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Revista da SPAGESP
versão impressa ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP vol.22 no.2 Ribeirão Preto jul./dez. 2021
ARTIGOS
Projeto de vida de adolescentes que fazem uso problemático de substâncias psicoativas
Purpose in life in adolescents with problematic use of psychoactive substances
Proyecto de vida para adolescentes que hacen uso problemático de sustancias psicoactivas
Renan de Morais Afonso1,I; Sônia Regina Fiorin Enumo2,II; Letícia Lovato Dellazzana-Zanon3,II
IUniversidade São Francisco, Itatiba-SP, Brasil
IIPontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas-SP, Brasil
RESUMO
Este artigo tem como objetivo investigar os projetos de vida de adolescentes em tratamento ambulatorial especializado para o uso problemático de substâncias psicoativas. Realizou-se um estudo de caso coletivo com sete adolescentes do sexo masculino, entre 14 e 18 anos, ao longo de treze semanas. Utilizou-se uma entrevista semiestruturada e os dados foram analisados com base nas dimensões da Escala de Projetos de Vida para Adolescentes. Os resultados mostraram que houve mais projetos de vida nas dimensões Aspirações Positivas e Relacionamento Afetivos e menos projetos de vida nas dimensões Religião/Espiritualidade e Sentido da Vida. Concluiu-se que o tratamento no ambulatório serviu como um espaço para os adolescentes organizarem suas vidas e favoreceu a construção de seu projeto de vida.
Palavras-chave: Projeto de vida; Droga (abuso); Adolescência; Psicologia do adolescente
ABSTRACT
This paper aims to investigate the life purposes of adolescents undergoing specialized outpatient treatment for problematic use of psychoactive substances. A collective case study was carried out with seven male adolescents, between 14 and 18 years old, over thirteen weeks. A semi-structured interview was used, and the data were analyzed based on the dimensions of the Purpose in Life Scale for Adolescents. The results showed that there were more life purposes in the Positive Aspirations and Affective Relationship dimensions and fewer life projects in the Religion/Spirituality and Sense of Life dimensions. It was concluded that the treatment at the outpatient clinic served as space for adolescents to organize their lives and favored the construction of their life purposes.
Keywords: Purpose in life; Drug abuse; Adolescence; Adolescent psychology.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo investigar los proyectos de vida de adolescentes en tratamiento ambulatorio especializado por uso problemático de sustancias psicoactivas. Realizó un estudio de caso colectivo con siete adolescentes varones, entre 14 y 18 años, durante trece semanas. Utilizó una entrevista semiestructurada y los datos fueron analizados con base en las dimensiones de Escala de Proyectos de Vida para Adolescentes. Los resultados mostraron que había más proyectos de vida en dimensiones de Aspiraciones Positivas y Relación afectiva y menos proyectos de vida en dimensiones de Religión/Espiritualidad y Sentido de la Vida. Se concluyó que el tratamiento en ambulatorio sirvió como un espacio para que los adolescentes organizaran su vida y favoreció la construcción de su proyecto de vida.
Palabras clave: Proyecto de vida; Abuso de drogas; Adolescencia; Psicologia adolescente.
A adolescência é um processo marcante no desenvolvimento humano por ser um período de transição entre a infância e a vida adulta caracterizado por diversas mudanças no desenvolvimento (Breinbauer & Maddaleno, 2008). Com exceção da infância, a adolescência é o estágio em que o corpo cresce e se modifica mais drasticamente do que em qualquer outro momento da vida. Por conta disso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) define a adolescência como o período entre os 10 e os 19 anos de idade (Breinbauer & Maddaleno, 2008).
O uso de substâncias psicoativas é um fator de risco para o adolescente e a sua exposição está relacionado a diversas variáveis de ordem psicossocial (Vasters, 2009). Entendem-se as substâncias psicoativas (SPA) como substâncias que agem sobre o sistema nervoso central com potencial de atuar em neurotransmissores e alterar a consciência, a percepção, o humor e a conduta (Oliveira et al. 2017). Quando usadas de forma precoce, frequente e/ou abusiva, podem trazer impactos significativos para o desenvolvimento, como modificação na estrutura cerebral e nas funções cognitivas (Fahlman et al., 2009).
O comportamento de uso de substâncias está correlacionado às consequências negativas do desenvolvimento, como baixo desempenho escolar, baixos níveis de escolaridade e maior abandono da escola, além de estar associado com maiores chances de desenvolver transtornos psicóticos e declínio neuropsicológico (Di Forti et al., 2014; Gobbi et al., 2019; Meier et al., 2012; Silins et al., 2014). Outros fatores de risco estão relacionados à influência das propagandas nas mídias, ao relacionamento conturbado com os pais, ao uso de SPA por membros da família, ao abuso sexual, à violência doméstica, à baixa autoestima, à curiosidade, à pressão dos pares, entre outros fatores que colocam o adolescente em uma situação de vulnerabilidade (Dietz et al., 2011; Figueiredo et al., 2016; Gomes et al., 2019).
Os indicadores de experimentação e consumo de SPA evidenciaram que 34,3% de 20.276 adolescentes entre 12 e 17 anos de idade experimentaram álcool alguma vez na vida e 5% já o haviam consumido em binge (uso de seis ou mais doses de álcool em uma única ocasião ao menos uma vez por mês) (Bastos et al., 2017). Em relação ao uso de drogas ilícitas, 4% dos adolescentes de 12 a 17 anos de idade já experimentaram alguma droga na vida, 2,3% experimentaram nos últimos 12 meses, e 1,3% fizeram uso nos últimos 30 dias. Dos adolescentes, 2% consumiram álcool e pelo menos uma droga ilícita. A média do primeiro consumo de drogas ilícitas foi de 13,1 anos de idade. E, dos adolescentes que faziam uso problemático de algum tipo de SPA (álcool e outras drogas), 0,2% chegaram a procurar algum tratamento (Bastos et al., 2017).
Dados como esses destacam a prevalência do uso de SPA entre adolescentes como uma questão preocupante, principalmente pelo uso cada vez mais cedo. Contudo, na contramão dos comportamentos de risco e situações de vulnerabilidade para o uso de SPA na adolescência, ter um projeto de vida (PV) é uma forma de desenvolver comportamentos mais positivos (Bronk, 2011). O comprometimento com o PV serve como uma direção em situações adversas e está relacionado com desfechos positivos, incluindo felicidade, resiliência, bem-estar subjetivo, bem-estar psicológico e satisfação com a vida (Bronk, 2012), envolvimento e contribuição com a comunidade e a sociedade (Johnson et al., 2018), além de ajudar em desfechos resilientes a situações de vulnerabilidade (Mariano, & Going, 2011).
Apesar de não haver um consenso quanto à definição de projeto de vida na literatura nacional (Dellazzana-Zanon & Freitas, 2015; Winters et al., 2018), no que diz respeito à literatura internacional, a definição mais utilizada tem sido a proposta por Damon et al. (2003), segundo a qual projeto de vida é "uma intenção estável e generalizada de alcançar algo que seja significativo para o eu e que gere consequência para o mundo além do eu" (p. 121). Os elementos básicos dessa definição são: (a) comprometimento (commitment), um importante aspecto que ajuda a estabelecer um sentido de coerência para o indivíduo, ajudando na formação da identidade e dos valores; (b) direcionamento do objetivo (goal-directedness), uma capacidade de gerenciamento auto-organizada de padrões comportamentais com o fim de atingir os objetivos do PV; (c) significado pessoal (personal meaningfulness), um elemento central que dá sentido à vida da pessoa, consistindo em uma questão de longo prazo que tem a capacidade de influenciar os pensamentos, emoções e comportamentos no sentido de atingir o PV; (d) mundo-além-do-eu (beyond-the-self), que consiste no engajamento pró-social em questões mais amplas do mundo, que tenham impactos significativos para a sociedade (Bronk, 2014).
Portanto, o PV é entendido como um constructo importante no desenvolvimento do adolescente, pois é um processo dinâmico em constante mudança, que exerce um papel central nas tomadas de decisões do sujeito (Bronk, 2014). Além do mais, a reflexão sobre si e sobre o futuro é uma tarefa importante na vida do adolescente, visto que é nesse momento que ele desenvolve sua identidade e as bases para a elaboração do PV (Mariano & Going, 2011). Por outro lado, a falta de PV também tem relação com a vulnerabilidade ao estresse, com respostas de coping/enfrentamento mal adaptativas, com sensação de perda de controle da situação e com falta de sentido da vida (Okasaka et al., 2008).
Dessa forma, percebe-se que o PV tem um papel importante quando o tema é uso de SPA na adolescência. Ter um PV conectado com atitudes pró-sociais pode proteger contra esse problema, e a sua falta pode servir como fator de risco, uma vez que o uso de SPA e o comportamento adicto são inversamente proporcionais ao PV (Damon, 2009). Assim, um baixo nível de orientação para a vida pode determinar a tendência de adolescentes a ter mais comportamentos aditivo, assim como encontrar menor significado na vida e maior frustração em controlar os eventos do cotidiano (Sun & Shek, 2010).
Diante do exposto, entende-se que adolescentes que têm um PV definido constroem suas vidas em torno desse PV (Moran, 2018), e que a contribuição do estudo de PV reflete-se diretamente nas áreas de desenvolvimento do bem-estar físico, social e psicológico (Okasaka et al., 2008). Além disso, o PV serve como fator de proteção contra o abuso de SPA, pois favorece a satisfação com a vida (Mariano & Going, 2011), o engajamento em comportamentos pró-sociais, menos engajamento em comportamentos de risco (Bronk, 2014) e tédio (Fahlman et al., 2009), e exerce um papel protetor contra o uso de SPA (Damon, 2009). Diante do exposto, este estudo tem como objetivo investigar os projetos de vida de adolescentes em tratamento ambulatorial especializado para o uso problemático de substâncias psicoativas.
MÉTODO
Foi realizada uma pesquisa qualitativa exploratória, com delineamento de estudo de caso múltiplo. Esse é um método empírico que investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto de vida real, para compreender fenômenos sociais complexos, preservando suas características holísticas e significativas (Yin, 2005).
PARTICIPANTES
Participaram do estudo sete adolescentes do sexo masculino, com idades entre 14 e 18 anos, que fizeram ou fazem uso problemático de SPA, em acompanhamento em um serviço ambulatorial especializado para uso de SPA de uma cidade de grande porte do Estado de São Paulo. Esses adolescentes foram escolhidos por fazerem parte de uma população em situação especial de vulnerabilidade, em uma fase peculiar do desenvolvimento, e por estarem em um contexto ambulatorial. Esse contexto possibilita ao adolescente refletir e organizar aspectos da sua vida, podendo ser um momento propício para a investigação de seus projetos de vida.
Foi composta uma amostra de conveniência, mediante a indicação dos membros da equipe do serviço, desde que preenchessem os critérios de inclusão previamente definidos: (a) estar na faixa etária de 14 a 19 anos de idade, independentemente do sexo, etnia, religião, nível socioeconômico, grau de escolaridade, orientação sexual, presença de alguma morbidade – desde que compreendesse as perguntas feitas4; (b) estar em acompanhamento ambulatorial por uso problemático de substâncias psicoativas no ASPA, independentemente do tempo. Com o objetivo de alcançar o maior número de participantes possível, optou-se em não adotar critérios de exclusão.
PROCEDIMENTO E COLETA DE DADOS
O ambulatório situa-se dentro de um hospital-escola público e tem como objetivo o ensino, a pesquisa e a assistência a pacientes com quadros relacionados ao uso de substâncias psicoativas e seus familiares. Os pacientes apresentam dependência de substâncias psicoativas, principalmente com comorbidades clínicas e psiquiátricas, além do uso nocivo de SPA (Ribeiro et al., 2012). O ambulatório também atende adolescentes que cumprem ou já cumpriram Medida Socioeducativa de internação na Fundação Casa e que apresentam uso problemático de SPA. O ambulatório é composto por equipe multiprofissional (psiquiatras, residentes de psiquiatria, psicólogos, por exemplo) e funciona no período da manhã, um dia por semana, oferecendo diversas atividades em grupos e individuais. Para isso, dispõe de uma recepção onde ficam os prontuários dos pacientes agendados, salas de atendimentos (individuais e grupais) e sala de discussão de casos.
A coleta de dados foi realizada por meio de três instrumentos: (a) questionário para a caracterização econômica dos participantes (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa [ABEP], 2018); (b) entrevista semiestruturada, com perguntas disparadoras sobre as consequências do uso problemático de substâncias psicoativas, elaborada para este estudo; (c) entrevista sobre Projeto de Vida (Miranda, 2007). Foram utilizados um gravador para registro e posterior transcrição das entrevistas. Antes da coleta de dados, foi realizado um estudo-piloto com dois adolescentes, para verificar a adequação dos instrumentos elaborados. Depois, o pesquisador era informado pela equipe sobre adolescentes que estavam sendo atendidos naquele dia, entrando em contato com o possível participante e seu respectivo responsável para explicar os objetivos da pesquisa e responder a eventuais dúvidas. Todos os adolescentes consultados aceitaram participar do estudo e assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido e/ou o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido. As entrevistas tiveram duração de 45 minutos a 1h20min.
ANÁLISE DE DADOS
Todos os relatos foram gravados, transcritos e agrupados em uma planilha eletrônica no software Excel®. Os dados sobre PV foram analisados por meio de uma análise de conteúdo (Mendes & Miskulin, 2017), para identificar a estrutura e os elementos do conteúdo, a fim de delinear as diferenças e extrair sua significação (Laville & Dionne, 1999), segundo a literatura da área de PV e as cinco dimensões da Escala de Projeto de Vida para Adolescentes (EPVA) (Gobbo et al., 2019).
A categoria Relacionamentos Afetivos refere-se a projetos relacionados a iniciar, manter ou intensificar relacionamentos afetivos e é composta pelas subcategorias: constituir família, com ou sem filhos; convivência com a família de origem; namorar; e projetos que envolvam ajudar algum familiar. A categoria Estudo refere-se a projetos relacionados à continuidade dos estudos. Essa dimensão é composta pelas subcategorias terminar os estudos e fazer faculdade. A categoria Trabalho diz respeito aos projetos relacionados a exercer uma profissão ou ter um emprego. A categoria Aspirações Positivas refere-se a projetos relacionados à vontade de se melhorar enquanto pessoa ao longo do tempo e inclui projetos que indiquem a vontade de se tornar uma pessoa melhor que faça, de alguma forma, diferença na vida de outras pessoas e na sociedade. A categoria Bens Materiais diz respeito aos projetos relacionados à aquisição de bens materiais e ao desejo de melhoria da condição financeira. A categoria Religião/Espiritualidade refere-se a projetos relacionados à satisfação com a conexão pessoal com Deus ou com algo que se considere como absoluto. Por fim, a categoria Sentido da Vida contemple os projetos relacionados ao propósito que eles têm frente aos eventos da vida, independentemente de uma referência religiosa. Incluem nessa categoria, projetos relacionados à ausência do sentido da vida.
ASPECTOS ÉTICOS
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, sob o parecer 3.481.215; CAAE: 15028719.5.0000.5481. Seguiu-se as diretrizes do Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (Tong et al., 2007) e os nomes dos participantes foram alterados para preservar suas identidades.
RESULTADOS
A amostra foi composta por sete adolescentes com média de idade de 16 anos (variando de 14 a 18 anos). Seis adolescentes estudavam em escolas públicas e um em escola particular. Três eram provenientes de Campinas, dois da Região Metropolitana, e dois de outras regiões do interior paulista. Dois adolescentes tiveram níveis econômicos classificados como C1 (renda média domiciliar de R$ 2.965,69); dois como B2 (renda média domiciliar de R$ 5.363,19); e um como A (renda média domiciliar de R$ 2 3.345,11). Não foi possível identificar as classes econômicas de dois deles (Gustavinho e Mateus), pois moravam em abrigos.
Cinco adolescentes haviam participado de atividades ilícitas, com tráfico de drogas, roubos e furtos. Desses, três adolescentes (Thiago, Erick, Zeca) tinham mais de uma passagem pela Fundação Casa e estavam cumprindo medida socioeducativa de internação no momento da entrevista, por reincidência no tráfico de drogas. Thiago relatou traficar para ajudar a mãe a pagar as contas; Erick por causa da emoção que a situação produz; Zeca por causa do dinheiro fácil. Mateus estava em liberdade por já ter cumprido o tempo determinado, e Gustavinho nunca foi detido pelas atividades ilícitas que praticou. Além disso, Mário e Igor moravam em residências: Mário com a avó, e Igor com os pais; e Gustavinho e Mateus, em abrigos.
No total, os adolescentes apresentaram 77 tipos de PV espontâneos. Duas dimensões tiveram maior frequência de relatos sobre tipos de PV: "Aspirações Positivas" e "Relacionamentos Afetivos", ambas com 23,37%. Os tipos PV da dimensão "Aspirações Positivas" foram relacionados à expectativa de querer parar de usar drogas, sair do crime, "arrumar a vida", "se ajudar", "ter fé", "fazer escolhas melhores", e "esforço". Em relação a "Relacionamentos Afetivos", as características foram relacionadas a ajudar a mãe, ajudar a família, constituir uma família e ter filhos. Apenas Mateus não tinha PV nessa dimensão, pois, segundo seu relato: "meu destino é morrer sozinho". Foi possível observar que os adolescentes que estavam cumprindo medida socioeducativas e em abrigos tiveram maior frequência de PV nessas duas dimensões.
A dimensão Trabalho foi a segunda mais frequente, com 18,18% das menções de PV. Com exceção de Igor, que relatou vontade de ir para o crime e/ou ter um "emprego para ficar se drogando", os demais adolescentes demonstraram desejo de ter um emprego para poder ajudar a família. Além disso, apareceram alguns desejos de exercer uma profissão, como engenheiro e professor de Educação Física. Já a dimensão Estudo foi a terceira com maior frequência de PV (14,28%), incluindo a intenção de terminar os estudos, fazer ou continuar fazendo cursos na Fundação Casa e começar uma faculdade.
A dimensão Bens Materiais foi a quarta com maior frequência de tipos de PV (11,68%). Os PV se relacionaram principalmente com ter uma casa e um carro. Apenas Mateus manifestou PV de ter um comércio (padaria) e Thiago manifestou o desejo de ser uma pessoa bem-sucedida. Já Sentido da Vida foi a quinta dimensão com maior frequência de tipos PV (5,20%), com PV relacionados a seguir uma vida melhor, desviar do caminho errado, fazer melhores escolhas e ter uma vida tranquila. A última dimensão e, portanto, com menor frequência foi Religião/Espiritualidade (3,89%), sendo identificados PV relacionados a "ir preso foi um sinal" para parar de usar SPA (Zeca) e "estar esperando um sinal de Deus" para decidir se segue o caminho do "bem" ou se segue o caminho do "mal" (Mateus).
Contudo, em relação à percepção da interferência do uso de SPA nos planos futuros, os três adolescentes que nunca cumpriram medida socioeducativa na Fundação Casa (Mário, Igor e Gustavinho) relataram que o uso de SPA não interferiu nos seus planos para o futuro. Em contrapartida, aqueles que cumpriram ou estavam cumprindo medida socioeducativa relataram que o uso de SPA interferiu em seus planos. Foi possível observar que esses adolescentes tiveram maior frequência de PV na dimensão Aspirações Positivas.
Um aspecto importante em relação ao acompanhamento no ambulatório foi em relação ao Mário que antes relatou não ter planos para o futuro e nem pensar em PV, mas depois de um tempo frequentando o ambulatório, começou a demonstrar interesse em procurar alguma atividade que ocupasse seu tempo: "Acho que vir aqui está me ajudando a pensar no que quero para vida" (Mário, 15anos), embora não soubesse a que gostaria de se dedicar. Em contrapartida, Igor, que estava há mais tempo no ASPA, relatou poucos PV durante a entrevista, e de uma forma desestruturada, como, por exemplo: "Às vezes, eu penso em crime e, às vezes, eu penso em ser feliz, morar em uma vila autossustentável" e depois: "Acho que o mais importante é o plano que eu acabei de pensar. É não escolher" (Igor, 18 anos). Mesmo assim, ele comentou que seu plano para o futuro era fazer uma faculdade, mas, quando estava sobre efeito de SPA, não se importava com isso. Vale ressaltar que ele foi o adolescente com menor número de PV em todas as dimensões. Já Gustavinho demonstrou interesse em ser jogador de futebol, engenheiro ou ser cantor de funk. Ele gosta de fazer músicas e gostaria de seguir carreira de cantor, pois gosta de escrever letras de Funk e Rap. Porém, não demonstrou muita elaboração ao falar sobre seu futuro.
Os adolescentes que falaram que o uso de SPA interferiu nos seus planos, Thiago, Zeca, Erick e Mateus, desenvolveram mais sobre o que desejam fazer no futuro, pois sabem que se continuarem no caminho que estavam poderiam passar o resto da vida: "Preso em cadeia ou ia ser morto" (Thiago, 16 anos). Todos eles demonstraram interesse em arrumar um emprego e Erick e Zeca demonstraram interesse em concluir os estudos e fazer uma faculdade.
Em relação ao PV, foi possível identificar que os principais PV estavam relacionados a Bens Materiais, como ser uma pessoa bem-sucedida, Relacionamento Afetivo, com o desejo de ajudar sua mãe, e Aspirações Positivas, como a vontade de se tornar uma pessoa melhor e melhorar sua condição de vida parando de usar drogas. Além disso, o desejo de parar de usar drogas também esteve relacionado com a conquista de bens materiais: "quero conquistar tudo com suor" (Erick, 17 anos) e conquista melhores para a vida. O ambulatório também apareceu, assim como a Fundação Casa, como uma possibilidade de desenvolvimento de recursos pessoais, relacionados a conquista de um emprego por estarem fazendo curso e em tratamento, o que pode mudar o rumo de suas vidas.
DISCUSSÃO
Com base nas características sociodemográficas dos adolescentes deste estudo, nota-se que os adolescentes da Fundação Casa e os que moravam em abrigos, vivem em uma condição socioeconômica vulnerável. Essa condição aumenta em até duas vezes as chances de o adolescente se envolver em atos ilícitos e consumo de drogas (Zappe & Dell'Aglio, 2016), como foi observado em cinco adolescentes (71%) deste estudo que praticaram atos ilícitos, como roubo, furtos e tráfico de drogas. Ressalta-se que o comportamento de usar drogas, bem como o de realizar atos infracionais, não depende apenas da condição socioeconômica, mas está associado a um conjunto de fatores de risco (Silveira et al., 2015).
Observou-se que três dos sete adolescentes estavam cumprindo medida socioeducativa de internação, na Fundação Casa, sendo reincidentes, no momento da entrevista. Esses participantes compõem um universo de 26.450 adolescentes que estão cumprindo medida socioeducativa no Brasil, segundo o Levantamento Anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE (Brasil, 2018). Os adolescentes nessa situação tendem a enfrentar de forma mais acentuada o processo de marginalização, uma vez que estão expostos à desumanização, discriminação, exclusão, opressão, estigmatização, estratificação, submissão e à subordinação, condições estas presentes de forma dinâmica nos processos sociais, enraizados em seus contextos (Causadias & Umaña-Taylor, 2018). Cabe ressaltar que esse número foi representativo na amostra devido à especificidade do ambulatório de atender adolescentes da Fundação Casa. Além disso, em todos os casos, foi observada a presença de eventos estressores, percepções negativas dos adolescentes em relação à escola, à violência intrafamiliar e à existência de amigos e familiares usuários de drogas. Essas são variáveis de risco para o uso de SPA e para o engajamento em comportamentos de risco na adolescência (Pessoa & Coimbra, 2016; Zappe & Dell'Aglio, 2016).
Esses adolescentes, contudo, apresentaram planos para o futuro, com PV em que as Aspirações Positivas se destacaram, estando associadas a querer mudar de vida e sair do crime, criando expectativas para o futuro e se organizando para atingi-las. Essa condição esteve mais presente nos adolescentes que estão na Fundação Casa e em abrigos. Entretanto, o PV era autocentrado, não considerando o mundo-além-do-eu. Destoando desse grupo, Zeca relatou um PV que considerava questões do mundo-além-do-eu, como construir casas para seus familiares.
Nesse sentido, ter um PV de autopromoção, que não considera o mundo-além-do-eu, pode ser um fator de risco para o comportamento de uso de SPA. Em compensação, um PV que considera impactos para o mundo-além-do-eu pode ser um fator protetivo para o uso de SPA (Damon, 2009). No entanto, os PV que incluem ajudar a família de origem podem ser relacionados ao mundo-além-do-eu, tornando o uso de SPA menos atrativo se as motivações para tal ato não forem hedonistas.
Os PV se destacaram também nas dimensões de Relacionamento Afetivo; Trabalho; Estudo; e Bens Materiais. Para os adolescentes privados de liberdade, esses achados podem referir que os adolescentes têm um desejo de organizar a família de origem e constituir sua própria família por meio da parentalidade. Por conseguinte, comprar casa esteve vinculado ao relacionamento familiar, pois os adolescentes mencionaram o desejo de ter uma para a família que pretendiam construir (Gomes & Conceição, 2014). Da mesma forma, arrumar um trabalho está associado com o afastamento da criminalidade, mesmo sendo empregos com baixa qualificação e remuneração. Com exceção de Igor, os adolescentes demonstraram interesse em arrumar um emprego. Especificamente nos casos dos adolescentes da Fundação Casa, conseguir um emprego estava relacionado a melhorar a condição de subsistência, proporcionar uma condição melhor para a mãe e outras pessoas importantes e afastar-se da criminalidade. Alguns manifestaram que pretendiam procurar um emprego na área em que fizeram o curso na Fundação Casa. Nota-se que esses adolescentes depositaram suas esperanças em arrumar um emprego para conseguir mudar de vida.
De outro lado, a dificuldade de acesso e permanência nas escolas aliados à baixa expectativa podem estar relacionados à baixa frequência da dimensão Estudos (14,28%). Embora os adolescentes da Fundação Casa tenham falado mais sobre esse tema, as dimensões de Relacionamento Afetivo, Aspirações Positivas e Trabalho ficaram à frente. Isso pode significar que, dado o momento de vida em que os adolescentes estavam na ocasião da entrevista, suas prioridades eram tentar ser uma pessoa melhor para conseguir estabelecer uma boa relação com a família e construir sua própria família, depois conseguir um emprego, e só depois continuar os estudos (Gomes & Conceição, 2014). Dessa maneira, ter um trabalho é uma prioridade maior que continuar os estudos, pois eles precisavam ter uma condição financeira para conseguir se sustentar. Entretanto, vale ressaltar que os adolescentes da Fundação Casa valorizavam as relações com os professores dentro da instituição, e demonstraram motivados para continuar os estudos depois de atingirem metas anteriores. Essa percepção de um ambiente escolar acolhedor é fundamental para que o adolescente infrator se motive a continuar ou retomar os estudos após o cumprimento da medida socioeducativa (Pessoa & Coimbra, 2016).
Outro fator importante é o fato de dois grupos terem se dividido em função do cumprimento de medida socioeducativa, o grupo que dizia que o uso de SPA havia interferido nos planos para o futuro e o grupo que achava que o uso de SPA não havia interferido em seus planos. Isso chama atenção porque parece que a percepção de danos e consequências está mais ligada aos efeitos de ter conflito com a lei, que fizeram os adolescentes institucionalizados passarem por mais experiências marcantes. Além disso, estes demonstraram planos mais elaborados, como conseguir um emprego, terminar os estudos ou fazer uma faculdade. Isso pode sugerir que os adolescentes que tiveram conflito com a lei, deixaram de atribuir status social para aquilo que antes era questão de mérito e orgulho, pois tiveram muitas consequências negativas relacionadas ao uso de SPA. Assim, esses adolescentes tiveram uma conscientização em relação ao uso de SPA e passaram a valorizar mais os vínculos afetivos em detrimento do status social (Gomes & Conceição, 2014). Além do mais, para o grupo que achou que o uso de SPA não interferiu nos planos para o futuro, a frequência de PV na dimensão Aspirações Positivas foi baixa, em comparação com o grupo que achou que o uso de SPA interferiu nos planos. Isso pode estar relacionado com o fato de os adolescentes que cumpriram ou estavam cumprindo medida socioeducativa terem um desejo forte de mudar de vida e se tornar pessoas respeitadas. Eles demonstraram a vontade de sair do mundo do crime e buscar alternativas lícitas e reconhecidas socialmente para recomeçar suas vidas.
Em contrapartida, alguns adolescentes não demonstraram um PV estruturado, o que sugere que a disponibilidade e a maestria de desenvolver um PV depende de vários fatores complexos. Como mostra a literatura, apenas 20% dos adolescentes apresentaram um PV claro, o que pode ser um problema para o desenvolvimento de uma identidade saudável (Bronk, 2012), por outro lado, em outro estudo, 64% dos adolescentes estudados acreditam possuir algum PV, enquanto 2% não acreditam possuir um PV, e 12% estão perdidos, ou seja, não sabiam nem se tinham nem se não tinham algum PV (Moran, 2014).
O que se nota, portanto, para a maioria dos participantes, é que o PV, foi relacionado como uma esperança de uma vida melhor, livre do uso de SPA. Muitos tinham aspirações positivas, provavelmente pelo fato de estarem no ambulatório pela primeira vez. Outros depositaram na possibilidade de ter um trabalho a expectativa de se afastar da criminalidade e poder fornecer condições financeiras melhores para seus familiares. Outros, ainda, depositaram nos estudos a expectativa de ascensão social, com o desejo de conseguir um bom emprego e fazer uma faculdade. Em todos, o PV aparece de forma benéfica, favorecendo o desenvolvimento de sentimentos positivos e lançando luz sobre um possível caminho a ser percorrido.
Cabe ressaltar que, uma limitação deste estudo foi o fato de a amostra ser composta apenas por adolescentes do sexo masculino, além disso, devido à especificidade do ambulatório em atender a demanda de adolescentes provenientes da Fundação Casa, este estudo contou com uma amostra significativa de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, o que pode ter exercido uma influência nos dados, principalmente no que se refere aos tipos de PV.
Apesar dessas limitações, este estudo possibilitou a investigação em profundidade sobre questões complexas que envolvem essa temática. As entrevistas semiestruturadas proporcionaram uma compreensão melhor sobre os tipos de PV relacionados com os contextos dos adolescentes. Isso proporcionou um enriquecimento dos casos, possibilitando uma melhor compreensão sobre o papel que o ambulatório exerce como espaço de cuidado e reflexão, favorecendo, com isso, a construção de novos PV.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O uso de SPA na adolescência é um fenômeno preocupante e crescente nos últimos anos, assim como o uso problemático delas. A literatura demonstra diversos fatores, tanto socioeconômicos, quanto culturais e psicossociais que tornam os adolescentes vulneráveis ao uso de SPA. Esses aspectos muitas vezes fazem parte da cultura na qual o adolescente está inserido, sendo impossível dissociar de seu contexto.
Este estudo se propôs a investigar os projetos de vida de adolescentes em acompanhamento ambulatorial para o uso problemático de substâncias psicoativas. Os tipos de Projetos de Vida, Relacionamentos Afetivos, Aspirações Positivas, Trabalho, Estudo e Bens Materiais foram as dimensões em que mais projetos foram mencionados pelos participantes. Além disso, foi possível observar que os adolescentes que cumpriam medida socioeducativa e que estavam em abrigos, apresentaram mais projetos e vida referentes a Aspirações Positivas em comparação com os adolescentes que nunca cumpriram medida socioeducativa e moravam em residências.
Nesse sentido, é muito importante que profissionais da saúde tenham recursos para trabalharem com as demandas de adolescentes que fazem uso de SPA no que se refere ao PV, pois esses adolescentes, geralmente não possuem um objetivo de vida claro, possuem menor satisfação com a vida e sentem-se sem um sentido de vida. Então, sendo assim, é importante o desenvolvimento de estudos nessa área, a fim de compreender melhor essa questão e poder desenvolver programas voltados para a construção de PV nas instituições de saúde pública.
REFERÊNCIAS
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Endereço para correspondência
Renan de Morais Afonso
E-mail: renan_afonso18@hotmail.com
Submetido: 26/09/2020
Reformulado: 20/12/2020
Aceito: 21/12/2020
1 Renan de Morais Afonso é mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e professor da Universidade São Francisco.
2 Sônia Regina Fiorin Enumo é doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo e professora da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
3 Letícia Lovatto Dellazzana-Zanon é doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professora da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
4 A avaliação da compreensão dos participantes em relação às perguntas dos instrumentos do estudo foi feita pelo pesquisador, que tem experiência clínica com adolescentes que fazem uso de substâncias psicoativas