corpo como objeto de uma relação comercial. Recentemente, outras duas outras modalidades relacionadas à exploração sexual comercial têm sido apresentadas na literatura: a exploração sexual agenciada (quando a violação é mediada por terceiros com fins lucrativos) e a exploração sexual não agenciada (quando o corpo é utilizado como moeda de troca por favores, presentes, drogas) (Cerqueira-Santos et al., 2008; Dos Santos & Ippólito, 2009). A substituição do termo refletiu um dilema ético sobre o papel da criança e do adolescente na exploração e, consequentemente, ampliou as suas possibilidades de proteção.

A utilização do termo "turismo sexual" também foi objeto de análise. Embora amplamente utilizado para fazer referência à exploração de crianças e adolescentes em localidades com atrativos turísticos, as atividades ilegais que incluam a exploração daqueles menores de 18 anos são contrárias aos objetivos do turismo e ao próprio Código Mundial de Ética do Turismo (1999). Cruz (2009) salienta que a utilização da terminologia "turismo sexual" para designar atividades ilegais do mercado do sexo dentro da cadeia produtiva do turismo gera confusões, já que essa não pode ser reconhecida como uma categoria de turismo e sim como um ato criminoso. Portanto, a autora sugere a utilização de "exploração sexual no contexto do turismo". Pesquisadores afirmam que essa modalidade está diretamente relacionada a construções culturais, sociais e econômicas de cada região, em que a venda do corpo infantil e adolescente está aliada a políticas públicas fracas e desinteressadas em promover direitos/garantias de proteção às vítimas (Machado, 2006; Faleiros, V. 2004). Além disso, é sustentada por redes criminosas formadas por agências de turismo, transporte e lazer (Veras, 2010).

Nessa mesma direção, encontra-se o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, caracterizado pelo trânsito ilícito de pessoas para outras cidades, regiões ou países e mantido por redes organizadas e criminosas (Faleiros, 2004; Mello & Francischini, 2010; Nascimento & Deslandes, 2016). Embora reconhecida como uma prática de exploração,

o tráfico de pessoas possui dois grandes aliados que precisam ser enfrentados: o desconhecimento e o preconceito. O desconhecimento é evidente pela especificidade do crime e por ele não figurar entre as maiores preocupações de segurança pública do Brasil. Este cenário esta mudando desde a implantação do I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Por outro lado, o preconceito é o maior aliado das redes criminosas, pois ele se ampara na vulnerabilidade da vítima, que normalmente é percebida de forma negativa e pejorativa pelos operadores de segurança pública e gestores do sistema penal brasileiro (OIT, 2014, p. 13).

A culpabilização das vítimas nas diferentes modalidades de exploração sexual ainda é um dado recorrente nos estudos (Alberto, Silva, Gomes, Santana, & Soares, 2012; Vega & Paludo, 2015, 2016). Cerqueira-Santos, Rezende e Correia (2010) chamaram atenção para essa questão ao revelar que tanto os profissionais da área da assistência social e da saúde como as próprias vítimas têm dificuldades de compreender o processo de vitimização quando se trata de casos de exploração. O possível lucro obtido com a prática sexual, mesmo que criminosa, repercute de forma negativa no julgamento externo e nas ações. A falta de reconhecimento dos casos acaba por gerar um obstáculo importante para o desenvolvimento de estudos com essa população, pois na maior parte das vezes sequer é identificada.

Outro dilema presente na exploração diz respeito à participação de crianças e adolescentes na pornografia. É tácito que crianças envolvidas em imagens pornográficas estão sendo exploradas, mas essa avaliação parece ser diferente quando envolve um adolescente (Paludo, 2013). Com a expansão das mídias e da exposição nas redes sociais a exploração sexual através da pornografia passou a ser destacada. Nessa modalidade é a imagem que pode gerar lucro. Veronese (2012) destacou a importância da nova lei de crimes sexuais (Lei 12.015/2009) e da nova redação da legislação estatutária para tratar de uma série de questões relativas à criminalização daqueles que participam do processo de elaboração, divulgação, receptação e venda de material com conteúdo sexual, explícito ou não, envolvendo crianças ou adolescentes.

As discussões em torno das terminologias, a divulgação dos marcos legais e normativos e os avanços na legislação constituem um desafio constante para os pesquisadores e exigem uma série de cuidados logo na proposição do estudo. Contudo, os dilemas éticos perpassam todas as etapas previstas em uma investigação e acabam sendo evidenciados no seu processo metodológico. Devido ao seu caráter criminoso é um desafio mensurar o número de casos existentes no país. Segundo o último levantamento da Secretaria Nacional de Direitos Humanos (SDH, 2016) realizado com base nas denúncias feitas ao serviço nacional do Disque 100, no ano de 2016, foram identificados 3308 registros de exploração sexual comercial de crianças e adolescentes que representam 21,06% das violações sexuais. O relatório não discrimina as modalidades de exploração contidas nos 3308 registros, contudo, é possível supor que se tratam de casos de exploração sexual comercial, já que estão apresentados de forma separada os dados referentes a 34 casos de exploração sexual no contexto do turismo (0,22%) e a 1815 casos de pornografia (11,56%). Nenhum caso relacionado a tráfico de pessoas para fins de exploração foi apresentado, talvez porque nenhuma notificação a respeito dessa modalidade tenha sido feita. Possivelmente esses números são subestimados devido à subnotificação dos dados relacionados a violência. A exploração representa um fenômeno complexo e velado, com dinâmicas específicas, criminosas e alicerçadas pela rede de exploração (Cerqueira, Rezende, & Correia, 2010) que dificultam a revelação da real dimensão do problema. Por esse motivo, o planejamento de estudos sobre essa temática requer o debate constante de questões éticas à medida que prescinde de estratégias metodológicas capazes de identificar pessoas, lugares e práticas que se ocultam constantemente. A invisibilidade dos casos, a falta de registros e subnotificações, o medo e o caráter mercantil e criminoso são algumas barreiras que dificultam o acesso às vítimas e aos contextos de ocorrência.

O desconhecimento do real tamanho do problema leva a dificuldades no dimensionamento da amostra. Essa limitação somada ao fato de que as vítimas preferem estar ocultas tem gerado uma série de estudos que buscam compreender o fenômeno a partir de outros elementos importantes na exploração. Estudos com adultos perpretadores e não perpretadores (Cerqueira-Santos & De Sousa, 2015; Cerqueira-Santos, De Sousa, Melo, & Rocha, 2012; Cerqueira-Santos et al., 2008; Morais, Cerqueira-Santos, Moura, Vaz, & Koller, 2007), estudos teóricos (Paixão & Deslandes, 2010; Mello & Francischini, 2010; Nascimento & Deslandes, 2016; Veras, 2010), relatos de projetos de intervenção (Bellenzani & Malfitano, 2006; Deslandes, Cavalcanti, Vieira, & Silva, 2015; Libório, 2013) e estudos com os profissionais que trabalham ou atuam em serviços especializados no atendimento, na proteção ou na defesa de vítimas de violência (Alberto et. a., 2012; Albuquerque, Garcia, & Yunes, 2012; Trabbold, Caleiro, Cunha, & Guerra, 2016) tem sido algumas possibilidades exploradas na literatura científica.

Os estudos com vítimas de exploração utilizam predominantemente delineamentos qualitativos (Cerqueira-Santos et al., 2010; Gatti & Andrea, 2012; Serpa, 2010; Vega & Paludo, 2015) devido a uma série de limitações metodológicas já descritas. Além disso, é possível verificar que se utilizam de uma ferramenta importante para garantir o acesso às vítimas – os chamados informantes chaves. Todos os estudos referidos alcançaram os seus participantes, em sua maioria adolescentes vítimas de exploração sexual, após o contato com serviços que compõem a rede de atenção, atendimento, proteção e/ou defesa desse grupo. Esse recurso é extremamente importante para a execução das pesquisas, já que a aproximação às vítimas em diferentes estágios da exploração sexual é bastante limitada para os pesquisadores. A maioria dos estudos contata a vítima após a vitimização quando ela já está sendo acolhida ou atendida nos serviços de referência. Essa estratégia facilita a aproximação e a obtenção dos termos exigidos pelos comitês de ética, contudo contribui para que os estudos aconteçam apenas com aquelas crianças e adolescentes que possuem algum vínculo com serviços do sistema de garantia de direitos, pois ali existem responsáveis legais que podem autorizar a participação, deixando de fora dos estudos todos aqueles que continuam sendo explorados, mas que ainda não foram protegidos.

A obtenção do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e o do Termo de Assentimento sempre foram questões polêmicas debatidas nas pesquisas com populações em situação de risco. Neiva-Silva, Lisboa e Koller (2005) já destacavam que por muito tempo a obtenção do consentimento de pais e/ou responsáveis era um empecilho para o acesso a grupos de crianças ou adolescentes que encontravam-se em situação de risco, rua ou acolhimento institucional. Tal constatação baseava-se na própria condição das famílias que não exerciam efetivamente a função de cuidadora dos seus filhos e que, mesmo quando contatadas, não tinham qualquer interesse na participação de seus filhos em pesquisas que viriam a revelar a sua negligência. Portanto, existia uma impossibilidade de se obter o Termo de Consentimento de pais e/ou responsáveis nas pesquisas com essas populações e, diante dessas restrições, a alternativa encontrada foi à busca de participantes dentro de instituições ou serviços que prestam assistência ao grupo e que poderiam assinar os termos solicitados.

A nova Resolução do Conselho Nacional de Saúde, a Resolução 510/2016, traz em sua redação aspectos essenciais para discutir as pesquisas com crianças e adolescentes em situação de exploração sexual. No Capítulo II que trata dos princípios éticos das pesquisas em Ciências Humanas e Sociais fica evidenciado no parágrafo V que existe um incentivo à participação de indivíduos e grupos vulneráveis e discriminados e respeito às diferenças dos processos de pesquisa. Dessa forma, fica implícito que os procedimentos que envolvem a solicitação de Termos de Consentimento Livre e Esclarecido aos responsáveis pelas crianças e adolescentes vítimas de exploração poderão seguir da mesma forma que até o momento sempre foram feitos, levando em conta todos os aspectos éticos vigentes desde a Resolução 466/2012. Contudo, parece permitir um avanço quando descreve no artigo 14, da seção I que trata da obtenção do consentimento e do assentimento, que quando for inviável a realização do processo de Consentimento Livre e Esclarecido, a dispensa pode ser solicitada e justificada pelo pesquisador, da mesma forma que deverá justificar a escolha quando o participante do estudo for uma criança, um adolescente ou uma pessoa em situação de diminuição de sua capacidade de decisão (artigo 12). Essa decisão pode aumentar as possibilidades de pesquisa com essa população favorecendo a inclusão de pessoas que ainda estejam vivenciando outros momentos da exploração sexual.

Importante ressaltar que a participação de vítimas em situação de atendimento ou proteção em um serviço do sistema de garantia de direitos não exclui a chance do risco ainda estar presente em sua vida. Um dilema que pode emergir nesses casos refere-se à descoberta da manutenção do risco, ou seja, quando, durante os procedimentos de coleta de dados, o pesquisador toma conhecimento de que a situação de exploração ainda não cessou. Nessas ocasiões, o pesquisador é confrontado com o sigilo prometido no início do processo. Neiva-Silva et al. (2005) debateram essa intercorrência e afirmaram que esse momento é repleto de angústias e estresse para o pesquisador, entretanto, a saída adequada deve ser orientada pelo imperativo da denúncia descrita no próprio Estatuto da Criança e do Adolescente. Na Resolução 510/2016 é possível encontrar as seguintes orientações sobre as questões relativas ao risco:

Art. 19. O pesquisador deve estar sempre atento aos riscos que a pesquisa possa acarretar aos participantes em decorrência dos seus procedimentos, devendo para tanto serem adotadas medidas de precaução e proteção, a fim de evitar dano ou atenuar seus efeitos.

§ 1o Quando o pesquisador perceber qualquer possibilidade de dano ao participante, decorrente da participação na pesquisa, deverá discutir com os participantes as providências cabíveis, que podem incluir o encerramento da pesquisa e informar o sistema CEP/CONEP.

§ 2o O participante da pesquisa que vier a sofrer qualquer tipo de dano resultante de sua participação na pesquisa, previsto ou não no Registro de Consentimento Livre e Esclarecido, tem direito a assistência e a buscar indenização.

Art. 20. O pesquisador deverá adotar todas as medidas cabíveis para proteger o participante quando criança, adolescente, ou qualquer pessoa cuja autonomia esteja reduzida ou que esteja sujeita a relação de autoridade ou dependência que caracterize situação de limitação da autonomia, reconhecendo sua situação peculiar de vulnerabilidade, independentemente do nível de risco da pesquisa.

Art. 21. O risco previsto no protocolo será graduado nos níveis mínimo, baixo, moderado ou elevado, considerando sua magnitude em função de características e circunstâncias do projeto, conforme definição de Resolução específica sobre tipificação e gradação de risco e sobre tramitação dos protocolos.

§ 1o A tramitação dos protocolos será diferenciada de acordo com a gradação de risco.

§ 2o A gradação do risco deve distinguir diferentes níveis de precaução e proteção em relação ao participante da pesquisa.

É inquestionável que os riscos estão presentes quando uma situação de exploração sexual ainda não foi interrompida. Dessa forma, é importante que o pesquisador esteja atento a esses aspectos. A exploração é um fenômeno complexo com uma realidade multifacetada composta por diferentes dimensões que se relacionam e influenciam a sua constituição. Aspectos estruturais que geram pobreza, exclusão e relações de mercado; culturais (como gênero, etnia, violência, sexualidade); políticos (através da implementação de políticas públicas frágeis e de preceitos como democracia e cidadania); morais e éticos (presentes no imaginário e reprodução social); legais (através da existência de mecanismos de legislação, repressão, responsabilização); e psicossociais (referentes à identidade/representação, estigmas e vínculo) se interrelacionam enquanto possíveis fatores de risco ou proteção para a ocorrência de situações de exploração sexual (Leal, 1999).

Considerando estes aspectos, é possível perceber que a dinâmica social presente pode levar crianças e adolescentes a situações de extrema vulnerabilidade e risco que permanecem invisíveis. Isto é, ao mesmo tempo em que existe em um contexto marcado por desigualdades socioeconômicas, também existe um meio cultural que relativiza a percepção de situações de violência de acordo com questões de gênero, etnia e idade (Carvalho, Cardoso, Silva, Braga, & Galvão, 2008; Rodrigues, 2011). Esta relativização se torna ainda maior por se referir a uma temática relacionada à sexualidade. Tema este considerado, muitas vezes, como tabu e tratado com desconhecimento, preconceito e discriminação (Anjos & Rebouças, 2015). E quando essa situação envolve uma criança ou adolescente esse aspecto parece ganhar maior relevância. A nitidez do quadro também é comprometida pelo sub-relato das situações por parte da vítima, uma vez que, o receio de expor-se, também perpassa os diversos aspectos relacionados a exploração. Além da persuasão/coerção sofrida pela criança/adolescente (sujeito de direitos ainda em formação) (Anjos & Rebouças, 2015; Mello & Francischini, 2010); a desconfiança ou descrença nas instituições de proteção (Garbin, Dias, Rovida, & Garvin, 2015; Marques & Pinho, 2014), a desmoralização da denúncia, e a estigmatização da vítima pela sociedade (Vega & Paludo, 2011) levam a uma percepção de impunidade, descompromisso social (Marques & Pinho, 2014; Rodrigues, 2011) e a sentimentos de medo, vergonha, confusão, culpabilização perda de confiança e autoestima por parte da vítima que acabam levando à sua revitimização, desmobilização e manutenção do quadro de violência vivenciado. A situação se torna ainda mais complexa quando a exploração é incitada pela própria família, isto é, pessoas deveriam proteger e garantir seus direitos e dignidade (Vega & Paludo, 2015). Todas essas questões e crenças estão presentes no imaginário social das próprias vítimas que, muitas vezes, relutam em assumir o envolvimento na exploração sexual (Cerqueira-Santos, et. al., 2010; Vega & Paludo, 2016). Por vezes essa negação interfere na obtenção do assentimento livre e esclarecido, afinal como uma vítima que não se percebe como tal poderia consentir a sua participação em um estudo sobre o tema?

No capítulo I da Resolução 510/2016 está descrito que o assentimento livre e esclarecido implica na anuência do participante da pesquisa, ou seja, na sua capacidade de consentir livremente a sua participação na medida de sua compreensão desde que sejam respeitadas suas singularidades, após esclarecimento sobre a natureza da pesquisa, justificativa, objetivos, métodos, potenciais benefícios e riscos. A maioria dos participantes dos estudos não estão familiarizados com protocolos de pesquisa e podem resistir a assinar documentos, especialmente adolescentes. Embora tais problemas não sejam mencionados nos estudos já realizados com esse público é necessário atentar para essa possibilidade. A assinatura pode legitimar uma condição de vulnerabilidade e risco que até então não foi revelada e sendo menor de idade tal afirmação pode gerar consequências para si e para as suas famílias. Vega e Paludo (2016) identificaram recusas em sua trajetória de pesquisa que sugerem medo ou receio por parte de adolescentes quando o pesquisador utiliza instrumentos típicos de pesquisa como a assinatura de documentos. Um avanço trazido pela nova Resolução que poderá favorecer a condução dos estudos diz respeito a obtenção do termo de assentimento. De acordo com as diretrizes descritas no Capítulo III,

Art. 4º O processo de consentimento e do assentimento livre e esclarecido envolve o estabelecimento de relação de confiança entre pesquisador e participante, continuamente aberto ao diálogo e ao questionamento, podendo ser obtido ou registrado em qualquer das fases de execução da pesquisa, bem como retirado a qualquer momento, sem qualquer prejuízo ao participante.

Art. 5º O processo de comunicação do consentimento e do assentimento livre e esclarecido pode ser realizado por meio de sua expressão oral, escrita, língua de sinais ou de outras formas que se mostrem adequadas, devendo ser consideradas as características individuais, sociais, econômicas e culturais da pessoa ou grupo de pessoas participante da pesquisa e as abordagens metodológicas aplicadas.

Na Seção II que trata do Registro do Consentimento e do Assentimento está descrito que o consentimento pode ser apresentado de forma escrita, sonora, imagética ou ainda outras formas que atendam às peculiaridades do grupo de participantes do estudo e que a escolha por um formato deverá ser justificada. Essas alternativas à assinatura do termo de assentimento podem ter repercussões positivas para os possíveis participantes de estudos sobre exploração sexual. Além disso, pode favorecer o acesso àqueles adultos que estão envolvidos diretamente com a exploração. Os estudos com homens perpretadores e não perpetradores têm revelado que ainda existe receio em afirmar o cometimento de um crime (Cerqueira-Santos & De Sousa, 2015; Cerqueira-Santos et al., 2012; Cerqueira-Santos et al., 2008; Morais et al., 2007) e a assinatura de um termo pode comprometer a participação desse grupo. Portanto, as alternativas previstas na nova Resolução podem facilitar o acesso àqueles que não tem qualquer interesse em revelar algum crime cometido, mas que podem ajudar na compreensão dos motivos que levam adultos a pagar por sexo com crianças e adolescentes.

A garantia de sigilo e o anonimato dos questionários, instrumentos mais utilizados nos estudos com adultos, tem ajudado no acesso a informações. A busca por textos acadêmicos revelou que ainda não existem pesquisas nacionais com adultos da rede de exploração, talvez pelo caráter mercantil e criminoso. É muito provável que os autores da rede de exploração não tenham qualquer tipo de interesse em participar de uma pesquisa que venha a revelar um crime e que os estudos só possam acontecer após o aprisionamento dessas pessoas. A Resolução 510 traz em sua redação a possibilidade de pesquisas encobertas, descrita da seguinte forma no XV item do artigo 2: "pesquisa conduzida sem que os participantes sejam informados sobre objetivos e procedimentos do estudo, e sem que seu consentimento seja obtido previamente ou durante a realização da pesquisa. A pesquisa encoberta somente se justifica em circunstâncias nas quais a informação sobre objetivos e procedimentos alteraria o comportamento alvo do estudo ou quando a utilização deste método se apresenta como única forma de condução do estudo, devendo ser explicitado ao CEP o procedimento a ser adotado pelo pesquisador com o participante, no que se refere aos riscos, comunicação ao participante e uso dos dados coletados, além do compromisso ou não com a confidencialidade. Sempre que se mostre factível, o consentimento dos participantes deverá ser buscado posteriormente". Embora essa modalidade esteja descrita na nova Resolução para a condução de estudos, os riscos seriam muito altos para os pesquisadores.

A própria comunidade se mostra um participante de difícil acesso quando o tema é explicitado no processo de consentimento. Em geral as pessoas silenciam quando se trata de violência, esse fato pode ser corroborado ao identificarmos os registros de denúncia anunciados anualmente pelo Disque 100 (SHD, 2016). Alberto et al. (2009) investigaram a exploração sexual na ótica de membros da população e encontraram discursos que explicitam a falta de mobilização diante das cenas de exploração indicando que nada fariam se presenciassem ou se tivessem conhecimento de adultos que pagam para ter sexo com crianças ou adolescentes. Essas situações escancaram as dificuldades existentes na condução de estudos sobre o tema que ultrapassam as diretrizes e as normativas vigentes nas resoluções e nos comitês de ética.

Investigar a exploração sexual é adentrar em um mundo invisível, criminoso e encoberto. Nenhum dos atores envolvidos, sejam vítimas, agressores e/ou testemunhas, tem interesse em descortinar o que se passa ali. Tais dilemas podem fazer com que pesquisadores se distanciem desse tema e evitem conduzir pesquisas nessa área. Por outro lado, o reconhecimento de tais limitações tem forçado os pesquisadores a encontrar desenhos metodológicos capazes de adentrar nas diferentes nuances da exploração sexual de crianças e adolescentes. Por esse motivo, a divulgação científica dos achados e a devolução dos dados alcançados, mesmo com todas as limitações impostas a estudos desse tipo, é tão importante e necessária.

A devolução dos achados de pesquisa pode favorecer a construção e a implementação de políticas públicas que promovam à atenção efetiva de crianças e adolescentes vulneráveis. Ainda se percebe uma quantidade insuficiente de ações implementadas de forma intersetorial e ampliada (Almada et al., 2014; Ferreira & De Oliveira, 2014; Vega & Paludo, 2011). Este contexto, por sua vez, influencia no despreparo e subnotificação das situações de exploração sexual por parte da rede de proteção à criança e ao adolescente e da população geral (Garbin, Rovida, Costa, & Garbin, 2016; Anjos & Rebouças, 2015). Mesmo com o aumento do número de denúncias que vem acontecendo nos últimos anos, os valores encontrados ainda são incongruentes com os dados reconhecidos e vivenciados por profissionais e pesquisadores da área, o que explicita a invisibilidade do tema em questão e oculta a magnitude real do problema vivenciado em nível local e nacional (Oliveira, Pinto Junior, Tavares & Guimarães, 2015; Marques & Pinho, 2014).

Desta forma, identifica-se que a problemática ainda merece maior atenção, sendo passível de enfrentamento a partir do fortalecimento de políticas públicas pertinentes (desenvolvidas de forma integral e ampliada), e da conscientização dos profissionais e população em geral, possibilitando o aumento do número de denúncias e notificações, e o fortalecimento das mobilizações sociais de reivindicação, controle e protagonismo da criança e do adolescente vitimizados, tornando, então, claras, estas questões que insistem em manter-se veladas. O reconhecimento das particularidades de cada modalidade de exploração sexual ajudou na construção de políticas públicas, assim como contribuiu para que as ações de prevenção, intervenção e repressão pudessem ser construídas (Nascimento & Deslandes, 2016; Veras, 2010). Contudo, percebe-se que a exploração sexual de crianças e adolescentes ainda é um assunto complexo que deve ser trabalhado levando em conta a sua profundidade e diversas dimensões, não sendo diferente quando se trata da produção de conhecimento científico sobre o tema através de estudos que considerem o cuidado e a atenção aos participantes, os riscos envolvidos, a devolução dos dados.

A implementação da Resolução 510/2016 poderá contribuir muito para ampliação e qualificação dos estudos relacionados à temática em discussão. Além dos avanços referidos com relação ao termo de consentimento livre e esclarecido dos responsáveis, o termo de assentimento livre e esclarecido de crianças e adolescentes vítimas da exploração e os dilemas relacionados à manutenção do sigilo versus a necessidade de denúncia, a Resolução traz elementos importantes que atendem às inúmeras reinvindicações de pesquisadores e instituições representativas nas áreas de Ciências Humanas. Por vezes, os comitês, pautados pela Resolução 466/2012, solicitavam alterações inadequadas para as pesquisas sobre exploração sexual (ex. solicitações relacionadas a termos de consentimento de pais, mudanças no método e no tamanho da amostra e, até mesmo, troca de tema). Com a possibilidade de composição equitativa do CONEP, a inclusão de membros da área de Ciências Humanas e o reconhecimento de que o mérito científico deva ser avaliado pelas instâncias competentes tais questões podem vir a ser evitadas. É de extrema importância que as regulamentações éticas vigentes possam promover reflexões sobre os dilemas encontrados na realização de pesquisas nas mais diversas áreas.

O presente artigo buscou apresentar os desafios e os dilemas éticos enfrentados na condução de pesquisas sobre exploração sexual de crianças e adolescentes e articular as novas proposições da primeira norma brasileira voltada para a área de Ciências Humanas, a Resolução 510 do Conselho Nacional de Saúde aprovada em maio de 2016 pelo Ministério da Saúde. A nova Resolução oferece apoio para os principais dilemas vivenciados e, dessa forma, acaba por incentivar e subsidiar novos estudos sobre o tema.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
Simone dos Santos Paludo
E-mail: paludo.simone@gmail.com

Recebido: 10/08/2017
1ª revisão: 05/11/2017
Aprovado: 10/11/2017

 

 

1 Simone dos Santos Paludo é Professora Associada da Universidade Federal do Rio Grande.
2 Luiza Santos Ferreira é Mestranda do Programa de Pós-graduação em Saúde Pública da Universidade Federal do Rio Grande.
3 Luciana Barbosa da Silva Vega é Doutora em Educação Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande.

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