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Psicologia Hospitalar
versão On-line ISSN 2175-3547
Psicol. hosp. (São Paulo) vol.7 no.1 São Paulo 2009
ARTIGOS ORIGINAIS
Efeitos terapêuticos obtidos no tratamento psicanalítico de pacientes com doenças inflamatórias intestinais
Therapeutic effects obtained on psychanalitic treatment of patients with inflammatory bowel disease
Leandro Verzignassi NunesI,1; Cynthia Nunes de Freitas FariasII,2; Roberta Maria LopesI,3
IHospital das Clínicas da Faculdade de Medicina - USP
IICentro Lacaniano de Investigação da Ansiedade, CLIN-a
RESUMO
Este estudo objetivou apresentar e discutir os efeitos terapêuticos obtidos no tratamento psicanalítico de orientação lacaniana, oferecido a pacientes com doenças inflamatórias intestinais, atendidos por psicólogos no ambulatório de doenças inflamatórias intestinais de um hospital geral durante o período de um ano. A aplicação da psicanálise à terapêutica pressupõe que se mantenha a estrutura essencial da psicanálise, cujos elementos são: o recalque, o trauma sexual, a sexualidade infantil, a realidade psíquica, a fantasia e o inconsciente. Seu objetivo visa a efeitos terapêuticos, e não à formação de analista, como a psicanálise pura. Ao psicólogo cabe garantir a política do sintoma, ou seja, o gozo que ele engendra. Apresentamos seis casos de pacientes com doença inflamatória intestinal (quatro com retocolite ulcerativa e dois com doença de Crohn) a partir dos quais observamos efeitos terapêuticos. Consideramos que o fenômeno transferencial e a técnica da associação livre, passíveis de aplicação fora do enquadre psicanalítico clássico, permitem localizar os significantes que nomeiam os sujeitos e seus modos de gozo, possibilitando a desidentificação ao ser doente, mostrando-se como alternativa à degradação do corpo mesmo nas doenças crônicas incuráveis. Concebemos o benefício terapêutico como uma conseqüência do processo onde o gozo do sintoma é o ponto a ser tratado.
Palavras-chave: Psicanálise aplicada; Efeitos terapêuticos; Sintoma; Gozo; Doenças inflamatórias intestinais.
ABSTRACT
The aim of the current study was to assess the outcomes associated with Lacanian psychoanalytical therapy involving patients with inflammatory bowel disease. Patients participated in follow-up for one year administered by the psychologists of an outpatient clinic of a general hospital. The use of psychoanalysis for therapeutic purposes should take into account the applicability of the following key concepts: repression, sexual trauma, infantile sexuality, psychic reality, fantasy and the subconscious. Different from pure psychoanalysis, which is primarily focused on the formation of the analyst, the therapeutic use of psychoanalysis is based on the symptom and the underlying pulsional satisfaction (jouissance) following the pleasure principle which it replaces. We report six cases (ulcerative colitis n=4; Crohn disease n=2) in which a therapeutic effect from psychoanalysis was observed. In spite of not following the classical psychoanalytical approach in this study, the transferential relationship and the free association technique were used to identify the signifier of the subjects and their ways of jouissance, which can produce changes in the subjective position by dislodging the disabling fixations. It may be the only way to cross the plane of identification to the sickness and to overcome the physical disability, even in cases of chronic and incurable diseases. In summary, the therapeutic efficacy is a consequence of this process, in which the jouissance of the symptom is considered the target of the therapy.
Keywords: Applied psychoanalysis, Therapeutic efficacy, Symptom, Jouissance, Inflammatory bowel disease.
INTRODUÇÃO
Entendemos por tratamento psicanalítico toda terapêutica que leva em conta a estrutura essencial da psicanálise estabelecida por Freud, cujos elementos fundamentais são o recalque, o trauma sexual, a sexualidade infantil, a realidade psíquica, a fantasia e, finalmente, o inconsciente. Segundo Freud (1932/1990), a terapêutica é o campo próprio de aplicação do método psicanalítico que só pode ser considerado como tal, se levar em conta todos os elementos que constituem sua estrutura teórica.
Para Lacan (1955/1998), psicanálise é o tratamento que se espera de um psicanalista, seja ela pura ou aplicada, padrão ou não. A principal diferença entre psicanálise pura e psicanálise aplicada refere-se ao benefício terapêutico, e não propriamente à técnica. A demanda de alívio de sintomas está sempre implicada num pedido de tratamento, sendo que, os efeitos terapêuticos são contingenciais a um processo analítico. Em sua vertente pura, a psicanálise tem por objetivo a produção de um saber sobre o inconsciente, a formação do analista e a transmissão de seus princípios. Nesse processo surgem efeitos terapêuticos, porém não como objetivo principal. Em sua vertente aplicada à terapêutica, o processo analítico pode ter como fim o alívio do sintoma. Porém, ambas as vertentes convergem para um mesmo ponto: a política do sintoma, qual seja, a satisfação pulsional, o gozo que ele engendra. "O fato de haver análise não depende nem de sua duração, nem do lugar, nem do ritual, mas sim do tipo de operação que se efetua sobre o gozo (Guéguen, 2007, p.18-19)”.
A noção de sintoma assim como foi concebida por Freud (1917/1990) refere-se a um evento que implica o corpo e que serve ao sujeito como caminho substitutivo para a satisfação pulsional. Se por um lado os sintomas se expressam em atos aparentemente inúteis ou prejudiciais à vida do sujeito, por outro lado, possuem uma função específica e são plenos de sentido. Trata-se de uma solução de compromisso entre duas partes de um conflito: a libido insatisfeita e as exigências externas visando à auto-preservação. Daí sua característica principal de resistir a toda e qualquer iniciativa de demovê-lo de forma direta, visto que é muito mais um arranjo que um transtorno.
Freud trouxe à luz as duas vertentes da formação sintomática: o sentido, a vertente simbólica, e o não-sentido, a vertente do gozo pulsional atrelada ao real do corpo. Embora tenha apostado na via da decifração do sentido dos sintomas como terapêutica, jamais desconsiderou os impasses impostos por algo irredutível à palavra, presente na repetição sintomática, que denominou "pulsão de morte”. (Freud, 1923).
A terapêutica, elemento central na psicanálise aplicada, coloca o sintoma e a cura em jogo, sendo que o modo de abordar o sintoma orienta a prática e a ética do tratamento. Naveau (2003) indica que, entre as duas vertentes do sintoma, o tratamento psicanalítico deve orientar-se na vertente do gozo, do não-sentido, daquilo que produz a repetição sintomática. Isso significa que ao convidar o paciente a falar, a associar livremente, deve-se evidenciar aquilo que foge ao sentido engendrado por seu discurso. A intervenção psicanalítica em ato, própria da abordagem lacaniana, visa ao âmago do sintoma: a fantasia, ou seja, a antinomia entre prazer e gozo. Tal intervenção interrompe a produção de sentido que tende a ser infinita e toca o ponto crucial que sustenta a repetição sintomática. Dessa forma, a psicanálise funciona na via da desidentificação ao ideal, na destituição do sujeito, favorecendo a divisão subjetiva para que uma resposta singular ao impasse vivido pelo sujeito possa ser construída.
Tendo em vista tais condições associadas ao fato de que o que orienta a prática não são padrões pré-determinados de tempo, espaço físico, pagamento entre outros, alguns princípios devem ser levados em conta para que não percamos de vista os elementos essenciais da psicanálise.
Brodsky (2003) propõe como princípios orientadores da prática psicanalítica a "dessimetria"e a "imprevisibilidade”, elementos diretamente articulados à política do sintoma, pois tocam a questão do não-sentido e do ato.
No primeiro, a dessimetria, o que está em jogo é a relação analista-analisando que, para Lacan (1974/2003), não está no registro da intersubjetividade que conduziria ao "desaparecimento da referência ao inconsciente até converter a psicanálise em uma relação entre pessoas"(p. 36). A disparidade entre o analista e o analisando é uma constante que garante que haja apenas um sujeito, o analisante, impedindo que encalhemos na contratransferência.
O segundo, a imprevisibilidade, concerne diretamente à intervenção, ao ato e ao não-sentido. A análise não se dá na via da compreensão da própria vida, pois nessa vertente, seria infinita. Ela se dá na via do não sentido que concerne à repetição, como já exposto acima. Para isso, é necessário que a intervenção do analista porte algo de imprevisível. A imprevisibilidade é aquilo que "nunca acontece como tem que acontecer apesar das boas intenções da terapêutica; está em um sentido vinculada à surpresa e em outro, à contingência"(Brodsky, 2003, p. 42). Ela opera sobre o tempo da sessão, a interpretação/intervenção e o próprio analista que deve encarnar, com sua presença, o real como impossível.
Nessa perspectiva de tratamento o que está em questão é a forma particular como cada sujeito se arranjou com seu gozo pela via do sintoma e não os aspectos que os reúnem numa categoria, por exemplo: psicossomáticos, deprimidos, obsessivos ou histéricos.
Os pacientes com doenças inflamatórias intestinais4 que nos procuram no contexto hospitalar vêm pedir alívio para o sofrimento do corpo e deparam-se com um encaminhamento para o serviço de psicologia. Para a maioria, nunca ocorreu passar por tal experiência, embora reconheçam certas dificuldades de cunho subjetivo. No entanto, trazem consigo sofrimento e demandam alívio. A legitimidade deste pedido concerne, sobretudo, à perpetuação do sofrimento físico alimentado pelo gozo, pela repetição sintomática.
Reconhecer o imbricamento entre adoecimento físico e subjetivo é o primeiro passo para o tratamento do gozo que se expressa no real do corpo. Os efeitos terapêuticos decorrem das soluções que cada paciente dará para seu sofrimento. Como afirma Cottet (2005), "(...) reivindicamos a possibilidade de um ato analítico fora do setting, ou seja, fora do que se considera o enquadre clássico. (…) Não temos, portanto, a obsessão do rendimento terapêutico. Não substituímos a psicanálise por conselhos, nem temos como finalidade imediata a supressão do sintoma. Essas preocupações que definem a terapêutica comum desconhecem a estrutura subjetiva determinada pelo inconsciente."(p. 36 e 37).
Brousse (2007) nos alerta para o fato de que o ambiente institucional nos submete a demandas sustentadas no discurso do mestre, seja no sentido do alívio imediato do sofrimento, seja na adequação aos modos de satisfação dos sujeitos às normas sociais vigentes como índices de felicidade e bem-estar. Nesse campo onde a psicanálise aplicada encontra seu lugar de exercício, devemos cuidar para que o discurso psicanalítico não ceda à demanda de alívio imediato veiculado pela urgência do sofrimento psíquico, bem como, pelo apelo social do discurso do mestre.
A clínica psicanalítica, independentemente do lugar em que se dê, é uma clínica sob transferência, que deve operar com esse fenômeno próprio a qualquer discurso. O sujeito a ser tratado é o sujeito do inconsciente, resultado do exercício da linguagem e representado por significantes, e não indivíduos ou categorias ontológicas institucionais e sociais (doentes crônicos, deprimidos, gestantes, idosos, drogadicto, ansioso etc.). Nesse contexto, o praticante da psicanálise deve sustentar a suposição de saber como semblante e não como garantia absoluta, lei ou referência. Em decorrência dessa posição de Outro castrado, o saber pode incluir a incompletude, o real impossível de ser cernido pela palavra.
Conforme afirma Cottet (2005), não cabe à clínica psicanalítica se orientar por métodos e receitas terapêuticas que se destinam a tratar o sofrimento humano de forma universal, mas sim, deter-se ao particular de cada caso. "(...) Permanentemente aplicada ao particular, ela lida com as exceções. É dessa forma que o terapeuta implicado em seu ato se aplica em fazer existir o inconsciente."(p. 35). O tratamento psicanalítico em qualquer enquadre em que ele se dê, procura isolar o gozo e circunscrevê-lo sob a forma de um sintoma analítico, transformando o sofrimento puro numa questão a ser tratada e solucionada pela palavra.
OBJETIVO
O presente trabalho tem como objetivo apresentar e discutir os efeitos terapêuticos obtidos no tratamento psicanalítico de pacientes com retocolite ulcerativa idiopática (RCUI) e doença de Crohn (DC) atendidos por psicólogos junto ao ambulatório de doenças inflamatórias intestinais de um hospital geral no período de um ano.
MÉTODO
Estudo de casos orientado pelo referencial psicanalítico lacaniano.
Casuística
Dois pacientes com doença de Crohn e quatro pacientes com retocolite ulcerativa idiopática em tratamento ambulatorial, encaminhados para avaliação e acompanhamento psicológico.
Critérios de inclusão
Estudo retrospectivo de casos de pacientes atendidos pelos autores.
Procedimento
Construção e análise de casos de pacientes que participaram de pesquisas realizadas anteriormente pelos autores com ênfase nos efeitos terapêuticos obtidos a partir do tratamento psicanalítico empreendido, dentro do prazo de um ano, tendo em vista o referencial psicanalítico de orientação lacaniana. Tais pesquisas foram aprovadas pela comissão setorial de ética (COSEPE n. 07/07, 12/07).
TRATAMENTO PSICANALÍTICO: RESULTADOS E DISCUSSÃO
Daniel
Daniel foi abusado sexualmente quando criança e a partir dessa experiência, seu desejo homossexual começou sutilmente a se manifestar. Os primeiros sintomas da doença de Crohn coincidem com uma primeira relação homossexual consentida. Nossa hipótese foi de que o que resta da cena traumática inicial se atualiza nesse momento posterior e a impossibilidade de tratar da satisfação pulsional pela palavra leva à sua circunscrição no real do corpo.
A ambigüidade da palavra "doença"em seu discurso, que ora denotava a doença de Crohn, ora a homossexualidade, foi apontada logo nas primeiras entrevistas, questionando-o sobre do que realmente sofria. Tal intervenção elevou o mal-estar ligado à homossexualidade à categoria de questão a partir da relação transferencial. Do discurso materno, interpretou ser ele o único filho que não a decepcionou. Sempre a obedeceu e agiu conforme suas determinações. Não pode decepcioná-la, mesmo que tenha que sacrificar o próprio corpo para manter-se nesse lugar. Os sintomas da doença de Crohn parecem ter funcionado para aplacar a fúria da pulsão sexual, e dar consistência ao sacrifício, colocando-o, a cada crise, como objeto dos cuidados de uma mãe devotada.
Expor seu desejo homossexual ("pela primeira vez falou disso”) para alguém que possa escutá-lo sem os pré-julgamentos da mãe e da religião foi permitindo ao paciente considerar tal possibilidade e pensar em formas de inscrevê-la de uma maneira menos sofrida, mesmo que, a princípio, virtualmente pela internet. O lugar de filho ideal para a mãe também pôde, aos poucos, ser relativizado, abrindo espaço para a singularidade do desejo também em outros âmbitos de sua vida, igualmente submetidos à demanda de uma mãe exigente. Pôde experimentar alívio da angústia e também uma redução nas crises da doença, assim como referiu.
Socorro
Socorro é o pedido que esta jovem paciente com retocolite nos dirigiu na primeira entrevista. Afirmou que o encaminhamento veio na hora certa, pois temia morrer, já que as medicações não estavam tendo o resultado esperado. Assim havia acontecido com uma pessoa próxima a ela, que apresentou os mesmos sintomas e pouco tempo depois morreu. Pediu que intercedêssemos por ela junto à equipe médica, visto que não conseguia entender-se bem. Na relação com o outro, o corpo entrava em cena, palco onde se misturavam sintomas próprios da doença e sintomas conversivos, expressando seu apelo.
A estratégia de privilegiar a palavra como forma de acesso ao outro, em detrimento de seu apelo via urgência imposta pelos sintomas físicos, foi crucial no estabelecimento da relação transferencial, a suposição de saber permitiu que a paciente pudesse localizar melhor seu sofrimento.
O dito materno de que para ser alguém devia submeter-se a um homem, circunscreve para ela algo do gozo feminino, do que é ser uma mulher: não queria ficar "debaixo dos pés de nenhum homem”, mas resolveu acatar a orientação de sua mãe. Desde então sua vida consiste em traições mútuas, agressões verbais e físicas, idas e vindas e, apesar de todo sofrimento, não consegue separar-se. Questionar as justificativas aparentemente óbvias que a mantinham nessa relação produziu, aos poucos, sua desidentificação a esse lugar da mulher sofrida, traída, maltratada, incapaz de ser alguém a não ser "debaixo dos pés de um homem”. Apercebe-se de que seus sintomas físicos eram o único elemento capaz de barrar a violência do marido e colocá-la numa posição de filha para ele, resgatando sua relação com um pai carinhoso, porém distante. Nesse ponto, revela-se para ela seu excesso em fazer uso de sua condição de doente. Decidiu trabalhar, deparando-se com a perspectiva de ser mais independente e poder tomar as próprias decisões. Referiu uma melhora de seu estado físico, não precisando mais usar os pronto-socorros para fazer seus apelos.
Helena
Helena, uma adolescente gótica, viu sua "filosofia de vida"desfazer-se diante do medo de morrer que a doença de Crohn lhe impôs, precisando, por isso, abrir mão das únicas coisas que a faziam feliz: "bebê e fumá"(beber e fumar). Tal excesso denunciava sua identificação ao pai, adepto do prazer sem limites e, por isso, um "problema"para sua mãe.
A gravidez inesperada fez com que a paciente revivesse sua história com sua mãe. Esta teve uma gravidez difícil e prometeu dar-lhe como segundo nome, Aparecida, se tudo desse certo durante o parto. Não sei por que ela pôs Aparecida, não deu certo. Ao ser questionada sobre o que não deu certo, respondeu: minha mãe teve hemorragia, quase morreu. A intervenção de que ambas estavam vivas e por isso tinha dado certo, produz surpresa. Nunca achei que tinha dado certo, durante 22 anos achei que tinha dado errado, não gosto de ser aparecida. Quando convocada a dizer como era ser aparecida, responde que os "Aparecidos"são problemáticos (sic).
Da identificação ao gozo sem limites do pai pela via do vício, ela passou à perspectiva da maternidade pela via do sacrifício, ou seja, a privação do prazer em prol de outro alguém, o bebê que esperava. Ao queixar-se de que queria bebê (beber), a intervenção feita pelo psicólogo apontou para a homofonia do bebê (beber) e do bebê (filho), demarcando algo do prazer também ligado à maternidade. A partir daí observa-se uma mudança na posição subjetiva da paciente com relação aos seus excessos. A possibilidade de ser mãe lhe traz uma perspectiva mais ligada à vida. Nos atendimentos, dedica-se a pensar numa solução própria para a maternidade, fora do registro do gozo do sacrifício e do gozo do prazer sem limites pela via do vício e da degradação física.
Dirce
A impossibilidade de ser feliz para Dirce se deve ao fato de ter que se submeter a um marido opressor por estar doente e não poder se cuidar sozinha. Sua história é marcada pela morte da mãe quando contava treze anos, e pelo fato dela ter sido enterrada com os olhos abertos: até hoje ela vigia os filhos. Era muito apegada à mãe e diz não ter podido vê-la partir. O que resta da cena das exéquias foi o medo de ficar sozinha, ou seja, ficar só na presença do olhar da mãe. Requeria desde então a presença constante de alguém junto dela, o que chegava a aborrecer principalmente sua família. A retocolite surgiu como o álibi perfeito para sustentar esse sintoma.
Inicialmente diz ter se casado sob ameaça. Seu marido, um "conhecido da família"ameaçou matá-la caso fosse viver com outro homem. Diante do convite para esclarecer melhor essa escolha, revê que, na verdade, temia que seu noivo a afastasse da família, e preferiu ficar com este que demonstrava amá-la e era "conhecido"da família. A intervenção demarcando que ela havia escolhido o familiar desencadeia um processo de revisão de suas escolhas e da cilada que consiste em escolher o familiar como garantia. Esse processo faz com que Dirce saia um pouco do alcance do olhar morto da mãe, que tudo vigia, buscando novas soluções para sua vida. Ao passar a dizer o que pensa e o que quer, produz uma melhora na relação conjugal e também passa a avaliar a possibilidade de trabalhar.
Denise
Os sintomas da retocolite se manifestaram para Denise quando foi convocada a ser mulher para um homem: ela respondeu a este "convite"com o adoecimento físico. Assume que quando ficou noiva temia que o casamento se concretizasse. Tal medo mostrava-se relacionado à perspectiva de separar-se de sua mãe. Sei que ela é demais, mas gosto do cuidado que minha mãe tem comigo. O significante "demais"denotou sua relação com a mãe, sugerindo uma satisfação no excesso que a palavra denuncia.
Teve duas decepções amorosas e nunca mais se interessou por nenhum rapaz, conduzindo seu investimento libidinal às questões referentes à doença e ao tratamento médico. A doença parece ter surgido para demarcar sua impossibilidade de tratar a emergência da pulsão sexual pela via simbólica, tendo a função de mantê-la como objeto do amor materno, sendo uma forma de defender-se da emergência da sexualidade no real do corpo.
A intervenção sobre o significante "demais”, separou o que era bom e o que era excessivo em sua relação com sua mãe, possibilitando que sofresse menos os sintomas da doença e pudesse investir em uma atividade que lhe garantisse renda, deixando de depender parcialmente dos pais. Além disso, passou a comparecer às sessões sem a presença materna, o que foi reconhecido pela paciente como uma melhora, uma vez que receava sair só.
Carlos
A demanda de Carlos consistia em que lhe fosse dado algo que lhe servisse para se localizar no mundo, algo que pudesse provar que ele não era um "vagabundo”. Após a separação dos pais, perdeu o controle e facilmente se excedia, trazendo problemas para a mãe. Desde que adoeceu com retocolite, passou a trazer consigo uma sacola com seus remédios justificando que, caso fosse parado pela polícia, mostraria os remédios. Seus documentos oficiais (identidade etc.), representantes simbólicos de um sujeito perante a lei, não eram suficientes: "Posso sair de si se alguém me desacatar”, sendo os remédios uma forma de atestar seu excesso.
Seus atendimentos concentravam-se em exaustivas descrições de seus sintomas e sensações físicas e de solicitações de encaminhamento para outras especialidades médicas. Além disso, ansiava por uma cirurgia, uma marca no real do corpo para representá-lo no campo do Outro, já que demonstrava não se servir do recurso simbólico. A identificação com a doença foi a forma que encontrou de se representar no mundo, a ponto de pretender oferecer seu corpo como objeto de estudo: "moraria no hospital se isso fosse necessário para ficar bom. Vi na TV um homem que doou seu corpo para a ciência, ele foi cortado em fatias por um laser, achei aquilo tão bonito, faria isso se fosse possível”.
Os questionamentos sobre a real necessidade de uma intervenção no corpo e a possibilidade de expressar em palavras para alguém suas sensações físicas produziram uma diminuição da ansiedade e da urgência com que demandava a cirurgia e os encaminhamentos para outras especialidades.
Em todos os casos pudemos constatar que a técnica da associação livre, elemento central do tratamento proposto por Freud, permite um deslocamento do gozo escópico, preponderante no adoecimento físico, para a fala, operando um corte na completude imaginária e fazendo com que cada sujeito se depare com a castração na linguagem - o impossível de tudo dizer e de ser completamente entendido. Consentir nessa perda é a condição sem a qual não há tratamento psicanalítico.
Tal consentimento ocorre, a par e passo, com o fenômeno transferencial, que não é senão a suposição de que aquele que o escuta poderá ajudá-lo. No entanto, cabe ao praticante manejar com a consistência desse lugar suposto, tendo em vista que, em última instância, a suposição de saber é no inconsciente. Trata-se de um "fazer às vezes de"e não "ser"aquele que sabe sobre o sujeito.
A partir do discurso de cada paciente, foi possível extrair os significantes que os representavam no campo do Outro, nomeando seu ser e seu modo de gozo. Para Daniel, o significante "doença"condensava dois outros significantes: Crohn e homossexualidade, ambos articulados no corpo e mantidos pelo lugar imaginário de filho ideal para a mãe. No caso de Socorro, estar "debaixo dos pés de um homem"era sua condição de existir. O sacrifício físico, tanto na relação com o marido como na doença, dava consistência à sua interpretação do que é ser uma mulher. Helena só podia "aparecer"no mundo como o "problema"de sua mãe, como aquela que "não deu certo”. Para Dirce, o significante "familiar"condensava a proteção e o medo provenientes do olhar eternizado da mãe morta, dando consistência ao seu gozo escópico (olhar e se fazer olhar). Para Denise, o significante "demais"que nomeava a mãe marcava o excesso da relação que impossibilitava uma via própria para a paciente. Ao contrário dos outros, a ausência de um significante capaz de cernir para Carlos seu lugar de objeto no desejo do Outro, deixa-o completamente à mercê de qualquer captura imaginária, sem qualquer relativização. A marca no real do corpo produzida pela doença é sua condição de defesa contra a invasão de gozo, "sair de si quando desacatado”.
A localização e a intervenção do praticante sobre tais significantes no sentido de ativar sua capacidade de refração, ou seja, dividir-se em infinitos outros significantes possibilita o descolamento do sujeito de sua designação. A esse deslocamento chamamos desidentificação.
Sobre isso Brousse (2003) afirma:
"A psicanálise vai contra os falsos ‘objetos-seres’ que o sujeito tenta se dar. De um lado, ‘desobjetalizar’ o sujeito, que se torna uma cadeia de letras e, depois, podemos dizer também com outro neologismo, ‘desoutrificar’ o objeto, ou seja, fazer com que o objeto não seja concebido como o Objeto do Outro, objeto que tampona o Outro, que preenche a sua inconsistência - já que o objeto não é nada mais do que uma parte perdida do sujeito, não do Outro, porque o Outro não existe."(p. 73)
Esse é o primeiro passo no tratamento psicanalítico, passar do viver ao ver. Um exemplo claro disso ocorre quando Helena diz que havia acreditado naquilo durante vinte e dois anos e não tinha percebido outra possibilidade para si. Durante vinte e dois anos ela viveu sendo um problema, não dando certo, sem nada saber sobre isso. O questionamento do que é aparentemente óbvio para os sujeitos traz um efeito de surpresa, de imprevisibilidade próprio da intervenção em psicanálise.
Como sabemos, a transferência é um efeito de discurso, estando presente em qualquer forma discursiva. O que difere então o tratamento psicanalítico que propomos de outras terapias pela palavra? É justamente que a mudança de posição subjetiva não se dá por um esclarecimento consciente de uma posição problemática associado a uma demanda de mudança em prol de um comportamento mais adequado ao que se considera como sendo sinal de saúde física e mental. Ao intervirmos sobre os significantes que nomeiam o gozo para cada um, produzimos dúvidas sobre as certezas do sujeito sobre si, e o efeito é a desidentificação.
Evocamos aqui os três tempos do tratamento proposto por Lacan (1945/1998), instante do olhar, tempo para compreender e momento de concluir. Os efeitos terapêuticos rápidos decorrem deste instante do olhar, como vimos nos casos apresentados, que não têm mais do que alguns meses de tratamento. A diferença reside justamente no que se visa: visamos o gozo e não o sentido. O paciente não precisa necessariamente seguir na análise no sentido de produzir um saber sobre o inconsciente. O tempo de compreender é o tempo para a construção de um saber e de uma nova solução que pode ocorrer estando o paciente advertido de seu modo de gozo, mesmo não tendo claro do que se trata. O distanciamento que permite o olhar produz o efeito terapêutico e permite outras soluções para o sofrimento. É nesse instante de ver que Lacan (1958/1998) situa a retificação subjetiva, como inversão na posição do sujeito enquanto vítima, objeto de determinada desordem, para o sujeito complacente com ela, o que de certa forma traz alívio, já que, tendo parte no problema do qual se queixa, pode fazer algo para mudar.
O alívio decorre desse processo onde o sujeito se torna um pouco mais livre da demanda superegóica que provém do Outro. Abre-se, então, uma brecha que irá permitir que ele se pergunte novamente sobre seu lugar no mundo. Diferentemente de outras abordagens terapêuticas que oferecem respostas próprias como solução, cabe ao praticante da psicanálise não deixar que essa brecha se feche, oferecendo ao sujeito a possibilidade de responder a partir de seu próprio desejo. Respostas singulares são mais efetivas, porém, não necessariamente atenderão às expectativas daqueles que tratam e se propõem a assegurar o bem-estar do outro de acordo com as normas e conceitos pré-estabelecidos.
Podemos pensar que dentro das condições institucionais e mesmo em relação à própria demanda dos sujeitos nelas assistidos, esse primeiro momento do tratamento seja o suficiente para que esses sujeitos possam encontrar maneiras menos sofridas de se colocarem no mundo. Segundo Serge Cottet (2005) o tempo limitado do tratamento em instituições pode se comparar as entrevistas preliminares, "(...) nessas entrevistas formulamos todas às questões habituais concernentes ao sofrimento, ao sintoma e, o mais precisamente possível, à natureza do embaraço do sujeito."(p. 39) Alguns acabam decidindo fazer análise posteriormente fora desse contexto, outros se utilizam dessa primeira experiência para se desvencilhar de um problema e dar seguimento à vida.
Assim, o benefício terapêutico obtido pela aplicação da psicanálise é contingencial, podendo ou não acontecer, e singular, estando ou não de acordo com a demanda do Outro (instituição, família etc.). Dessa forma, a obtenção de efeitos terapêuticos pela via da psicanálise não é garantia reconhecimento para aquele que a pratica, cabendo, então, aceitar a condição de ser instrumento, objeto versátil, multifuncional e que se presta "a usos muito distintos daquele que fora concebido sob o termo de psicanálise pura"(Miller, 1999). Como afirma ainda Miller (2008) "O ser do analista é isto: um instrumento, nada mais que isso, é algo que alguém toma e se analisa com esse instrumento. E nossa arte é saber nos prestarmos a isso, sem demasiadas idéias de grandeza."(p.79).
CONCLUSÃO
A partir dos casos discutidos podemos considerar que o tratamento psicanalítico pode oferecer aos sujeitos identificados ao lugar de doentes uma alternativa à degradação do corpo operada pelas doenças inflamatórias intestinais, mesmo sendo doenças crônicas incuráveis. Para tanto, faz-se necessária a disposição de cada paciente em aceitar a via da palavra e da relação transferencial para tratar do sofrimento que privilegia o corpo como palco para se manifestar.
Concebemos o benefício ou efeito terapêutico como uma conseqüência do processo onde não se perde de vista o gozo do sintoma como ponto a ser tratado. Tais benefícios podem ser averiguados na particularidade de cada caso, já que, a psicanálise não tem em seu horizonte um ideal de bem estar e felicidade, não sendo possível estabelecer, a priori, o que será terapêutico para um sujeito.
Vemos que a presença do discurso psicanalítico nas instituições permite outra abordagem do mal-estar apresentado pelos pacientes, muitas vezes enigmático e que não obedece ao esquema esperado. Por não corroborar para a indexação do sintoma numa categoria, o tratamento psicanalítico permite que as soluções sejam encontradas pelos próprios pacientes e, por isso, sejam mais efetivas.
Estamos advertidos dos riscos que a psicanálise corre no âmbito institucional, de ver-se diluída em meio a tantas especialidades terapêuticas, consumida pela demanda de eficácia pontuada quantitativamente. Todavia, as configurações sintomáticas que colocam o corpo em evidência e apresentam demandas pouco convencionais, têm sido cada vez mais comuns não somente nas instituições, mas também no âmbito da clínica privada, nos convocando a um posicionamento.
Sendo assim, não devemos nos esquivar às demandas de tratamento que nos são endereçadas, pois, não nos aferrando às nossas certezas e garantias teóricas e práticas, podemos aprender com as novas formas sintomáticas e estarmos à altura do mal-estar de nosso tempo.
REFERÊNCIAS
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1 Especialista em Psicologia Hospitalar pelo HCFMUSP. Psicólogo do Serviço de Psiquiatria e Psicologia do ICr-HCFMUSP.
2 Mestre pelo Instituto de Psicologia da USP. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo HCFMUSP. Psicanalista Associada ao Centro Lacaniano de Investigação da Ansiedade, CLIN-a.
3 Psicóloga, Especialista em Psicologia Hospitalar pelo HCFMUSP.
4 As doenças inflamatórias intestinais, representadas principalmente pela retocolite ulcerativa idiopática (RCUI) e pela doença de Crohn (DC), são doenças gastrointestinais de causa desconhecida, embora seja assinalada a participação, em sua patogenia, de fatores imunológicos, inflamatórios, genéticos, infecciosos, ambientais, dietéticos e psicossociais. Por isso, o tratamento envolve vários profissionais da saúde, como nutrólogos, nutricionistas, estomaterapêutas, assistentes sociais psicólogos etc, além de médicos clínicos e cirurgiões (Andus, 2000; Silverberger, 2005; Sands, 2007). São consideradas, portanto, doenças complexas e de etiologia multifatorial, que requerem tratamento clínico e cirúrgico.